Levar o navio a bom porto

[dropcap]H[/dropcap]avia uma canção muito popular no tempo da Revolução Cultural, cujos primeiros versos diziam mais ou menos o seguinte, “A boa navegação depende do piloto e o crescimento dos seres vivos depende do Sol”. Mas, para além do Sol, também é necessário que haja água; de outra forma os seres vivos morrem de desidratação. No que respeita à navegação, o piloto é sem dúvida importante, mas o capitão e a restante tripulação também são indispensáveis, porque impedem que o piloto siga na direcção errada e que choque com um iceberg ou que encalhe nas rochas. Mas se o capitão pilotar o navio e cometer um erro, todos sofrem as consequências. Vou recorrer ao enredo de um filme para me explicar melhor. Um grupo de pessoas apanhou numa carrinha vermelha, à noite, em Mong Kok, Hong Kong. O condutor muito exaltado, conduz a toda a velocidade. Se os passageiros não conseguirem travar o condutor, o deus da morte esperará por eles na próxima curva. No mundo em que vivemos, os países estão constantemente a disputar um jogo de xadrez. A proliferação do populismo e do nacionalismo, associada aos efeitos da COVID-19, está mergulhar o mundo em águas turbulentas. Depender apenas do piloto para garantir uma navegação segura, vai conduzir-nos a um grande desastre.

Quando Ho Iat Seng se candidatou às eleições para Chefe do Executivo de Macau, nunca imaginou que teria de vir a lidar com uma das situações mais desafiantes dos últimos 100 anos. Enquanto piloto da RAE de Macau, como é que irá abordar o futuro da cidade?

Com o aparecimento de uma terceira vaga de COVID-19, e sabendo nós que antes do final do ano não estar disponível uma vacina, é muito pouco provável que a economia de Macau se comece a erguer nesta segunda metade do ano. De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego, a taxa de desemprego dos residentes subiu 3.5% e a taxa de subemprego também cresceu entre 0.5% e 2.6%. Todos os peritos na matéria afirmam que estes valores vão continuara a aumentar. Para já, é impossível prever quando é que esta tendência se começará a inverter. A única esperança é que o Governo Central retome a política de “Vistos Individuais”.

O Governo de Macau sustém a economia doméstica através do plano de subsídio de consumo, das excursões locais e da formação subsidiada, finaciados pela reserva financeira acumulada aos longo de anos. O objectivo é apoiar a economia até que a epidemia acabe. Mas que rumo vai tomar Macau a seguir à pandemia?

Tanto Hong Kong como Macau adoptaram o sistema político executivo, liderado pelo Chefe do Executivo. Qualquer decisão errada que o Chefe do Executivo tome vai reflectir-se em todos os sectores da sociedade.

Este problema agrava-se quando a equipa administrativa é incompetente, ou quando é composta por alguns elementos de extrema-esquerda. As sugestões de que Macau deveria ter uma lei como a Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong, e ver os nomes portugueses das suas ruas alterados, partem precisamente desses elementos extremistas. Quando um navio se inclina só para um lado, é certo que vai ao fundo.

Ninguém nega a importância de salvaguardar a segurança nacional, no entanto é preciso ter em conta a eficácia da lei que a deve assegurar. Depois da Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong ter sido introduzida em Hong Kong, as reacções locais e internacionais serviram de barómetro para medir essa mesma eficácia. Pilotar um navio é uma honra e uma responsabilidade. Mas se o piloto não for hábil, e apenas se mantiver no leme por amor ao poder, quer os passageiros quer a tripulação serão as suas vítimas. Deng Xiaoping disse certo dia, “A China tem de manter a vigilância contra as tendências de “Direita”, mas antes de tudo deve combater as tendências de “Esquerda”; as tendências de “Direita” podem arruinar o socialismo, mas as de “Esquerda” também.

Quando a extrema-esquerda se cruza com a extrema-direita, o resultado é sempre conflituoso. A COVID-19 é um novo tipo de vírus, que pode ser combatido com vacinas. Mas os virus politicos matam silenciosamente e é muito difícil encontrar uma cura definitiva. Para levar um navio a bom porto, para além do piloto e do capitão, toda a tripulação tem de participar sempre que necessário; caso contrário o navio naufraga e para os seus ocupantes não haverá mais nada para além da morte.

31 Jul 2020

Estátuas há muitas

[dropcap]U[/dropcap]m dos últimos governadores alemães de Qindao, na China, foi preso pelos seus por ter gasto em demasia na edificação de um palácio solitário, em frente ao mar, na arriba de uma praia do Mar Amarelo. Hoje esse palácio é um museu. No seu jardim, em 2002, acumulavam-se por ali, de forma desordenada, estátuas alusivas à Revolução Cultural. Por lá passeei em tarde fria, hipnotizado pelas intenções de pedra, pela energia condensada das palavras de ordem, agora exiladas das praças, das ruas, das rotundas. Uma outra era surgira e impusera outra linguagem. Era já antigo o que há tão pouco tempo fora erguido para ser radicalmente novo. O que antes tanto inspirara, horrorizava agora os olhares recentes da China mercantilista.

No templo de Confúcio, em Qufu, os Guardas Vermelhos destruíram uma estátua do Mestre, datada da dinastia Ming. Nunca dela vi qualquer fotografia. Era, ao que dizem, magnífica. Um guia lamentava a sanha dos revolucionários maoístas e mostrava-me uma frase, por eles escrita a negro numa parede, nesses tempos avermelhados. Não a quis traduzir. “Por que não a apagam?”, perguntei. “Sabe”, respondeu-me com meio sorriso, “a caligrafia de quem a escreveu é excelente”. E afastou-se do lugar.

Mais adiante, nesse mesmo templo, existe a parede de Lu, onde os escritos confucionistas foram escondidos durante a dinastia Qin (221-207 a.E.C.) e depois mais tarde recuperados para se transformarem na base fundamental das culturas chinesa, japonesa e coreana, entre outras. O imperador, que pela primeira vez unificara a China, ordenara a sua destruição total. Livros foram queimados e letrados sepultados vivos.

Em Angkor Wat, no Cambodja, os budistas cortaram a cabeça a inúmeras de estátuas de deuses hindus que, certamente, perturbavam as suas meditações moralistas. Contudo, fizeram um considerável Buda e ele para ali ficou sossegado até o monumento, engolido pela floresta e o desprezo dos homens, voltar a emergir e a despertar tanto interesse que hoje se inscreve na bandeira do país. Quando os Khmers Vermelhos lá chegaram e com ela se depararam, animados de um estranho monoteísmo, resolveram também destruí-la.

