Manuel Lopes Porto, académico: “Democracia, o sistema menos mau de todos”

O especialista em assuntos europeus e antigo eurodeputado Manuel Lopes Porto condena o proteccionismo de Trump e acredita que é possível competir a nível mundial com o modelo europeu. Ao HM, contou que a democracia continua a ser para si o melhor sistema político e que Portugal tem ainda um papel a desempenhar na China

 

[dropcap]M[/dropcap]acau celebrou recentemente o 20º aniversário da RAEM. Como vê Macau nos dias de hoje?

É, claramente, e sem exagero, uma história de sucesso. Por circunstâncias da vida e por já ter uns anos, acontece ter acompanhado este processo desde há bastante tempo. Estive no Parlamento Europeu 10 anos (1989-1999), era membro de diferentes comissões e delegações com países fora da Europa e, por coincidência, fui sempre membro da delegação oficial para a China. Fui a Pequim três vezes oficialmente e cheguei a estar no gabinete do senhor Lu Ping, que foi negociador da integração de Hong Kong e Macau na China. Portanto, foi um processo que foi feito com calma e bem. Houve, desde logo, uma coisa curiosa no começo: quando foi o 25 de Abril a ideia era que todos os territórios portugueses do Ultramar tivessem independência ou fossem integrados. É também interessante recordar que, na altura, ainda era Chefe de Estado aqui na China, o Sr. Mao Zedong. Não era o Deng Xiaoping nem nada desses “liberalões”. Era ele. E ele fez saber que Macau só passava para China quando houvesse, calmamente, um bom acordo. E a pergunta que eu ponho sempre é, “teria sido melhor para a China, logo em 1975, Macau ser integrado na China?” A resposta é que isso não adiantava nada. Era mais um bocado de terreno em que se teria perdido, talvez, possibilidades relacionadas, não só com o jogo, mas também de negócio. Portanto, foi um processo feito com vagar, durante 25 anos (74-99), em que a integração foi feita de forma bem ponderada e os resultados estão à vista. Macau tem dos maiores PIBs per capita do mundo, é uma terra onde se vive com calma e em segurança. Claramente, Macau é um caso de sucesso.

Portugal continua a ser importante para a China?

Temos de ter a noção da nossa dimensão e da nossa economia. Portugal tem 10 milhões e a Europa 500 milhões de habitantes e depois há a Alemanha, Itália, França e tudo isso. Não digo a principal, mas Portugal é uma porta de entrada na Europa e é importante haver esta ligação que tem circunstâncias curiosas. Uma delas, estou à vontade para dizê-lo, é a questão do Direito. O Direito praticamente é o mesmo que é aqui aplicado desde o tempo do Código Civil, de modo que é curioso que haja aqui um Direito Continental que tem vantagens sobre o direito do Case law dos países anglo-saxónicos, que não sei se são melhores. Portanto, aqui, num país como a China, ou num território da China como é Macau, o Direito Continental com influência alemã, italiana, francesa, etc, é um Direito codificado que dá outra segurança aos negócios. Às vezes perguntam-me aqui se não é melhor irmos para o sistema anglo-saxónico e eu não sei. Para mim, basta comparar o superavit da Alemanha com o deficit do Reino Unido ou dos Estados Unidos. São casos delicados de referir, mas é verdade, é o que está na estatística. Portanto, é um Direito que dá grande segurança e é também uma ligação muito estreita. Eu tenho grandes ligações à Índia e este é outro caso onde há ligações do Direito muito curiosas. O Código Civil ainda hoje aplicado em Goa, Damão e Diu é o Código Civil do Seabra de 1867. Por isso, o Direito é uma via de comunicação curiosa. Já para não falar no Brasil, porque eles querem ter uma ligação enorme connosco como é sabido. Só em Coimbra há mais de dois mil estudantes brasileiros e, portanto, há uma enorme ligação entre os dois países ao nível do Direito. Portanto, em Macau o Direito é um elo de ligação que, de facto, se mantém e penso ser frutuoso e útil para ambas as partes.

E quanto à língua portuguesa?

Esse é que é o problema. É muito curioso, pois é difícil manter a língua portuguesa em regiões que não sejam o Brasil e os países africanos de língua portuguesa. Não nos consola, mas a questão é que nenhuma língua europeia se manteve, fora o inglês. No Vietnam, onde estive na minha última missão do Parlamento Europeu há 20 anos, quase ninguém fala francês, nas Filipinas quase ninguém fala espanhol, na Malásia e Indonésia, quase ninguém fala holandês. De facto, as línguas europeias não conseguiram manter-se nos territórios da Ásia com a mesma prevalência do inglês. É claro que eu preferia que fosse o português, mas ser o inglês não é mau de todo porque é uma língua que todos temos e que nos dá vantagem. Mas na China há 33 locais onde se aprende português. O português é a língua mais falada do hemisfério sul e a quarta ou quinta mais falada do mundo. Com uma vantagem, que já me tem ajudado a convencer pessoas a ir para Portugal estudar, pois quem sabe português percebe espanhol, sem aprender, e até o próprio italiano. Já o contrário não é verdadeiro. Os espanhóis não percebem português e os italianos nem pouco mais ou menos percebem o português. Portanto, a língua portuguesa dá-nos também acesso aos países de língua espanhola e língua italiana.

Uma vez mais, o relatório do congresso norte-americano lamenta a ausência de sufrágio universal em Macau e o Governo de Macau acusou em resposta os EUA de “cegueira selectiva” e de interferência externa. Que comentário merece esta situação que vem sendo habitual?

Não tenho dúvida que qualquer democracia, como dizia Churchill, é um sistema mau, mas é o menos mau de todos. É, claramente, o melhor e vê-se em termos de dados internacionais. Um exemplo que eu cito muito é o caso da Alemanha, que tem salários altos, uma democracia política, alternância no poder, direito à greve, modelo social europeu e tem, de longe, o melhor superavit do mundo. Portanto, é possível. A grande questão que se pode colocar, e que é importante para alguns países da Ásia e da América do Sul, é saber se é possível competir no mundo global do século XXI com democracia. Na minha opinião sim, porque a Alemanha dá esse exemplo e compete a nível mundial. É um caso fantástico, comparando até com o Reino Unido que não tem razões de queixa. Tem a sua língua falada em todo o mundo, tem moeda própria e não o horrível Euro e, todavia, tem o segundo maior deficit do mundo. Portanto, é possível, com modelo europeu, competir a nível mundial e a Europa tem uma grande responsabilidade perante o mundo e presta um grande serviço, pois mostra que com fronteiras abertas, normas aproximadas e uma moeda única é possível competir.

Como vê a actual ordem mundial onde novas forças, como a China ou Índia se mostram determinadas a ocupar um papel preponderante a nível mundial?

