Maria José de Freitas, arquitecta: “Património começa a ser visto como um activo”

A arquitecta portuguesa falou esta quarta-feira, no ciclo de conferências do CCCM, sobre a relação entre o património imóvel de Macau e as alterações climáticas. Maria José de Freitas alerta para a ausência de respostas para o velho problema das marés na zona do Porto Interior e pede um calendário para a implementação dos planos de pormenor a nível urbanístico

 

Quais as problemáticas que apresentou nesta ligação do património local com as alterações climáticas?

Parti da questão da Grande Baía onde existem nove cidades que, com maior ou menor impacto, são afectadas pelas alterações climáticas, e que têm a ver com a subida do nível das águas e com o facto de nestas cidades haver muitas zonas de aterro. Em Macau e em Hong Kong isso também acontece. Nestas cidades da Grande Baía existe património e em Macau e Hong Kong existe um património mais miscigenado. Macau será a única cidade com património classificado pela UNESCO e, portanto, há que preservá-lo e prevenir situações decorrentes da subida do nível das águas. A situação deve ser monitorizada a nível local, regional e internacional. No caso de Macau, com a construção de tantos aterros e com os constrangimentos causados pelo estrangulamento da bacia hidrográfica do Delta do Rio das Pérolas, o assoreamento do rio e a poluição ambiental, uma vez que no sudeste da China era a fábrica do mundo, surgiram condições que afectam bastante o nosso património.

Que exemplos concretos que pode dar?

Na conferência falei de três casos concretos, alguns deles passaram directamente pelas minhas mãos, como é o caso das Ruínas de São Paulo, que foi o primeiro caso de património com o qual trabalhei em Macau, em 1991, quando cheguei. Fui absorvida pelo Laboratório de Engenharia Civil de Macau (LECM) que achou que, para esta área, era melhor ter um núcleo de arquitectura, que eu coordenei. Nesse trabalho fez-se uma prospecção para ver o estado das fundações da fachada da antiga igreja. O que é hoje visível é uma fachada praticamente auto-sustentada em fundações, mas não se sabia, à data, a sua profundidade e em que condições estavam. Não há tremores de terra, mas há ventos derivados dos tufões, cuja periodicidade e intensidade se prevê que seja cada vez maior. Nessa altura, a fachada estava afectada por uma série de manchas que afectavam o granito. Foi então feita esta análise e a descoberta dos achados arqueológicos obrigou, de alguma forma, à alteração do projecto. Houve um envolvimento da população à época, o que é importante, tal como a presença da tecnologia, e na altura o LECM apetrechou-se para dar resposta, e foi tratada a pedra de granito das Ruínas para evitar a sua degradação. Mas a população deve protagonizar este alerta constante em relação à protecção do património.

Que mais casos apresentou?

Falei da farmácia Cheong San, onde o dr. Sun Yat-sen exercia medicina. O edifício foi adquirido pelo Governo em 2011 e depois foi recuperado, e quando foi feito esse processo descobriram-se achados arqueológicos do antigo cais de acostagem, porque aquela zona foi um aterro também. Além disso, apresentei a situação dos estaleiros de Lai Chi Vun, que passaram a ser foco de maior atenção depois do tufão de 2018 [o Hato]. Na altura, conseguiu-se um consenso para que eles fossem classificados e protegidos. Há um projecto em curso que vai contribuir para uma mais valia científica e cultural não só das pessoas que habitam naquela povoação como dos visitantes. O património imóvel e as alterações climáticas têm uma sinergia muito grande entre si e isso pode contribuir para posicionar o património como um activo. O património cultural não é nada que pertence ao passado e que está imóvel, mas começa a ser considerado um activo cultural para o futuro.

No caso de Lai Chi Vun há essa classificação, mas o plano concreto de requalificação parece demorar a ser concretizado. As autoridades vão conseguir dar resposta face às alterações do clima cada vez mais rápidas?

