Primeiro acto – Cena 7

Gonçalo vai até ao fogão buscar a cafeteira. Regressa ao seu lugar, enche as duas chávenas e pousa a cafeteira no chão.

Valério
Não precisas de ninguém para te destruir, graças a Deus.

Gonçalo
Não me estou a destruir.

Valério
[fazendo beicinho]
Estás um bocadinho…

Gonçalo
Um bocadinho, sim.

Valério
Pronto… [pausa] Tu és um sapo com cauda de escorpião.

Gonçalo
Um sapião…

Valério
Escorpiapo. [pausa] Aliás, és o escorpião às tuas próprias costas.

Gonçalo
… às costas de sapo.

Valério
Pois… Ainda nem a meio vais e já te estás a matar.

Gonçalo
Ela usou um telefone diferente.

Valério
A minha aluna?

Gonçalo
Sim.

Valério
Talvez… [pausa] Já estás a mudar de assunto.

Gonçalo
Vale mesmo a pena continuar no outro? [pausa] Quando reparou que se tinha enganado, apagou a mensagem.

Valério
É possível.

Gonçalo acende mais um cigarro e oferece um a Valério. Saboreiam a primeira baforada em silêncio.

Gonçalo
O que significa que ela tinha o teu número noutro telefone.

Valério
Quis que eu ficasse curioso… com um número desconhecido. [pausa] Se calhar, arrependeu-se e apagou a mensagem.

Gonçalo
Arrependeu-se?

Valério
De ter enviado de outro número.

Gonçalo
E o que é que fizeste?

Valério
Depois de ter descoberto o mesmo número no site de engate? [pausa] Mandei uma mensagem…

Gonçalo
Do teu telefone?

Valério
No site e no telefone.

Gonçalo
E…?

Valério
Fiquei a olhar para o telefone… durante algum tempo apareciam três pontinhos, que iam e vinham… mas não recebi nenhuma mensagem.

Gonçalo
E no site?

Valério
Nada.

Gonçalo
E voltaram a ver-se nas aulas?

Valério
Voltámos. Ela é bastante discreta… e continuou discreta.

Gonçalo
Hmm… [pausa] E se não era ela?

Valério
A do número desconhecido?

Gonçalo
Sim.

Valério
Era ela.

Gonçalo
Não gravaste o número.

Valério
Gravei, pois.

Gonçalo
Não. Tu disseste que quem quer que tenha enviado a mensagem apagou-a passado pouco tempo… e que viste depois um número no site que te pareceu o mesmo número da tal mensagem apagada.

Valério
Mas a pergunta era a mesma… o mesmo assunto, a mesma fotografia do quadro com as datas e horários…

Gonçalo
E?!

Valério
Só poderia ser de alguém da faculdade…

Gonçalo
[interrompendo]
Certo… mas não sabes se é realmente a mesma pessoa do site.

Valério
É, é!

Gonçalo
Não foi isso que disseste ainda há pouco.

Valério
O que é que eu disse ainda há pouco?

Gonçalo
Que a fotografia não era muito boa e que não dava para perceber bem como era a cara dela…

Valério
Mas era a cara dela… e era da faculdade. Da minha faculdade… a única da zona.

Gonçalo
E quantas alunas há na tua faculdade que possam encaixar naquele perfil?

Valério
[pausa]
Muitas…

Gonçalo
Pois…

Valério
Mas é muita coincidência.

Gonçalo
Muita ou pouca… não interessa. Querias que fosse ela, tinha piada ser ela… pronto.

Valério
E tu queres muito que não seja.

Gonçalo
[sorrindo]
Os factos não mentem.

Valério
É isso que fazes a ti próprio…

Gonçalo
Na escrita?