É interessantíssimo ver a evolução do mundo. Em 1500 a maior economia do mundo era a indiana e depois a chinesa. Em 1820, há 200 anos atrás, portanto, a China e a Índia tinham 42,7 por cento do PIB mundial e o conjunto da França e da União Soviética, 5,5 por cento, Alemanha 2,3 por cento e os EUA 1,8 por cento. Sim, custa a acreditar. Em 2004, a China e a Índia tinham 6 por cento do PIB mundial. Actualmente, estes são os países mais populosos do mundo e estão a crescer como nunca se viu

Como vê a actual conflito económico entre os EUA e a China?

É extraordinário como é que o Sr. Trump me presta a mim um bom serviço porque dá actualidade às minhas teses desde há quarenta e tal anos. A minha tese em Oxford em 1976 já falava a favor do livre cambismo, depois trabalhei para o Banco Mundial num grande projecto que comparava a liberalização do comércio com o proteccionismo e claramente também aí saiu melhor o livre-cambismo. Aliás, sempre que houve livre-cambismo o mundo assistiu a tempos de crescimento e menos desemprego comparando com as fases onde existiu proteccionismo. E o Sr. Trump vem agora com esta história das tarifas defender-se, o que é sinal de fraqueza de um país que não consegue ter um superavit na balança de pagamentos, mas que não leva a nada. Quando colocam uma taxa de 20 por cento sobre o México há quem fique prejudicado, e essa gente são os consumidores. O proteccionismo protege, mas à custa de quem? Ou é com impostos alfandegários ou taxações de importações, o que em qualquer caso diminui a oferta. E quem são principais prejudicados, são os milionários ou os pobres? São os pobres. Acho que os EUA têm de se responsabilizar e competir. Devem assumir-se responsabilidades para competir por esforço próprio, como é o caso da Alemanha e da Holanda, que trabalham muito e trabalham bem.

Como tem visto a actuação da administração Trump nesse sentido?

Os EUA deviam fazer o que faz a Europa, ou seja, ser competitivos. No seu todo, a zona Euro tem um superavit brutal de mais de 400 mil milhões. Já um país como os EUA tem um deficit enorme e isso é que é o problema. Outra coisa que me choca é que as melhores universidades do mundo são todas americanas e inglesas, não há uma única alemã. Os prémios nobel são todos, se não nacionais, radicados nos EUA ou em Inglaterra. Não existe correspondência entre os rankings das universidades e os prémios Nobel com a eficácia dos países. Ou seja, os alemães são assim os laparotos para produzir carros e companhia. Mas não é bem assim, a indústria faz falta. Aquela ideia de que a indústria é para os laparotos, os labregos, que fazem produtos, e que o que dá são as tecnologias e a praça financeira de Londres, não sei se chega. O Reino Unido agora só exporta 10 por cento. Quando foi o referendo de 1975 eu vivia numa casa ao lado da British Legend que fazia carros. Hoje em dia, vamos a uma rua e não vemos um carro inglês. É impressionante como estes países não se adaptam aos tempos modernos. E se vimos bem, apesar de dizermos mal da Europa, onde é que a China e companhia estão a investir? Na Europa. E os chineses não estão mal informados nem são incautos.

E no meio de tudo isto temos uma Europa confrontada com a realidade do brexit e atentar manter-se firme na era do populismo…

Eu sou comunista, como já terá percebido, e choca-me como é possível que países que fizeram o “homem novo” como a Húngria, a Polónia e companhia, hoje em dia são os mais xenófobos. Portugal é um país com uma sorte fantástica ou mérito. Não tem populismos, nada, nada, tirando o Chega agora, mas trata-se apenas de um caso isolado. Nesse aspecto, nem sabemos a sorte que temos. Mas também eu sou um bocado optimista, dorme-se melhor à noite. A Europa tem de ser complacente. Não pode um país sair e ter a vantagem de ter desvantagens. Um dos argumentos invocados é não pagar por orçamento 9 mil milhões e euros. Com o Brexit vão deixar de pagar, mas deixam também de ter ajuda da agricultura e o que interessa, por exemplo, à Alemanha não é o dinheiro que tem do orçamento, mas sim as oportunidades de mercado que tem com o mercado único europeu. Um país com visão como o Reino Unido devia ter essas oportunidades em vista e não a questão do que paga pelo orçamento e do seu retorno.

15 Jan 2020

Direito de proposta

[dropcap]N[/dropcap]a semana passada escrevi uma crónica chamada Make Portugal Great Again. Do título ao conteúdo, era um texto provocatório. Além de pretender causar algum desconforto, dado conter elementos de populismo que nos remetem para outros tempos ou outras latitudes, tinha um propósito ulterior: o de mostrar, por contraste, que o horizonte do populismo e de outros movimentos tendencialmente totalitários, sejam eles de tendência fascista ou comunista, não é sempre claro e perfeitamente identificável. A maior parte das vezes, o corpo narrativo destes movimentos que, na prática, calçam botas cardadas, é composto de mensagens bastante mais cálidas e aceitáveis do que os pontapés e bastonadas nos quais se traduzem nas ruas.

Qualquer discurso populista tem que conter elementos de verdade para ser aceite, digerido e assimilado. Normalmente estes são lestos a identificar os problemas que preocupam a fatia maioritária da sociedade sobre a qual se funda o conceito vago de identidade nacional. Alguns destes problemas são-no de facto, i.e., correspondem a um defeito ou a um excesso no modo como o estado dá conta dos obstáculos com que os cidadãos se deparam no dia-a-dia. Alguns destes problemas assentam em deficiências estruturais dos recursos estatais disponíveis ou alocados: é assim normalmente nos incêndios de Verão, nos hospitais e nas escolas públicas, na administração da justiça. A maior parte das vezes não há dinheiro que chegue para tudo e, ainda por cima, o pouco que há é mal desperdiçado, seja por via da incompetência seja por via da corrupção. Outros problemas, porém, advêm da própria concepção de estado, do poder que nele investimos e do que ele esperamos. Mais estado pode equivaler a mais impostos, menos liberdade individual mas, como contrapartida, mais segurança social para todos. Menos estado é commumente sinónimo de mais investimento privado, menos impostos e – não há bela sem senão – menos capacidade de resposta aos problemas dos mais desfavorecidos.

O texto que escrevi e que ainda está disponível no site do Hoje Macau é essencialmente caricatural. Propõe diagnosticar uma série de problemas sem na verdade equacioná-los à luz dos factos. Apela sobretudo à inesgotável capacidade de indignação do leitor. E não é assim por acaso. A primeira reacção de qualquer sujeito perante um texto desta natureza é essencialmente emotiva: ou se revê nele e as palavras são uma espécie de espelho no qual surge tudo aquilo que ele gostaria de ter dito e não o soube ou pôde fazer, ou o rejeita porque a mensagem que este veicula fere a matriz de convicções que o norteia. Apenas após assentar a poeira disposicional é que o sujeito se dispõe a ver a coisa pelo prisma racional. Na maior parte das vezes, as convicções de cada um nós são tão fortes na expressão como fracas na estrutura, pelo que o sujeito prefere a sensação de ter razão do que a certeza de o ter. Não lê o texto duas vezes, não admite segunda opinião. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online.