[É preciso tempo], estando vários organismos envolvidos [nesse processo], como é o caso do Instituto Cultural (IC) ou da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. Os estaleiros em si são estruturas vulneráveis e estão muito degradadas e pode de facto acontecer isso. Há dois casos de estaleiros que já não existem e que serão conservados como zonas verdes. O resto precisa do seu tempo para acontecer. Penso que até ao final do ano uma parte destes estaleiros vai poder ser visitado e é possível assistir a essa recuperação. Ao longo do tempo [esse plano será concretizado], só espero que não ocorram mais incidentes como o Hato. Acredito que o IC está atento a essa situação e que a nova presidente, que tem uma formação na área da arquitectura e que esteve à frente deste departamento do património, está também atenta a essas questões. A população está sintonizada também com estas matérias.

Em relação aos novos aterros e à subida do nível das águas, acredita que os projectos habitacionais em curso já têm em conta essas alterações climáticas?

A cota que se vê mais quando se analisa as plantas cartográficas de Macau, das zonas planas e de aterro eram cotas de três a quatro metros acima do nível médio das águas. Sei que actualmente a cota dos novos aterros é de cinco metros, daí que tenha havido estudos nesse sentido e que evidenciam essa necessidade de olhar para uma subida do nível das águas e que dá uma maior margem de segurança. Tudo o que acontece na zona do Delta [do Rio das Pérolas] deve ser avaliado em conjunto em universidades e laboratórios de engenharia. O que me causa maior apreensão é a ocorrência de marés na zona do Porto Interior.

Estão a ser desenvolvidas algumas obras, mas acha que essas soluções são as ideais?

Já se falava da ocorrência de marés no século XVIII, XIX, já foram feitos muitos planos e nunca se chega a um consenso sobre a forma de organizar os diques para proteger o património. Se toda a baixa da cidade sofrer inundações sucessivas, qualquer dia não temos a possibilidade de manter a Macau que conhecemos. Estes novos aterros devem ser analisados em conjunto para que se tomem medidas a tempo. Sei que é uma preocupação referida no plano director de uma forma teórica, e tem de ser sinalizado na prática.

Sobre o plano director, está satisfeita com as respostas dadas quanto às alterações climáticas?

Este plano é uma cartilha de boas intenções e remete para a fase dos planos de pormenor para as 18 zonas. Seria demasiado cedo para avançar com propostas, mas em Macau é sempre demasiado cedo para se fazer qualquer coisa e quando se faz, muitas vezes já é tarde demais. O plano poderia ter incluído mais especificações em determinadas zonas e áreas. A proposta apresentada para discussão, e refiro-me mais ao relatório técnico, e que justifica algumas das opções tomadas, aparece agora no plano de uma forma mais aligeirada. Remete-se para os planos de pormenor e ficamos na expectativa sobre quando é que eles serão finalizados. Não há um planeamento nesse sentido e essa deveria ser uma adenda a fazer ao plano director, para que fosse especificado um calendário para esses planos de pormenor, e quais são prioritários para o desenvolvimento, nunca perdendo uma visão de conjunto com os transportes, serviços e educação da população.

 

Debate no CCCM 

A palestra que Maria José de Freitas deu esta quarta-feira intitula-se “Alterações Climáticas e o Património Imóvel em Macau: Mitigação dos Impactos” e integrou um ciclo de conferências da primavera que o Centro Cultural e Científico de Macau, em Lisboa, está a organizar num formato híbrido. Até este sábado será possível assistir a palestras inteiramente dedicadas a Macau e a várias áreas de estudo. O programa completo e link Zoom poderá ser consultado no website https://www.cccm.gov.pt/conferencias-da-primavera/

11 Mar 2022

Guia | Relatório sobre impacto no património custou 230 mil patacas

No início do ano, a Academia Chinesa do Património Cultural concluiu um relatório de avaliação do impacto de um edifício na Calçada da Guia sobre o património. Apesar das solicitações, o Instituto Cultural diz não ter competência para revelar o conteúdo do estudo

 

[dropcap]O[/dropcap] Governo pagou 230 mil patacas à Academia Chinesa do Património Cultural para fazer o relatório de avaliação do eventual impacto no património cultural causado por um edifício na Calçada da Guia, cujas obras de construção ainda não estão acabadas. No entanto, não são revelados os resultados do estudo. A informação foi avançada pela presidente do Instituto Cultural (IC), Mok Ian Ian, em resposta a um pedido de esclarecimento de Sulu Sou.