Contudo, um monge ventríloquo fez a estátua murmurar umas palavras e os jovens revolucionários fugiram apavorados dos espíritos em que não acreditavam. Hoje, uma parte importante da estatuária de Angkor Wat, talvez a mais bela, mora em museus franceses e outra em museus vietnamitas, consequência da “libertação” do país do mando de Pol Pot.

Por todo o Paris, existem estátuas de tipos que não se davam nada bem. Parecem, no entanto, conviver hoje pacificamente por muito que uns tenham guilhotinado os outros. Na verdade, ignoram-se, porque são estátuas: a pedra e o metal ainda não pensam, não sentem desejos, nem exprimem ambições.

Em Roma, o Vaticano prendeu, torturou e queimou Giordano Bruno, um dos mais brilhantes pensadores da sua época. Séculos mais tarde, aproveitando um momento em que o poder da Igreja se esvanecera, um grupo de jovens admiradores do sábio mandou fundir rapidamente uma estátua e colocou-a no preciso lugar onde ele fora barbaramente executado. Ainda preside, escura e sinistra, ao mercado diário que ali se desenrola no Campo dei Fiori. Alguém discretamente a seus pés deposita, de quando em quando, uma rosa.

Na Cidade Eterna, são muitas as estátuas emasculadas porque era desconfortável a um Papa a visão de sexos masculinos, ainda que engelhados e em estado de repouso.

O Porto edificou uma estátua à humilhação francesa às mãos dos ingleses, enquanto os primeiros nos traziam as Luzes e os segundos nos limitavam a independência e transformavam numa espécie de protectorado. Em Lisboa, a estátua de D. Pedro V no Rossio é, na realidade, uma representação do imperador Maximiliano do México, que incarnou um dos últimos sonhos, magnificamente disparatado, do colonialismo europeu. As valsas vienenses só brevemente soaram nos palácios mexicanos. A estátua de Maximiliano não passou de Lisboa.

Tanto faz. A arte pública tem sempre o duplo condão de elogiar e ofender. Nada a fazer. Os iconoclastas são globais e, em geral, surgem sempre possuídos por uma “verdade” qualquer, na qual piamente acreditam e pela qual estão dispostos à barbárie. Nem a dúvida os trava, nem o ridículo os faz parar. Por mim, também tenho ganas de derrubar algumas coisas: sobretudo, qualquer teoria que nos queira fazer acreditar num mundo verdadeiro.

15 Jun 2020

Sara F. Costa, tradutora de “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea”: “Há um trauma colectivo nestes poemas”

Depois de “Transfiguração da Fome”, Sara F. Costa decidiu embrenhar-se no mundo da tradução de poemas chineses escritos após um dos períodos mais conturbados da história da China. “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea” traz uma selecção e tradução para português de 33 poemas escritos após a Revolução Cultural

 

[dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de autores do período pós-Revolução Cultural?

Apesar de eu me ter guiado por um certo enquadramento tanto a nível temporal como conceptual, realço que se trata de uma selecção que tem muito de pessoal. Vão encontrar nomes sonantes como Bei Dao, Hai Zi, Gu Cheng, mas vão encontrar nomes que só se encontram deambulando de leitura em leitura pela cena literária dos hutongs em Pequim ou no bar da poeta Zhai Yongming em Chengdu, sem terem necessariamente publicado fora de revistas literárias independentes. O período da Revolução Cultural e o Pós-Revolução Cultural fascina-me particularmente quando falamos da poesia moderna porque é quando surgem movimentos como os “poetas obscuros” (朦胧诗⼈). É quando surgem as revistas não oficiais e os salões literários (沙⻰) que, no fundo, nunca deixaram de existir nos meandros citadinos da China. Acho que é, no seu conjunto, um trabalho que pode fornecer pistas para quem quiser aprofundar o seu conhecimento sobre poesia moderna chinesa.

Que China que existe nestes poemas?

Diria que há, sem dúvida, sintomas de um trauma colectivo nestes poemas. Há uma certa China desmistificada, um desalento face à privação de uma primordial mudança. De salientar que nem todos os poetas deste livro têm uma postura abertamente política. Alguns apenas quebram com determinadas barreiras estéticas e optam pelo recurso a uma linguagem mais vernacular. Na sequência dessas opções estéticas, acabamos por ter acesso a uma China moderna, simultaneamente intercultural e aculturada. Uma visão crítica face à sociedade de consumo e uma pertinente revisão do conceito de “sofisticação” que a sociedade chinesa adoptou (sobretudo em relação aos produtos estrangeiros).

Qual o impacto que a Revolução Cultural terá tido nestes autores? É possível estabelecer alguma comparação com a poesia que se fazia antes desse período da história chinesa?

Após o fim da era imperial e o surgimento da República em 1911, Hu Shi e Cen Duxiu, proclamam a utilização de uma linguagem vernacular em detrimento do chinês clássico na produção literária, naquela que ficou conhecida como a Revolução Literária. É também nesta altura que surge o verso livre. Depois da institucionalização da poesia, a poética não oficial (⾮官⽅诗坛) opõe-se à poesia oficial ortodoxa e institucional e quebra com imposições estéticas e de conteúdo, libertando-se dos espartilhos ideológicos que a poesia oficial impunha. É por isso uma poesia com maior liberdade. Contudo, esta poesia não rompe completamente com a longa linhagem histórica que continua a influenciar muitos valores estilísticos e mesmo de conteúdo na produção poética actual. Há caractectísticas que já se encontravam até antes da época de ouro da poesia chinesa, (dinastias song e tang) como a importância do ritmo, a imagética sofisticada, muitos conceitos taoistas (nas metáforas sobre silêncio, vazio, contemplação estóica, a não-acção enquanto acção, etc), a relação alegórica entre o natural e o humano e as reflexões sobre destino e poder. É interessante verificar que a relação entre política e poesia na China é também uma conexão ancestral. Desde Qu Yuan passando pelo poeta imperador Li Yu e os inúmeros estadistas que eram poetas durante a Dinastia Tang como Yuan Zhen, quando o acesso ao poder era feito através dos conhecidos exames confucianos que avaliavam, entre outras coisas, a capacidade de escrever poesia.

O que é que a surpreendeu mais nestes poemas, no que diz respeito à mensagem que transmitem, à forma da escrita? Rompem com o que se vinha fazendo desde então na poesia chinesa?

