A última garrafa

[dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]AUL: Quer então dizer que para morrer com a vossa ajuda, tenho de provar que não querer viver é: 1º uma doença; 2º uma doença terminal; e 3º de insustentável sofrimento?

 (sentando-se de novo)

 DOUTOR: Isso mesmo! Não se pode chegar aqui e dizer que não se gosta de viver e, pronto, passa-se imediatamente a ajudar a morrer. Não sei se está a ver o alcance da coisa? Tínhamos bichas de adolescentes com corações despedaçados, à porta, todos os dias; donas de casa a quem os maridos não prestam atenção; mulheres e homens enganados pelos conjugues. Enfim, está a ver! Era um sem fim de gente a aparecer aqui, para ajudarmo-los a morrer.

 RAUL: Senhor doutor, compreendo perfeitamente o que me está a dizer. Mas o senhor é que não está compreender aquilo que lhe tenho vindo a explicar. Eu não tenho uma causa para querer morrer, senão não querer estar vivo. Mais nada. Estar vivo é horrível. Não se trata de uma consequência, mas sim de uma causa. Nada na minha vida é razão para o suicídio. Antes pelo contrário. Não tenho coração despedaçado, não tenho conjugue que me engane, nem sequer rejeições sexuais, para além do que é normal na existência humana, e nem sequer quaisquer problemas com a profissão que exerço ou onde a exerço. O meu problema é com a vida em geral, não com as suas particularidades. Por favor, não tome aquilo que lhe digo de ânimo leve. Julgo que fiz mal em vir aqui.

 (levanta-se e dirige-se para a porta)

 DOUTOR: Não se trata disso, homem. (também se levantando e seguindo-o; toca-lhe no ombro) Não se vá já embora. Sente-se, por favor! Vamos lá conversar. Olhe, você é o meu último paciente de hoje, até podemos estar aqui mais tempo. (dirigindo-se ambos para os seus lugares anteriores) Não me leve a mal. Estou tão somente a tentar compreendê-lo. E, ao mesmo tempo, também a tentar explicar-lhe como é que o seu caso é visto daqui deste lado. Você ponha-se no meu lugar! Entra-me um indivíduo por esta porta, que nunca vi mais gordo, e desata a dizer que quer morrer, e que quer eu ajude. Vamos lá devagar! Não se trata de uma gripe!

 RAUL: Compreendo, doutor. Sei que não é culpa sua. A situação não é muito ortodoxa.

 DOUTOR: (rindo) Não é muito ortodoxa? Você não brinque, homem! É uma situação inexistente.

 RAUL: O senhor tem razão. (preocupado) Mas gostaria que não me confundisse que os casos hipotéticos a que se referiu há pouco atrás. Porque a minha situação é completamente diferente. E bastante ponderada. Não é de ânimo leve que chego aqui e lhe peço o que lhe estou a pedir.

 DOUTOR: Já vi. Sossegue, homem. Vamos lá tentar perceber o que se passa.

 RAUL: Aí é que está, doutor! Não há nada para perceber. Se quiser, é um cancro na alma que vai corrompendo tudo o que sou. E nestes últimos tempos tem-se tornado insuportável.

 DOUTOR: Está bem, mas eu tenho de perceber isso. Não po…

 (batem à porta)

 DOUTOR: Sim?

 ENFERMEIRA: Posso, doutor?

 DOUTOR: Toda a licença. Diga!

 ENFERMEIRA: Queria saber se ainda vai precisar de mim. É que já passa da hora, ainda tenho de passar pelo colégio dos miúdos.

 DOUTOR: Não, não. Pode ir, claro. Até amanhã.

 ENFERMEIRA: Até amanhã, doutor.

 (fecha a porta)

 DOUTOR: (levanta-se e abre a porta de uma estante) Posso servir-lhe um whisky?

 RAUL: Se não for incómodo.

 DOUTOR: Não incomoda nada. Deseja gelo, água lisa ou bebe-o puro.

 RAUL: Como já vi a garrafa, bebo puro. É crime estragar tão bom whisky com água.

 DOUTOR: Lá isso é verdade. Eu também só bebo puro, sou pouco escocês.

 (volta à mesa e serve o whisky e propõe um brinde)

 DOUTOR: À sua!

 RAUL: Obrigado. À sua!

 DOUTOR: Então, aonde é que estávamos?

 RAUL: Estava a dizer ao senhor doutor que não me confundisse com os casos…

 DOUTOR: Sim, sim. Já me lembro. Pois e eu ia precisamente a dizer-lhe que tenho de perceber aquilo que se está a passar consigo. Já percebi que não é um homem vulgar.

 RAUL: Desculpe, doutor, mas vulgar sou. Sou um homem como os outros.

 DOUTOR: Quero dizer no tocante à sua decisão de pôr termo à vida. Não se trata de um impulso que teve ou de um acontecimento que o fez tomar essa decisão. Arriscar-me-ia a dizer que é algo de filosófico.

 RAUL: Isso de filosofia é que não! Não me venha com filosofias. Não se trata de filosofia, trata-se de doença, doutor. Julgo que não há muito o que perceber, senão que é uma doença que me está a causar um sofrimento insuportável. E…

 DOUTOR: A vida, portanto.

 RAUL: Perdão!? Não compreendi.

 DOUTOR: A vida. A doença a que se refere é a vida.

 RAUL: Sim, a vida.

 (silêncio)

 RAUL: Mas quando digo que se trata da vida, há que dizer também que não sei bem.

 DOUTOR: Não sabe bem?

 RAUL: Claro, doutor. É que se fosse só a vida, provavelmente haveria mais casos como o meu. Haveria imensos.

 DOUTOR: Estou a ver.

 RAUL: O que quero dizer é que a vida, para mim, não é vida. É e não é. É, porque estou vivo e tenho as minhas responsabilidades como todos os outros. Não é, porque, sem razão nenhuma, ela se torna insuportável. Está a compreender?

 DOUTOR: Estou, estou. Continue, por favor!

 RAUL: É isso, doutor. Em mim, a vida é uma doença. E, no entanto, para tantos outros, para o senhor, por exemplo, a vida é apenas a vida.

 DOUTOR: Sim, estou a ver. E, dizia-me há pouco, padece disso desde a adolescência, portanto.

 RAUL: Mais ou menos.

 DOUTOR: Diga-me uma coisa: também não foi sempre assim, pois não?

 RAUL: Assim como?

 DOUTOR: A intensidade da dor.

 RAUL: Não. Dor sempre houve. Por vezes atenuava, sem perceber bem porquê. Mas de há alguns anos para cá, uns oito talvez, tem sido pior. E os últimos dois são difíceis de descrever, doutor.

 DOUTOR: Deseja um pouco mais de whisky?

 RAUL: Por favor, doutor.

19 Dez 2017

Paulo José Miranda, escritor e poeta: “Esta também é a terra dos portugueses”

Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, Paulo José Miranda explora um dos muitos limites da natureza humana, ao mesmo tempo que reflecte sobre o terrorismo. Convidado da iniciativa “Camilo Pessanha – 150 anos”, o escritor e poeta fala do novo livro, cuja personagem é o oposto do assassino profissional. O autor, que fala hoje no edifício do antigo tribunal, defende que a existência de duas culturas que se compreendem e que fazem de Macau um lugar singular no mundo, irrepetível

Publicou “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, uma compilação dos textos que tem vindo a publicar no HM. Porquê a entrevista a um assassino?

Tenho duas participações no HM. Uma é com os textos que compõem a secção “Máquina Lírica”, em que costumo escrever acerca de livros e maioritariamente poetas mais novos do que eu, que têm editado em Portugal. Participo também com a secção “Em Modo de Perguntar”, com pequenas entrevistas que tenho feito a várias pessoas, actores, poetas e escritores. De repente ocorreu-me a ideia de fazer um projecto, algo que já tinha escrito em 2004, a ver se funcionava. E eu próprio entro como entrevistador. Este livro faz parte de um projecto que já terminei, sobre obras do século XX, onde explorava diversas formas. A entrevista é uma forma utilizada no século XX, e em Portugal o gosto do público pela entrevista intensificou-se nos anos 90.

Porquê?

Talvez devido ao facto de termos vivido muitos anos no Estado Novo, a entrevista não era propriamente algo que agradasse ao regime. Então na década de 90 começou a acontecer uma coisa curiosa, em que as pessoas liam mais as entrevistas dos escritores do que os próprios livros.

Isso mudou ou intensificou-se?

Hoje em dia a situação é diferente porque a internet mudou muita coisa. Partindo dessa observação construí uma narrativa, uma ficção, em forma de entrevista. Já não era preciso estar a ler a entrevista do escritor. O Carlos [Morais José] gostou da ideia, teve alguma aceitação. Depois fez-me a proposta para editarmos o livro. Nunca pensei que o texto fosse editado tão cedo. Uma das razões para isso prende-se com o facto da entrevista ser um formato estranho para um livro, não seria a forma mais apetecível para os editores. Mas julgo que a maior dificuldade é que o texto não é muito longo. Se fosse um longo romance…que, aliás, pretendo fazer um dia.

A partir deste livro?

Não, só com esta forma, mas com outros personagens. Talvez aí seja mais fácil e apetecível para um editor. Quando me foi feita a proposta, aceitei de imediato. E porquê um assassino? O assassino opõe-se em determinados pontos de vista, que me parecem fundamentais, em relação às nossas próprias vidas e ao nosso tempo. Um deles é que ele faz uma vida inteira sem ser conhecido, porque ele era excelente no que fazia e ninguém sabia quem ele era. Isto é o oposto do que nós queremos nos nossos dias. Não só queremos ser reconhecidos pelo trabalho que fazemos como queremos ser reconhecidos só porque sim. 

Queremos ter os tais quinze minutos de fama.

E que os quinze minutos se prolonguem. Houve uma grande explosão, que me parece que está a terminar, em que as pessoas iam para a televisão sem terem feito nada de extraordinário. Este personagem é então o oposto disso tudo. Ao mesmo tempo há um jogo de espelhos entre a actividade dessa pessoa e a do próprio escritor. Vai-se traçando, à medida que ele está a falar, toda uma preparação. Há ainda a relação com a morte. Para ele matar não é encarado como morte, é visto como um trabalho. Há um outro lado, que está muito presente no nosso tempo, que é o modo como o personagem se posiciona de forma antagónica com o terrorismo, o que nos causa algum choque. Imaginamos que um assassino profissional é um terrorista, e ele distancia-se disso.

Editar este livro foi a maneira que encontrou de reflectir sobre essa questão, numa altura em que o terrorismo é tão falado e tão incompreendido?

É uma das maneiras. Tenho um livro, passado em Hong Kong, que é “A Máquina do Mundo”, uma história de amor entre dois assassinos profissionais, que vão perdendo vidas como se fosse um jogo de computador. Aí reflicto mais sobre o assunto. Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, o que há é o mostrar como nos anos 50 e 60 quase tudo era de elites. Até matar e pagar para matar. Hoje, como diz Karadeniz, qualquer um encomenda uma morte por meia dúzia de tostões. O assassino profissional já se tornou democrático também.

Foto: Sofia Margarida Mota

Percebo que há aí um certo fio condutor em relação à morte. Esse tema, sobretudo a morte premeditada, fascina-o?

Não. O que acho é que o assassino profissional interessa, porque todas as situações limites do ser humano nos fazem pensar. E ser um assassino profissional é uma situação limite. Isso são coisas que me fascinam porque reflicto sobre elas, sem dúvida nenhuma. Alguém que transforma uma pessoa numa coisa entra na esfera do horror.

Algo desprovido de sentimento.