Embora as falácias do populismo sejam instrumentos assaz eficazes na manipulação de massas, a verdade é que estas só têm algum efeito quando o contexto sócio-político e económico lhes é favorável. Não surgem Trumps, Bolsonaro ou Salvinis a toda a hora, embora eles não deixem nunca de existir. Apenas o contexto não lhes é favorável ao crescimento. Seja porque a economia vai de vento em popa, seja porque o fantasma de uma guerra recente ainda ensombra a população, seja porque as pessoas decidiram trabalhar para algo que os transcende e que confere um sentido superior aos interesses imediatos que o capitalismo e a economia de mercado estimulam incessantemente.

Na ressaca de uma crise económica mundial e com dezenas de problemas em mãos, uns nacionais, outros europeus, a nossa confiança não parece estar em alta. Ninguém arrisca uma previsão a médio prazo. A qualquer momento, uma nova crise económica pode mergulhar o país ou mesmo a Europa no caos. Mais: não parece ninguém capaz de endereçar os problemas que nos tolham os movimentos. Mais ainda: não parece haver ninguém capaz de falar sobre eles e de mobilizar a atenção pública para um debate de vários níveis – a segurança social, a produtividade, a sustentabilidade das contas públicas e o seu modelo de receita, o ensino e as saídas que este proporciona ou deveria proporcionar, o turismo e os custos e benefícios, os salários miseráveis dos portugueses e as diferenças gritantes entre os mais mal pagos nas empresas e os mais bem pagos – que deveria acontecer e que deveria produzir respostas de consenso que ultrapassassem o prazo de uma legislatura.

As pessoas estão entre a indignação, o cansaço e a raiva. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Estão fartas da política e dos políticos que temos. Estão cansadas de sentir que são permanentemente descartadas do diálogo no espaço público. Sentem que os políticos não falam nem para eles nem com eles. A esquerda portuguesa move-se há algum tempo entre causas de conquista civilizacional – direitos das minorias, paridade de salários entre homens e mulheres, fim da violência doméstica, direitos lgbt e outros temas que são fracturantes até deixarem de o ser – e aquilo que parece ser óbvio em Portugal, i.e., que se ganha mal, que se trabalha demais e por migalhas e que é necessário aumentar o salário mínimo.

Mas nem por isso os impostos – directos ou indirectos – baixam. A esquerda é aquele coleguinha de trabalho que está sempre a dizer o óbvio acerca daquilo que está mal e que responde invariavelmente “só estava a dar a minha opinião” quando lhe perguntam o que fazer para resolver as coisas. No melhor dos casos, oferece soluções que esbarram no cálculo mais simples. A direita, por sua vez, é apenas uma piada. Ou os agrobetos do CDS ou o autismo entrincheirado do PSD do Rui Rio. Não falo da aliança do Santana por vários motivos, um deles a indispensável manutenção de uma réstia de higiene mental.

Depois temos a corrupção, que nos últimos anos tem vindo a ser posta à luz de diversas formas. Parece ser endémica, tentacular e deveras resistente à exposição do antibiótico da justiça. Fora umas carpas de rio que mal cabem na cova de um dente, nada de particularmente doloroso tem acontecido a capangagem que forrou os bolsos com dinheiro público anos a fio. Salgado, João Rendeiro e tutti quanti ou esperam julgamento sogaditos nas suas vidas milionárias ou foram condenados a penas suspensas. A justiça igual para todos é um dos pilares fundamentais da democracia e um garante de paz social.

Por fim, o racismo latente, a xenofobia, o preconceito. A maior parte das pessoas que não gosta de gays não conhece um gay sequer – conscientemente, i.e. A maior parte das pessoas que insistem em fazer piadas de pretos não passa qualquer tempo com pretos. A maior parte das pessoas que… E assim por diante. A ignorância é quase sempre a raiz de todos os preconceitos. Desconfiamos daquilo que não conhecemos, e é muito fácil passar da desconfiança para o ódio quando as coisas não correm bem e temos de encontrar um culpado. O que não é de todo claro que funcione é combater a ignorância com repressão ou de cima de um púlpito moral. A ignorância combate-se com educação, com tolerância. A ignorância não é o fascismo ou o comunismo, mas estes últimos alimentam-se da primeira. De igual modo, a ignorância não se combate de uma posição de superioridade, mas de uma posição de igualdade. Se a conversa começa por repudiar, julgar ou acusar alguém, a conversa não continua. Cada um dos intervenientes numa relação de entrincheiramento acaba mais entrincheirado do que antes. Chamar alguém à razão não é chamar alguém à pedra. E, por fim, temos de aceitar que existem pessoas as quais nunca seremos capazes de modificar quanto às suas crenças, por muito antiquadas e grotescas que nos pareçam, e com as quais teremos de conviver. Podemos punir quaisquer comportamentos ilegais que tenham, podemos tentar minorar os efeitos de contágio das suas convicções, mas não podemos impedir que pensem ou sintam o que pensam e sentem. À ignorância e preconceitos alheios teremos de contrapor a nossa tolerância e aceitação. É difícil, é em muito contranatura, mas é a única forma que temos de integrar uma convicção que repudiamos sem esta nos consumir.

Talvez esta crónica hormonada não consiga esclarecer quem na semana passada fez uma leitura literal do texto a que faço referência aqui. Talvez eu próprio não esteja a conseguir articular correctamente a cadeia de pensamentos que me levaram a escrever o que escrevi. Espero, no entanto, que pelo menos desfaça o equívoco segundo o qual o texto era lido como uma apologia do populismo ou era classificado de perigosa e desnecessária provocação. A minha intenção foi sempre a de mostrar que o populismo mistura e confunde para seduzir e não se apresenta de uniforme. O mais importante, de qualquer modo, é sair das trincheiras que cavámos – de boa ou má-fé – e encontrar os consensos sobre os quais se fundam as sociedades democráticas, porque a minha intenção não é a de calar ninguém ou de ter a última resposta: a minha intenção é a de que voltemos rapidamente a falar.”

26 Nov 2018

Braco, a alegria do espargo

[dropcap]D[/dropcap]obra quase um século sobre o que o poeta T. S. Eliot escreveu «Onde está a sabedoria,/ que se perdeu com o conhecimento?/ Onde está o conhecimento/ que se perdeu com a informação?»

Vivemos sob a orbe de uma sociedade da informação cujos fluxos são disparados, com consentimento ou não, e quantas vezes basta conectarmo-nos à Internet para colher os frutos de um maravilhoso pomar de dados, embora tema que estejamos mais isolados e intolerantes.

