Internet | Ron Lam quer medidas contra publicidade ilegal

Ron Lam perguntou ao Governo que medidas vão ser implementadas para garantir que os cidadãos não sejam visados por publicidade não aprovada de medicamentos à venda na internet.

Segundo o relato feito pelo deputado, cada vez mais internautas de Macau são visados por publicidades de produtos farmacêuticos, que ao contrário de outros meios publicitários não estão sujeitos a aprovação prévia das autoridades de saúde.

Por isso, o deputado quer saber que medidas vão ser tomadas para evitar este tipo de anúncios publicitários e como é possível sancionar os responsáveis por estas publicidades, mesmo nos casos em que se encontram foram da RAEM. Ron Lam pergunta ainda se existem planos para fazer uma revisão da lei, que se encontra em vigor há vários anos ainda antes de haver publicidades na Internet.

10 Out 2022

Publicidade enganosa

[dropcap]N[/dropcap]o dia 2 deste mês o jornal de Hong Kong Sing Tao Daily publicou uma notícia sobre a jovem Miss Wong, proveniente de Hong Kong e estudante no Reino Unido. Miss Wong levantou um processo num tribunal londrino contra a Universidade Angelia Ruskin. O artigo não adiantava os motivos de forma muita clara, limitando-se a mencionar “publicidade falsa aos serviços”.

Miss Wong inscreveu-se nesta Universidade em 2011, para fazer uma pós-graduação em administração internacional, um curso com duração de dois anos. A jovem escolheu a Angelia Ruskin devido ao panfleto promocional que garantia “Formação de Alta Qualidade” e “Boas Perspectivas de Emprego”. Estas indicações impressionaram favoravelmente Miss Wong. Mas depois do início do ano lectivo ficou decepcionada. As aulas começavam com atraso e terminavam antes da hora. Os estudantes eram incentivados ao “auto-didactismo”. Por tudo isto, a queixosa acusou a Universidade de fraude, na medida em que estava longe de garantir a “Formação de Alta Qualidade” anunciada no prospecto.

Mesmo assim, terminou a formação em 2013 certa de que tinha assegurado o início de uma sólida carreira profissional. Mas sempre que se candidatava a um emprego era rejeitada. O diploma não era reconhecido no mundo do trabalho.

Portanto, para Miss Wong, o curso não assegurava formação de qualidade nem garantia perspectivas de emprego e, como tal, considerou que o prospecto publicitário era enganador.

Após negociação entre as partes, a Universidade indeminizou a queixosa com o montante de 61.000 libras.

Deste valor, 46.000 libras eram destinadas a custas processuais. O sistema legal britânico é diferente do de Macau. A parte que perde o processo arca com as custas da outra parte. A principal despesa deste bolo são os honorários do advogado, que neste caso foram pagos pela parte acusada.

Em entrevista ao jornal Sunday Telegraph, Miss Wong afirmou sentir-se satisfeita com o resultado do julgamento. Disse ainda estar convencida que de futuro a Universidade iria ter mais cuidado com o que escrevia nos prospectos promocionais. Promessas irrealizáveis não devem estar impressas em panfletos informativos.

Embora este caso não envolva uma notícia de monta, para nós, não deixa de ser motivo de reflexão. Como sabemos, actualmente existem nove Universidades em Macau. Devido à implementação da Lei do Ensino Superior, estamos a entrar numa nova era da educação. Quase todas as Universidades têm de estar certificadas. A certificação atesta o grau de qualidade de cada uma delas. Desta forma, as Universidades devem poder garantir até certo ponto o seu nível de ensino.

No entanto, Miss Wong processou a Universidade por incumprimento das promessas feitas aos estudantes no programa promocional. Segundo a notícia, a queixosa baseou o seu processo na falsidade do prospecto. Se tinha ou não tinha razão, é uma questão que fica em aberto. Mas uma coisa é certa, segundo a lei do Reino Unido, a partir do momento em que os estudantes pagam as propinas e ingressam na Universidade, estes prospectos fazem parte do contrato entre as partes.

A Universidade é responsável por honrar os termos do contrato. Se não o fizer, entra em incumprimento e os estudantes podem processá-la.

Embora a situação em Macau seja significativamente diferente da do Reino Unido, o prospecto é considerado um documento oficial na admissão à Universidade. Se existirem diferenças consideráveis entre o programa apresentado e a experiência que os estudantes vivem posteriormente, existirão naturalmente motivos de descontentamento.

