Ópio e Hegemonia – O imperialismo britânico na China contemporânea

Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a China da dinastia Qing não estava interessada em negociações com os países ocidentais. Para além de querer manter distância em termos diplomáticos e relacionais, não sentia necessidade de importar nenhuma manufactura ocidental, ou seja, não dependia de nenhuma importação.

Vários países europeus, contudo, faziam comércio com a China pois tinham interesse em produtos chineses, principalmente no chá, porcelana e seda. Estes produtos eram particularmente apreciados pelos britânicos.

A atitude chinesa não era bem vista por parte da Grã-Bretanha que se exibia perante a Europa como potência hegemónica dominante. Uma vez que a Grã-Bretanha importava da China grandes quantidades de chá, seda e porcelana, via a sua balança comercial bastante desequilibrada com vantagem para os chineses.

Isto aconteceu até se aperceberem de um produto altamente lucrativo plantado na sua colónia Índia que podia vir a interessar aos chineses: o ópio. Para além de lucrativo, este produto tinha também o poder de enfraquecer em larga escala este país-continente que se afigurava tão interessante enquanto mercado para as potências europeias. Com a introdução e rápida propagação do ópio na sociedade chinesa, o governo de Pequim decidiu proibir a comercialização do narcótico que estava a ser devastador e a constituir um dos mais graves problemas de saúde pública da história do país. Esta decisão é vista pelo governo britânico como uma afronta às suas liberdades comerciais. Após a introdução, comercialização e disseminação do ópio na China em 1839 a Grã-Bretanha declara a Primeira Guerra do Ópio.

A sua narrativa oficial recai na importância da abertura das portas da China ao comércio internacional, por uma questão de ordem, estabilidade e paz. Este ensaio pretende refutar a tese da paz pelo comércio aludindo a este contexto histórico. Quando analisada objectivamente a situação económica internacional da época, o interesse comercial da Grã-Bretanha na China era mais do que evidente. Constituía um grande mercado e, se enfraquecido e dominado, mais uma colónia com muita mão-de-obra a explorar. Ou seja, por detrás de uma narrativa que desejava apenas uma ordem dita moderna, mundial e que, acima de tudo, conduzia à paz, existia um acentuado interesse material no mercado chinês que não fosse prejudicial como o era para os britânicos até à data. Para além do interesse material, o interesse soberano também estava presente, não estivesse ele representado naquela que viria a ser a colónia britânica de Hong Kong.

O Mandato do Céu e o Sistema de Cantão

O isolamento do governo de Pequim constituía um modelo económico paralelo ao modelo ocidental e não se coadunava com a crença generalizada na Europa do séc. XIX de que a integração numa ordem internacional de direito e de comércio era a única possibilidade de um estado soberano ser reconhecido como civilizado e, consequentemente, como pacífico – já que se tornaria transparente, previsível e, segundo Palmerston, moderno (Palmerston, 1840).

Contudo, o Império de Qing não partilhava esta crença. Por esta altura O Mandato do Céu[i] (天命, em Pinyin: Tianming)[ii] era ainda o modelo de governação seguido. De acordo com este modelo, a diplomacia e o comércio internacional eram formas de reconhecimento da proeminência chinesa. O mandato não implicava obrigatoriamente uma relação bélica com os povos vizinhos. Tal como os Estados Unidos, a China achava ter um papel especial na ordem universal e todos eram livres de usufruir dos privilégios que transmitia o contacto com a sua cultura. Contudo, em antítese aos Estados Unidos, nunca manifestou desejo de disseminar os seus valores pelo mundo: limitava-se a conseguir que os estados estrangeiros se considerassem Estados Tributários da China.

O comércio internacional entre os chineses e os estrangeiros formou o primeiro local de encontro Sino-ocidental da era moderna. Ainda que o porto Xiamen em Fujian, tenha constituído a principal porta de trocas comerciais com o Sudeste Asiático e a costa chinesa, após 1759 Guangzhou tornara-se porta oficial para os encontros com europeus.