E talvez o mais vital não se situe na comunicação, mas no conhecimento. Que é? Temos demasiada pressa para o identificarmos enquanto nos lambuzamos nos novos hábitos de recolectores da informação. Radicará nesta falsa aurora, como um remix de fragmentos chegados de fora de nós, a facilidade para nos julgarmos com opinião sobre tudo, presumindo que agora a esfera pública está confinada às irrelevâncias que nos permitimos em privado? Morreu a esfera pública, ou emudeceu, como a crítica.

Entretanto, enquanto o velório prossegue, faço meu um dito de Ezra Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.» A comunicação é tudo que está exterior a nós, na horizontal, já o conhecimento atinge-nos como uma reminiscência, abrindo horizontes na vertical como se raiasse de dentro. O que só acontece pela duração e não na instantaneidade da comunicação porque o tempo é suado e denso e não superficial e rápido, como o mercado ou as redes sociais afirmam.

E isto ocorre no rasto da mudança de paradigma na nossa relação com a palavra. A tendência niilista que se manifesta nesta reviravolta política para uma direita populista advém entre outros factores de uma desvalorização da palavra e de um descarrilamento na trivialização.

Aparentemente estamos mais conectados, contudo ao ser-nos repetido que tudo se mercantiliza descremos do valor da palavra e caímos no cinismo.

É sintomático que o actual guru de maior sucesso na Europa seja Braco, o Mudo. Braco o Contemplador, que cura as pessoas olhando-as por alguns minutos. Centenas afirmam que os seus padecimentos desapareceram por completo após terem fitado os seus olhos pacíficos. Parece que também funciona em animais, que provoca látegos de ternura nos frangos congelados e orgasmos nas ervilhas. O croata de 46 anos é popularíssimo na Europa e já é um fenómeno crescente nos EUA.

Ele não fala em público nem dá entrevistas; só se ouve a sua voz “amorosa” através de seu DVD. Consta que perderia os seus poderes especiais se falasse.

Um jornal americano chamou-lhe «o guru de uma nova era sem nada para dizer». Explicitamente, o seu silêncio é uma inscrição oracular onde cada um vê, encontra, o que julga precisar. Ressalta daí que já não se busca nem se acredita numa experiência partilhável pela mediação da palavra, que seja comum, pública: estar a sós com a mudez do olhar de guru basta.

Hoje, morta a esfera pública, as convicções e crenças pessoais repudiam os factos. Um dia, em 2007, na universidade em Maputo, cheguei à aula e os meus planos foram furados por uma reportagem televisiva que urgia, diziam os alunos, ser debatida. Nos subúrbios, uma rapariga parira um bule e duas chávenas. Metade da turma rejeitava a hipótese, alguns hesitavam e outros defendiam a sua possibilidade. Foi inútil explicar-lhes as leis da biologia e o que fosse o ADN.

Contra convicções não há factos: faça-se silêncio sobre séculos de ciência. O olhar de Braco desautoriza Einstein.

Igualmente, o inexplicável no fenómeno das fake news (que “industrializou” uma prática que se ocultava) é que face à sua motivação política tão descarada a sua implaubilidade concite afinal adesões tão maciças, sem que o crédulo interrogue os efeitos de se institucionalizar a mentira. O militante crê, afasta qualquer crivo de análise: basta-lhe o olhar bovino do candidato, daquele que prescindiu de debates, e tudo devém credível.

É absurdo que no fito de exprimirmos a insatisfação contra um sistema estabelecido aceitemos um conservador autoritário que usa processos desonestos e nem cumpre as regras do jogo, alheando-nos de que ele nos está a avisar que não tem valores e o seu programa viverá da vantagem, do oportunismo e da violência; para ele o passado não é uma inscrição na memória mas narrativa morta, que qualquer alusão revisionista desmancha, reverte e desclassifica.

As pessoas sérias da direita democrática não separam o trigo do joio? O ensaísta Bruno Carvalho, professor de Harvard, mete o dedo na ferida: «O facto de o eleitorado mais de direita optar por um radical, ao invés de outros candidatos da direita mais comprometidos com a democracia, indica uma necessidade urgente de autocrítica entre elites conservadoras e liberais».

A confirmar-se a eleição de Bolsonaro a hecatombe não é só para a esquerda, a direita democrática fica sem legitimidade ou recuo moral.

Reagia Bolsonaro às acusações sobre a Caixa 2: embora reconheça a ilegalidade do acto, no fundo é uma vítima da liberdade das pessoas que se organizam para divulgar mensagens em massa em seu benefício, sejam militantes ou empresários… pelo que é inocente. Há alguma coisa de que este homem se sinta responsável?

É uma resposta tão cínica e destituída do factor humano como a reacção de Trump à queda das Twin Towers: «A Trump Tower voltou a ser a mais alta!»

Por que é que se fica cego a estas evidências, achando que são apenas minudências de um orador desastrado, um mal menor? Porque na generalidade as pessoas vêm preferindo a trivialização da comunicação ao conhecimento, que exige outro comprometimento e a manutenção duma esfera pública: ou seja, de critérios fora de nós.

Há décadas que Bauman preveniu que a paulatina primazia que se dá à segurança sobre a liberdade pode resultar na paranoia que anseia por liquidar o exterior, o espaço público. Que São Braco, Deus dos espargos, nos acuda!

25 Out 2018

AL | Antigos rostos pedem renovação e dizem que há mais populismo

Quase tudo mudou desde que a Assembleia Legislativa da era RAEM começou a operar. Antigos deputados como Jorge Fão e João Manuel Baptista Leão falam das práticas populistas levadas a cabo por alguns tribunos, por culpa de Hong Kong. Iong Weng Ian defende a substituição dos velhos pelos mais novos

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi há tanto tempo que João Manuel Baptista Leão foi deputado que a memória falha. É hoje mais difícil recordar os momentos de quando esteve na Assembleia Legislativa (AL), a partir da legislatura de 1999/2000. Esta foi uma das antigas vozes do hemiciclo que aceitou recordar o passado e falar do trabalho desempenhado pela AL nos dias de hoje.

João Manuel Baptista Leão é membro da comissão que elege o Chefe do Executivo, além de ser dirigente de uma associação que organiza cursos de formação contínua para adultos, em parceria com a Universidade Cidade de Macau.

A AL que deixou já não é a mesma mas, na sua visão, isso não é necessariamente mau. “Tudo mudou. Antes da transferência de soberania, a AL podia, por própria iniciativa, produzir uma lei. Depois deixou de ter este direito e cabe ao Chefe do Executivo autorizar previamente.”

Foto: HM

Este é o primeiro exemplo de mudança apontado pelo antigo deputado, mas João Manuel Baptista Leão fala ainda da maior representatividade social que hoje existe, pelo facto de o hemiciclo ter 33 deputados. Há, contudo, falhas a apontar.