Consequentemente, as Universidades terão de ter muito cuidado com a forma com que redigem estes panfletos. Se as promessas se cumprirem todos ficam satisfeitos, mas se não se cumprirem os problemas hão-de surgir. Este caso acaba por ser um alerta para todas as Universidades, lembrando que devem ser cuidadosas na forma de divulgar os seus programas e responsáveis pelas expectativas que criam aos estudantes.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

11 Jun 2019

Leite de coco e mamas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s riscos da publicidade enganosa são vários. A publicidade oferece-nos imagens do que é bom, mau, adequado ou desejado, isto acrescido com dados falsos, torna os anúncios muito problemáticos. A China, por exemplo, já tem uma longa história de anúncios insensíveis. Ainda bem há pouco tempo, ao anunciar um detergente de roupa, meteu um negro dentro de uma máquina de lavar e ele saiu branco.

Agora a história foi diferente, tratou-se de um anúncio de uma popular marca de leite de coco de Hainan que jura que o consumo da sua bebida aumenta o tamanho das ditas redondas e voluptuosas mamas. O anúncio televisivo é qualquer coisa como mulheres a correr pela praia de t-shirts brancas e decotes generosos a balouçar o seu material e afirmando que beber leite de coco todos os dias ajuda a encher os lindos seios. Também afirmam que beber o tal leite torna as curvas excitantes. O que nos vale é que nos dias que correm este tipo de anúncios já é recebido com muita desconfiança e descontentamento. Primeiro, já foram confirmar que não há dados que defendam a tese de uma relação entre o leite de coco e o tamanho das mamas. Segundo, para uma marca tão antiga e popular, as pessoas perguntam-se se é preciso descer tão baixo. Há quem tivesse achado que o anúncio fossem um photoshop pobre e sarcástico. Mas não, este foi um exemplo de má publicidade a continuar a ser má. Para além de que não percebo bem se este esforço de se virar para o público feminino para o fortalecimento da marca foi totalmente irreflectido ou não. Porque duvido que os homens que consomem a bebida (que devem existir) vão querer alterar o tamanho das suas mamas, menos organicamente complexas, mas que não deixam de ser mamas também.

A forma como as mensagens são comunicadas importa. Importa porque nos apresentam imagens do que é a mulher. Isto não quer dizer que os meios de comunicação sirvam de prescrição social: com a simplicidade de que assim aparece, assim acontece – não é nada disso. O que vale a pena analisar nestes momentos polémicos e de discussão é de como o conhecimento comum – como por exemplo, ter mamas cada vez maiores é o que as mulheres querem, por isso nossa bebida vai vender disso – é utilizado. Já para não falar no barrete que esta companhia, que parece não ter um departamento de marketing bem organizado, quer meter. Haverão clientes que de facto querem ter mamas maiores e poderão passar meses a beber o leite de coco que nada lhes trará. Nem curvas mais redondas, nem mamas mais cheias, nem o sex-appeal de quem anda com um push-up nas praias de Hainan.

Sempre reforçarei a importância que é desconstruir a obsessão (já milenar) do corpo feminino porque é a original fonte de desigualdade. A forma como anúncios fazem uso da objectificação do corpo não é o problema, mas o sintoma. Os corpos femininos são lindos e os corpos masculinos também. Só que é comum levarmos ao extremo o dilema do pudor e libertinagem do corpo da mulher. ‘Parece’ aceitável andar a clamar a sete ventos o quão bom seria se as nossas mamas crescessem com uma vulgar bebida diária quando um decote generoso é ainda mal aceite na China. Quem viveu na China continental saberá que uns ombros e um decote que se querem mostrar encontrarão resistência. Por enquanto, não há leite de coco que nos valha, nem para o seu aumento, nem para mamas mais expostas e felizes.

6 Mar 2019

Os fins últimos e a pasta medicinal Couto

[dropcap]N[/dropcap]os últimos anos do século XX, colaborei com uma universidade de Montréal num projecto sobre o ‘imaginário do fim’. Naquele ambiente de fim de século, emoldurado pelos ecos do ‘mundo pós’ e pelas predições (e perdições) do bug do milénio, aliás antecipadas com o crash da Nasdaq de Março de 2000, o tema era aliciante. Mas nunca desarmou, pois é coisa já com barbas.