O “Sistema de Cantão” como ficou conhecido no ocidente, foi organizado a partir de linhas tipicamente chinesas: o governo comissionava uma das famílias chinesas de mercadores para actuarem como controladores das trocas comerciais com o estrangeiro. Estes mercadores formavam uma associação conhecida por Cohong, que respondia ao comando de um oficial especialista no comércio de Guandong, normalmente um manchu enviado da corte imperial em Pequim, conhecido pelos estrangeiros como o Hoppo. Os Cohong e o Hoppo tinham a tarefa de taxar as importações dos estrangeiros e especialmente as exportações de chá e seda.

Até 1834, quando a Companhia Britânica das Índias perdeu o apoio real para monopolizar as trocas comerciais com a China, a Companhia tinha-se adaptado a este particular Sistema de Cantão. Durante as épocas de trocas, o conselho de diretores da Companhia Britânica das Índias em Londres vivia na “British Factory” (centro de comércio e residência), nos bancos do rio, fora da grande capital de Guangzhou, de Outubro a Março. Na época sem trocas de Abril a Setembro, eles retiravam-se para o único espaço chinês concessionado a europeus, a cidade portuguesa de Macau.

Para os chineses, a acumulação de interesse europeu na costa sudeste exigia um método eficiente para lidar com os “bárbaros do mar ocidental” como eram oficialmente designados.

Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a atitude totalitária de Qing não estava interessada em grandes negociações com os “mercadores bárbaros”. Não era autorizada a concessão de um espaço de representação estrangeira na capital – embaixadas[iii] – e raramente eram admitidos à corte em Pequim representantes estrangeiros. Quando tal acontecia, era expectável que estivessem familiarizados com o ritual de prostração perante o imperador[iv].

Este ritual de prostração é um importante detalhe na missão britânica liderada por George Macartney em 1793 a Pequim para conhecer o imperador Qianglong. O seu objetivo era pedir que o império Qing respeitasse aqueles que eram na altura os direitos internacionais mínimos dos quais a Europa gozava em quase todo o resto do mundo: comércio livre, embaixadas permanentes e igualdade de soberania. Até então os europeus não tiveram outra opção a não ser reduzirem-se ao papel de suplicantes na ordem tributária chinesa – o comércio com os bárbaros era considerado não mais do que um tributo ao grande Império do Meio. A Missão Macartney foi um fracasso a vários níveis, uma vez que apelando e tentando demonstrar a superioridade técnica e científica do ocidente, não conseguiu levar a cabo nenhuma das negociações que lhe tinham sido encomendadas. Esta atitude chinesa era particularmente ofensiva para a Grã-Bretanha mas o PIB da China era ainda mais ou menos sete vezes o da Grã-Bretanha e daí o imperador considerar que era Londres que precisava de ajuda e não o contrário (Maddison, 2006).

As potências ocidentais em ascensão não tolerariam por muito mais tempo um mecanismo diplomático que se referisse a eles como “bárbaros” que pagavam tributo ou um comércio sazonal apertadamente regulado num único porto. Depois da missão Macartney a Grã-Bretanha do topo civilizacional do ocidente, ficara particularmente ofendida.

Uma única ordem mundial

– Do comércio para a paz

Com a balança comercial desequilibrada face ao desinteresse chinês pelas manufacturas britânicas, a insistência na importação sem restrições de ópio para a China foi a solução encontrada por estes para conquistarem finalmente o mercado chinês. O ópio foi introduzido de forma ilícita e com o propósito claro de viciar a população chinesa no único produto que poderia apresentar lucros para a Grã-Bretanha.

Quando o ópio começou a circular no país, Pequim fez uma tentativa de regulação e venda do produto. Contudo, a destruição progressiva das populações e os problemas de saúde pública que rapidamente se tornaram visíveis um pouco por todo o país, levaram a corte a proibir a sua comercialização. Para uma Grã-Bretanha que começava a proibir a globalização da escravatura (da qual tinha sido, paradoxalmente, percursora) de forma a afirmar a sua superioridade moral perante o resto da Europa, a comercialização do ópio provocava aos ocidentais uma certa sensação de embaraço. Mas não era só do ponto de vista ocidental que a comercialização do ópio era vista como um embaraço. O mandatário oficial para erradicação do ópio na China, Lin Ze Xu, chegou a pedir à rainha Vitória que esta se encarregasse de suprimir o comércio do ópio não só na China como nos territórios indianos da Grã-Bretanha de onde os relatos de degradação profunda provocada pela massificação do uso da droga se faziam já ouvir um pouco por todo o mundo (Tse-hsu, 1839). Lin faz um ultimato à Grã-Bretanha em que ameaçava acabar com a exportação dos produtos chineses caso os britânicos não acabassem com a comercialização do ópio. Certo de que o grande império chinês não poderia sofrer retaliações de maior, a corte chinesa subestimou as capacidades militares estrangeiras já bem mais desenvolvidas que as chinesas – que nunca teve que travar grandes batalhas depois da unificação do império devido a formas mais requintadas de ligar com a guerra, como as que podem ser estudadas no clássico Arte da Guerra de Sun Tzu. Séculos de supremacia tinham distorcido o sentido da realidade da Corte Celestial. A pretensão de superioridade só acentuava a humilhação inevitável (Kissinger, 2011).