É o horror, como o que aconteceu em Auschwitz. Estas são formas que me interessam para pensar e ao mesmo tempo expor o humano que habita em todos nós. Não vamos a esse extremo, mas há algo que se ilumina a partir dali, daquele limite. O meu próximo livro, um longo romance de mais de 600 páginas, é o oposto: é sobre alguém que viveu a vida de um ponto de vista absolutamente ético. O que também é uma posição radical, de limite. Passou a vida a ler e a estudar, tendo responsabilidade. São casos extraordinários para reflexão. Ao tentarmos descer ou subir até eles, acabamos por nos iluminar a todos nós, o humano, na sua normalidade.

Falou-me do livro “A Máquina do Mundo”. Foi esse o livro que o fez regressar a Portugal depois de ter vivido vários anos no Brasil. Chegou a ser referido na imprensa como um “fantasma literário”, porque desapareceu do panorama literário português durante uns anos.

O João Paulo Cotrim recebeu uma indicação do António Cabrita, que lhe tinha enviado “A Máquina do Mundo”. Ele gostou do texto e contactou-me a perguntar se já tinha editora. Eu vivia em Curitiba e ele foi a minha casa, e conversámos. Durante o ano de 2014 acabei por escrever um livro de poesia, então o João Paulo Cotrim acabou por editar três livros.

Mas como foi regressar? Sentiu-se esse “fantasma literário”?

Não pensei assim e continuei a escrever. No tempo em que não escrevi estava dedicado à música. Não publicava, mas não tentei publicar. Era uma situação difícil para publicar, porque estava muito afastado. Hoje em dia é muito difícil editar livros sem aparecer. Se não apareces para as entrevistas as pessoas deixam de existir, somos cada vez mais numa sociedade mediática.

E o escritor tem de ser uma estrela.

Não diria uma estrela. Comecei a publicar no final dos anos 90 e as coisas eram diferentes. Davam-se entrevistas, mas não se aparecia. Hoje isso é fundamental. Nunca senti a questão do “fantasma literário”. Continuei a publicar, mas de facto não aparecia. Foram livros que passaram, não estava lá. E do ponto de vista do jornalismo é interessante escrever sobre alguém que está exilado, desaparece e de repente edita três livros.

Esta terça-feira falou sobre a experiência do que é ser português em Macau. Viveu essa experiência na pele durante três meses.

Vivi um pouco, mas a minha experiência veio de uma grande intuição, e também pela experiência de ter vivido cinco anos em Istambul. Foi uma experiência mais radical do que estar em Macau, porque ninguém fala português. Haveria talvez uma pessoa que sabia quem tinha sido Fernando Pessoa. Em Macau, além de ter lido as cartas e imenso sobre Pessanha, fiquei com uma percepção. Há qualquer coisa que acontece com os portugueses de Macau que é uma espécie de amplificador de uma estrutura existencial. Essa estrutura é como aquele fenómeno que se passa na mecânica quântica, como se houvesse uma vida paralela. Durante um tempo poucas pessoas que vinham para aqui não sentiriam que a sua vida seria uma vida de empréstimo, e que mais cedo ou mais tarde iriam recuperá-la.

Sente que somos uns privilegiados em Macau?

Hoje em dia já não, mas na década de 90 sim, sem dúvida. As pessoas ganhavam uma fortuna a fazer o mesmo que fariam em Portugal. 

Falo do privilégio de ter acesso à cultura portuguesa e a pontos identitários nesse sentido.

O que acho é que Macau é um lugar privilegiado e provavelmente único. É provavelmente o único lugar onde os portugueses estiveram que não foi conquistado, foi doado. Isso muda tudo. Em Moçambique há uma sensação de racismo, porque os moçambicanos foram colonizados. Aqui isso não existe.

Mas há um distanciamento.

Que advém da enorme diferença cultural e da língua. Há essa experiência que é o convívio de duas culturas muito distantes uma da outra, que não se fundem. Houve muito mais fusão cultural, e entre as pessoas, em Moçambique do que aqui. Os portugueses tiveram, apesar de tudo, uma diferença em relação aos outros países, apesar das atrocidades cometidas. O português misturava-se. Quando chegamos aqui os bárbaros éramos nós, há logo uma diferença, porque havia aqui uma cultura instalada. Sempre houve esse respeito. Em nenhuma parte do mundo acontece isto. No mundo em que nós vivemos, é exemplar.

Quando viveu em Macau veio escrever sobre Camilo Pessanha.

Estava inserido num projecto que era uma parceria entre a Fundação Oriente (FO) e a editora Cotovia, da qual fazia parte. A Cotovia enviava escritores para vários locais a Oriente e publicava os livros. A FO encarregava-se dos custos. Foi-me dado a escolher entre Pessanha e Venceslau de Moraes, e aí iria para o Japão. Eu não escolhi Macau, escolhi Pessanha. É um poeta pelo qual sentia um fascínio há muito tempo. Li muito sobre ele, andei nos lugares onde andou. Foi o Pessanha e a força da poesia dele que me trouxe, e interessei-me depois pela sua pessoa. É uma pessoa contraditória, cheia de mistérios à sua volta, alguém que é viciado em ópio e que tem uma profissão importante. Ao mesmo tempo tinha um desprezo pelos seus conterrâneos, e depois tinha uma sensibilidade enorme. Acho que Macau está melhor, porque já não há a sombra de muitos portugueses que sentiam isto como uma colónia. Alguns achavam que os chineses eram inferiores. Era uma sombra que pairava, mesmo que nem todos pensassem assim. Com a transferência de soberania essa sombra desaparece. Mas esta é também a terra dos portugueses, e isso é hoje mais claro.

6 Set 2017

Desvão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há livros absolutos, muito menos em poesia. A poesia impõe-se mais pelo que deixa ler do que pelo que escreve. Não digo que a palavra escrita não seja importante, por que é, mas que o que a palavra deixa ler é mais. Aquilo que se consegue ver, ou que o poema deixa ver, que sugere, é mais importante do que o que escreve. E é nesta esteira que encontramos os poemas de Miguel Martins. Num dos seus livros mais recentes, Desvão – “num”, porque Miguel Martins é um poeta prolixo, que edita vários livros por ano, contando já quase com 30 livros de poesia editados –, debatemo-nos com esta tradição de entendimento e vivência da poesia.

Desde logo o título é fenomenologicamente rico. Para além da evidente semântica da palavra, que diz um espaço entre o telhado e o tecto do último andar de um prédio ou de uma casa, usualmente chamado de águas-furtadas, e que por si só já nos remete para um espaço de mistério, um espaço “entre”, entre o útil e o inútil, entre o necessário e o acessório, sugere também a leitura da divisão da palavra em des-vão, remetendo-nos para um neologismo, que faz todo o sentido neste livro. Tal como já Camilo Pessanha usara “desviver” – uma vontade de desviver – para melhor nos mostrar o seu sentimento perante não só a vida, mas o modo como sentia o seu lugar no mundo, Miguel Martins usa “desvão” e faz-nos ver, não ele no mundo, mas nós todos no mundo. O substantivo é transformado em verbo, um desverbo. Nós estamos não a ir, não a não querer ir, a não ir, mas a des-ir. A vida é um contínuos des-ir, não só através da memória, como nos mostra logo no início do livro – Num refúgio de sombra, / abrigado de tudo menos deste desvão da memória / assídua como um roncar de uma besta turva (…) –, mas também através da insónia, esse modo especial de estar alerta, como nos indicam os versos “a minha maneira de bocejar sem sono” (p. 19), “a eternidade dá-me sono” (p. 9) ou “sem insónias nem gritos” (p. 18). Eles, que des-vão na vida, entre a insónia e os gritos, e que somos nós todos, até o próprio poeta quando não é poeta, é o assunto deste livro. Mas entender o nosso modo de estar no mundo como um contínuo des-vão faz toda a diferença. Fazer ver, o que quer que seja, faz sempre toda a diferença. “Agora, és outra pessoa, / cheia de banalidades e pequenas alegrias. / O tempo e a distância encarregaram-se disso.”, diz-nos o início do poema, à página 18. Porque nós não podemos nada, de nós, das nossas coisas e dos nossos actos, deles encarregam-se o tempo e a distância. E não somos sempre outra pessoa, para os outros e para nós próprios, quando o tempo e a distância se encarregam disso? Não é esta mesma a condição inexorável daquele que está a des-ir? “Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos / escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados / como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar / entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se” (p. 11) E esta trágica condição, de tudo o que somos ser posto a ridículo pelo tempo e pelo espaço, a cada esquina, não invalida, não risca a necessidade de se viver “como se”. A memória não serve para nada, se não para nos dizer que tudo foi há muito tempo. A memória, adivinha-se neste livro, é uma máquina de cobrar a existência, uma espécie de pica-bilhetes, que quando menos se espera nos exige a comprovação de que estamos a des-ir no sentido certo, que realmente tivemos um lugar antes e estamos a des-ir na direcção de um depois. Não serve de nada, mas é como se servisse. Não serve de nada naquilo que é mais próximo ao coração, daquilo que é mais próximo à alma, daquilo que é mais próximo de algo como metafísica. A memória só serve para não nos esquecermos de fazer contas, é o mundo da tabuada. Pois só os números não mudam. Só os números podem ser recordados como eles mesmos são, pois na realidade só eles são, só eles nunca mudam. Nunca ninguém disse a um número “agora, és outro número” ou “já não és o número que conheci”. A memória não muda os números, mas muda as pessoas e as acções praticadas. A memória é o reino do “como se”, só existe na matemática. E isto é visível até quase à náusea, neste livro de Miguel Martins. A memória é uma espécie de insónia. Mais: insónia e memória estão tão ligadas que inventaram a noite, a noite “de todas as praias a que não voltaremos.”, como o poeta termina um dos seus poemas, onde a memória macera a carne, ou aquilo “a que se chama vida quando se tem ainda a vida intacta.” Eu sei que não basta morrer para acabar com a memória. Sei que não basta morrer para dar razão à sua pouca eficiência. Mas sem memória seriamos melhores? Sem memória não morreríamos?

(…) Resta-nos

a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado

até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partitura de Bach

para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós

(…)” (p.11)

Esta consciência aguda de nós não sermos carne ou, talvez melhor, que nós somos para além da carne, “como se” a consciência da mesma, mas ao mesmo tempo também não somos memória, faz desta nossa existência um des-ir contínuo para nada. E nada se sabe enquanto se desvai. Desvaímo-nos a medo, é o que nos resta, medo e tristeza, como escreve Miguel Martins  página 12:

“(…)

São esses os instantes em que se torna óbvio sermos apenas

gente, gente condenada a uma tristeza perene, pano

de fundo de breves alegrias, ao sabor dos jogos de cartas

e da meteorologia. (…)”

Este retrato da existência não é, contudo, um retrato pessimista, um retrato do humano como alguém perdido, esquecido no desvão, entre a memória e a carne flácida. Pois precisamente o que parece ser um mal, o não se saber o que andamos aqui a fazer, acaba por se tornar um estranho aliado, ou pelo menos um estranho companheiro de estrada, como se pode ver pelos últimos sete versos do poema à página 22:

“(…)

Tem idade para ser sua filha, provavelmente namora

um tipo que de Monteverdi não ouviu nem o nome.

É ruiva como um pêssego maduro, pequena como um pónei

de feira. E ele, impotente vai para dois anos, observa-a

como se fosse um quadro num museu de província, cheio

de condescendência e abandono. Pensa na arma que herdou

do tio, pensa que é chegada a hora de tomar uma decisão.

Mas, sem dúvida, aguardará a chegada e a partida

do 39, que vai, sem pressa, para não se sabe onde.”

E eis este nosso des-ir a fazer-se sentir em todo o nosso ser como uma forte trovoada. Um livro feito de espanto e de fazer ver, como se estivéssemos acabado de chegar à vida e nos debruçássemos na janela a ver as estruturas da existência a passar. Ainda antes de darmos as últimas palavras ao poeta, resta dizer que esta edição da editora “não [edições]” teve uma tiragem de apenas 200 exemplares, com composição e desenhos de João Concha.

Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história

na história da minha vida, um lugar de postais antigos,

desbotados, e do passado guardar apenas uma urna

de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças.

Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas

cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar,

sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe

miúdo e roupas com defeito às ciganas. Ser anónimo

por fora e por dentro, criança que não se conhece

nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim

de um carreiro de formigas, revelação suficiente

par aquém ainda não desperdiçou a vida a perscrutar

os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber

pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade

do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos,

pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe

das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes

e das sílabas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.”

3 Jan 2017

Inês Fonseca Santos: “O meu tempo é da espera”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta, escritora de livros para crianças, onde tens sido distinguida com prémios, e apresentas neste momento um programa na televisão “Os Livros”, acerca de livros. Qual a principal diferença entre escrever para crianças e escrever poesia?

Para além de “Os Livros”, também edito e apresento o “Todas as Palavras”, sendo que neste caso o programa é partilhado com o Luís Caetano e a Ana Daniela Soares. Não há grande diferença, na verdade. Se houver, é meramente formal. A poesia e a literatura infanto-juvenil são irmãs gémeas, gémeas siamesas, para ser rigorosa, porque nascem do mesmo “zigoto”, do mesmo ovo. Que normalmente é a imaginação e o espanto, sobretudo no que diz respeito ao modo de nos relacionarmos com o mundo e com a linguagem. Em suma, poesia e literatura para a infância e a juventude partilham da mesma natureza e em ambas é possível aproximarmo-nos das essências, questionando a regra, libertando-nos dela.

De qualquer modo, o teu livro de poesia A Habitação de Jonas, acerca do qual escrevi aqui no jornal e pelo qual tenho grande apreço, tem um tom de “realidade” que não é próprio para crianças.

Claro. Mas não é para crianças. Os outros, ditos “para crianças”, é que são para todos. Seja como for, o que disse na resposta anterior, tem a ver com a criação, com as “ferramentas” e os “truques” e os “recursos” que tem ao dispor quem escreve poesia e quem escreve literatura “para crianças”.

Recentemente lançaste um novo livro para crianças, que é também uma biografia, de José Saramago, com ilustrações de João Maio Pinto, na editora Pato-Lógico. Que te levou a este projecto, o autor, o género biografia ou a literatura para crianças?

O livro é co-editado pela Pato Lógico e pela INCM. A editora Pato Lógico, em parceria com a INCM, tem uma colecção de biografias para os mais novos que se chama “Grandes Vidas Portuguesas”. É nessa colecção que está integrado o livro “José Saramago — Homem-Rio”. Escrevi-o porque o André Letria, editor da Pato Lógico, me convidou a fazê-lo. Aceitei de imediato precisamente por me permitir somar todas essas parcelas que referes: a literatura para os mais novos, a biografia, a obra de um grande escritor e ainda a criação de um álbum ilustrado, que é sempre um desafio acrescido, uma vez que temos que escrever deixando espaço para que alguém acrescente significados com imagens. Esta combinação de parcelas permite que o livro não fique confinado a um só território, pois, em rigor, não estamos perante uma biografia convencional; tentei escapar a isso precisamente por ser um álbum ilustrado para a infância e a juventude. Tive que escolher o que contar e, mais importante, como contar.

Tens dois livros de poesia – escrevi neste jornal acerca do teu segundo e último livro – As Coisas (Abysmo, 2012) e A Habitação de Jonas (Abysmo, 2013). Para quando um novo livro de poesia?

Para breve, espero. Tenho um livro por acabar há uns anos. Chama-se “Suite Sem Vista”. E um outro que reúne poemas dispersos, publicados em antologias e revistas, e alguns inéditos. Este aguarda que lhe ponha ordem, se é que tal é possível; o outro aguarda algumas palavras. Costumo ser uma pessoa organizada, excepto quando escrevo. Escrever é, na essência, uma actividade livre. Por isso, só escrevo quando preciso mesmo de escrever, quando não há maneira de escapar àquela qualquer coisa em mim que se quer transformar em palavras, para lembrar Paul Claudel. O meu tempo é o da espera.

Tens alguma ideia de programa, que gostasses de fazer na TV, acerca de livros ou de livros e crianças?

Tantas, que terias que pedir mais páginas de jornal para as podermos partilhar todas. Resta saber se essas ideias cabem numa televisão…

Sei que estiveste uma vez em Macau, tinhas acabado de ser mãe há pouco tempo. Como sentiste essa tua experiência?

Fui a Macau para um encontro de poetas lusófonos e chineses, a convite do Centro Nacional de Cultura. Foram muito intensos esses dias em Macau por vários motivos. Partilho os bons: ter ficado muito amiga do Luís Quintais, um dos poetas com quem fiz essa viagem e que eu já lia há muitos anos, mas não conhecia pessoalmente; ter conhecido um lugar onde o meu Pai viveu uns tempos e sobre o qual escreveu e me contou histórias; ter partilhado poemas e experiências com pessoas que desconhecem em absoluto as línguas que eu sei falar; ter sentido o medo e a adrenalina de ser estrangeira; e ter sentido que, em qualquer sítio do mundo, estamos sempre com os nossos, estamos sempre a regressar a eles, a casa.

30 Dez 2016

O luxo e o lixo

Leitura de Página Órfã, de Régis Bonvicino

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro de poesia acerca do qual vou aqui escrever é um luxo. Não é um Ferrari, é o silêncio que o Ferrari produz à sua volta, assim como a aridez dos solos ao redor dos eucaliptos. Por conseguinte, o luxo de aqui se trata é o lixo. O lixo é o silêncio do luxo, a aridez provocada pelo luxo. O sexto poema do livro, à página 21, chama-se precisamente “O lixo”. Ao lixo havemos de voltar, mas por ora comecemos pelo uso da língua, pelo modo como o instrumento é tocado. Aquilo que faz com que alguém seja maior do que é é a sintaxe. Há momentos, neste livro, em que a sintaxe nos faz ver a língua, nos faz ver o pensar, o ato de pensar, momentos em que a sintaxe nos faz ver que não estávamos a ver antes. A sintaxe é a língua pensando-se a si mesma e mostrando-se, nesse ato, à nossa consciência.

Cai a tarde / e não há quem o retarde / o cair da tarde / Cai a tarde” O artigo defino masculino do segundo verso é tudo (obviamente exagero, mas é tudo). Quero dizer que aquele “o” nos faz ver o verbo, nos faz ver o verdadeiro sentido de uma frase, aquele “o” nos revela a língua. “Cai” não é cai, cai é cair, e cair, aqui, não é qualquer cair, é “o” cair. Que este poema “Resgate” é excelente, não está em causa. Mas a excelência da poesia não é apenas o sentido do que diz, mas o manuseio da língua a fazer-nos ver a língua, a fazer-nos ver o que é a língua. Não basta dizer o que não pode ser dito para ser poesia, é preciso dizer o que não pode ser dito de um modo absolutamente sintáctico. Dizer de um modo onde a língua se pense a si mesma e nos faça pensar nesse seu gesto interior.

Por exemplo, sem o terceiro verso pensaríamos tudo completamente diferente. Para além da musicalidade, do parentesco entre tarde e retarde, isto é, para além do belo há a verdade, há o pensar, há o cair na própria língua, na sintaxe e no sentido dela. Por outro lado, “o cair” da tarde já não é mais verbo. “O cair da tarde” é complemento directo de um sujeito: “vejo o cair da tarde”; “sinto o cair da tarde”. Ou, no seu sentido mais dilatado: “impossível impedir o cair da tarde”. Mas este sentido dilatado recupera o primeiro verso “cai a tarde”. Cai a vida. Impossível retardar este cair. Este pensar, este cair em todo este sentido não é outra coisa senão a exposição da sintaxe e do seu mistério. Estamos, no fundo, diante de um livro que, desde o seu primeiro poema e a um mesmo tempo, não recusa a narrativa nem deixa de privilegiar o verso. Nada para um homem sujo / só a água numa cuba / sequer um olhar // (…) [p. 13] A narratividade expressa na primeira estrofe não anula a pertinência do primeiro verso isolado: Nada para um homem sujo (…).

E é deste homem sujo do primeiro verso que todo o livro irá tratar, isto é, de nós aqui dependurados numa cidade de costas viradas para a sua língua, para a sua história, para a sua humanidade. Que cidade é esta? São Paulo? Não. São Paulo é apenas a metonímia deste nosso tempo. A cidade é este nosso tempo exíguo, de onde dependurados vivemos com medo de cair. A primeira estrofe deste poema inaugural mostra, acusa, predica o isolamento a que alguém – um homem sujo – está votado.

Mas essa solidão ao invés de ser amenizada por um outro, pela presença de outro, é, pelo contrario, intensificada, amplificada. 1 + 1 dá quatro. Quatro solidões, ou mais, emergem quando um e outro se juntam. A cidade é uma máquina de multiplicar solidão. Na segunda estrofe do poema, o poeta escreve: mãos sujas / aroma de / amantes talvez. // (…) [idem] A possibilidade de trazer agarrado à sua pele o cheiro de amantes está directamente ligado com suas mãos sujas.

O corpo de uma mulher é um coisa, e esta relação entre um homem e uma coisa – com os dez dedos e ter / ao cabo – o corpo dessa mulher [idem] –, mais do que tudo, suja o mundo. O que mais suja o mundo é esta relação entre os humanos, isto é, entre um humano e uma coisa, pois ninguém vê o humano como humano, todo o humano é para um outro uma coisa. Esta coisa nas mãos ou na boca de um humano suja o mundo. Começa assim este livro de Régis Bonvicino. Mas não se fica por aqui. Assim, no dealbar das páginas do livro, poderia parecer que cada um em si mesmo é o luxo ou a procura do luxo e outro para cada um de si mesmo é sempre um lixo. Embora esta equação exerça sobre nós uma forte atracção, contudo, não é certa. Nem todas as coisas são lixo e nem todo o si mesmo é luxo, como veremos ao longo do livro.

Lixo e luxo, veremos em seguida, determinam-se pela utilidade ou não utilidade da relação de um humano com uma coisa. Não se entenda aqui utilidade de modo ordinário, como por exemplo um garfo diante de uma massa ou uma colher diante de um prato de sopa. Utilidade, aqui, é aquilo que nos serve e nos faz esquecer de nós e dos outros. A utilidade é, por exemplo, e no seu esplendor, a publicidade. Vejamos o poema, que se chama “Anúncio” [pp. 25-6], onde o poeta nos mostra como hoje o humano troca todos os dias a realidade pela publicidade, o existente pelo inexistente, como se de um ganho se tratasse. Mais: como se fosse o sentido da vida. O poema tem, uma vez mais, narrativa. Nessa narrativa há um acontecimento que obriga as pessoas a conduzirem seus carros mais devagar, a atravessar um viaduto muito lentamente, como tantas vezes na cidade. O poeta vai junto com os demais, mas não está com os demais. O poeta enuncia a realidade que vê: urina e fezes na calçada, latas velhas de anchova em conserva; em suma, mendigos cultivando detritos. O poeta faz-nos ver assim os novos pobres camponeses da grande metrópole e suas actividades “agrícolas”. Cultivar detritos é a grande agricultura dos miseráveis das grandes cidades.