Falar sobre o “fim” como uma coisa definitiva e absoluta é lembrar um antigo anúncio da pasta medicinal Couto. O homem mordia a cadeira e ela transladava sem parar. Aquilo nunca mais acabava: era pura arte cinética a puxar para o lado da gengiva pós-moderna, como quem diz: fim? Isso é vernáculo medieval. Talvez fosse e com raízes nos grandes desertos. De facto, em certas tribos da Arábia pré-islâmica havia a crença generalizada numa divindade de nome Dahr que fazia da morte a própria razão de ser do humano. Estávamos tramados. Qual elixir, qual Couto, qual quê!

Aliás, a revelação do Corão (não é por acaso que significa o “Recitado”) trouxe a estas pobres comunidades um compreensível sentido de libertação de tipo escatológico (afinal havia paraíso e tal e tal…) e combateu ferozmente esse passado. Leia-se, a título de exemplo, a surata XLV/22-23 que é dedicada aos “adoradores” do Dahr: “Eles dizem: Não há qualquer outra vida senão a vida actual”. Curiosamente, Dahr quer dizer, hoje em dia, em Árabe ‘Tempo’ e a forma substantivada da mesma raíz, ad-dahriyyah, quer dizer ‘Ateísmo’. As palavras fazem por vezes de pasta medicinal das culturas, já se vê. Nada mais esclarecedor do que a condenação perpetrada por uma língua natural à memória daquilo que, um dia, ousou ver-se ao espelho como uma espécie de fim consumado.

Pondo de lado os anúncios televisivos com meio século de idade e as mini-saias que deambulavam pelas passadeiras da Abbey Road, o facto é que o senhor fim prefere deixar de lado a sua casaca de tecido definido (e absoluto) e adora apresentar-se em palco sob a forma de um tornar-se em qualquer coisa. Adora metamorfoses, transformismos, transgenders, espelhos recurvados e o diabo. As últimas etapas das escatologias e das ideologias, relíquias em massa folhada de outros tempos, cantavam o fado da perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero do presente. Com um Gitanes a queimar-lhe a ponta dos dedos, Jean-Claude Carrière caracterizou a gravidade do fim dos tempos como “la fin de l´insupportable contradiction entre le temps divin (suprême, absolu) et le temps humain (limité, relatif)”[1].

Este esbater de persianas entre o que S. Eisenstadt designou por ordem “transcendente” e por ordem “mundana”[2], uma e outra fabricadas em série durante milénios pelas chamadas civilizações axiais, nunca foi suficiente para que a ideia de fim deixasse de ser representada como uma metamorfose. Algumas formas clássicas de compreender o tempo sempre apostaram nesta estratégia de manutenção do fim, sob a forma de algo, ao mesmo tempo, afastado, controlável e sobretudo durável. Como se a cintura de Kuiper, no extremo do sistema solar, fosse, por isso mesmo, uma coisa sexy: uma esplanada elegante (do género das de Carcavelos) muito lá ao longe, onde, com uma coca-cola light a descer pelo esófago, pudéssemos todos olhar para o cosmos sem que ninguém nos chateasse.

Esta congénita dificuldade em clarificar o fim (o fim dos fins… no fim dos tempos) é, porventura, mais um jogo do que uma tentação soft para gáudio do homem que mordia a cadeira com o objectivo de elucidar a eficácia da pasta medicinal Couto. Pessoas respeitáveis (apesar de tudo, caray!) como Heidegger e Borges responderam um ao outro, sentados na esplanada do mano Kuiper e exploraram o assunto laconicamente: o primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”[3]; o segundo, ao afirmar, de modo complementar, que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres” (…) “es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos”[4].

Conclusão? Bom, a coisa parece estar de feição: a eternidade – material inflamável tipo BD que o nosso cérebro, coitado, processa – não passa de uma espécie de negativo fotográfico à Talbot repleto de iodeto de prata, razão pela qual o senhor fim não pode nunca ser entendido como uma ruptura, uma falha ou um deslizar a pique na direcção da falésia, mas antes como um espaço onde se aprende a conter o tempo (não há nada que não se aprenda). Há, pois, meus amigos, que saber conter o mundo antes de nos virmos, antes de nos deslumbrarmos, antes de voltarmos a tomar o elixir azulinho.