Valério
Também… tudo o que tem alguma piada, ou ameaça fugir do teu controlo, cortas. Nada sobrevive. Às tantas, tudo é deserto à tua volta… já nem voltas para trás, sabes lá de onde vieste… e desistes. Tornas a começar de novo, traças um caminho… tudo o que vai rebentando cortas, arrancas, queimas… seja erva daninha ou um rebento de uma árvore… vai tudo a eito… e quando te dás conta de que essas ervas e esses rebentos é que eram interessantes, já é tarde… dás-te conta que estás outra vez no deserto e não sabes como voltar para trás… nem te lembras onde começaste. E volta tudo ao mesmo.

Gonçalo
[pausa]
Já lhe tentaste ligar?

Valério
À minha aluna?

Gonçalo
Sim.
Valério
Mas tu ouviste o que eu acabei de dizer?!

Gonçalo
Ouvi, pois!

Valério
E então?

Gonçalo
Foi a única coisa de jeito que disseste a propósito da minha escrita…

Valério
Da falta dela, neste caso.

Gonçalo
Isso… eu pus em causa a tua fantasia, ficaste alterado e resolveste disparar com “é isso que fazes a ti próprio?”.

Valério
Não foi com má intenção.

Gonçalo
Eu sei que não… por isso é que eu te perguntei se já lhe tentaste telefonar. Quanto mais falarmos do assunto, mais acutilante te tornas.

Valério
[pausa]
E se eu telefonar e descobrir que não passa de um engano meu? Perco a acutilância e tu perdes um bom crítico.

Gonçalo
[sorrindo]
Mas a tua felicidade é mais importante do que a minha escrita, meu amigo.

Valério
Mentiroso.

Gonçalo
Pois sou. [pausa] Vais ligar?

Valério
Quando chegar a casa.

Gonçalo pega nas duas chávenas e na cafeteira leva-as para o lava-loiça. Valério acende outro cigarro e vai ter com o amigo. Encosta-se ao balcão. Gonçalo passa por água as chávenas e depois a cafeteira. A manhã já vai avançada, o dia promete muito sol.

Valério
Acho que já não durmo cá.

Gonçalo
Também já não há muito para dormir.

Valério
Pronto…

Valério vai até ao bengaleiro, tira o seu casaco e veste-o. Assegura-se que tem as chaves do carro no bolso. Bate continência ao amigo e sai, fechando a porta atrás de si. Gonçalo volta à sua cadeira e acende outro cigarro.

25 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 6

Gonçalo vai até ao fogão. Abre a tampa da cafeteira e e espreita o conteúdo. Valério termina o seu vinho e pousa o copo no chão. Depois acende um cigarro.

Gonçalo
O melhor é dormires aqui.

Valério
Também acho.

Gonçalo
Porque é que ela terá apagado o número?

Valério
Pois… [pausa] Tu não deverias estar a escrever?

Gonçalo
Agora estou a fazer café.

Valério
E vais escrever depois?

Gonçalo
Do café?

Valério
Depois de eu me ir embora.

Gonçalo
Se não for muito tarde…

Valério
E se eu fosse agora embora?

A cafeteira começa a fumegar e a borbulhar. Gonçalo desliga o lume e tira duas canecas de um dos armários por cima do lava-loiças.

Valério
Por isso é que queres que eu fique?

Gonçalo traz o café consigo, senta-se na sua cadeira e passa uma das canecas a Valério.

Valério
Foi por isso que começaste a falar da história do “Neo-Nazi”? [pausa] Há quanto tempo estás sem conseguir escrever?

Gonçalo
[pausa]
Duas semanas.

Valério
E vieste para aqui há quanto tempo?

Gonçalo
Semana e meia…

Valério
Está a correr muito bem, então!

Gonçalo acende mais um cigarro. Valério prova o café e queima os lábios. Gonçalo pousa a sua caneca no chão e sorri.

Valério
[sorri]
É castigo. [pausa] Classifica o que estás a escrever… numa escala de um a dez.

Gonçalo
Numa escala de um a dez… mas com base no que eu tenho escrito ou no que eu acho que a obra será quando a acabar?

Valério
[trocista]
Mas achas que vais acabá-la? [pausa] Com base nas duas coisas. De zero a dez… vá!