Por outro lado, o resto das pessoas, a maioria, olha o outdoor com o rosto de uma modelo anunciando não se sabe o quê – pois nunca se sabe o quê. Ninguém vê um homem entre o arame farpado, ninguém vê esse preso no campo de concentração da vida, no campo de concentração dos dias sem nada, mas todos vêem o rosto da modelo que pode muito bem nem existir, que não existe, mesmo. Todos os dias trocamos a realidade pela ficção, trocamos o existente pelo inexistente, trocamos a poesia pela publicidade. Julgo que o titulo do livro, o sentido do titulo do livro explode páginas antes com o poema “Azulejo” [p. 18]: Meu pai e minha mãe / mortos / ninguém / algum // (…). Evidentemente não podemos esquecer o poema da página 84, “Página”. Leia-se a estrofe final: a flor da azálea / o lixo real, / e o verdadeiro / desta página

Poderíamos pensar, biograficamente, isto é, sem interesse nenhum para a poesia, que foi necessário a morte dos pais para o poeta ver a verdade e no-la mostrar. Mas toda a verdade advém sempre de uma morte ou de várias mortes no coração de alguém. Retornemos ao “Azulejo”, ao seu final: cacos ásperos / que, agora, / num ato de acúmulo / rejunto. Aquele que sobrevive à morte de um amor, fica entregue ao a-cúmulo de rejuntar os cacos ásperos da realidade, os cacos que a publicidade de todos os dias teima em fazer esquecer. O poema que dá titulo ao livro, “Página órfã”, os dois últimos versos terminam assim o livro: (…) beco sem saída, página órfã, / nunca, imitação da vida [p. 110] Imitação da vida tanto é o lixo quanto é o luxo.

Para além da sujidade do mundo, também muitos são os versos que nos mostram o seu luxo, não só através da enumeração de várias grifes, mas de hábitos ligados a um mundo de grife. O poema “It’s not looking great!”, referência explícita à top model Kate Moss, mostra que o luxo facilmente se deteriora em lixo, no mundo grife. O que não é mais útil, grifemente útil, torna-se lixo. Mais: deve tornar-se lixo e ser apontado como exemplo. Assim, as referencias contínuas, quase nauseantes de tanto a-cúmulo, a grifes e às modelos que servem de médiuns a esses mortos, tem uma razão de ser: mostrar o outro lado da realidade, mostrar o que não é a poesia, mas a publicidade, o inexistente. O luxo facilmente se vê, no poema, como lixo. À flor da página, a borboleta voa sobre o lixo e o luxo transmutando um no outro, em verdade. É assim que o poeta quer ver a sua palavra e que ela seja vista, testemunhada.

O poeta não é concreto, é duro, violento. O poeta não é lírico, é sintacticamente belo. Não há meio termo neste livro, não há classe média, não há nada médio. Sentimos a vertigem de passar dos muito ricos para os muito pobres, dos miseráveis para os hiper-supérfluos. Atravessamos ainda a rua, o verso, da ignorância medíocre para a cultura erudita. E o poema que melhor diz a poesia em geral e, em particular, a deste livro, chama-se “Prosa”, que começa assim: “Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras (…)” [p. 98] Nem mais. Quem investe em poesia? Quem usa a poesia do seu tempo como modo de impressionar, numa reunião social? Quem trauteia um poema enquanto faz a barba? Quem imaginaria um monstro tamanho chamado top ten poético?

E um poeta, como Régis Bonvicino neste seu livro, não canta a sua dor, não resmunga a sua verdade, nem inventa superficialidades ísmicas. Pois ele sabe que a poesia não vale nada, senão uma palavra esperando outra. Por fim, resta-me assinalar a acertada inscrição no pórtico do livro, verso de Frederico García Lorca: “y los que limpian con la lengua”. O lixo e o luxo.

BONVICINO. Régis. Página órfã, Martins, Martins Fontes, São Paulo, 2007

13 Dez 2016

Gonçalo Waddington: “O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s actor, encenador, realizador, trabalhas no teatro, no cinema e na TV, e és também escritor. Editaste recentemente uma peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, que faz parte de uma tetralogia, e no ano passado editaste Albertine (livro pelo qual viajamos na terça-feira passada, na Máquina Lírica). Quando estudavas teatro já escrevias, pretendias fazê-lo, ou foi algo que aconteceu mais recentemente?
Foi algo que aconteceu mais recentemente. Na verdade, eu e a actriz Carla Maciel, com quem eu sou casado, pedimos a um escritor para adaptar um volume – ou uma “parte”, quanto muito -, da obra Em Busca do Tempo Perdido do Marcel Proust para teatro. O escritor disse-me que não lhe interessava a proposta e que, o melhor, seria eu, Gonçalo, escrever a peça. Foi assim que me apareceu a obra Albertine, O Continente Celeste.

Para além do teatro, quais as tuas leituras mais frequentes, para além obviamente do Proust?
Sebald, Holderlin, Hofmannsthal, Lucrécio, Pynchon, Rui Nunes, Trakl, Ingeborg Bachmann, Michaux, João Miguel Fernandes Jorge, António José Forte, Herberto… entre muitos outros e outras.

Como vês este nosso tempo em relação ao cinema e ao teatro em Portugal?
O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível. Há filmes (curtas e longas) a estrear em todos os grandes festivais mundiais, veja-se o exemplo da curta-metragem PEDRO, da dupla André Santos e Marco Leão, que irá estrear no mítico festival Sundance Film Festival. É́ a primeira curta- metragem portuguesa neste festival. No teatro temos o caso do Tiago Rodrigues, a Praga, a Mala Voadora, o Miguelinho Loureiro, a Companhia Maior, os Possessos, os SillySeason, o Tonan Quito… tantos e tantas que têm projectos incríveis.

Quais os próximos projectos em que estás a trabalhar, de momento?
Agora estou a escrever uma nova versão do guião da minha primeira longa-metragem PATRICK, que será rodada no primeiro semestre de 2018. Depois irei para a segunda parte da tetralogia d’O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante.

Explica-nos melhor esse teu projecto da tetralogia, por favor.
O Nosso Desporto Preferido é uma tetralogia em que proponho uma reflexão sobre a nossa evolução como espécie universal. A primeira parte da obra, com o sub-título Presente, é composta por cinco personagens, encabeçada por um cientista misantropo que sonha com a criação de uma espécie humana livre das necessidades básicas como a alimentação, digestão e, talvez a característica mais importante para a peça, a reprodução — tornando-se assim uma espécie exclusivamente dedicada ao hedonismo e à abstracção, seguindo, de acordo com a sua visão, o caminho da evolução natural da nossa civilização tipo 0 para tipo 1, em que seremos finalmente uma sociedade global, multicultural, multiétnica e científica. A segunda parte: Futuro Longínquo, é uma pequena amostra do que serão, daqui a cem mil anos, os Homo Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens – ou, recorrendo a um neologismo Houllebecquiano, os Neo-Humanos – de uma Civilização Tipo 3, de acordo com a escala Kardashev, o astrofísico russo que se propôs medir a evolução tecnológica de uma civilização, particularmente no que concerne à produção e consumo de energia. Este grupo será composto por quatro a cinco actores de diferentes nacionalidades. Estes supra-seres dedicam-se apenas a esperar pela morte: consumidos pelo tédio, uma vez que os seus corpos têm uma durabilidade cem vezes maior da que a dos seus antepassados – nós –, tentando compreender a razão de tal desvio evolutivo que levou à espécie humana a que agora pertencem. O seu único desejo é comunicar o seu desagrado pela sua presente condição, tentando, em vão, emitir uma qualquer mensagem que atravesse o Espaço-Tempo e alerte o grupo de cientistas da primeira parte – Agora –, seus criadores, para a tragédia que eles, sem o saberem, irão – no passado – 3 desencadear com as suas experiências. Enquanto não desaparecem, dedicam-se à compreensão da Filosofia, da Arte, da Religião e das Ciências humanas, sociais e políticas, uma vez que eles, seres racionais e científicos, são incapazes de tais abstracções. Conversam e jogam Badminton.

9 Dez 2016

Nuno Moura, poeta e editor: “Estamos na Dinastia Flang”

[dropcap]A[/dropcap]lém do teu trabalho como poeta, desenvolveste recentemente um trabalho editorial, com a tua douda correria, onde tens publicado poetas tão diferentes como sejam o caso de Carla Diacov (brasileira) ou António Poppe, e de Raquel Nobre Guerra e Vasco Gato. Talvez os primeiros se enquadrem mais naquilo que tem sido a tua própria poesia, o que mostra uma elasticidade de gosto tão magnífica quanto rara, no nosso pequeno rectângulo encostado ao Atlântico. Por tudo isso, os meus parabéns! Quais os teus critérios para a edição de um livro?
Obrigado. Primeiro ter dinheiro para pagar à gráfica e à nossa compositora Joana Pires. Depois o critério vem com o próprio texto.

Aplicas os mesmos critérios aos teus livros, imagino. Estás a preparar um livro novo?
Vou corromper a Adília “é preciso desentropiar o critério todos os dias”, e ando com o Cavalo Alucinado, mas nem sempre estou para longas caminhadas na mata.

Hoje aceitarias editar em outra editora que não fosse tua, ou isso não faz sentido para ti?
Mais do que aceitar, eu desejo. Gostava muito de ser editado na Medula do Manuel A. Domingos.

Como chegaste a esta nova poesia brasileira? A Carla Diacov e o Diego Moraes li-os antes em revistas literárias de Curitiba, mas nunca pensei que pudessem ser editados tão depressa aqui.
Nos anos 80, 90 do século passado eu esperava dois ou três meses por um livro. Ia sempre nervoso aos Pedidos Internacionais da Livraria Portugal. Com aqueles funcionários adeptos da descontra, entre máquinas de escrever e Madeira, em número suficiente para se criar logo ali um sindicato. Agora alguém te diz ‘tens que ver isto, este autor’ e tu olhas e lês. E falas.

Começaste também muito recentemente uma colaboração entre a Douda Correria e a Demónio Negro, de São Paulo, com a edição de Senhor Roubado, de Raquel Nobre Guerra, no Brasil. Editar-se-ão de seguida Catar Catataus, de Paola D’Agostino, Fruta Feia, de Miguel Cardoso e o teu Canto Nono. Queres explicar melhor como funciona esta colaboração?
Troca de autores e textos. Ele tomou a dianteira e enviou-me alguns exemplares. São belos. Para quê estar a fazer aqui, à maneira da Douda, se podemos ter os, digamos, originais-na-prensa? O Vanderley faz 50 exemplares a mais e envia-me.

Recentemente afirmaste que consideras o António Cabrita o melhor poeta português vivo, e que isso causa muito espanto entre as pessoas. A mim, não me causa espanto, mas porque achas que as pessoas se espantam com isso?
Porque se calhar pensam que é algum ministro ou dirigente desportivo, sem desprimor algum. O presente nunca chega a tempo da escola.

Na China antiga, na época da dinastia Tang, o mundo mais poético que existiu na face da Terra, para se ser mandarim, isto é, empregado público, o teste final (entre outros) era escrever o seu próprio poema, embora os poetas pudessem não ser mandarins, como nos excelsos casos de Li Bai e Du Fu. Quão longe estamos hoje deste mundo? E achas que só pode melhorar, ou ainda vai piorar?
Estamos na Dinastia Flang, ainda usamos parafusos. Eu não seria um mandarim e, como diz a minha mãe ‘filho, eu não trocava isto por nada’. Normalmente diz isto de uma série qualquer de televisão.