Até porque o ‘depois do fim’ (essa fuga para a frente no pardieiro do ‘pós-qualquer coisa’) faz ainda parte daquela esplanada de onde se observa a continuação sine die do relato que está – e estará – sempre em vez do fim. A famosa “semiose ilimitada” proposta por C. Peirce – do que me fui eu lembrar agora! – corresponde a uma teoria em que os fins se convertem sempre noutros fins, prolongando-se indefinidamente na sua própria viagem, que é a viagem do sentido. Não tivesse sido o obscuro exemplo do Dahr pré-islâmico e a própria ideia de fim teria aparecido nesta doce crónica ao sabor de um autêntico “mise en abyme” cultivado pelos humanos, desde que o ‘cagar de pé’ fez a sua solene estreia no planeta Terra. Em última análise, teríamos sempre a pasta medicinal Couto para usar depois (de depois) dos finais do grande e derradeiro flirt.

[1] Les questions du sphinx em Entretiens sur la fin des temps, Fayard, Paris, 1998, p. 63.
[2] Fundamentalismo e modermidade, Celta, Oeiras, 1997, p. 183.
[3] Ser e tempo, Vozes, Petrópolis, 1997, Vol. II, p.125.
[4] Historia de la eternidad em Prosa completa, Bruguera, Buenos Aires, 1979, Vol.1, p. 223.

18 Out 2018

Definitivos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] legenda de um tempo pode ser feita a partir dos títulos comerciais para o consumo. Distantes do “marketing ” os anos sessenta e mais além (até mais aquém, no tempo em que os poetas eram óptimos publicitários) foram bastante criativos na sua função de nomear. Tanto que hoje é com espanto que damos por nós a contemplar a estrutura gráfica de embalagens, revistas, objectos e até jornais. Não sei se se vendia muito ou pouco nem mesmo das características e do sucesso dos conteúdos, mas tudo era sem dúvida feito numa escala mais atraente.

Do «Português Suave» aos «Definitivos» os cigarros seriam deste ponto de vista “light”, fortes e normais, o que está muito bem designado pois que cada um procura nas coisas um certo grau de intensidade, já na marca «Coração» – desenferrujador de metais – não vemos grande ligação a não ser o símbolo solar do órgão visado… e, quanto aos metais, desenferruja-os, que os nobres por assim serem, não precisam de tal acção. Coisas tão bonitas com imagens tão refinadas que ficamos a contemplar: senhoras elegantíssimas lavando o chão até ao restaurador «Olex», em que o espanto seria a textura dos cabelos entre povos diferentes.

Víamos isto como se o mundo fosse uma lenda onde todas as coisas estavam ordenadas. Os Piratas que furam as orelhas para verem melhor ao longe, num local preciso do lóbulo da orelha, eram esticados em pastilha elástica, o «Ajax» era um tornado branco a cavalgar entre sebes fazendo de um detergente um antídoto mitológico, a pasta medicinal «Couto» exaltava a dentição africana como se fosse natural andar com cadeiras na boca, as «Sebentas» tão inteligentes e úteis para fazer coisas nem que fosse riscar… era tida também como sinónimo de sujidade aplicada à condição física juvenil caso nos sujássemos todos a comer gelados «Rajá».

Era um mundo assim, eufemístico, que se iria aos poucos endurecendo com o recurso cada vez maior à imagem. A legenda era uma graça que nos entrava pela imaginação adentro e onde cada um completava o artefacto dos conteúdos, não raro tinha o poder de recriar em volta um paraíso. Havia regras a preto e branco, também, aquela placa a dizer« As crianças com menos de oito anos não devem assistir aos nossos programas a partir das vinte e duas horas». Uma secura, sem canção de embalar, uma ordem, sem beijos dentro: mas, não raro, também censurávamos a programação pondo-nos à frente do ecrã que de tão grande e nós tão pequenos deixava ver as bordas dessa intransigente mensagem.

Vamos assim recuperando os nossos sonhos, mas não deixávamos de ser despertos para o estranho mundo que nos envolvia. Hoje, há distância de décadas que parecem séculos, não somos essas pessoas graves urdidas de censuras constantes, pois que guardámos o transitório como se guardam os poemas antigos e não nos fizeram o mal que porventura era suposto ter sido possível fazer: não, não fizeram.

O Verão é assombrosamente nostálgico para estas coisas pois que damos por nós a querer aquelas figuras com cabeças enormes que vinham nos prémios, a pensar em como um chapéu mexicano era o abrigo ideal para se ter uma etnia longínqua, as nossas bicicletas eram supersónicas, e não faltava a irreverência por capítulos de uma « Pipi das Meias Altas» que levantava polícias com as duas mãos e vivia a sós com um cavalo e um macaco dentro de uma casa cheia de dinheiro de um barco naufragado. Eram instituições!