Surpreendeu-me essa lealdade à tradição ancestral que referi na questão anterior, mas ainda me surpreendeu mais a forma como o melhor dessa tradição se combina com uma certa dose de ousadia. Há uma harmonia entre classe, subtileza e a função disruptiva do poema moderno. É uma poesia de pormenores, com muitos traços experimentais. É um bom exemplo da criatividade que se encontra nos artistas chineses contemporâneos em geral. Um facto curioso: apercebi-me que vários dos autores dos poemas que traduzi se suicidaram. É uma coincidência interessante. No caso de Gu Cheng, enforcou-se depois de ter assassinado a esposa. Apesar de saber perfeitamente disso, fico na mesma perplexa perante esta confirmação sobre a natureza da poesia: é um assunto sério, intenso e muitas vezes violento.

Que expectativas coloca em relação à resposta por parte do público português a este livro?

Quem já se interessa por poesia, terá certamente curiosidade em dar uma vista de olhos naquilo que se anda a fazer naquela parte do mundo nesta matéria. Digo “anda a fazer” porque este trabalho é sobre contemporaneidade. Há outras formas de se aceder aos clássicos – dinastias song e tang – mesmo em português, com boas traduções. Mas há muito pouco em português sobre poesia chinesa actual. Este livro pretende ser precisamente um ponto de partida, facultando pistas e deixando referências. Grande parte dos poemas seleccionados neste trabalho não se encontram traduzidos noutras línguas mais amplamente estudadas por cá como o inglês ou o francês e a única forma de aceder a esses poemas é indo directamente à fonte em mandarim. Nesse sentido, encontro assim duas vantagens para quem quer complementar e aprofundar o seu conhecimento da literatura chinesa: uma visão – na organização e selecção que fiz daquilo que considero representar o avant-garde e a poesia “não oficial” e, por outro, o acesso exclusivo a um trabalho que incorpora alguns incontornáveis poemas traduzidos para outras línguas mas que é composto, maioritariamente, por poemas que até agora só estariam acessíveis a quem lesse mandarim.

Quando se deu o seu primeiro contacto com esta literatura “underground” e porque lhe interessou esta cena literária?

Quando fui para Pequim no início de 2018, o editor João Artur Pinto, da Labirinto, já me tinha lançado o repto para traduzir poesia chinesa para português, mas eu estava ainda a tentar encontrar exactamente o que gostaria de traduzir. Depois de conhecer a organização com a qual vim a trabalhar, o colectivo artístico Spittoon, foi quando tive um contacto próximo com a vida dos artistas boémios dos hutongs de Pequim e quando veio o ímpeto de me desafiar mim própria para este projecto.

Depois de publicar “A Transfiguração da Fome”, como foi a transição para um trabalho de tradução deste nível?

Um escritor tem necessariamente que ler. Ler o máximo que puder. Muitas vezes, ler coisas que são muito diferentes daquilo que escreve. Traduzir é uma forma de leitura contemplativa. É uma forma de interpretar um poema e dar-lhe uma nova casa. Uma casa linguística. Sem dúvida que traduzir faz parte de um processo criativo que complementa a escrita. Este foi um projecto muito pessoal e fi-lo sobretudo para aprender com ele. Desde ler bastante, seleccionar, aprender a traduzir, aprofundar conhecimento linguístico, etc. Foi um acto de imensa aprendizagem e de auto-formação.

Esta obra estará disponível em Macau?

Sim! O editor já está a tratar de fazer com que alguns exemplares se encontrem à venda fisicamente em Macau. O livro pode sempre ser encomendado à editora que enviará para qualquer destino.

21 Mai 2020

Casamento e divórcio durante a Revolução Cultural

Legenda FOTO: Certidão de casamento de 1971. À esquerda pode ler-se: O Partido Comunista Chinês é a nossa força motriz. O quadro teórico que nos guia é o Marxismo-Leninismo.

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ranscrevo em baixo, na integra, uma decisão sobre um divórcio de 1968. O Tribunal elencou os motivos da recusa do divórcio, que na época eram considerados justos e adequados.

O veredicto abria a Suprema Decisão com a citação de alguém que era, nem mais nem menos, do que o próprio Presidente Mao:

***

Suprema Decisão

Combatei o egoísmo e o egocentrismo, bem como o Revisionismo!

O vencedor da luta ideológica entre o proletariado e a burguesia é, por enquanto, desconhecido. Devemos continuar a resistir aos pensamentos burguês e pequeno-burguês. Se não compreendermos esta realidade e desistirmos da constante luta ideológica, cairemos no erro e na incorrecção.

Supremo Tribunal Cível do Povo de Pequim

Reg. No. XXX

Proponente:  Shi Dehong, sexo masculino, 38 anos, quadro do Secretariado da West Mining, Pequim

Citado: Pan Xiulan, sexo feminino, 35 anos, quadro do comité do partido na prefeitura de Xianning Província de Hubei.

Caso: divórcio

Shi Dehong e Pan Xiu-lan casaram-se em 1952.  Tinham uma relação normal e dois filhos: uma rapariga, Xiaoling, de 14 anos e um rapaz Xiaoxia, de 7. Recentemente, Pan Xiulan começou a ver o mundo com outros olhos e permitiu que a ideologia burguesa sobre casamento e família a dominasse. Por causa disso, em 1964, Pan Xiulan apelou para o Tribunal Popular de Mentougou, Distrito de Pequim, e interpôs um processo de divórcio contra o marido, alegando que o casamento tinha sido arranjado e que não se amavam um ao outro. Em Junho de 1965, o Tribunal Popular do Distrito de Mentougou declarou o divórcio por comum acordo (Reg. No. XXX). Shi Dehong recusou-se a aceitar o veredicto. Em Novembro de 1967, O Tribunal Popular Intermédio de Pequim manteve a decisão de divórcio de comum acordo (Reg. No XXX). Shi Dehong, insatisfeito com o resultado, continuou a lutar por uma reconciliação. Na sequência da sua luta apelou para o nosso Tribunal.

O Tribunal apurou que Pan Xiulan e Shi Dehong se conheciam e trocaram presentes antes do casamento, o que prova que tinham um relacionamento de livre vontade. O casamento não foi “arranjado”. O alegado “casamento arranjado” não é factual. Quanto à alegação “os esposos não se amavam um ao outro”, ela é única e exclusivamente derivada da contaminação de Pan Xiulan por ideais burgueses. Estamos perante um caso em que, no seio de um casamento e de uma família socialistas, se travou uma luta feroz entre a burguesia e o proletariado. A ideologia burguesa deve ser criticada e combatida a todos os níveis. Nunca podemos permitir que se espalhe livremente e que mine a prática do casamento e da família socialistas. Desde que Pan Xiulan tome como princípio orientador o “Combate ao egoísmo, ao egocentrismo, bem como ao Revisionismo!”, recorrendo ao pensamento do grande Mao Tsé Tung para criticar, assim como ultrapassar as ideias e os comportamentos burgueses respeitantes à família, o casamento poderá ser salvo e aperfeiçoado.