18 Nov 2016

O preço das casas

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]orria o ano de 2002, e a editora Gótica lançava um livro de poesia chamado O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias. Livro com 62 páginas e 40 poemas, divididos em duas partes: “Entrada de Emergência” e “De Uma Porta à Outra”. O título, somado à inscrição de Ruy Belo, antes do início do livro – Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade – sugere-nos logo uma leitura junto da fenomenologia. Embora o preço das casas, a que o título se refere, também seja o preço de mercado, o preço que pagamos pelo imóvel, o preço que pagamos com o suor do corpo, o preço das casa aqui é antes de mais o preço da intimidade que nasce entre quatro paredes, o preço da intimidade que nasce entre um coração e outro ou, melhor seria dizer com Cardoso Dias, o preço da intimidade que nasce entre um animal que cheira outro animal – escreve o poeta à página 28, no poema “Another Shade Ten Minutes”: “(…) onde um animal olha outro animal olhando-lhe (…). No fundo, o preço das casas é o preço de amar. Mas o que é amar, neste livro, e que se adivinha que também seja na vida? Esta pergunta – o que é amar – lembra-me sempre um verso de Pedro Tamen: “Amor, é amar”. Aquela vírgula ficou para sempre no meu coração. E aqui neste livro de Joaquim Cardoso Dias a pergunta não é menos pertinente. Começa assim o livro, com o poema “Sem Mentir”:

ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa

e se caminhou nu toda a noite

pelo tecto do quarto mas

eu tirei a roupa toda bebi água

e não te telefonei

qualquer coisa assim atirou-me de bruços

para o coração e lembrei-me

de te esquecer desde o começo

muito longe e alto nas escadas de incêndio

foda-se como acreditar que te amo

sem mentir

Poucos são os livros com começos tão felizes como este. De uma felicidade amarga, como toda a felicidade revisitada – “(…) Nessun maggior dolore / che ricordarsi del tempo felice / ne la miséria (…) / Não há maior dor / que recordar o tempo feliz / já na miséria” (Dante, Divina Comedia, Canto V, vv. 121-23). E o que é um bom poema, se não uma felicidade revisitada? Mas este poema dá-nos o tom do livro, em quatro penadas: uma casa vazia, a noite onde não se dorme, o amor que só tem carne e por isso estraga-se, e a necessidade imperativa de mentir, não só para que o amor exista, mas também para que a vida exista. Escrever poemas aparece logo no início do livro, como a arte superior de mentir. Porquê superior? Porque admite para si mesma a sua essência longe da verdade. Leia-se este poema de uma cintilação rara, “Enquanto A Noite”:

não tenhas medo é tudo o que sei fazer

duas das minhas mãos pelo teu cabelo enquanto a noite

essa idade onde descreveras o calor à volta de mim

e um pouco mais

sei por isso quem morre neste poema

Escrever é mentir, viver é mentir-se. E, entre as mentiras da escrita e da vida, há apenas a beleza; a beleza dos versos, como o início deste poema, e a beleza dos corpos, capazes de descreverem o calor à nossa volta. Ponto de vista este que é reforçado no poema “Mitologia”: “finjo que acredito em ti: amo-te /e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras antes da única verdade / se ter ferido encostada tanto / ao meu peito”. A única verdade: o corpo, a beleza. Há um verso de Ruy Cinatti, que ecoa aqui com uma força ainda maior: “Quem não me deu Amor, não me deu nada” – este livro de Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, é aliás um livro que brilha na escuridão destes poemas. Mas aqui em Cardoso Dias, poderíamos traduzir para: Quem não me deu Beleza, não me deu nada. Pois o amor é apenas parte inexistente, ou desconhecida, da beleza.

Assim, o preço das casas é o preço dos corpos, o preço da beleza, o preço daquilo que faz a vida ser vivida, que faz a vida valer a pena, que faz, no fundo, a vida ter preço. Escreve o poeta em “Salsugem@hotmail.com”: “um segredo é a alquimia mais sincera / uma contradição comum com interesse individual // neste sentido amo-te tanto e amo-te muito // e publicar esta ausência contrária / é um erro trágico que irei pagar com o teu corpo.” Esta contradição comum com interesse individual, com que o poeta nomeia o segredo, essa sinceridade única, que é o silêncio que une dois corpos, e condenada a acabar assim que se enuncia, é também a vida. A vida é um segredo.

Do ponto de vista da técnica, aquilo que mais salta aos nossos olhos, é a duplicidade do verso, como no poema “Mitologias”: “e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras (…)” No primeiro verso somos levados a pôr uma vírgula entre “saber” e “todos”, acabando por ler: e sem o saber, todos os sonhos… Mas o poeta não quis a vírgula porque não quer que se leia apenas assim, quer também que se leia: e sem o saber todos os sonhos… Mesmo sem saber todos os sonhos, ou sem saber “todo” o que seja, que é a condição humana, tudo nos cai ao chão, tudo cai ao chão, como no poema de Dylan Thomas. Terminemos com este poema de Joaquim Cardoso Dias:

O PREÇO DAS CASAS

não foi ao mesmo tempo

uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso

ou esta navegação politica da idade

mas eu acreditei em tudo

desde a primeira vez em que estivemos juntos

eu dava meia volta e a lua

lá estava durante o sono

no meu espelho de atravessar os mares

iludindo a vontade de chorar

até a temperatura se tornar insuportável

na interpretação quase televisiva do mundo

de repente pouco sabíamos um do outro

e a sensibilidade ficou assombrosamente maior

por denunciar a minha barba cada vez mais insistente

agora só o teu corpo consegue despir-me

agora posso sonhar até deixar de ter

e teremos perdido tudo por engano amor

e durmo contigo sem ninguém ver

esta rosa do fundo da minha cabeça

dormirei contigo esta noite aqui devagar

onde atiro pedras a todos os sentidos

apago a luz e espero o sono

as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração

já não tenho comprimidos para te esquecer

Joaquim Cardoso Dias publicou recentemente um novo livro de poesia com o título Pornografia Doméstica, pela editora Gulliver. E, tal como O Preço das Casas, também já está esgotado.

15 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

António Cabrita: “O que me é natural é o poeta”

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stás neste momento como finalista do prémio do PEN Club, na categoria de narrativa (o vencedor será conhecido no dia 10 de Novembro), com o livro de contos Éter, publicado em 2014 pela Abysmo, e que tive a oportunidade de apresentar no Porto, de modo informal (mais tarde o livro foi apresentado formalmente, em Lisboa, pelo escritor e professor Luís Carmelo). É a primeira vez que és finalista de um prémio literário? Já venceste algum? E qual é a tua posição em relação aos prémios literários?

Tenho uma relação descomplexada com os prémios. Já fui finalista do Prémio Telecom do Brasil, em 2012, com o romance A Maldição de Ondina; o qual voltou a ser finalista, desta vez fazendo parte da short list, do prémio Póvoa do Varzim, de 2013. Portanto, em pouco tempo é a segunda short list que enfrento. Também já concorri a prémios, em períodos de “falência técnica”. Como fazia o Roberto Bolaño. E ganhei três. O Prémio Cesário Verde foi providencial: paguei quatro mil euros de dívidas e com os mil que restaram fui a Paris cinco dias, onde gastei 400 euros em livros – nessa altura, 1997, um bom taco. Com o prémio Natércia Freire paguei a viagem à família de Maputo para Lisboa. Como vês, às vezes são úteis. Ganhei também um concurso para guiões do ICA, mas o produtor português abotoou-se com o dinheiro. Mas, na literatura, nunca escrevi para os prémios. Se depois se conjuga, isso é outra coisa…

Os prémios são quase sempre úteis. Em 2004, escolheste ir viver para Moçambique. Foi bom para a tua escrita? Por exemplo, São Paulo e Fazenda Rio Grande, ambas cidades no Brasil, foram lugares bons para a minha escrita.

Foi muito bom. Fiquei rapidamente na condição de um duplo “exílio”, pois, primeiro descobri que as paisagens mudavam mas os meus fantasmas, limites e superstições também se vivificavam, depois vim tarde para a “fusão” (com 45 anos), razão porque aqui coabito mas não me integro na cultura local – sou estimado, respeitado e tolerado como diferente, o que é uma coisa distinta –; por outro lado, tenho uma família grande e não tenho modo de a deslocar para regressar. Esta qualidade de estar “entre” disparou em mim uma densidade que não tinha (uma espécie de vigília permanente, própria a quem não está no seu meio, e que se converte em textura) e por outro, como exercício complementar, a leveza. Rio-me mais de mim do que antes, mudo mais rapidamente de perspectivas. Por fim disciplinei-me e, tendo pouca vida social, ocupo de facto seis ou sete horas por dia a ler e escrever; em Lisboa era mais dispersivo. Daí que costume dizer que o ideal para mim era passar seis meses em Portugal e seis meses aqui.

Ao longe, de outro continente e de outro hemisfério, como vês as letras aqui em Portugal? Qual a imagem que tens acerca do que está a acontecer, em comparação com o início deste século?

Parece-me mais vivo e diversificado do que no princípio do século. Havia uns senhores polícias-sinaleiros (tipo Joaquim Manuel Magalhães e os seus satélites) que ditavam leis e afunilavam o trânsito, ao quererem impor o que “deve ser”. Hoje o panorama é mais plural. Infinitamente mais perigoso porque a ausência de modelos também leva à trapaça, mas com manifestações estimulantes. Por exemplo, é interessante como se multiplicaram até quase à saturação as sessões de leituras de poemas em Lisboa e no Porto. Coisa que de todo não havia. Há um lado de “presença”, de urbanidade e socialização que faltava à poesia e lhe foi devolvida. Embora isso tenha o risco simétrico de se esquecer que há muita e grande poesia que não é para ser dita… Mas na generalidade estou animado. E gosto muito do que as mulheres estão a fazer na prosa e na poesia, é exaltante.

A tua actividade divide-se entre o ensino de escrita de guiões para cinema, jornalista, poeta, ensaísta e escritor. Entre o ensaísta, o escritor e o poeta, em qual papel te sentes mais confortável e de qual gostas mais? Por exemplo, eu sinto-me mais confortável como poeta, mas gosto mais de escrever sobre os outros.

O que me é natural é o poeta, mas desconfio da facilidade e estou sempre com o verso no estaleiro. A narrativa faz-me sair do conforto, daí que seja o género que neste momento prefiro, até porque também gosto do jogo das estruturas. Do jornalismo, talvez por ter ocupado vinte anos da minha vida, neste momento interessa-me sobretudo a crónica, embora gostasse de fazer um dia uma reportagem em alexandrinos. O ensaio motiva-me porque me leva à leitura e a «pensar contra mim próprio», e estou tão viciado nisso como a Alice o estava com os espelhos. A crítica é do que tiro menos prazer e angustia-me. Mas iniludivelmente, o inferno para mim é o incêndio da Biblioteca de Alexandria. E por isso me interrogo por vezes sobre o que vim fazer a África, com parcas bibliotecas e caricaturais livrarias, e onde as paisagens com palmeiras, como vogais desventradas, me entendiam de morte. Na verdade, prefiro o vento às palmeiras, e o vento é universal…

3 Nov 2016

Palavra contra palavra (continuação)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra escrita tem a primazia, não porque seja mais educada ou mais limpa, mas porque tem uma relação especial com “aquilo que não é”, como no poema à página 38, “Poema com muito vago erotismo ao fundo”:

“Não é a mesma  a língua com que te   falo

a  língua

com que te beijo   ou esta língua   outra

em que te escrevo,

a   tinta espessa,      vagamente  húmida.

É preferível escrever-te que beijar-te:

a folha rasa   limpa   é  corpo     liso

acolhendo  quente  o contorno da letra   

e  com  essa língua   sinceramente   falo

e  digo   quase  sinto

o beijo que te escrevo  e  não te  dou.”