“A AL deveria analisar melhor as leis, ter mais tempo para os seus trabalhos. Os deputados deveriam trabalhar a tempo inteiro e não a tempo parcial, porque precisam de mais tempo para analisar as leis”, disse ao HM.

Ao olhar de fora para a casa política que já foi sua, João Manuel Baptista Leão considera que é altura de os jovens assumirem a dianteira do poder legislativo.

“Já é altura de dar oportunidade aos jovens para se candidatarem. Há pessoas que estão na AL há muitos anos e é altura de alterar o elenco. Os mais velhos têm de entregar os seus lugares.”

Jorge Fão, que foi deputado há 12 anos, diz que nunca foi homem de querer ficar na AL por muito tempo. “Há quem goste de ficar ali eternamente, não foi o meu caso, porque fiquei ali uns anos, conheci os cantos à casa e não me encostei.”

Hoje é dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, sem nunca ter deixado de ser uma voz activa nesta área.

Foto: Sofia Margarida Mota

Estabelecendo uma comparação com o seu tempo, Jorge Fão, que foi número dois de David Chow, acredita que hoje o hemiciclo é mais populista, muito por culpa de actos de alguns deputados, como a apresentação de cartazes nos debates.

“No meu tempo havia debates mais sérios, com menos fogos-de-artifício, por assim dizer”, apontou. “Hoje em dia está na moda o populismo, que se verifica em toda a parte, como em Hong Kong. Em Taiwan este populismo existiu uns tempos, mas verificam-se hoje menos debates desse género. De Hong Kong alastrou para Macau.”

Jorge Fão recorda que alguns deputados “começaram a levar cartazes para os debates, a levar bonecos para cima da mesa”. “Nunca vi uma coisa semelhante nos parlamentos em Portugal ou no Reino Unido. Isto está aliado a uma certa imaturidade política e ao facto de as pessoas quererem fazer um pouco de show-off. Algumas declarações não têm fundamento e não passam de um embuste eleitoral para enganar os eleitores menos informados ou atentos.”

Menos debates, mais leis

Jorge Fão e David Chow chegaram a ser autores de um projecto de lei sindical que, à semelhança de todos os outros que se seguiram, não foi aprovado. Para Fão, antes a AL tinha mais iniciativa legislativa, algo que faz falta nos dias de hoje.

“A AL tem realizado um trabalho inquestionável, mas não vejo muito trabalho legislativo a partir da própria Assembleia. A entidade que legisla praticamente não tem apresentado qualquer projecto digno de registo. A esmagadora maioria dos articulados são propostos pela própria Administração”, diz, falando “num certo desequilíbrio.”

“No meu tempo conseguimos apresentar os nossos projectos, e não foram poucos. Nem todos foram aprovados, como é natural, mas muitos foram apresentados, e subscritos por vários deputados”, recorda.

Hoje há mais pedidos de debates apresentados pelos deputados mas, para Jorge Fão, isso não é um sinal de amadurecimento político do hemiciclo.

“Verificam-se mais debates, há uma maior participação por parte dos deputados, nomeadamente no ano em que estão marcadas eleições. Isto é uma questão de visibilidade e tem a intenção de caçar votos. Todo este tipo de show-off não passa de populismo. Não tem qualquer interesse para a comunidade ou sociedade”, acusa.

Tal como João Manuel Baptista Leão, também Jorge Fão considera importante chamar mais jovens para a política, algo que se verifica nas próximas eleições legislativas, agendadas para 17 de Setembro.

“Vão participar pessoas mais jovens, que querem lançar-se na vida política. Isto é muito saudável, até porque temos de rejuvenescer. Vai haver caras novas e faço votos para que se possam inteirar das questões de Macau e encontrar as melhores soluções para a sociedade.”

Da AL para a APN

Iong Weng Ian foi deputada com ligações à Associação Geral das Mulheres de Macau (AGMM). Actualmente é mandatária da lista de Wong Kit Cheng para as eleições deste ano e desempenha o cargo de deputada por Macau à Assembleia Popular Nacional onde, junto de Pequim, apresenta algumas ideias em prol do desenvolvimento do território.

Além disso, a ex-deputada fala de um intenso trabalho desenvolvido junto das comunidades que mais precisam. “Quando tomei a decisão de sair da AL já tinha o objectivo de deixar o lugar aos mais jovens. Continuei a participar nos serviços sociais, sobretudo nos assuntos ligados às mulheres.” 

Hoje olha para a AL como um local onde “há vários aspectos por desenvolver”. “Os diferentes grupos têm diferentes tópicos a que dão destaque mas, como membro da AGMM, quero que a AL trabalhe mais na área dos assuntos familiares, que legisle sobre as garantias dos idosos e dos inválidos, e que aborde a questão da habitação”, aponta.

Convidada a fazer um comentário sobre as eleições deste ano, Iong Weng Ian lembra que, este ano, a concorrência é muito grande na eleição pelo sufrágio directo, pelo facto de existirem 25 listas. “Não será fácil a reeleição, mas queremos dar o nosso melhor e os esforços nas eleições.”

“Macau é uma sociedade democrática, quantas mais comissões de candidatura houver melhor, e todos contribuem para o desenvolvimento de Macau com os seus conhecimentos e experiências. É bom haver muitas comissões de candidatura. Espero que as eleições deste ano decorram de forma justa e limpa”, declarou a antiga deputada.

Iong Weng Ian faz ainda algumas críticas ao trabalho do Executivo. “Acho que a sociedade se desenvolveu nos últimos anos, tal como o Governo. Mas o Governo pode fazer melhor em relação às políticas de apoio à família, tendo em conta o desenvolvimento dos jovens e dos idosos.”

 

 

Sistema de contagem de votos para continuar

Num ano em que vários grupos optaram por apresentar listas separadas, na expectativa de conseguirem melhores resultados eleitorais, os antigos deputados consideram que não é necessário alterar o actual sistema de conversão de votos em mandatos. “Neste momento, há várias opiniões sobre este assunto, mas podemos continuar com este sistema. Tentamos lutar pelos votos dos eleitores com base neste método”, referiu Iong Weng Ian. Para Jorge Fão, não é aconselhável alterar o sistema nesta fase. “Este é um método de Hondt adulterado, mas traz vantagens, porque o território é pequeno e não temos partidos políticos. Como tal, este tipo de método serve para aqueles que querem participar na vida pública. Os grupos mais pequenos têm hipótese de ser eleitos. Não é oportuno mudar o sistema”, defendeu o antigo deputado.

Mais juristas e tradutores precisam-se

Se no tempo de Jorge Fão a AL tinha falta de tradutores e de juristas, hoje esse problema é ainda mais visível. “Todos os deputados têm estado muito atarefados, porque as propostas de lei do Governo são mais. Acho que o número de juristas que trabalham na AL é pouco, e deveriam pensar em recrutar mais pessoal de apoio, com experiência e que perceba a legislação local. Quanto aos intérpretes-tradutores, o grupo também deve estar desfalcado, pois já no meu tempo sentia a falta de tradutores. Estou a ver que continua a existir essa situação”, frisou.