O Presidente Mao disse: “Ainda teremos de lutar por muito tempo contra a burguesia e a pequena-burguesia. Todas as ideias erradas, todas as ervas daninhas e todos os monstros terão de ser criticados, e nunca devemos permitir que andam à solta e proliferem.” Ao lidar com conflitos familiares e matrimoniais, o tribunal do Povo deve estabelecer a diferença entre o certo e o errado, baseado na teoria da luta de classes e no método de análise de classe e, ser sempre resolutamente crítico e resistente à ideologia burguesa. A decisão do Tribunal Popular de Pequim, Distrito de Mentougou, revela que a luta de classes entre as duas ideologias foi ignorada e demonstra ser um sub-produto da simpatia burguesa de Khrushchov pelos “sentimentos”. O Tribunal Popular Intermédio falhou por não ter condenado esta visão reaccionária de casamento, e por não ter corrigido o erro. Ambos os veredictos estão errados e devem ser anulados.

Em conformidade, o nosso Tribunal delibera o seguinte:

1. O Tribunal anula o (Reg. No. XXX) do Tribunal Intermédio de Pequim e o (Reg. No XXX) do Tribunal Popular de Pequim, Distrito de Mentougou.

2. Este Tribunal indefere o divórcio entre Pan Xiulan e Shi Dehong.

 28 de Junho, 1968

8 Nov 2017

China | Deng Xiaoping morreu há vinte anos

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos depois da morte de Deng Xiaoping, o líder que abriu a China à economia de mercado, resta em Pequim pouco de herança operária, arrasada para dar lugar a torres envidraçadas e complexos luxuosos. No centro da capital chinesa, porém, um prédio semi-devoluto de oito andares remete para a ortodoxia comunista que perdurou na China durante o reinado de Mao Zedong (1949 – 1976).

O edifício ‘Fusuijing’ foi construído em 1958, inspirado no “Grande Salto em Frente”, uma campanha lançada por Mao para “acelerar a transição para o comunismo”, através da colectivização dos meios de produção.

“Não importava qual a posição ou autoridade de quem vinha para aqui morar, as casas eram gradualmente ocupadas, sem olhar a classes”, conta Zhang Qiwei, 60 anos, que viveu quase toda a vida no prédio.
Nenhum dos apartamentos tem cozinha: os habitantes comiam juntos numa cantina comum, segundo o espírito revolucionário da época. Espaços para ler, jogar xadrez ou para as crianças brincarem eram também partilhados.
“Alguns populares viviam até em casas melhores do que membros da marinha, exército ou força aérea”, diz Zhang Qiwei.
“Agora, os funcionários do partido moram em vivendas, enquanto o trabalhador não tem onde viver”.
Hoje, emaranhados de fios eléctricos, paredes descascadas e tralha amontoada nas escadas ilustram a degradação do edifício, situado a poucos quilómetros do bairro de Fuxingmen, sede de algumas das maiores empresas da China.
Automóveis Porsche, Ferrari ou Maserati são ali às dezenas, enquanto espaços outrora associados a um estilo de vida burguês – centros comerciais ou lojas de luxo – se multiplicaram nos últimos anos a um ritmo ímpar.
Mas para os chineses da geração de Zhang Qiwei, formados num ambiente de extrema politização, a realidade gerada pelas reformas económicas promovidas por Deng Xiaoping é difícil de aceitar.
“O povo está dividido; existe um materialismo excessivo”, refere. “No período de Mao Zedong, trabalhava-se arduamente sem pensar em dinheiro: lutava-se por um ideal comum”. “Hoje, as pessoas ganham dinheiro, mas não dão o litro”, diz Zhang.

Prós e contras

Para os maoístas, Deng Xiaoping, que morreu a 19 de Fevereiro de 1997, é culpado por problemas como a corrupção e desigualdade social, as duas principais fontes de descontentamento popular na China actual.
Afastado duas vezes por Mao, Deng, um antigo “seguidor do capitalismo”, assumiu o poder poucos anos após a morte do fundador da República Popular.
O desenvolvimento económico – e não o “aprofundamento da luta de classes”, como no tempo de Mao – tornou-se “a tarefa central”.
A pobre e isolada China, que vivia até então num universo à parte, mergulhada em constantes “campanhas políticas”, converteu-se em 40 anos numa potência capaz de disputar a liderança global com os Estados Unidos.
“Após a China adoptar a política de reforma e abertura, o nível de vida do povo melhorou”, conta Zhang Yan, de 66 anos, e também residente de longa data no edifício.
“Quem foi perseguido [durante o maoísmo] tem de agradecer muito a Deng Xiaoping”, acrescenta.
Zhang e os pais foram vítimas da Revolução Cultural, uma radical campanha política de massas lançada por Mao para “aprofundar a luta de classes sob a ditadura proletária”.
Entre 1966 e 1976, dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas sob a acusação de serem “revisionistas”, “reaccionárias” ou “inimigos de classe”.
Só no interior da China, estima-se que a violência tenha deixado 750.000 mortos.
Após a morte de Mao, contudo, os seus mais fiéis seguidores, incluindo a mulher, Jiang Qing, acabaram na prisão, e o próprio Partido Comunista Chinês classificou aquele período como “o maior erro e o mais grave retrocesso da história do socialismo na China”.
“Foi muito doloroso”, recorda Zhang Xiaoyan sobre a Revolução Cultural. “Sem a política de Deng Xiaoping, o meu pai ficaria para sempre marcado como um elemento negro”, conclui.

20 Fev 2017

Efeméride | Motim 1-2-3 aconteceu há 50 anos

O projecto de construção de uma escola na longínqua ilha da Taipa mais os dias quentes da Revolução Cultural levaram a que parte da comunidade chinesa se tenha revoltado contra a Administração portuguesa no ano de 1966. Jorge Fão começava a carreira como funcionário público; António Cambeta tinha acabado de chegar. Hoje recordam dias difíceis que já não voltam

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á 50 anos aconteceu no centro histórico de Macau o que hoje seria impensável: pessoas foram mortas a tiro, foram arrancadas pedras do chão para servirem de armas e estátuas de personalidades portuguesas foram derrubadas. Tudo começou no dia 3 de Dezembro de 1966, com um motim desencadeado pela comunidade chinesa que demoraria cerca de dois meses a ser sanado e que só seria totalmente resolvido com a chegada ao território do Governador Nobre de Carvalho.

Viviam-se na China os tempos da Revolução Cultural, imposta por Mao Zedong, e em Macau sopravam ventos comunistas. O longo embargo à construção de escola, na Taipa, ligada ao Partido Comunista Chinês, levou a que um grupo de pessoas tenha despoletado um motim contra a Administração portuguesa.