A narradora do poema diz ser preferível escrever a beijar o amante, e quase sente o beijo que escreve e não lhe dá. Não é a escrita que está aqui em causa, evidentemente, mas aquilo que não é, aquilo que poderia ser ou não, mas que não é e passa a ser daquele modo poderoso sobre nós “como seria” ou “poderia ter sido tão bom”… A palavra escrita tem o poder do invisível, o poder da liberdade infernal. Se é verdade que a poeta assenta os seus poemas num forte chão parmenidiano, ela mesma escreve “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” (p. 40), numa identificação entre ser e pensar (e pensa-se com palavras), também não é menos verdade que há um outro lado mais obscuro de entender a relação entre a palavra e o ser. Rita Taborda Duarte começa o seu poema “Quando muito é um cachimbo” – do qual também fazem parte os últimos versos citados – com este verso: “A palavra nunca é uma palavra, quando muito é um cachimbo (…)” (Ibidem) No mesmo poema em que inscreve a sua herança de Parménides, começa por dizer que a palavra está além ou aquém de si mesma. Sem dúvida, é uma tese metafísica, mas de carga contrária à do filósofo eleata. É então talvez chegado o momento de abordarmos o poema “Lá fiz o poema”, onde a poeta escreve aquilo que poderá ser o modo como ela se relaciona com o fazer do poema. Pode ser ou não, verdade é que, neste poema, é assim que o narrador se mostra na sua relação como o fazer do poema, dos poemas. Podemos estar certos de uma coisa: não é nada fácil encontrar um verbo que defina o “fazer do poema” que a poeta aqui nos traz. Leia-se primeiro o poema, para depois podermos entender melhor as dificuldades que a poeta nos arranjou, e algumas alegrias também, evidentemente:

“Lá fiz o poema  hoje

sequer o escutei, primeiro, pois que nem estava dito     ainda;

os meus poemas não andam sumidos em silenciosinhos cúmplices,

à espera de que eu chegue e venha resgatá-los.

Nada me sussurra voz nenhuma de deus nenhum.

E o meu silêncio sequer é um silêncio-metafórico a murmurar flores escondidas.

É um silêncio silencioso   silêncio oco: sem nada a declarar

por dentro.

E esse silêncio, é curioso, nunca me dita poemas.

Mantém-se calado, tal lhe convém.

Pura e simplesmente, o meu poema não estava em parte alguma,

nem agasalhado em sossegos    nem em qualquer sítio que se percebesse.

Ou se lá estava tanto pior;

que se havia um poema omnipresente embrulhado em silêncios

em todo lado e em qualquer parte,

outro o escutou   o mostrou   o fingiu    o disse,

outro, não eu, que a haver poema passou-me

distraidamente ao lado.

Portanto, resumindo,

este poema que eu fiz nem sequer se encontrava inscrito no mundo por aí

para que eu fosse lá e ao menos partisse as unhas escavando

as pedras.

Em lado nenhum.

O poema que eu fiz não estava em parte nenhuma em nenhum lugar

E tive de ser eu, com certeza, a massacrá-lo letra branca em tecla preta,

a confiscá-lo ao teclado,

sem a musa do outro arrastada pelo cachaço,

e, em mangas de camisa, diria, não fora eu mulher

e não usasse nunca   nem a camisa   nem as mangas   nem o casaco.

Sequer um cigarro onde pudesse ir fumando rimas

por dentro das palavras.

O meu poema

tive de ser eu a escrevê-lo sozinha.

E eu

não escrevo como se tocasse piano, que o portátil não traz uma partitura,

nem ninguém havia, lá, presente ausente para mo trautear.

As teclas fazem barulho, sujam os dedos

e nada tem mais micróbios do que um teclado, dizem.

Foi, portanto, um mau poema:

fiquei cansada

e nem uma folha, ao menos, para amarfanhar.”

(pp. 14-5)

Para além da estrofe final do poema – do mau e do bom poema, de hoje nem  podermos esmagar com as nossas mãos o mal que fizemos -, que seria um outro texto, interessa seguir a pista do que aqui temos seguido. O poema não foi escutado; o poema não veio do silêncio, nem de uma musa; o poema não foi escavado; não foi construído (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); e também não foi inventado (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); o poema não chega como uma composição e também não é a execução de uma partitura. O que sabemos do poema é: não estava em parte alguma antes, e teve de ser a poeta a escrevê-lo sozinha, num teclado, que tem mais micróbios do que qualquer coisa do mundo. Com este poema a poeta parece querer destruir a metafísica, que tanto acarinha ao longo dos seus poemas. Pois tudo em Rita Taborda Duarte excede a própria coisa: os corpos, as partes dos corpos (“qualquer coisa dos corpos fica ainda / ainda quando os corpos se levantam”), as palavras (“O desperdício sobrevindo da palavra”), as próprias coisas  (“Só as rugas desta cama enxovalhada / nos perseguem as manhãs, pelo rosto dentro / como a teima de um poema por escrever.”). Tudo, não. Nem tudo excede o si mesmo que é. O fazer do poema é, ou parece ser, a parte não metafísica do mundo. Talvez se entenda melhor se pensarmos que para Rita Taborda Duarte tudo é metafísica, tudo é sempre mais do que é, tudo é o que é e o seu excesso, e a palavra é o lugar onde nós e o excesso nos encontramos. Pois mesmo em silêncio, a palavra arde. Ou dito muito melhor, com versos da poeta: “(…) E no quarto / entranhado na fibra dos lençóis, o cheiro forte e acre, / de uma palavra ardida.” E o fazer do poema é a única coisa concreta que há no mundo (não sabemos se pode ou não ser estendido a outras artes). Fazer um poema é tentar limpar a sujidade da palavra, mantendo nela a centelha ancestral e a vontade do que se quer dizer. Fazer um poema, aqui, neste livro sui generis, é como tudo o que o humano faz, isto é, aquilo que é mais concreto neste planeta: as acções. Só a acção não é metafísica, pois são todas elas éticas, de resto o planeta (adivinha-se o universo) é todo ele, na sua unidade e na multiplicidade dos seus elementos, um excesso de sentido, que a palavra mostra de um modo privilegiado. “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” Mesmo aquilo que vive apenas e só nos interstícios da palavra.

É também um livro cheio de ironia, como se deve ter entendido pelos versos citados e, principalmente, pelos títulos dos poemas. Resta-me dizer uma ou duas coisas, antes de terminarmos com a voz da Rita Taborda Duarte: sublinhar que se trata de um livro precioso, onde a palavra é simultaneamente sujeito e objecto (por conseguinte para guardar onde se guardam os vinhos mais preciosos), e deixar um conselho ao leitor: se está a tentar deixar de fumar, não leia este livro. Excerto de “Alfabeto”:

“Faço, então, a cama,

aliso os vincos,  bato a almofada

entalo um gemido breve de palavra, o sinal da pulga,

a pata da borboleta (ou era o veio esgarçado de uma asa ?),

entalo o lençol  puído  no colchão

e sacudo para o chão uma sílaba do teu corpo.

Tua, sim. Não será minha:

As minhas palavras são mais louras e compridas…

Nunca saio à rua, sem esticar os lençóis à cama

com a precisão de quem faz as manhãs todos os dias,

de quem dá um jeito  à vida, antes de se pôr a trabalhar.

Uma cama  bem feita vale bem um verso  terminado,

sem o desperdício das palavras que não rimam.

Há que resgatar o gesto repetido, dia a dia,

como quem cumpre a métrica precisa do poema;

            uma cama desfeita e ao desalinho é um sítio perigoso

para deitar o corpo a descansar, lugar de roturas, ligamentos

            um passo em falso, tropeçado sem cuidado,

e podemos  dar um mau jeito       

ao coração.”