11 Jul 2017

O populismo étnico em marcha

“Populist leaders like Donald Trump, Marine Le Pen, Norbert Hoffer, Nigel Farage, and Geert Wilders are prominent today in many countries, altering established patterns of party competition in contemporary Western societies. Cas Mudde argues that the impact of populist parties has been exaggerated. But these parties have gained votes and seats in many countries, and entered government coalitions in eleven Western democracies, including in Austria, Italy and Switzerland. Across Europe, their average share of the vote in national and European parliamentary elections has more than doubled since the 1960s, from around 5.1% to 13.2%, at the expense of center parties. During the same era, their share of seats has tripled, from 3.8% to 12.8%. Even in countries without many elected populist representatives, these parties can still exert tremendous ‘blackmail’ pressure on mainstream parties, public discourse, and the policy agenda, as is illustrated by the UKIP’s role in catalyzing the British exit from the European Union, with massive consequences.”
“Trump, Brexit, and the Rise of Populism: Economic Have-Nots and Cultural Backlash” / Harvard Kennedy School – Ronald F. Inglehart and Pippa Norris

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] voto britânico para abandonar a União Europeia (UE) e a eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos deixou muitos surpreendidos no passado ano. O economista e comentarista irlandês, David McWilliams, denominou 2016, como “o ano do outsider”. As previsões apontam que 2017 não será diferente, com eleições importantes que irão ocorrer por toda a Europa e muitos viram as eleições holandesas de 15 de Março de 2017, como “o primeiro grande teste” do que está por vir.

O líder do Partido para a Liberdade (PVV, na sigla em língua holandesa) de extrema-direita Geert Wilders tinha proclamado uma “primavera patriótica” que podia aumentar as pressões sobre uma sitiada UE. O político holandês islamofóbico viveu sempre rodeado por fortes medidas de segurança, tendo por mais de uma década, passado a maior parte do tempo num refúgio desconhecido, ou em uma ala do Parlamento fortemente guardada. Este esquema de segurança, durante vinte e quatro horas, que raramente permitia a saída à rua, e para assistir a alguns eventos da campanha eleitoral, teve de deslocar-se em uma caravana de veículos blindados, devidos às constantes ameaças de morte, que recebe de extremistas enfurecidos pelas suas declarações contra o Islão, comparando o “Alcorão” ao livro “A Minha Luta” de Adolfo Hitler.

O grande tema é de questionar a ideia de que as eleições holandesas marcaram o início de uma “primavera patriótica”, ou seja, a de que o povo retomará o controlo da elite a nível nacional e europeu. Até agora, a Europa dificilmente desempenhou qualquer papel na campanha eleitoral holandesa. Mesmo Geert Wilders pareceu afastar-se da questão. O co-investigador Stijn van Kessel no “projecto 28+perspectivas sobre o Brexit: um guia para as negociações com múltiplos intervenientes” da Universidade de Loughborough elaborou os dados que mostravam que os holandeses não queriam um “Nexit”. Além disso, outras questões prevaleceram na campanha.

O tema mais dominante foi a economia holandesa e, em particular, a questão de saber que política prosseguir em tempos de superavit orçamental e baixa taxa desemprego. A economia é tipicamente, um tema que os políticos holandeses gostam de ligar à UE, acrescentados dos motes de “muita burocracia”, “somos pagadores líquidos” e “não mais dinheiro para a Grécia”. Mas, nesta campanha, os políticos ligaram-se à questão do que é importante para a sociedade holandesa, como o do dinheiro extra que deveria ter uma maior taxa de participação para a criação de mais empregos, reforma do sistema de saúde, investimento nas políticas de alterações climáticas e melhoria do sistema educacional.

O outro tema abrangente é o que constitui a identidade holandesa no modelo da globalização. Uma “primavera patriótica” pressupunha debates sobre a identidade nacional, ameaçada por elites cosmopolitas e pressões externas. No entanto, na actual campanha eleitoral, a discussão pareceu ter sido mais matizada, centrada na redefinição da identidade nacional, sem necessariamente rejeitar a imigração e a integração europeia. Por exemplo, o líder do Partido Democrata Cristão (CDA, na sigla em língua holandesa) enfatizou os símbolos nacionais, trazendo a ideia dos alunos cantarem o hino nacional nas escolas.

O líder do Partido de Esquerda Verde (GL, na sigla em língua holandesa), enfatizou uma cultura inclusiva de tolerância e diversidade. Além disso, é muito provável que Geert Wilders seja marginalizado após a derrota sofrida nas eleições. Primeiro, a maioria dos partidos declarou que não quer cooperar com o seu partido e pessoa. Em segundo lugar, uma semana antes das eleições, as últimas sondagens, também sugeriam que não iria ter o número elevado de votos que foi previsto algumas semanas antes, e que se veio a confirmar. Isso não significa que as suas ideias estejam a ser ignoradas, tal como aconteceu com frequência na história política holandesa, em que os partidos tradicionais já haviam adoptado alguns dos seus discursos populistas, e até mesmo nacionalistas sobre questões como a imigração e a integração europeia.

A título de exemplo, em termos de valor nominal, as suas ideias parecem ser menos dignas, apesar de a identidade ter sido uma questão fundamental durante a campanha eleitoral, e que lhe pode ser atribuída, curiosamente, na trilha da alegada “primavera patriótica”, um contra-movimento que parece estar a surgir. A ascensão da direita populista é muitas vezes vista como um processo linear, começado com o Brexit e a eleição de Donald Trump, e continuado durante as eleições no continente europeu. Mas confrontados com as ideias populistas de direita de Geert Wilders, são um conjunto de crenças que realçam a diversidade e a abertura para influências externas, sendo mais visivelmente ilustrado, pelo crescente apoio ao Partido Democratas 66 (D66, na sigla em língua holandesa), que é progressista, liberal-social e radical democrata e o GL.

A tendência semelhante na França e na Alemanha é notória, onde, respectivamente, o pro-europeu Emmanuel Macron e o ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, estão a ter ganhos inesperados nas sondagens. Ambos, também sublinham as ideias de abertura e de tolerância, e a necessidade de cooperar a nível europeu. As urnas confirmaram a vitória do actual primeiro-ministro, o liberal de direita Mark Rutte, e revelaram que Geert Wilders, o candidato racista e antieuropeu que chegou a liderar as sondagens, não obteve tanto apoio como se esperava. Depois do Brexit e do êxito que representou a vitória de Donald Trump, o populismo xenófobo enfrenta, assim, a sua primeira derrota no Ocidente.