Gonçalo
[pausa]
Não sei.

Valério
A tua cabeça foi aos números todos antes de responder esse não sei!

Valério pega na caneca e aproxima-a com cuidado dos lábios. Prova o café. Desta vez não se queima.

Valério
A ideia, dez! As primeiras vinte páginas, seis… as vinte seguintes, três… não, dois! [pausa] Não escrevas mais.

Gonçalo
Não?

Valério
Não. [pausa] Eu vou dormir aqui… vamos acordar tarde, comemos qualquer coisa… e vamos embora. Eu levo-te.

Gonçalo
Hmm…

Valério
Jantamos pelo caminho… Chegas a casa, arrumas a mala e pões a roupa a lavar… àquela hora já não vai dar para escrever. Mas podes ir para a secretária… ou para a mesa de jantar… onde quer que seja. Abres o computador e apagas o projecto, apagas a cópia e a cópia da cópia… tudo. Tens notas? Em cadernos?

Gonçalo
Tenho.

Valério
Pronto! Rasgas o caderno aos bocadinhos e sais de casa… dás um passeio… aproveitas para apanhar ar… vais até ao rio e deitas os bocadinhos à água… ficas a ver e choras um bocadinho. Arrependes-te, vês que os bocadinhos já desapareceram… corres de volta a casa, ligas o computador, tentas recuperar o que apagaste… nada. Desapareceu tudo. Gritas… “Meu Deus, sou tão estúpido!”… e pronto, está feito o luto.

Gonçalo
[rindo]
Que parvo!

Valério
Calma, ainda não acabei! [pausa] Depois, ligas para o teu editor, ou para a tua namorada, ou para quem quer que seja que te faça tremer… ou para mim, por exemplo. O que é que vais dizer?

Gonçalo
Nada.

Valério
Nada, não! “Não dá, não consigo mais… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente… desisto.” E a pessoa do outro lado vai dizer o quê, se já sabe que não gostas de ouvir nada?

Gonçalo
Nunca faria esse telefonema?

Valério
Não?

Gonçalo
A parte do “… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente…” é verdade. Para muitos que escrevem, não só para mim. [pausa] Mas, se eu fizesse isso tudo… esse enterro que descreveste… se eu tomasse essa decisão… ficava calado. [pausa] Não dizia nada a ninguém… continuava como se nada fosse.

Valério
Impossível!

Gonçalo
O quê?

Valério
Isso de passares incólume… como se nada fosse.

Gonçalo
Eu não disse isso! Continuava como se nada fosse… mas para os outros… “como vai a escrita?”… “bem”… “quando é que posso ler?”… “estou um bocado atrasado… ainda não sei.” [pausa] Hão de perguntar cada vez menos, até que, a dada altura… vão deixar de perguntar… ainda estou rodeado de pessoas que respeitam o silêncio… acho eu… “pronto, ele não quer falar do assunto… é lá com ele… deixemo-lo estar…” E acho que toda a gente vai saber… nessa altura… toda a gente vai compreender… ninguém me vai fazer passar pela humilhação de ter de reviver o episódio… “mas explica lá porque é que desististe…” [pausa] Não há nada para explicar… restará o consolo de ter tomado a decisão mais difícil… reconhecer que não escrevia suficientemente bem para continuar a escrever…

Valério
[trocista]
Mas ficará sempre uma pulguinha atrás da orelha…

Gonçalo
Isso é para evitar o suicídio… é um “eu até tinha jeito, mas a vida trocou-me as voltas”… Há gente a mais a escrever, a pintar, a filmar… há gente a mais em tudo. Qual é a probabilidade de eu ser medíocre naquilo que faço? É muito alta… Qual é a probabilidade de eu não ter noção da minha falta de talento… de zero a dez? É baixa… não sou estúpido. Qual é a probabilidade de o que quer que eu esteja a escrever agora ser melhor do que a maioria das coisas que estão no prelo? É altíssima…! [pausa] E eis a questão: Qual é a probabilidade de ser muito bom… o que quer que eu esteja a escrever agora?