1 Nov 2016

Ésquilo, Sófocles, Eurípides – Parte 1 (de 3)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Oresteia, tragédia maior de Ésquilo que chegou até nós, e a sua última, é representada pela primeira vez em 458 a.C., dois anos antes da sua morte. Nesta altura, Sófocles tinha 37 anos e já arrebatara vários primeiros prémios nas competições, e Eurípides era um jovem adulto com 27 anos de idade. A estreia de Eurípides nas competições é em 455 a.C., com 30 anos de idade e, por conseguinte, por muito, muito pouco não chegaram a concorrer os três a um mesmo prémio.
Mas, seja como for, certo é que Eurípides viu muitas vezes Ésquilo em competição com as suas tragédias. Havia uma diferença de trinta anos entre Ésquilo e Sófocles e uma diferença de apenas 10 anos entre este e Eurípides, perfazendo uma diferença de 40 anos entre Ésquilo e Eurípides. A importância de ter bem presente a contemporaneidade deles deve-se a dois factores: 1) usualmente julga-se que eles fizeram parte de momentos históricos bem distintos, o que não poderia ser mais longe da verdade; 2) termos também bem presente esse esmagador período da história grega clássica, em particular, e da humanidade em geral. Werner Jager dirá mesmo que só a epopeia de Homero se pode comparar à tragédia, na capacidade de abarcar o todo humano. É como se o renascimento do génio poético da Grécia se tivesse mudado da Jónia para Atenas. A epopeia e a tragédia são como duas grandes formações montanhosas ligadas por uma série ininterrupta de serras mais pequenas.
Na sua primeira competição, em 468 a.C., com apenas 27 anos de idade, Sófocles derrota Ésquilo; e, sem dúvida, Eurípides assistiu a essa competição, com os seus 17 anos de idade. A primeira tragédia que chegou até nós, destes três génios, foi uma tragédia de Ésquilo, ainda da chamada primeira fase do autor, e a única dessa fase, levada a competição (e sagrando-se vencedora) em 472 a.C.: Os Persas. Sófocles com 23 anos de idade e Eurípides com 13. Mais: a primeira vitória de Ésquilo, nas competições, em 484 a.C., foi certamente assistida por Sófocles, se é que ele não fez mesmo parte do coro de crianças. Atribui-se a Ésquilo a criação da tragédia (ao introduzir o segundo actor), a Eurípides a criação da criação temática, da criação dos seus próprios temas para além da tradição, e a Sófocles, para além de se lhe atribuir a criação do terceiro personagem, atribui-se também “as tragédias mais tragicamente perfeitas”.
Apesar desta proximidade temporal, desta contemporaneidade dos autores, há factores históricos, acontecimentos que fazem com que eles cresçam em ambientes e expectativas muito distintas. Ésquilo foi combatente em Maratona, na guerra contra os Persas na defesa da liberdade do estado de Atenas, contra aquele que era o maior império nessa altura. Pouco tempo mais tarde, o seu irmão irá perecer na célebre e mítica batalha de Salamina, que Ésquilo irá cantar na sua tragédia Os Persas. Para Ésquilo, os heróis não era uma história que se contava, mas um facto ao qual assistira e mesmo vivera. O exército ático em inferioridade numérica de 1 para 10, destrói o exército persa, que até então era considerado indestrutível.
Para além da vontade, coragem e engenho dos gregos, aliaram-se também os deuses na defesa dos áticos, isto é, o destino esteve com eles nessa dura prova em defesa da liberdade. Em caso de derrota, provavelmente não haveria tragédia. Em caso de derrota em Salamina, a humanidade nos séculos imediatamente subsequentes, poderia ter sido outra, bem diferente. Pelo menos a arte e o pensamento seriam e isto marcaria seguramente a história da humanidade mais do que a história do povo ático.
Ésquilo vive um período histórico eufórico, um período em que os gregos eles mesmos, e ele fazendo parte deles, conquistaram com seus braços o direito à liberdade e a necessidade de agradecer aos deuses. Sófocles irá crescer neste ambiente, num ambiente em que o povo ático se sente um povo especial, um povo que merece o que tem, que merece os seus deuses e que a eles deve respeitar e aceitar as suas decisões, mas tendo a consciência de que ele, os homens gregos, foram e são grandes. Os gregos são heróis. Sófocles é, aqui, bastante diferente de Ésquilo. Sófocles respeita mais os deuses do que os homens, isto é, atribui mais importância aos primeiros no destino dos segundos do que a estes mesmos. Isto nunca aparece nas tragédias de Ésquilo que chegaram até nós. Parece curioso que Sófocles, mais jovem do que Ésquilo, seja mais conservador do que este. Mas não é sempre assim? A geração imediatamente a seguir a uma geração revolucionária e vitoriosa nas suas conquistas, não educa seus filhos de um modo mais abastado e em segurança, fazendo com que estes acabem por se tornar mais conservadores? Assim aconteceu com a geração de Sófocles e, mutatis mutantis, com ele mesmo. Se analisarmos as tragédias de Sófocles, vamos encontrar o destino, a vontade dos deuses como factor primordial do mal que atinge os humanos. É assim em Édipo Rei, é assim em Antígona, é também assim em Electra. Por outro lado, o grande heroísmo dos seus personagens não é outro senão a coragem e a determinação com que aceitam, caminhando mesmo para ele, o seu destino traçado pelos deuses e ao qual eles nada podem alterar. Para Sófocles, alterar, se assim podemos dizer, é aceitar. Aceitar não é uma resignação, mas um acto de coragem, um acto de heroísmo. As personagens de Sófocles atiram-se na direcção do seu próprio fim, pois o fim é não contradizer tudo aquilo por que viveram até ali. Aceitar é, para este autor, a expressão da coragem máxima, da andreia, como se dizia em grego, e que tinha o significado de capacidade de permanecer onde se está; capacidade de permanecer no ponto de vista que é o seu. É assim com Édipo, é assim com Antígona, é assim também com Electra. A cada instante vêem mais nitidamente o fim deles mesmos, mas continuam a precipitar-se para ele, pois a coragem de permanecer leal ao que deve ser feito é mais forte do que salvar as suas próprias vida. Este não é, de todo em todo, o heroísmo dos personagens de Ésquilo. Em Ésquilo, quem mais mal faz ao humano é o próprio humano. Os deuses são, ainda assim, menos responsáveis no desespero em que os humanos colocam e conduzem as suas próprias vidas. O que parece estar em causa em Ésquilo é a necessidade de dar ao humano o que é do humano. O modo como conduzimos as nossas vidas é o que mais importa em tudo o que nos acontece. Os deuses julgam-nos, afectando-nos má ou afortunadamente, consoante o nosso comportamento. Devemos querer o que é do humano e não o que não lhes diz respeito. Há aquilo que convém a um deus e aquilo que convém a um humano. Há, de facto, uma posição muito clara em relação a uma necessidade de traçar uma ontologia do humano, em Ésquilo, que não encontramos efectivamente em Sófocles. Pois esta posição mostra a necessidade de uma hermenêutica segura acerca do que é o humano; sem isso, incorremos no risco de nos desviarmos do que nos convém e cair em impiedade, afectando todo o nosso destino e os que de nós advêm.
Não é que os deuses não tenham poder sobre nós e de nossas vidas decidam, não é isso que está em causa em Ésquilo, o que verdadeiramente está em causa é que as acções dos deuses em relação à vida de cada um dependerá das acções de cada um enquanto humano, isto é, dependerá de uma boa ou má adequação à vida humana. Ou seja, as acções dos deuses sobre nós derivam menos das suas paixões do que das nossas. Saibamos nós controlar as nossas paixões e eles saberão recompensar devidamente a nossa conduta. Há aqui, obviamente, também uma posição ética marcante. É verdade que podemos ver, como o faz Werner Jaeger, que mais do que o humano, a grande guerra de Ésquilo é o destino, a moira, e que o humano é apenas o seu portador. Mas o destino que nos atinge, como um tsunami, não é apenas devido ao livre arbítrio ou às paixões dos deuses. A nossa conduta afecta, não só as nossas vidas, mas a vida da cidade, a vida de todos; os filhos herdam os males que os pais fizeram. A expressão portuguesa, pintada de fado, “cá se fazem, cá se pagam”, assume em Ésquilo uma força holística: se não nós, os nossos hão-de pagar as nossas faltas, mesmo que sejam inocentes, amplificando assim a dor do universo, e o horror a quem assiste. É o caso da trilogia Oresteia, por exemplo. Podemos ver aqui a força “tsunamíca” do destino ou o resultado de uma acção inadequada. Destino e acção estão intrinsecamente ligadas em Ésquilo. Por isso, e antes de mais, é preciso deixar claro, que há uma hermenêutica do humano que é necessária compreender, que é necessário auto-consciencializar. Pois sem isso, sem sabermos o que é conveniente a um humano e o que não é, não poderemos agir bem ou mal em relação às nossas próprias vidas. Sem se traçar primeiro uma ontologia – não necessariamente teórica, obviamente –, não há possibilidade de se erigir uma ética. E esta é a grande guerra de Esquilo. A acção humana, o desconhecimento da mesma, é a mão que segura a flecha no arco esticado. Evidentemente, e ainda hoje isso é válido, não se sabe onde começa e onde termina a relação entre acção e destino. (Continua na próxima semana)

5 Out 2016

Sem engordurar os dedos de vida

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ela boca morre o peixe, pela palavra morre a vida. Pela palavra morre a miséria da vida e nasce a flor viçosa do esplendor humano. A palavra aponta a miséria para superá-la, para sará-la, curá-la. Só a palavra cura a vida, só a poesia cura a realidade. Esta é a poesia, o sentido primeiro da poesia de Mariana Ianelli, na grande tradição de Fernando Pessoa. Mariana acredita na palavra redentora. A palavra redentora é a palavra poética. A palavra que começa sem começo. Que acaba sem fim. A palavra que magicamente desconhece a vida.
Mariana Ianelli faz uma das coisas mais difíceis de serem feitas em poesia: com os materiais da miséria, com os materiais da história humana repleta de atrocidades, constrói um arranha-céus de optimismo. Mas não se pense que optimismo se identifica com lirismo caduco ou com pieguice de polichinelo. Melhor seria dizermos que, para além da beleza dos seus versos, há ainda a desgraça do optimismo. Desgraça bem maior do que o pessimismo é o optimismo. Acreditar na palavra apesar de tudo, contra tudo e contra todos, acreditar na palavra como transformação, como advento, como o que pode e vai salvar o mundo é mais miserável do que não acreditar. Quem acredita na palavra poética como redentora do humano e do mundo sofre mais do que um pessimista. O que dói é acreditar e carregar essa crença nas costas. Não acreditar em nada não dói sequer uma unha. O optimismo, e isso aprende-se nos poemas de Mariana Ianelli, é a maturidade da miséria. Ao invés de acusar a miséria, de lhe pôr as culpas em cima, estes poemas ordenam as misérias com palavras, e é com este movimento que acontece o inesperado. Este inesperado é o poema que nos faz ver o que já julgávamos ter visto. O pessimismo é a adolescência da miséria. e o optimismo a maturidade da mesma. E quando digo aqui miséria, não falo apenas da miséria humana, mas a miséria de todas as coisas, a miséria do tempo com tudo o que engole.
Embora se tenha dito atrás que Mariana usa os materiais da miséria e os transforma, não se quer com isso dizer que se trate de uma poética da reciclagem. Uma coisa é fazer uma estátua com o lixo da rua, outra bem diferente é ordenar o lixo da rua de modo a poder seguir em frente. Assim são os poemas de Mariana. Nem descreve a realidade, nem a recicla. Os poemas de Mariana ordenam a realidade, de modo a caminharmos melhor e seguirmos em frente. Não temos de ter vergonha do lixo, das nossas misérias, as palavras sabem delas melhor do que nós e ao seguirmos as palavras, seguimos em frente, seguimos acima da vida. Há na poética contemporânea muito de reciclagem, mas não é o caso dos poemas de Mariana Ianelli. Os seus poemas destacam-se radicalmente daquilo a que se usa chamar de poesia contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo, como se verá em seguida ao analisarmos de perto um dos seus livros. A poesia de Mariana é uma poesia apocalíptica, no sentido literal do termo, uma poesia da revelação, uma poesia ainda por vir. Aquilo que está por vir não é contemporâneo, obviamente, mas apocalíptico.

A poesia desta jovem poeta tem a grandiloquência dos mitos, da autoridade do passado e o tom severo e encantatório da elegia. Não é por acaso que os seus versos começam todos em maiúsculas, quer sucedam a um ponto final, a uma virgula ou a nada. A vida é verso a verso e não uma correria até ao fim. Assim são os poemas da Mariana. Os poemas de Mariana Ianelli não falam da vida, não imitam a vida, não a descrevem. A vida é para quem não pode mais nada. Vejam-se exemplos. No seu livro Passagens, à página 31, escreve:
“Eu persisti,”
Neste início de poema, ainda antes de começarmos, paramos. Paramos por duas razões: pela forma e pelo conteúdo. Paramos porque pela primeira vez estamos a ver o sentido pleno e contraditório deste verbo, persistir, nesta primeira pessoa a dizer o verbo: Eu persisti, … a vírgula obriga-nos, aqui, a parar mais do que qualquer ponto final usualmente nos pára. Eu persisti só poderia ter ou vírgula ou nada, nunca um ponto final. E isto compreende-se pelo que falta, pelo que parece faltar à transitividade do verbo. Este verso faz-nos ver que persistir é parar. Persistir, que sempre tomamos por uma acção violenta de continuidade, aqui explode na nossa atenção como sendo o oposto. Eu persisti quer dizer “eu parei”, “eu fiquei”, “eu mantenho-me” “eu estou presente”, “eu sou”, ou como diriam os gregos antigos, “egw andreios eimi” (“eu sou corajoso”), eu mantenho-me no lugar onde sempre estive. Ou ainda, como ela escreve à página 23 do mesmo livro:
“Caiam todos sobre mim: eu subsisto.”
Trata-se em poucos versos de um projecto que depois será sustentado verso a verso ao longo do livro: o sentido de quem se mantém só, repleta de história. Porque a sua poesia não rejeita o conhecimento do passado, não rejeita mostrar-se como parte da miséria que assola o mundo desde o início dos tempos. Esta poesia está muito pouco preocupada com inovações formais. Isso é assumido de imediato pelos versos iniciados sempre por maiúsculas, mas não só, também há versos que no seu conteúdo nos dizem que é assim que esta poeta pensa, que esta poeta assume seu lugar no corpus poeticus, leia-se o verso à página 79:
“Os falsos poetas contemporâneos,”.
E, nesse mesmo poema, o primeiro verso diz: “Retorna para o Tártaro,” e, adiante: “E, depois, as Fúrias aprontarão”. Assim Mariana Ianelli assume a temporalidade, assume o mundo como seu objecto poético, e não apenas o seu lugar claustrofóbico: “Nós temos em comum este corpo que nos trai.” O corpo é uma prisão, viver no corpo e pelo corpo é recusar a totalidade do mundo, da história, da temporalidade. Viver para além da prisão do corpo é, para Mariana, a única possibilidade de fazer poesia. E, a tudo isto, se liga ainda um artifício muito bem conseguido: a voz desta mulher, desta poeta antiga construindo o seu passado, é a voz de um homem, a voz masculina. Por que faz ela isto? Veja-se como ela termina um dos seus poemas, à página 55:
“De um homem frente ao signo da morte, / Homem que eu jamais seria.”
Não se trata de uma imitação da heteronímia de Fernando Pessoa, mas sim de uma impossibilidade de nos aceitarmos, de aceitarmos que “passamos”, que estamos aqui de passagem, que “temos em comum este corpo que nos trai.” E com ele, com esta traição que nos habita, nesta traição que transportamos temos de defender as palavras. Rejeitar a sua própria voz, a voz com a qual responde pela manhã ao seu marido ou à tarde à rapariga da loja, é reconhecer que a vida não tem nada que entrar no poema. A vida não é p’r’aqui chamada. E, neste particular, sim, neste particular tem a ver com Fernando Pessoa. Não enquanto imitação, mas como profundo enraizamento numa estética que recusa que a vida entre poema adentro. Os poemas de Mariana Ianelli têm seus pés fortemente fincados aquém e além da vida, como podemos ver neste verso: “Com meus dedos engordurados de vida.” É assim que a poeta se vê ao chegar ao poema, ao debruçar-se sobre si mesma, sobre a página, sobre o poema: com os dedos engordurados de vida. E lembramos de imediato o verso final de um grande poema de Álvaro de Campos: “Raios parta a vida e quem lá ande.”
Nos poemas de Mariana, há a claridade quase ofuscante da vida não valer nada, da vida não valer senão o que se faz dela, o que se faz com ela. A vida existe para ser ultrapassada. Conhecer a vida é também fazer pouco mais que nada, saber pouco mais que nada, encantar nada. Leia-se outro verso de Mariana: “Com teu mágico desconhecimento da vida”. Desconheça-se a vida para conhecer a magia, a palavra, o mistério. Desconhecer a vida é existir sem engordurar os dedos de vida; é encantar, é ter o poder antigo da magia, o poder das palavras que abrem clareiras, que fazem ver, como se a cegueira fosse antes do poema a nossa única morada. Desconhecer a vida não é desconhecer a palavra. Desconhecer a vida não é desconhecer o que mais importa. Desconhecer a vida é a magia que hoje ainda nos é possível realizar. Mariana sabe que a nossa vida vale menos que um poema, menos que um verso. E esta é a sua guerra: contra a ausência de poesia que nos habita. A poesia dela não é pessimista, embora não nos faça rir, nem sequer ficar contentes. A poesia é de outra ordem. Da ordem da beleza, da ordem do que nos mostra a vida morrendo diante de uma palavra. E isto só pode fazer com que nós, humanos que vivemos nas palavras, tenhamos um esgar de esperança de que há Deus, o outro ou o nada para nos ouvir e compreender. Por fim, a beleza dos versos de Mariana Ianelli, avulso, como a própria poesia dela e a própria vida:
“Vivendo entre a espada, o luto e uma elegia. (…)”
“Esta dor voltou a ser (…)”
“O lugar santo visto à luz da chama, (…)”
“E os nossos iguais, que eram tantos, (…)”
“Que nos misturássemos aos mortos, (…)”
“Não fica o espaço transitório do nosso corpo, (…)”
“Todos nós caímos em desgraça. (…)”
“Desejei um tempo pela manhã (…)”