Jorge Fão, ex-deputado e actual dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), tinha na época pouco mais do que 18 anos. Com uma maioridade atingida à força, pois precisava de trabalhar, Jorge Fão tinha acabado de ingressar na Função Pública e trabalhava nas instalações do antigo tribunal. Recorda um motim que começou com um episódio aparentemente sem importância.

“Queriam construir uma escola na Taipa e o administrador das Ilhas na altura, de apelido Andrade, mandou embargar a obra. Dizia que não tinha licenças e claro que as pessoas fizeram barulho. Mas isso alastrou porque demos oportunidade. Nós, portugueses, não tivemos sensibilidade para perceber a situação política da China”, recorda Jorge Fão ao HM.

António Cambeta chegou como militar a Macau em 1963. Quando o motim explodiu nas ruas, já trabalhava numa empresa de navegação na Avenida Almeida Ribeiro e tinha uma namorada chinesa, hoje sua mulher. Recorda os momentos negros em que os acontecimentos da Revolução Cultural se fizeram sentir em Macau.

“Os chineses andavam muito saturados da Administração portuguesa e da forma como eram tratados. Eram rebaixados em tudo e para tratarem de qualquer assunto junto da Administração tinham de pagar por baixo. Até então estavam calados, mas o episódio da escola e o início da Revolução Cultural fizeram com que tudo desse uma volta”, contextualiza. “Os comunistas reuniram-se perto do hospital Kiang Wu, na véspera do dia 1 de Dezembro, e nessa noite saíram para o centro da cidade. Morava nessa altura na Rua Coelho do Amaral e à hora de jantar ouvi um grande barulho. As pessoas começaram a mandar vir contra os portugueses. Fui à janela e vi que era esse grupo de comunistas a fazerem barulho. Estava a jantar em casa da minha namorada, chinesa, e fiquei ali.”

Começou então a perceber que viriam tempos difíceis para os portugueses. “Apanhei o autocarro e o condutor disse-me: ‘Hoje ainda entra, mas amanhã já não pode apanhar o autocarro, porque temos ordens superiores para não vendermos nada aos portugueses’. Aí já havia a separação entre as duas comunidades. Fui para casa almoçar e já não voltei para o serviço.”

Mortes na Rua Central

Numa altura em que Macau não tinha governador, Mota Cerveira, comandante militar em funções, não soube travar o avanço da revolta. “Os chineses aproveitaram e fizeram uma série de manifestações em Macau e na Taipa, e exigiram a demissão do administrador das Ilhas e do comandante da PSP. Começaram a disparar, mataram-se umas pessoas, uma triste memória”, frisou Jorge Fão.

Fão recorda o momento em que lhe passaram uma arma para as mãos, para se defender de eventuais perigos. “Aquilo foi um barulho infernal durante vários dias. Aquilo foi piorando, de tal maneira que gerou tumultos por todo o lado. Armaram os funcionários públicos e deram-me uma espingarda daquelas antigas, com cinco munições, para nos protegermos. Quiseram invadir a esquadra da polícia, na Rua Central, com camionetas a subir a rua. Houve disparos de metralhadora e fizeram recuar as pessoas. Depois invadiram o Leal Senado e derrubaram uma estátua do Coronel Mesquita.”

As mortes que ocorreram na Rua Central (oito mortos e algumas centenas de feridos), causadas por disparos de polícias portugueses que tentaram evitar a confusão, geraram ainda mais revolta. “Com a morte dos chineses, a maioria da população comunista em Macau ficou revoltada. Nas Portas do Cerco havia muitas pessoas ligadas à Revolução Cultural que queriam invadir Macau. Isso poderia ter sido evitado se o administrador das Ilhas não tivesse prolongado por tantos anos a construção da escola chinesa”, diz António Cambeta.

No Leal Senado e na Avenida da Praia Grande derrubaram-se estátuas. “Muitos deles eram chineses ultramarinos e foram para o Leal Senado, mandaram a estátua do Coronel Mesquita abaixo, mandaram livros para o chão, e foram para a conservatória, onde é hoje a Santa Casa da Misericórdia. Queimaram tudo. Depois partiram um braço à estátua do Jorge Álvares. Depois a polícia, como não tinha qualquer preparação, começou a largar gás lacrimogéneo. A partir daí todos os restaurantes e lojas não vendiam nada aos portugueses, foi um período com muita tensão. Muitos portugueses pediram para levar as suas coisas para Lisboa”, recorda o antigo militar.

A solução do Governador

Nomeado Governador, Nobre de Carvalho chegou ao território sem saber o que, de facto, se estava a passar. “Apanhou o motim sem saber como nem porquê e conseguiu resolver o assunto com a ajuda de Carlos Assumpção [antigo presidente da Assembleia Legislativa]. Admiro que uma pessoa com um posto militar elevado tenha conseguido salvar o território. Ele aceitou as condições impostas pelos chineses, indemnizou as famílias dos membros que foram mortos com os disparos. Assinaram uma declaração de arrependimento. Constava que o exército chinês estava aqui ao lado, pronto a entrar no território”, afirmou Jorge Fão.

Também João Botas, jornalista e autor de vários livros publicados sobre a história de Macau, destaca o papel que Nobre de Carvalho teve neste período. “Só soube do que se estava a passar pelo Governador de Hong Kong e foi difícil tentar inteirar-se de tudo. Foi tudo uma bola de neve que era impossível controlar de outra forma. Poderiam ter sido evitadas algumas mortes”, nota ao HM. “Nunca teve o apoio oficial do Governo português e aí não foi fácil para Nobre de Carvalho. Fala-se da humilhação pela forma como ele resolveu o assunto, mas não vejo assim. Bem ou mal, com a ajuda de elementos da comunidade chinesa, resolveu um assunto que foi dramático e que poderia ter tido consequências”.


Palestra acontece amanhã na Livraria Portuguesa

Há cerca de três anos que o jovem activista Sou Ka Hou começou, por sua iniciativa, a estudar o que aconteceu há 50 anos no dia 3 de Dezembro de 1966. O antigo presidente da Associação Novo Macau decidiu pegar em meses de pesquisa e escrita, e realizar uma palestra para lembrar à população que um dia os chineses saíram à rua para lutar por algo em que acreditavam. “A história que os residentes de Macau devem conhecer: meio século sobre o turbulento motim 1-2-3” é o nome da palestra que irá decorrer na Livraria Portuguesa no domingo, entre as 15h e as 18h, e que contará com vários historiadores e académicos que se debruçam sobre o tema.