18 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 5

Desatam a rir com a declamação de Valério. Quando acalmam, acendem um cigarro e servem mais vinho. Dão-se conta dos primeiros raios de sol que entram pela janela. Valério espreita o relógio e a sua expressão muda.

Gonçalo
Tens de ir embora.

Valério
Não devia.

Gonçalo
Não?

Valério
Não…

Gonçalo
O que é que se passa?

Valério
[hesitante]
Troco mensagens com os meus alunos de faculdade…

Gonçalo
E…?

Valério
Temos um grupo… professor e alunos… fala-se de tudo e mais alguma coisa.

Gonçalo
Caramba, estás lento… desembucha!

Valério
Calma, deixa-me estruturar o discurso.

Gonçalo
Confessa… não penses muito.

Valério
Não vou confessar nada!

Gonçalo
[rindo]
Porque ainda não fizeste nada… mas andas com o pecado às voltas na cabeça, seu maroto!

Valério
Mas qual pecado?!

Gonçalo
É tão óbvio! Estávamos às gargalhadas… reparaste que o sol estava a nascer, olhaste para o relógio e ficaste nini.

Valério
Nini? O que é isso?

Gonçalo
Nini… abatido, melancólico. Os teus alunos não usam essa expressão, nini?

Valério
Mas o que é que isso tem que ver com pecado?

Gonçalo
Tem tudo. Tens alguém em casa à tua espera… e tu aqui, a estas horas… pecado! Que eu saiba não vives com ninguém, portanto… Tens trabalho atrasado e tu aqui, a cavaquear e a emborcar à grande… pecado.

Valério
Culpa, queres tu dizer.

Gonçalo
Neste caso é a mesma coisa. Andas a trocar mensagens com quem não deves… continua.

Valério
Não é bem assim.

Gonçalo
Só pode ser isso… ficaste nini. Perguntei porquê. Disseste “troco mensagens com os meus alunos”.

Valério
Mas foi um engano… eu troco mensagens no grupo, mas também troco mensagens em privado. E são eles que me mandam mensagens… a propósito de trabalhos, ou exames, ou o que for…

Gonçalo
E?

Valério
Calma! [pausa] E… eu escrevi no quadro da sala os nomes e os horários de apresentação de uns trabalhos quaisquer, tirei uma fotografia e enviei para o grupo… apaguei o quadro e fui-me embora. Ao fim da tarde começo a ser bombardeado com mensagens no grupo… enganei-me, pelos vistos… havia duas apresentações à mesma hora, num mesmo dia. “Enganei-me, peço desculpa, fulano ou fulana tal apresenta na aula seguinte e não no mesmo dia, se estiverem de acordo”, respondi. “Tudo ok”, responderam eles… passadas umas horas recebo uma mensagem de um número que não tinha gravado… a mesma fotografia, com a mesma pergunta “Não se terá enganado?”… não respondi, não conhecia o número. Mas fiquei curioso, voltei a espreitar a mensagem e quem a enviou já a tinha apagado.

Gonçalo
[rindo]
Estás a inventar!

Valério
Não estou!

Gonçalo
Para já, é uma seca! Uma sequência de factos insípidos… depois enviei isto, depois eles responderam aquilo, depois eu fiz não sei quê, depois eles fizeram não sei que mais… Ainda por cima, és monocórdico e deixas todas as frases suspensas… e tararará… e tararará… e tararará… não há paciência!

Valério
[levanta-se]
Bem, vou-me embora.

Gonçalo
Oh, vá lá…

Valério vai até ao lava-loiça e começa a lavar o seu copo.

Gonçalo
Agora vais tu fazer birra?

Valério aproveita para beber água, volta a lavar o copo e deixa-o a escorrer. Vai até ao bengaleiro e veste o casaco. Põe-se a revistar os bolsos.

Gonçalo
Acaba lá a história.

Valério
Não!