As eleições holandesas não conduziram ao início de uma “primavera patriótica” da extrema-direita populista europeia, mas sim a um reequilíbrio da política europeia. Todavia analisadas mais profundamente as eleições holandesas, vimos que ao entardecer do dia das eleições, os meios de comunicação social de todo o mundo, anteciparam uma vitória não apenas para o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, na sigla em língua holandesa) liderado pelo actual primeiro-ministro Mark Rutte, mas uma vitória para a política racional, liberal, enquanto elogiavam a derrota esmagadora dos nacionalistas étnicos de Geert Wilders.

O líder do VVD, de uma forma mais sóbria, em um discurso proferido depois de aparentemente o seu partido ter ostensivamente triunfado, declarou que os holandeses disseram não ao tipo errado de populismo. Mas esta é uma interpretação equivocada. Neste ano de eleições, que indicará se a UE pode sobreviver num futuro próximo, a eleição holandesa recebeu uma atenção indevida da imprensa mundial. Na sequência do Brexit, da vitória de Donald Trump, um referendo holandês e a quase um ano da eleição presidencial austríaca e meses do referendo constitucional italiano, o foco dos meios de comunicação sobre a Holanda tem sido compreensível, mas também tem sido distorcido pelos eventos de 2016.

O Brexit, a vitória presidencial de Donald Trump e os referendos foram escolhas binárias do “Candidato A” versus “Candidato B”, ou simplesmente “Sim” versus “Não”, e conjuntamente com o crescente domínio anglo-americano dos meios de comunicação internacional, ou pelo menos dos meios de comunicação transatlânticos, no seguimento de Donald Trump e da caótica política do Reino Unido, isso resultou no facto da comunicação social estrangeira, examinar as eleições holandesas através de uma lente distorcida. A eleição holandesa não era binária, mas multipolar. A comunicação social na análise política e no sistema de dois partidos e dualismo de Sim/Não, enfatizaram a possibilidade do PVV vencer as eleições.

Os mesmos meios de comunicação, em segundo lugar, apresentaram a eleição como uma derrota para o PVV e o seu líder. No entanto, nada poderia estar mais longe da verdade. O líder do PVV não perdeu em um sistema binário, anglo-americano, antes ganhou em um sistema multipolar europeu. Os dois partidos governamentais da Holanda perderam. O VVD do primeiro-ministro, Mark Rutte, perdeu oito assentos, enquanto o Partido Trabalhista (PvdA, na sigla em língua holandesa) de Lodewijk Asscher, vice-primeiro-ministro, passou de 38 assentos para 9 assentos, perdendo de forma assombrosa 29 assentos. No rescaldo do tropeço do VVD e da derrota do PvdA, o partido que estava mais preeminente era o PVV.

Apenas onze anos após a sua criação, o PVV é o segundo maior partido na Holanda. Não voltou ao seu auge de 2010, mas o desafio para a VVD de outros partidos e a derrota do PvdA, levaram a menor margem eleitoral do PVV a uma posição muito mais evidente. A ascensão do GL desafia o apelo do PVV, especialmente entre os jovens eleitores urbanos que, na Holanda, país altamente urbanizado, formam uma parcela substancial do eleitorado. Mas, ao mesmo tempo, o GL suprimiu o suporte do VVD. Enquanto o PVV e o GL, conjuntamente com o D66, não poderiam ser mais distintos em termos de políticas, mas compartilham uma característica comum que preocupou o líder do VVD, pois eram evidências do mesmo fenómeno visto nos Estados Unidos e no Reino Unido, em que os eleitores se sentem desiludidos com os principais partidos formados no rescaldo da II Guerra Mundial, e voltam-se para os partidos mais novos, que oferecem uma lufada de ar fresco, em relação a uma ordem política, ideológica e económica estabelecida e aparentemente estagnada.

O motivo adicional de preocupação é que nas grandes áreas metropolitanas da Holanda o PVV apresenta-se como o partido que reunia as maiores preferências, ou o segundo partido a nível nacional, e de forma preocupante, próximo do VVD. O surgimento do PVV, como partido dominante em Roterdão, põe uma séria questão quanto à ilusão dos meios de comunicação social, nas cidades holandesas como bastiões do liberalismo racional. O político que ganhou mais em termos de derrota dos seus inimigos, foi Geert Wilders. A maior causa de preocupação, é os complexos mecanismos de formação de uma coligação.

O governo anterior VVD – PvdA viu apenas duas partes a lutar para apaziguar uma população holandesa que está cada vez mais cansada de austeridade e diminuição dos benefícios sociais. A nova coligação liderada pelo VVD deve ser formada por quatro, talvez até cinco, partidos, que até agora se uniram principalmente na sua oposição ao PVV, e tendo ganho, é apenas uma questão de tempo, antes de enfrentar as duras realidades que representam os entendimentos políticos e da aparente derrota do inimigo comum, que cria brechas entre os diferentes partidos.

O período da lua-de-mel terminará rápido. A formação e gestão de uma coligação multipartidária será um desafio significativo para o líder do VVD, e não é de forma alguma claro como um governo tão diferente em ideologia, prioridades políticas e opiniões de uma UE em apuros, seja capaz de reagir à economia, com uma potencial vitória da Front Nationale na França, uma possível mudança para a direita na Alemanha, em Agosto, ou outra crise da zona do euro ou crise migratória, após a ruptura das relações UE – Turquia, mais acentuada depois da vitória do “SIM” no referendo turco de 16 de Abril de 2017.

As crises cada vez mais parecem não só inevitáveis como iminentes.Enquanto a ténue coligação do líder do VVD luta para lidar com os problemas da Holanda e responder a forças económicas externas, Geert Wilders encontrar-se-á em uma posição política forte, e como nenhum outro partido trabalhará com o PVV terá um papel desprezível face à nova coligação, destacando toda a sua inépcia e disputas, enquanto se banha na imunidade das críticas inevitáveis do governo, ou seja, uma imunidade concedida pelo seu isolamento da formulação de políticas.

O líder do PVV, em uma ironia sombria, ainda que tenha perdido assentos, continua com uma base eleitoral sólida, que o torna mais seguro que o líder do VVD e os seus aliados de coligação, sendo capaz de defender uma insatisfação anti ordem estabelecida, enquanto se autentica mais na ordem estabelecida. Até ao final de 2017, é provável que vejamos o líder do VVD e os aliados de coligação a enfrentarem uma crescente hostilidade por parte de uma população holandesa decepcionada e frustrada por politiquices, enquanto Geert Wilders prega a mensagem repetitiva mas mediática dos eternamente marginalizados e de hipócrita mártir político. É certo que isso está longe de ser certo.

Os holandeses não vão entrar numa “primavera patriótica” e Geert Wilders cometeu sérios erros, especialmente na sua recusa em se envolver com os meios de comunicação de massa.Mas se aprender com esses erros, irá garantir uma enorme posição como figura popular de proa, canalizando a frustração e a decepção pública para uma coligação de rangedores.E porque é altamente provável que uma disputa em curso entre a Holanda a Turquia, caracterizada por invocações repetidas dos dias mais sombrios da “Nova Ordem”, só vai aumentar ainda mais, depois do referendo de 16 de Abril de 2017, e Geert Wilders terá mais condições de aproveitar o desapego e a desilusão holandesas. para atrair o esquecido, o desapontado, o contrariado e o temeroso com sua bandeira.