Ao HM, Sou Ka Hou lamenta que as escolas não ensinem o motim 1-2-3 aos mais novos. “As pessoas de Macau conhecem pouco a história local e este motim é considerado um dos acontecimentos mais representativos da história de Macau. Quero aproveitar este momento para atrair o interesse das pessoas, sobretudo dos mais jovens, deixando-os conhecer a história a partir deste assunto, para que depois tenham interesse sobre outros assuntos importantes”, diz.

“Parece-me que a sociedade não é mais pacífica e que ainda existem algumas confusões, e este acontecimento pode levar as pessoas a pensar, para que a sociedade avance. É uma pena que os manuais da história de Macau não falem disto, além de não registarem outros episódios da história”, defende ainda o actual membro da Juventude Dinâmica de Macau.

Sou Ka Hou recorda que a maior parte das associações tradicionais de cariz político, como a União Geral das Associações de Moradores (Kaifong), surgiu após o 1-2-3.

“O 1-2-3 demorou cerca de dois meses e aconteceu num lugar pelo qual muitas pessoas passam todos os dias. Mas poucos sabem que lá aconteceu este motim. Quando estava a investigar sobre isto percebi que este assunto estava muito próximo de nós, pois todos os dias passamos no Leal Senado. É uma grande inspiração pessoal e também para a sociedade, pois no passado reunimo-nos em conjunto para lutar por alguma coisa. Todas as associações foram fundadas após esse episódio. Há a ideia de que as pessoas de Macau muitas vezes não falam e não reagem a questões injustas, achamos que os locais são sempre indiferentes, mas segundo a história não foi sempre assim. Mas as escolas agora não nos ensinam isso. As pessoas de facto lutaram por algumas coisas”, rematou o activista.


Motim 1-2-3 trouxe “maior visibilidade às associações”

Para o investigador Fernando Sales Lopes, o motim 1-2-3 serviu sobretudo para dar mais poder às associações de matriz chinesa que já existiam, como a Associação Comercial de Macau e os Kaifong (associação de moradores).

“O pós-1-2-3 acaba por trazer outra estabilidade, Macau foi-se preparando a pouco e pouco para a transição de poder, apesar de faltarem ainda três décadas. Sempre houve um poder chinês e um poder português, e havia sempre uma negociação diária”, afirma.

“Depois do 1-2-3 houve um reforço do poder das entidades chinesas. Ho Yin, entre outros, teve um papel relevante neste período. As relações diplomáticas entre a China e Portugal só voltaram a ser restabelecidas após o 25 de Abril de 1974 e só estes capitalistas patriotas desempenhavam o papel de intermediários. Este papel de intermediários entre o poder português e a China acaba por vir a ganhar mais força, acabam por ser embaixadores e tornam-se líderes da comunidade chinesa. As associações chinesas, em vez de estarem fechadas numa comunidade, passaram a intervir no cenário público com mais poder.”

Apesar da importância do motim, o investigador afirma que o 1-2-3 foi “um acontecimento ligado ao contexto da altura. “Em Macau sempre fomos um porto de abrigo e fomo-lo para os chineses. Revoluções políticas na China sempre houve.”

Para o jornalista João Botas, autor de livros sobre a história do território, “é de facto um dos períodos significativos e marcantes da história de Macau”. “Foi naturalmente fruto do contexto, a história não se repete. Estamos a falar de um período, a consequência do que se passava politicamente na China, da Revolução Cultural, e que mais cedo ou mais tarde acabaria por chegar a Macau e a Hong Kong”, conclui.

2 Dez 2016

Único museu do país dedicado à Revolução Cultural silenciado

Em 2005, Pen Qian, um antigo ajudante do presidente da câmara de Shantou, ao saber que muitas das vítimas dos linchamentos dos guardas revolucionários foram enterrados na zona, construiu o museu. Ao reformar-se entregou a gestão ao governo. Agora foi tapado por cartazes de propaganda comunista e, no local, polícias à paisana disfarçados de turistas, impedem a imprensa de fotografar e filmar e interrogam os jornalistas que se aproximam

[dropcap style=’circle’]S[/droopcap]ituado numa montanha nos arredores da cidade de Shantou está o único museu da China que presta homenagem às vítimas da Revolução Cultural (1966-1976), um local que neste ano, quando o início do movimento completa 50 anos, foi silenciado e passou a correr perigo.
Não é tarefa simples chegar ao museu. Os guias de viagens poucas informações dão e não há placas indicativas ao longo da estrada que leva ao Tashan Park, um parque natural de espessa vegetação onde está o memorial. Para passar despercebido, o museu tem aspecto de templo tradicional, embora nem muros ou lápides mostrem imagens budistas, mas sim os nomes de mais de 300 pessoas acusadas de serem “contra-revolucionários” durante os anos 60 e 70.
Logo na está uma estátua e um retrato, respectivamente, de Yu Xiqu, um prestigiado juiz local que sofreu, como outros aí mencionados, graves abusos por parte dos guardas vermelhos.
A 16 de Maio deste ano foi comemorado, com quase total silêncio da imprensa oficial e das instituições, o 50º aniversário do início daquele período turbulento e, desde então, todo o museu foi tapado por cartazes de propaganda comunista.
Na entrada, sobre o cartaz que indica que ali fica o museu é possível ler outro que diz “Acto de promoção dos valores nucleares do socialismo”. Alusões ao “Sonho Chinês”, o mantra ideológico do actual presidente Xi Jinping, repetem-se nas paredes forradas de cartazes, decoradas com foices e martelos e imagens da porta da Praça da Paz Celestial.
Não é fácil observar outros detalhes, já que polícias à paisana, que se fazem passar por turistas, tentam impedir a imprensa de fotografar e filmar o lugar, e interrogam os jornalistas que se aproximam.

Existir é milagre

O museu foi construído em 2005 e é quase um milagre continuar de pé mais de dez anos depois, tendo em conta que, embora o governo chinês reconheça oficialmente, após a morte de Mao Tsé-tung, que a Revolução Cultural foi um erro, evite relembrá-lo publicamente e, menos ainda, citar as vítimas concretas. Neste caso, foi um líder comunista local que decidiu criar o museu. Peng Qian, um antigo ajudante do presidente da câmara de Shantou, construiu o espaço e foi o que, possivelmente, salvou a estrutura de ser demolida.
Contou Peng que decidiu criar um lugar para homenagear um assunto tão delicado na China, após ficar a saber que muitas das vítimas dos linchamentos dos guardas revolucionários foram enterradas na Montanha Pagoda.
Nos primeiros anos de funcionamento, o museu chegou a atrair uma certa atenção dos média, e até recebeu doações milionárias para a sua manutenção. Todavia, em 2014, pouco antes de se aposentar, Peng cedeu a gestão ao governo, o que fez com que este caísse no esquecimento e que, nas últimas semanas, viesse a ser presa da censura.