Valério continua à procura de qualquer coisa nos bolsos do casaco.

Gonçalo
Não podes conduzir assim.

Valério
Sem chave, não.

Gonçalo
Vá, sentas-te, não bebemos mais e daqui a pouco vais embora. [pausa] Começo já a fazer o café.

Gonçalo vai até ao fogão de ferro e pega na cafeteira. Valério torna a tirar o casaco e a pendurá-lo. Põe as mãos nos bolsos das calças, contrariado, e descobre a chave do carro num deles. Gonçalo desatarraxa a cafeteira e passa-a por água no lava-loiça. Valério volta a sentar-se.

Gonçalo
Continua…

Gonçalo põe o café, atarraxa a cafeteira e põe-na ao lume. Vem sentar-se ao lado do amigo.

Valério
Peço desde já desculpa pelo conteúdo e pela forma… [pausa] Atalhando… umas horas depois, estava eu num site de engate… já me tinha esquecido do assunto… Sabes que as procuras podem ser baseadas em proximidade, certo? Local de trabalho, casa…

Gonçalo
Sei, avô!

Valério
Pronto… nos critérios de busca, para além do género, idade, interesses… tenho o local de trabalho. Não pus a faculdade, pus a zona, como é óbvio.

Gonçalo
Porquê?

Valério
Porque não quero que saibam onde trabalho.

Gonçalo
E a profissão?

Valério
O que é que tem?

Gonçalo
Tens a profissão no teu perfil?

Valério
Tenho.

Gonçalo
Professor universitário?

Valério
Sim.

Gonçalo
Então, se és professor e trabalhas na zona tal…

Valério
[interrompendo]
É óbvio! Mas não está lá o nome da universidade, não me apetece, pronto. Continuando… às tantas aparece-me o perfil de uma mulher… jovem… a fotografia não era muito boa, não dava para perceber bem como era a cara dela… acho que deve ter posto aquela fotografia de propósito, para não ser reconhecida… era uma aluna universitária ali da zona e tinha o número de telefone. Quando vi o número, percebi que era o mesmo da mensagem que tinha recebido e que entretanto tinha sido apagada.

11 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 3

Valério serve-se de mais vinho enquanto o amigo continua os seus afazeres na divisão dos fundos.

Valério
Um aluno consultor…

Valério desata a rir às gargalhadas, entornando vinho na camisa, nas calças e no chão. Pousa o copo no chão e vai buscar um pano ao balcão de madeira, perto do lava-loiças.

Gonçalo
[fora de cena]
O que é que disseste?

Valério
Nada!

Gonçalo
[ainda fora de cena]
Um aluno consultor!

Valério
Tens ouvidos de tísico!

Valério limpa a camisa e as calças com o pano molhado. Gonçalo regressa da divisão dos fundos e volta a sentar-se na sua cadeira.

Gonçalo
Sabes que eu tenho livros publicados?

Valério
E…?

Gonçalo
Nada…

Valério
Eu disse que ias fazer birra!

Valério regressa ao seu lugar e volta a servir-se de vinho.

Valério
E disseste que as paredes são densas e desfocam bastante quanto explicaste que ele não conseguia ver muito bem o que se passava do lado de fora da estufa. Por densas, querias dizer espessas, embora, neste caso, densas seja perfeitamente aceitável como sinónimo. Mas ajudaria mais falar em espessura, ou mesmo em grossura, para dar mais ênfase à desfocagem que aludiste. Mas é como te digo, a densidade, aqui, e tendo em conta de que se trata de um conto de ficção-científica… [sorri] fica muito bem.
Gonçalo
[irritado]
Se fica bem, porque é que estás a… ?

Valério
[interrompendo]
Porque tudo o que tu fazes, escreves, contas, estudas, ouves, lês… tudo, tem de ter a minha aprovação!

Gonçalo abre a boca, chocado. Ameaça rir, mas a facada que levou não o deixa.