O IC explica que considera necessário avaliar o eventual impacto da altura do edifício no património cultural de forma a satisfazer os requisitos de protecção, e acrescentou que “cabe ao Estado membro, ao qual o local do património cultural em apreço pertence, submeter o resultado da avaliação ao Centro do Património Mundial, para efeitos de informação e arquivo”. Em Novembro do ano passado, o Governo da RAEM pediu apoio à Administração Estatal do Património Cultural, e foi encomendando o relatório, que ficaria concluído no início de 2020.

O conteúdo continua sem ser conhecido. “Como se tratam das informações a submeter pelo Estado membro (que é a República Popular da China que aderiu, em 1985, à Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural) ao Centro do Património Mundial da UNESCO, o Governo da RAEM não tem competência para disponibilizar o referido relatório”, diz Mok Ian Ian.

Submetido em Abril

O relatório de impacto foi submetido à Administração Estatal do Património Cultural no dia 8 de Abril deste ano, através do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau do Conselho de Estado. No entanto, de acordo com o IC, ainda não foi recebida resposta escrita do Centro do Património Mundial da UNESCO. Na resposta ao deputado, é ainda deixado o compromisso de que o Governo vai continuar a ouvir as opiniões da sociedade sobre os trabalhos de preservação da paisagem do Farol da Guia.

Sulu Sou pediu ao organismo que divulgasse o conteúdo integral do relatório, a duração e custo dos trabalhos, entre outras informações. O objectivo era “reforçar a participação da Assembleia Legislativa na fiscalização dos trabalhos de conservação do património cultural”, apelando ao dever de colaboração do Governo.

O deputado pró-democracia tem vindo a insistir neste tema. Numa interpelação escrita no mês passado, apontou problemas de conservação à paisagem do Farol da Guia, que “será rodeado por uma enorme muralha constituída por edifícios altos, o que vai deixar uma cicatriz nesta cidade de património mundial”.

22 Jul 2020

Património Cultural | Descartada criação de fundo

[dropcap]O[/dropcap] secretário para os Assuntos Sociais e Cultura descartou ontem a possibilidade de ser criado um Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, à semelhança do que existe na China, proposto pela deputada Wong Kit Cheng.

“Não vemos necessidade”, respondeu Alexis Tam, argumentando não só que o Governo tem uma rubrica para o efeito, como tal implicaria encargos adicionais para o Governo.

“Em 2019 vão ser destinados 130 milhões para a conservação do património cultural”, realçou Alexis Tam, indicando que, além da verba consignada sob uma rubrica para o efeito no orçamento do Instituto Cultural, o Fundo de Cultura “dispõe de recursos para a realização de obras de restauro urgentes”.

31 Jan 2019

Europa celebra pela primeira vez o Ano Europeu do Património Cultural

[dropcap style=’circle’]P [/dropcap] or iniciativa da Comissão Europeia celebra-se pela primeira vez este ano o Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), enquadrado pelos grandes objectivos da promoção da diversidade, do diálogo intercultural e da coesão social, visando chamar a atenção para a importância da preservação e transmissão do património às gerações futuras, para o papel do património no desenvolvimento social e económico e nas relações externas da União Europeia, e ainda motivar os cidadãos para os valores comuns europeus.

Sob o lema “Património: onde o passado encontra o futuro”, o Ano Europeu do Património Cultural pretende incentivar mais pessoas a descobrir e explorar o património cultural da Europa e reforçar o sentimento de pertença a um espaço europeu comum.

Ao longo do ano, terão lugar por toda a Europa uma série de iniciativas e eventos que permitirão às pessoas aproximarem-se do património cultural e desempenharem um papel mais activo nas questões que lhe dizem respeito. O património cultural influencia a identidade e a vida quotidiana dos povos, tanto o material, o imaterial, o natural como o digital. Rodeia-os nas aldeias, vilas e cidades, nas paisagens naturais, nos monumentos, nos museus, palácios e sítios arqueológicos… O património cultural não só está presente na literatura, na arte e nos objectos expostos nos museus, mas está igualmente presente nas técnicas que se aprendem com os antepassados, nos ofícios tradicionais, na música, no teatro, nos ambientes e no espírito dos lugares, na gastronomia e no cinema. O AEPC 2018 pretende dar a conhecer ainda melhor a diversidade e a riqueza dos valores das diferentes nacionalidades e ultrapassar fronteiras.