Aos oito anos vimos um senhor num programa que tinha um Ovo e que usávamos como elemento para os fios do pescoço, com olhos boca e cabelo, e esse senhor era Almada Negreiros: muito hirto, com um perfil imponente, sentado ao meio – no meio de tudo – falando monossilabicamente e o tempo parou ao contemplarmos a sua figura, ela está na minha retina como as coisas da revelação. Claro, faltava-nos todo o mecanismo da complexidade móvel dos nossos tempos, mas haverá alguém que tenha detonado pelo órgão da visão, hoje, a mesma carga energética com a intensidade desta aparição? São brasas acesas!

Temos sempre de voltar a ser discípulos, principiantes, de superar os troços dos caminhos e passar a outras transformações, temos toda a rotina e todas as derrotas, e todas as conquistas em forma comprimida, mas, soltamos as vias do percurso quando nos abeiramos da infância onde nenhum sofisma é possível que possa interpretar melhor aquilo que a realidade tão bem conseguiu. Isso, suponho, seja uma grande dádiva. Esse tempo para tudo sem o arrastão demencial da “brincadeira” para adultos que a todo o momento nos querem impingir para sermos mais felizes: ninguém tem nada a ver com a nossa felicidade!

Nem queremos receitas para tais estados de espírito, sentimo-nos insultados e até desconsiderados como pessoas com tanto receituário. Embora possa não parecer, nós somos de um tempo civilizado. Hoje olham-nos com a desconfiança de que olham para tudo, de soslaio e com o criticismo massivo que revela doença interpretativa, mas é natural, estamos ausentes das receitas e somos só a cobaia por onde os testes passam indiferenciadamente. Mas atrás de nós ainda há deuses, e falam forças, e estão em sentido muitas coisas que nem sabemos que as herdámos. Não viemos ocupar o maravilhoso «Homem Novo» a partir de um cromagnon ignoto que na ideia se instalou. Não, nós somos de facto de um mundo que, embora não acreditado, era à sua maneira civilizado.

Certamente mais pobres, mas hoje também somos tão pobres que andamos disfarçados de ricos. A felicidade que nos querem dar não se aplica em nenhuma dimensão da vida quando a vivemos por dentro. Parece que continuamos com os mesmos enigmas disfarçados e aplicamos defesas em coisas já em si tão sitiadas… cercamo-nos de um vínculo de comportamentos externos para não termos que estar todos os dias a inventar a vida, mas seria bom inventá-la mais dado que a norma é incrivelmente parasitária. Vamos a mais locais e países porventura, mas somos turistas que é tudo quanto há de mais triste. A ir que seja para dentro dos locais e povos, de modo, a sentirmos a mesma experiência diante de um Almada de quando fôramos crianças, que seja a revelação vestida em nós, que estejamos tão dentro e perto que esqueçamos a linha divisória entre estar e visitar.

Acabou tudo como sempre acabou: os mais velhos morreram, nós ficámos, os lutos são posições espaciais e não uma paragem no tempo da dor, dado que nos querem fazer acreditar que ao não existir não devemos ter intervalos para ela e que todos, numa cripta incinerada, ainda damos matéria para um elemento que poderemos utilizar ao peito e matéria para estátuas. Não longe estamos do nazismo higiénico das cinzas, mas nós que labutámos para que nada disso voltasse a acontecer, de forma cega utilizamos os moldes que nos servem a medida de uma felicidade nunca antes conquistada. O paradoxo é o acaso mais conseguido e nem sempre estamos disponíveis para continuar sem as devidas rectificações. Numericamente gravados, somos um Holocausto predestinado à fúria das convenções onde a norma é aplicada sem retaliação: afinal, tal como os primeiros da saga, não sabemos exactamente para onde vamos. Só quando fecharem a luz e os gases começarem a inundar os espaços, teremos quietos a resposta.

Definitivo é este século todo de correntezas imprevistas e súbitos acontecimentos que nos deixam a fumar água pelas narinas… Sabe-se lá se os cigarros são líquidos! Daquelas lindas embalagens guardamos os rótulos como de poemas se tratassem e somos seguidos pelos fumos sombrios de um planeta voluntariosamente ígneo, mas também glacial. Numa demonstração definitiva de que não só tudo mudou como aos poucos se tornará impróprio como habitação de todos.

Por isso seria bom avançar rápido com as novas formas de êxodo galáctico na medida em que definitivamente se irá tornar um planeta radical.

Tudo vai, tudo volta, tortuosos são os caminhos da eternidade…

14 Jul 2017