Valério
Não faças esse ar, é assim que nós os dois funcionamos! Lês uma crítica má a um livro que adoraste, sentes-te inseguro, será que ando enganado? e lá vens tu então, já leste isto? e ficas à espera que eu te dê a minha opinião. Porque se eu gosto, deve ser bom! E andas dias a chatear-me… já leste? já leste?… Mas és incapaz de me dizer olha, gosto de um livro de que toda a gente anda a dizer mal, achas que tenho um gosto duvidoso? Alguma coisa deve ter acontecido, andas inseguro com alguma coisa… e eu sei o que
é! Essa história do conto de ficção científica rejeitado traz água no bico, contigo é sempre assim… ando às apalpadelas até perceber se é o interruptor ou se o raio que o parta… e tu sempre à frente, armado em sonso, a mudar o braille das paredes! E isto começou porque não me perguntaste o que é que eu achava da tua primeira descrição de há pouco, a do cenário de guerra… foi ou não foi? Interrompi com uma piadinha e tu começaste logo a roer-te todo por dentro… ai, ele não deve ter gostado! E o menino pôs-se à pesca, a ver se eu mordia… ’tadinho de mim.. olha, sabias que uma vez me recusaram um conto… E o que me estavas a contar, chapéu! Portanto, já são dois boicotes seguidos…

Gonçalo
Boicotes!?

Valério
Seguidinhos, meu amigo! Mas tudo bem, quem fica a perder és tu, não vais saber o que eu penso da tua ideia para o novo livro, nem vais saber o que eu penso do teu conto recusado…

Gonçalo
[irónico]
Porque és tu quem aprova as minhas obras antes do editor!

Valério
Basta eu torcer o nariz a uma vírgula e adeus… são mais três meses de molho a bateres com a cabeça nas paredes.

Gonçalo
[irritado]
Porque és tu quem aprova as…!

Valério
Tu é que fazes por isso! Vê lá se foste descrever o orgasmo de guerra ao teu editor… Ah, pois é! Tens medo das tuas ideias…

Gonçalo
Tenho o quê?!
Valério
Borras-te todo… [Valério põe-se a escrever furiosamente num teclado imaginário.] “Um neo-nazi entra num bar”… ai, meu Deus! Um Neo-Nazi, porquê? Porque é que ele entra num bar? Ainda há quem entre em bares? E como é que ele entra? Porquê num bar? Porque é que ele entra onde quer que seja? Porque não “Um Neo-Nazi entra…”? Não, se calhar é só “Um entra…”! Não, não, isto não dá! Vou desistir… vou deixar de escrever, a minha vida acabou!

Gonçalo
Mas o que é que tem o eu ter medo das minhas ideias com o bypass ao editor?

Valério
Porque me tens em grande consideração…? Porque achas que eu sou um tipo inteligente e carismático…?

Gonçalo
Espera! Primeiro, explica lá isso de eu ter medo das minhas ideias!

Valério
[rindo]
Ai, agora temos ordem de trabalhos… sim senhor, vamos lá! Ponto número um, medo das tuas ideias… precisas mesmo que eu explique melhor!

Gonçalo
Acho que percebo o que queres dizer…

Valério
Vês, já estás a fazer o mesmo…! Percebeste perfeitamente o que eu quero dizer, mas estás a arranjar uma maneira de sair por cima, como se sempre tivesse sido evidente para ti que toda a gente sabe que tens medo das tuas próprias ideias. [pausa] Faz-me a pergunta! Achas que tenho medo das minhas próprias ideias?

Gonçalo
Oh!

Valério
Acho… mas das ideias boas! Das que te tiram o tapete, como “O Joãozinho Neo-Nazi vai à escola e no meio de uma aula de história distrai-se e tem um orgasmo de guerra”… e ficas borrado, porque sabes que aquilo é radioactivo e vens logo a correr… para quem? Para mim… para o teu paizinho que te quer tão bem!

Agora é Valério quem se levanta e sai pela porta do fundo. Gonçalo fica a sós, com o seu copo de vinho e as suas ideias.

25 Fev 2021