É melhor esquecer

Shantou, um dos principais portos do sul da China, está a mais de dois mil quilómetros de Pequim, o epicentro da Revolução Cultural, mas a distância não a livrou, como ao resto do país, dos excessos da época, na qual milhões de pessoas foram indiscriminadamente perseguidas. Embora a Revolução Cultural seja tema de livros e filmes na China – o facto de que quase toda a população do país naquela época tenha sofrido dificulta a censura total – o Museu de Shantou é o único dedicado integralmente a este período.
Existe pelo menos outro museu no país que menciona o período de terror dos guardas vermelhos, o de Jianchuan (centro do país), mas não está dedicado de forma exclusiva a esta matéria, e dá uma imagem neutra ao facto histórico, sem mencionar as vítimas.
Apesar do silêncio no aniversário de 16 de Maio, o jornal oficial do Partido Comunista, “Diário do Povo”, que possui uma versão online em português, publicou no dia seguinte um editorial admitindo que a Revolução Cultural foi “um caos interno que trouxe enormes catástrofes” e aventurou-se mesmo a dizer que nunca se repetirá.

16 Jun 2016

Revolução Cultural | Meio século depois a memória ainda perdura

Passaram 50 anos, mas as memórias ainda perduram e são descritas por um ex-“pequeno guarda vermelho” e por um jornalista que rumou até África. São Yao Jingmin e Li Changsen, dois tradutores da língua de Camões que têm em Macau a sua casa

Reportagem de Diana do Mar, da Agência Lusa

[dropcap dtyle=’circle’]Q[/dropcap]uando a Revolução Cultural começou, Yao Jingming tinha oito anos. Como milhares de crianças chinesas foi um “pequeno guarda vermelho”, enviado para o campo para aprender grandes lições de vida.
“Ainda me lembro de quando era um ‘pequeno guarda vermelho’, das escolas paralisadas, de professores ‘derrubados’, humilhados com uma placa ao pescoço com o nome riscado e o crime cometido, como serem espiões e coisas do género”, contou Yao Jingming à agência Lusa, a propósito dos 50 anos do início da Grande Revolução Cultural.
“Passaram-se coisas horríveis… Assistia com um olhar curioso e, como era pequenino, até achava interessante. Na minha mentalidade, Mao Zedong tinha sempre razão. Ainda não sabia distinguir o bem do mal”, relata.
Yao Jingming nasceu em 1958 em Pequim. Após terminar a escola primária, foi “seleccionado” – eufemismo para obrigado – para estudar Espanhol numa escola ligada ao Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim. A primeira expressão que aprendeu na língua de Cervantes foi: “¡Viva el Presidente Mao!”.
O Espanhol acabaria por ficar na gaveta e no final do ensino secundário, em plena adolescência, foi enviado com os colegas de turma para o campo, onde esteve cerca de um ano e meio para ser “reeducado” pelos “mestres”.

Sorte no caos

Foi só com o final da Revolução Cultural em 1976 e a restauração do sistema de exames nacionais para o acesso ao ensino superior, que Yao Jingming ingressou no então Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, onde se licenciou em Língua Portuguesa e iniciou a sua vida profissional como tradutor.
Mas, antes dele, em 1965, Li Changsen já tentava aprender a língua de Camões e teve a sorte de poder entrar na licenciatura de Português de uma universidade chinesa. “Uma rara oportunidade” para Li que nunca abandonou os estudos, mesmo quando um ano depois irrompeu o caos da Revolução.
Entrou no Instituto da Radiodifusão de Pequim (actual Universidade de Comunicação da China). Com a chegada da Grande Revolução “toda a ordem pedagógica deixou de existir. Tudo dependia, de facto, de cada turma, da vontade dos alunos. Era a anarquia”, relembra.
Metade dos 40 alunos das turmas de Português desistiu dos estudos para se dedicar ao movimento revolucionário, mas os outros decidiram não desperdiçar a oportunidade de terem conseguido entrar na universidade.
“Por isso, apesar do caos em todo o país e também dentro do instituto, eu e outros continuámos”, conta Li, recordando as vezes que foi ao hotel da professora Rosália “só para aprender mais umas palavras, conversar, praticar a língua”, em conturbados tempos em que os materiais didácticos não passavam de uma miragem.

Arroz da memória

Seguindo directivas decretadas por Mao, quase todos os estudantes da escola secundária iam para o campo ou para as fábricas, como relembra Yao Jingmin.
“Aprendemos coisas boas, mas também outras muito negativas. Permitiu conhecer a realidade do mundo rural e, depois, conhecer a humanidade dos camponeses”, conta Yao, considerando que até teve “sorte” porque foi mandado para uma comuna popular nos subúrbios de Pequim.
“Havia duas camponesas experientes para nos guiar. Todos os dias levavam-nos para o campo para trabalhar no arrozal. Sei tudo sobre como cultivar! Mas foi muito duro”, lembra, descrevendo dias que começavam às cinco da manhã e a “enorme fome” no final da jornada: “Comíamos muito, sempre cereais, não havia muita carne”.
“Tenho ainda uma impressão muito clara daquela experiência. Para mim foi positiva porque aprendi muita coisa que não se podia aprender na escola”, sublinha Yao, ainda com as mensagens, músicas e instruções da propaganda transmitidas pelos altifalantes da aldeia presentes na memória.

Outros ensinamentos

A Revolução Cultural paralisou todo o ensino na China. No caso dos cursos de Português, as novas admissões foram suspensas durante sete anos, até ser colocada em marcha uma nova política que veio facilitar a entrada de camponeses, operários e soldados e resgatou os “bem-comportados” que haviam sido enviados para o campo.
Em 1969, “apesar de toda a turma ter sido transferida da cidade para o campo”, Li continuava a estudar, mas apenas de manhã, “porque à tarde ia para a lavoura”. Foram oito meses a aprender o “espírito revolucionário dos camponeses”, num templo antigo e abandonado transformado em sala de aula.
No ano seguinte, foi “felizmente” escolhido para trabalhar na Rádio Pequim – hoje Rádio Internacional da China –, na secção de Língua Portuguesa, onde fez carreira durante mais de duas décadas, como intérprete/tradutor e jornalista. Outros continuaram a receber “reeducação ideológica”.
Em 1973, ainda corria a Revolução Cultural, partiu para África, onde teve o primeiro contacto real com falantes de Português. Foi designado pelo Governo Central para trabalhar em dois centros de treino militar, na Tanzânia, para onde eram enviados guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola e da Frente de Libertação de Moçambique, trabalhando como intérprete durante quase dois anos. Já como jornalista teve um dos pontos altos da carreira em 1987, quando testemunhou a assinatura da Declaração Conjunta sino-portuguesa. Foi para Macau que foi destacado, de seguida, para colaborar no processo de transição. Nunca mais deixou o território.
O caminho foi diferente para Yao, que no final da década de 1980 partiu para Portugal para trabalhar na Embaixada da China. O impacto foi “grande” para quem pouco sabia do mundo.
Conheceu Eugénio de Andrade, o primeiro poeta que viria a traduzir para Chinês. Seguir-se-iam Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner.
Depois de Lisboa, ainda regressou a Pequim mas por um curto período de tempo e no início dos anos 1990 mudou-se para cá, onde ainda vive.