O AEPC constitui uma importante oportunidade para a realização de iniciativas em diferentes níveis – europeu, nacional, regional e local – envolvendo os cidadãos, organizações, entidades públicas e privadas, que contribuirão para uma maior visibilidade da cultura e do património e para o reconhecimento da sua importância e do seu carácter transversal em todos os sectores da sociedade. O AEPC convida todas as entidades e organizações, públicas e privadas, municípios, investigadores, escolas, comunidades, universidades, associações, ONGs, a preparar projectos e actividades que, enquadrados nos objectivos do Ano Europeu, promovam a reflexão e o debate sobre a actualidade e o futuro do património, a sua importância vital para as pessoas e para as comunidades e o seu valor no desenvolvimento social e económico equilibrado, contribuindo para o desenho de um futuro melhor para todos. Cada país da UE designou um coordenador nacional responsável pelas comemorações e pela coordenação dos eventos e projectos a nível local, regional e nacional.

A Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, bem como o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social organizarão eventos para comemorar o Ano Europeu e lançarão actividades que porão em destaque o património cultural.

Além disso, a UE financiará projectos de apoio ao património cultural. No âmbito do programa Europa Criativa, foi lançado um convite específico à apresentação de propostas de projectos de cooperação relacionados com o Ano Europeu. Uma grande variedade de outras oportunidades estarão disponíveis ao abrigo dos programas Erasmus+, Europa dos Cidadãos, Horizonte 2020 e de outros programas da UE.

Para garantir que os efeitos destes esforços se farão sentir para além de 2018, a Comissão, em colaboração com o Conselho da Europa, a UNESCO e outros parceiros, lançou dez projectos com impacto a longo prazo, incluindo actividades com escolas, investigação sobre soluções inovadoras para a reutilização de edifícios históricos e a luta contra o tráfico ilícito de bens culturais. O objectivo é ajudar a desencadear um processo de mudanças efectivas no modo como usufruímos, protegemos e promovemos o património, assegurando que o Ano Europeu terá benefícios para os cidadãos a longo prazo.

A página electrónica do Ano Europeu do Património Cultural em Portugal, lançada pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) para congregar e divulgar as iniciativas que, por todo o país, e ao longo deste ano, se proponham contribuir para reforçar a ligação das comunidades com o seu património, lista já mais de 750 actividades.

Uma das funcionalidades que o sítio oferece é um calendário de 2018 no qual se pode escolher um dia do ano e ficar a saber todas as iniciativas previstas para essa data. Uma lista em constante actualização, já que a página continuará a aceitar inscrições até ao final do ano.

Pouco mais de três meses desde a abertura deste Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), as 750 iniciativas já registadas, promovidas por entidades públicas e privadas, têm origem em 74 municípios de todo o país, incluindo os Açores e a Madeira, e poderão abranger, segundo estimativa da DGPC, cerca de 240 mil pessoas.

As visitas e rotas patrimoniais são o tipo de actividade mais comum, com 232 iniciativas previstas, mas há programas para todos os gostos, de congressos e outros encontros a exposições, oficinas, espectáculos de artes performativas, animações de rua, recriações históricas, exibição de documentários, sessões de leitura ou concursos, para citar apenas alguns.

Cerca de um quinto das realizações programadas até ao momento (incluindo as já realizadas desde o início do ano) partiram dos próprios organismos tutelados pelo Ministério da Cultura, sobretudo da DGPC e das várias Direcções Regionais de Cultura, que no seu conjunto promoveram 105 actividades, mas também, entre outras, da Direcção-Geral das Artes, do Instituto do Cinema e Audiovisual, do Centro Cultural de Belém, da Biblioteca Nacional ou dos teatros nacionais D. Maria II e São João.

 

16 Abr 2018