A eleição holandesa não representou a derrota do populismo étnico. Na melhor das hipóteses, é uma vitória pírrica para o último bastião da ordem estabelecida. Na pior das hipóteses, é um sinal de um eleitorado desencantado que expressou a sua infelicidade com o “status quo”. A esse respeito, as eleições holandesas não são diferentes do Brexit e das eleições americanas. Não são uma vitória para o liberalismo, nem uma vitória para o racismo, mas uma vitória para a frustração, raiva, ansiedade e ressentimento. É uma vitória que não merece um elogio, mas um lamento ao contrário do afirmado pelos líderes europeus, com o Presidente da Comissão Europeia, como porta-voz de tão peregrina ideia.

19 Abr 2017

Em nome do povo

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi como se o mundo – leia-se a imprensa internacional do “mainstream” – tivesse acordado para o populismo apenas quando Donald Trump atingiu as primeiras páginas dos jornais. Nem todos os eventos, semelhantes na sua essência, são valorados da mesma forma. Naturalmente. Um atentado terrorista que mata uma pessoa na Europa recebe cobertura jornalística mais extensa do que um outro evento no Afeganistão que tenha feito 200 vítimas. O mundo é injusto. Mas esta é a lógica da comunicação social. A atenção que tem sido dada ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, e ao seu discurso e políticas contra os imigrantes, ou ao presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e à sua campanha pela eliminação de traficantes e consumidores de droga, é menor do que a que tem recebido Donald Trump, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos da América.

Mas a atenção mediática dedicada à campanha presidencial norte-americana tem o mérito de ter posto a academia a reflectir sobre as diferentes dimensões do populismo. A edição de Novembro-Dezembro da Foreign Affairs dedica, por exemplo, um número considerável das suas páginas a explicar o fenómeno. Recorre a vários pesos pesados da ciência política e comunicação, entre os quais Fareed Zakaria, apresentador do programa GPS da CNN, para fazer um ponto da situação sobre o populismo no ocidente. Entre discussões teóricas sobre as principais componentes do populismo – o discurso anti-elite, anti-sistema, a defesa do homem comum contra os poderosos, a invenção de inimigos externos contra os quais nos devemos unir para garantir a nossa sobrevivência – são avançados, também, dados actualizados sobre a chegada ao poder de partidos populistas no continente europeu.

Desde os anos 1990 que o populismo ganha terreno na Europa, quer à esquerda quer à direita. Com a queda do Muro de Berlim, o fim da história e uma aproximação ao centro dos principais partidos – que foram implementando uma agenda reformista alegadamente neoliberal, esbatendo alegadas diferenças ideológicas entre centro-esquerda e centro-direita –, o espaço do populismo tem aumentado. Os partidos populistas controlam parlamentos em seis países: Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Eslováquia e Suíça. O resultado de todas as eleições na Europa nos últimos cinco anos, 16, no total, dá aos movimentos populistas, de extrema-esquerda e de extrema-direita, uma média de 16.5 por cento dos votos. Pelo menos um partido populista em cada um dos países conseguiu mais do que 10 por cento dos votos.

As causas estão identificadas e parecem estar aí para ficar. A globalização tem contribuído para a deslocalização de capital e de empresas, conduzindo a despedimentos de onde saem. Quando as multinacionais se mudam para outras latitudes, onde os salários são mais baixos, mandam para o desemprego milhares de pessoas e levam ao encerramento de outras empresas que não conseguem competir com as transnacionais. A migração que tanto tem preocupado a Europa nos últimos dois anos – devido ao conflito na Síria e à consequente onda de migrantes “maquilhada” somente por a União Europeia ter “comprado” à Turquia a manutenção de refugiados no seu território – é apenas uma consequência da globalização. E é um fenómeno que se repete um pouco por todo o lado. No Reino Unido, diz a narrativa populista, são os polacos que “roubaram” postos de trabalhos, sobretudo indiferenciados, aos britânicos. Noutros países, como em Portugal, sobretudo nos serviços, dominavam os imigrantes do Leste da Europa e do Brasil. O discurso contra a imigração tem estado no centro da campanha política nos Estados Unidos, pela mão de Trump, mas também já esteve no centro da discussão durante a campanha do referendo que, em Junho, decretou a saída do Reino Unido da União Europeia. Mas a globalização fez da imigração a regra.

Os avanços tecnológicos têm igualmente contribuído para uma diminuição geral de postos de trabalho. Basta imaginar, por exemplo, o que acontecerá com os motoristas profissionais quando os carros deixarem de ser conduzidos por pessoas – um cenário de ficção científica que a Google e a Uber estão a transformar em realidade.

A pressão demográfica que é colocada aos governos dos vários países desenvolvidos – sobretudo na Europa, onde o saldo demográfico, com a esperança de vida a aumentar e a taxa de natalidade a diminuir – põe um travão a políticas expansionistas e faz aumentar a conta da solidariedade social. Os governos sejam do centro-esquerda ou do centro-direita não têm grande margem negocial, sobretudo quando têm de cumprir as regras orçamentais. A dívida pública média dos países europeus está nos 67 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos Estados Unidos se encontra nos 81 por cento. Ou seja, no caso da Europa, apenas um terço do que é produzido poderia ser usado para investir na expansão económica ou para ser redistribuído. Os governos estão pois manietados. Ou, na expressão em língua inglesa, é a política da TINA (“there is no alternative”). Veja-se, por exemplo, a incapacidade negocial do Syriza para com a União Europeia. A grande diferença entre esquerda e direita, salienta, por exemplo, Fareed Zakaria, já não é económica, é cultural. E ela que vai marcando a diferença entre os dois campos. Temas “fracturantes” como o aborto, o casamento homossexual ou a eutanásia são cada vez mais as questões fulcrais nas campanhas políticas.

Todos estes factores têm levado ao florescimento do populismo. O voto de milhares de eleitores da classe média, habitualmente do centro político, em partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita, radicais, racistas, xenófobos – veja-se por exemplo como em França a Frente Nacional de Marine Le Pen está a crescer –, deveria acima de tudo preocupar os partidos no poder e levá-los a apresentar alternativas sérias, credíveis, de forma a que os populistas, demagogos, não tivessem possibilidade de crescimento. Mas após décadas de apatia política, reforçada pelas similitudes dos principais partidos, a possibilidade de um homem (ou mulher), anti-sistema, anti-político, anti-elite, um homem do “povo” que quer fazer frente aos poderosos, começa a ter um apelo cada vez maior. Tudo em nome do povo, bem entendido.

24 Out 2016