“Eu te quis vivo,
Transtornado, mas vivo. (…)”

“Contornada a margem fina
Do esquecimento,
Outra capital aparecerá
Sobre a antiga. (…)”

“Para as mão de quem eu nunca vi, (…)”
“Com teu mágico desconhecimento da vida (…)”
“Continuaste errando em nome da tua velha sensibilidade. (…)”
“E a mente padece como se arfasse, (…)”
“Estás muito bem guardado em tua alma. (…)

“O que por ti já passou, mas sempre retornará,
Carrossel do enforcados, profecia de tua desgraça,
Insânia nas alturas, e mais desgraça. (…)”

“Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado. (…)”
“Nós temos em comum este corpo que nos trai. (…)”
“Tinha de ser o caos. (…)”

“Chovia no caminho de tabuas,
Ao pé da escada do pátio a lama cheirava bem
E a infância mostrava as suas vísceras. (…)”

“Ignoro se tu és capaz de voltar.”

“O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem, (…)”

“Agora eu compreendo as tuas passagens.
Aos quinze tu pegaste corpo (…)

“Quantas vezes o pai te aturdiu no rosto e te cuspiu
Por cresceres apetecendo tanto aos outros… (…)”

“E verás em ti a emoção de uma outra face. (…)”

“E tudo o que amas com fervor
“Reside no absoluto esquecimento do passado. (…)”

“Chegamos ao extremo do caminho
Aonde ninguém vai sem antes dar-se por vencido. (…)”

“Diz que uma febre se esconde
No seio do próximo inverno, (…)”

“O inferno esteja contigo
No dia em que teu pai morrer (…)”

“Os falsos poetas contemporâneos, (…)”
“Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, (…)”
“Estamos em ti sempre que te ausentas. (…)”
“Que a chuva descia pelos seus tentáculos d’água (…)”
“Era uma pepita de sangue (…)”
“Tudo o que era nosso nos foi tirado.”

“Mas algo ainda permanece, (…)”
“Penumbra da nossa própria sombra (…)”
“Derramada sobre o chão, (…)”

“Sentinela dos teus vários descendentes, (…)”
“As semanas despendidas à vara e a remo (…)”
“Um desvão onde guardar minha ansiedade. (…)”

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. É autora de sete livros de poesia publicados pela editora Iluminuras, São Paulo – Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010), Amor e depois (2012) – e um, o mais recente, Tempo de Voltar (2016), pela editora Ardotempo, Porto Alegre.

6 Set 2016

Fazer ver

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o fim de pouco mais de um mês de páginas semanais acerca da poesia, ocorreu-me que, por falha minha, não deixei claro aos leitores aquilo que entendo por poesia, independentemente das suas escolas e dos seus maneirismos, pois a poesia diz-se de muitas maneiras, como Aristóteles dizia em relação ao ser. Através de um verso, o primeiro, de “O Regresso dos Guerreiros”, do livro, Paixão e Cinzas (Assírio & Alvim, 1992) de José Agostinho Baptista, vou então tentar explicar o que julgo ser a poesia:

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Repare-se, as camélias deste verso não são seguramente as camélias da botânica nem tão pouco as camélias dos olhos de todos os dias (essa desatenção oriunda do viver em funcionamento, a saber, um viver fechado no específico, espaço e tempo onde as coisas deixam de ser coisas em si mesmas, coisas mesmas, e passam a ser coisas funcionais; a transmutação do essencial em valor de função). Primeiro, as camélias do verso não são, não existem, isoladas do verso que lhes segue (verbo apagar; presente do indicativo, terceira pessoa do plural, conjugação reflexa): apagam-se. Segundo, o verbo sem o qual as camélias não são  recebe de as camélias um ganho que de per si não possui. Terceiro, as camélias apagam-se forma uma unidade indissociável no próprio verso, perde-se nesta unidade as unidades dos seus signos isolados, e ganha-se uma outra unidade, à qual se denominou metáfora. Mas não é a metáfora o que aqui interessa, ela é aqui o que menos importa, pois aquilo que se busca, a intencionalidade do verso, é-lhe muito anterior. A metáfora, de per si, não possui poder para despertar uma emoção, que transcende a estética literária e nos coloca na pura existência. Aliás, é da própria existência que a metáfora recebe o ganho de intencionalidade. Mais ainda, antes da metáfora, as camélias apagam-se, é o resto do verso, ao longe ao fim do dia, que coloca a metáfora em posição de receber a existência. É tempo de reouvir-se o verso.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Já que se vulgarizou a metáfora, ouça-se atentamente o resto do verso, ao longe ao fim do dia. Temos um advérbio de lugar (longe) que tem como função sintáctica modificar o verbo (neste caso, o verbo apagar), dois substantivos masculinos (fim, dia) e … Bom, os factos são estes: O verso possui uma só oração, um sujeito (camélias), um predicado (apagavam-se), um adjunto adverbial de lugar (ao longe), um adjunto adverbial de tempo (ao fim), e um complemento nominal (do dia). Ainda uma figura de sintaxe (metáfora), três substantivos (camélias, fim, dia), três contracções preposicionais (preposição mais artigo; ao, ao, do), e um artigo definido plural (as). E isto seguramente não é o verso, são considerandos que não conduzem a ele, pelo contrário, afastam-nos para um local onde jamais o recuperaremos. Se nos é impossível alcançar o verso através das análises sintáctica e morfológica, avancemos uma análise semântica.
Evidentemente as flores, quaisquer que elas sejam, não se apagam tal as velas, os candeeiros, as simples lâmpadas ou as ancestrais fogueiras. A multicoloração das camélias, como qualquer cor, com excepção do negro, necessita necessariamente de luz para se fazer aparecer. É a luz que se esgota nas camélias, em reflexo, como um espelho, da parte final do verso “ao fim do dia”. “Ao longe”. intensifica ou reforça a ideia, da impossibilidade das camélias se fazerem ver, embora se perceba que é só no fim do fim do verso. Há um jogo de claro-escuro, dia-noite, luz-trevas, e presença-ausência. “Ao fim do dia”, tem um poder temporal que ultrapassa o simples dia (dia-luz), e alarga-se até ao fim do dia, ao fim do tempo, ao fim de tudo (ao fim da esperança). As camélias que se apagam é, também, o declínio dos ombros, o pensar finito que nada pode contra o envelhecimento, pode nada contra o devir; é só uma parte que agora se esmaga. E, assim, “ao longe”, e uma vez mais, intensifica ou reforça a ideia, alagando todo o verso de melancolia, de uma soturnidade maior que ao fim do dia. Ao longe não é somente espaço, é, aqui, principalmente tempo. Esse ao longe é todo o verso, o tempo que passa, que passou, a própria vida vivida, ao longe. É o local da irrecuperabilidade da infância. Somos nós que estamos “ao longe” de nós mesmos e caminhamos para o fim do dia. Não são as camélias que se apagam, é a vida. Este verso enraíza na tradição Grega de olhar o tempo: caminhamos para o passado, para a morte, porque a vida, o futuro, vamo-la deixando para trás das costas.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

É claro que a análise semântica nada deve, isto é, deve pouco aos conteúdos semânticos da relação dos elementos dentro da proposição, do verso, ou dos conteúdos dos elementos. A análise semântica que se efectuou, foi efectuada por um sujeito vivencial e não por um sujeito abstracto. É o resultado da cristalização do sentir face ao verso. Já não é o verso nem a percepção dele; é um critério do verso. Qualquer análise traz já consigo o seu antecedente, a contemplação, só possível porque se toma contacto com as coisas mesmas. A coisa mesma do verso reside antes do verso. E, se é verdade que um verso não é passível de ser objectivado, não o é menos que a sua subjectividade advém de um ganho objectivo e universal, por parte de um sujeito vivencial. Este objecto, anterioridade da subjectividade do verso, é um dado puro, que tem como base a auto-contemplação imediata, isto é, tudo quanto exista por si mesmo, na vivência e na contemplação, e precede a verdade e a falsidade. Um amor inequívoco pelo essencial, através de um uso da linguagem, cuja técnica tenha apenas uma regra: fazer ver. Mas fazer ver é uma expressão que pode muito bem ser reivindicada pela filosofia. Mas enquanto a filosofia faz ver através de um discurso, em que o pensar se sobrepõe ao sentir, a poesia faz ver através de um discurso em que o sentir se sobrepõe ao pensar, como se viu na análise que se levou a cabo ao verso de José Agostinho Baptista. Fazer ver, em si mesma, é uma expressão rica de sentir e pensar, e por isso mesmo, reivindicada como sendo propriedade quer da filosofia, quer da poesia. Assim como o amor ao essencial. Talvez por isso mesmo, vários filósofos, muito acertadamente, referiram-se à poesia e à filosofia como sendo irmãs. E, como todas as irmãs, muitas vezes desavindas. Nós somos mais o que lemos, do que o que comemos, a não ser que alguém se veja a si mesmo como um corpo, ou julgue que a comida “biológica” é mais importante para a sua formação do que a leitura continuada de filosofia ou de poesia. E é por isso, que o conhecimento de filosofia ajuda na leitura de poesia, pois a filosofia ajuda no conhecimento do que somos, do que julgamos ser, ajuda-nos no conhecimento de estarmos entre um nada de conhecimento sobre nós mesmos e coisa nenhuma sobre o universo. Assim, e do mesmo modo que o Tejo alaga os arrozais das lezírias, a filosofia alaga a poesia.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

2 Set 2016