Já chega

A Grande Revolução Cultural Proletária, que agitou a China entre Maio de 1966 até à morte de Mao Zedong dez anos depois, pretendeu purgar a China da “infiltração de elementos burgueses” nas estruturas do Governo e da sociedade.
Por todo o país, os Guardas Vermelhos – grupos de adolescentes e jovens sempre acompanhados pelo “livro vermelho” com os ensinamentos de Mao – ocuparam todas as estruturas da sociedade para impor o novo modelo, enquanto milhões de estudantes e intelectuais foram enviados para os campos para “reeducação” pelo trabalho.
Milhões de pessoas sofreram humilhação pública, prisão arbitrária, tortura, confiscação de bens. A tradição cultural milenar foi renegada, museus, monumentos e livros foram destruídos. Estimativas colocam em 750 mil mortos o resultado da violência da Revolução Cultural.
Hoje, à distância de 50 anos, Yao não tem dúvidas de que as repercussões negativas da Revolução Cultural perduram.
Foi um movimento que, “de certo modo, explorou ao máximo o mal da humanidade: pais que denunciavam filhos, homens que denunciavam as mulheres, tudo para se salvarem a si próprios de consequências muito graves, que podiam ser até a morte. A confiança acabou”.
Yao Jingming ainda reflecte sobre momentos que viveu durante aquele tempo, a partir dos quais constrói poemas.
“Acho que só percebi realmente as consequências negativas da Revolução Cultural, que foi um desastre, na universidade, com a leitura de escritores, também porque tinha o pensamento mais maduro e capacidade para distinguir as coisas”, afirma Yao, confessando não gostar de falar sobre o tema, embora lhe seja “tão familiar”.
Yao Jingming não tem dúvidas em afirmar que “foi pior do que qualquer desastre natural, porque destruiu muitas coisas boas da tradição chinesa. Não só a nível material, mas também espiritual”.
“A nossa moral, o nosso espírito de nação foram fortemente arruinados. Fez-se em nome da cultura, mas foi um movimento puramente político, com o objectivo de arruiná-la”, afirma.
E a lição que fica é simples, é a de que “uma vez já chega. Não pode voltar a acontecer”.

Gary Ngai, o tradutor de Mao Zedong

De necessário a espião

Quando deixou a Indonésia rumo à China, Gary Ngai Mei Cheong mudou para sempre a sua vida. O cargo de tradutor de Mao Zedong não o protegeu da Revolução Cultural e acabou enviado para o campo, acusado de ser “espião imperialista”. 13516P12T2
Nascido na Indonésia em 1932, Gary Ngai tornou-se o primeiro membro da sua família de seis gerações de chineses ultramarinos a partir para a China, onde nunca havia estado.
Foi inserido num grupo de 80 alunos de escolas chinesas da Indonésia “escolhidos” para prosseguir estudos na China, o primeiro grupo de estudantes estrangeiros a chegar à nova China comunista.
“Estávamos em Agosto de 1950, em pleno início da República Popular da China quando cheguei a Pequim”. O sentimento era o de que se vivia “uma época dourada” e que os líderes eram como Edgar Snow os descrevera na obra “Estrela Vermelha sobre a China”.
Após um período de “doutrinação”, foi seleccionado para participar no programa da Reforma Agrária em curso, indo inicialmente para Cantão. “Fiquei surpreendido com a China que encontrei. Éramos apenas jovens estudantes e não sabíamos muito bem o que estava realmente a acontecer, mas havia um extremismo que ia contra a política de que Mao falava”, relata Gary Ngai, 83 anos, à Lusa.
Depois de se graduar, em 1956, iniciou a carreira profissional no Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista da China (PCC).

Algo de errado

Inicialmente afecto à secção do sudeste asiático, foi depois transferido para a da Europa ocidental, em que uma das rotinas passava por traduzir jornais estrangeiros, do Holandês, Sueco, Inglês, Alemão e Italiano para dirigentes do partido.
Esteve com Mao Zedong “poucas vezes, sobretudo quando líderes comunistas da Europa visitavam Pequim”, mas ficava “nervoso por estar muito perto”, porque “ele era, afinal, um líder”.
Com Deng Xiaoping a relação foi diferente. “Traduzia para ele e para os filhos os filmes de ‘cowboys’ a preto e branco que adoravam. A relação era boa e a amizade continuou mesmo depois de Mao ter posto Deng de parte.
Gary Ngai começou a perceber que “algo estava a ficar errado”, no início de 1959, quando lhe foi negada autorização para se juntar a uma delegação que iria partir para Suíça.
“Soube mais tarde que fui discriminado por ser um chinês ultramarino. Foi um amigo meu que trabalhava no gabinete que fazia a selecção que me disse que só foram escolhidos os que não tinham qualquer tipo de relação com o estrangeiro”, recorda.
Seguiu-se uma perseguição no trabalho, buscas em casa, interrogatórios durante dias a fio pela suspeita de “conluio com estrangeiros contra a China”, e violência física e psicológica por parte dos próprios colegas de trabalho que estavam do lado político oposto.
Com a Revolução Cultural (1966-76) em marcha, Gary Ngai foi enviado para a província de Heilongjiang, perto da fronteira com a Rússia, notória pelos invernos rigorosos, com temperaturas que atingiam os 36 graus negativos, sendo transferido depois para Henan. No total foram aproximadamente quatro anos.
“Éramos vistos como pessoas que deixaram de ser de confiança. Os chineses ultramarinos tinham conexões com o exterior e, por isso, consideravam-nos ‘espiões imperialistas’”, diz hoje Gary Ngai entre risos, à distância de 50 anos.
Em 1972, com a histórica visita do Presidente dos Estados Unidos Richard Nixon à China, foi “chamado” a Pequim, voltando antes do que seria suposto, por causa da falta de especialistas em línguas estrangeiras.
Em 1979, mudou-se para Macau, onde continua radicado até hoje.

13 Mai 2016