O comissário britânico Palmerston escreve de volta para a corte chinesa e defende claramente o seu ponto de vista: os sistemas legais chineses tinham, de acordo com os princípios jurídicos ocidentais, caducado há muito tempo e, por isso, o próximo passo do Governo Britânico era o de enviar de imediato uma armada para bloquear os principais portos chineses, tomar «todos os navios chineses que possa encontrar» e tomar «uma parte conveniente do território chinês» até Londres obter satisfação. (Palmerston, 1840). [v] Os resultados da interação entre a esmagadora força ocidental e a gestão psicológica típica da China, resultou em dois tratados: o Tratado de Nanjing e o Tratado de Bogue. A China tinha que pagar à Grã-Bretanha seis milhões de dólares de indeminização, ceder Hong Kong e abrir cinco portos costeiros em que seria permitida residência e comércio ocidentais (Guangzhou, Ningbo, Shanghai, Xiamen e Fuzhou).

Chegara ao fim o “Sistema de Cantão”. Os britânicos obtiveram ainda o direito de fazer comércio directo que não passasse por Pequim e o poder de exercer jurisdição sobre os seus nacionais residentes nos portos chineses do tratado. Isto significava que os comerciantes de ópio estrangeiros estariam sujeitos às leis dos seus próprios países e não da China. Este princípio de «extraterritorialidade» acabou por representar o declínio do poder imperial. A seguir às concessões permitidas à Grã-Bretanha, muitas outras potências ocidentais quiseram vir reclamar o seu pedaço. O Mandato de Céu terminara e fora substituído pelo conceito ocidental de Soberania.

A tese da paz pelo comércio

A tese da paz pelo comércio defende que este reduz a probabilidade de conflitos armados entre estados numa lógica de interdependência em que o liberalismo comercial assume um papel central na condução à paz, ultrapassando desta forma a lógica conflitual defendida pelos teóricos realistas. A organização do comércio internacional (WTO) apresenta vários argumentos que fundamentam o facto de que o comércio entre estados soberanos conduz à paz, nomeadamente defende que os comerciantes têm menos tendência para gerar conflitos com os seus clientes (World Trade Organization, 2003: 2); o segundo argumento é o de que as disputas são tratadas de forma construtiva nos procedimentos das instituições e organizações. Os adeptos da paz liberal argumentam que a interdependência reduz o conflito porque o conflito reduz as trocas comerciais. Interdependência económica promove a paz porque o conflito é inconsistente com laços económicos que promovam o benefício mútuo (Polachek & Xiang, 2008).

A tese foi, contudo, ao longo do tempo mudando de base empírica. Num primeiro tempo em que o conceito operativo essencial se chama “vantagens comparativas”. É o tempo da vida económica internacional que ficou conceptualizado nas teorias tradicionais do comércio internacional. Cada Estado explora as vantagens competitivas que tem no sistema internacional. Onde dantes tínhamos unidades políticas, temos agora unidades económicas. A partir dos anos 80 esta passa a ser uma malha de relações bilaterais sendo assim a globalização a perda desta referência nacional.

A guerra anglo-chinesa foi apresentada pelo governo britânico como um processo necessário em que os fins justificavam os meios. Apesar do universalmente reconhecido fracasso ético e moral da disseminação ilícita de um narcótico com vista à abertura forçada de um estado às legislações do comércio internacional, o pedido de desculpas oficiais pelo Reino Unido nunca foi formalizado, nem mesmo aquando da recuperação da soberania de Hong Kong pela República Popular da China em 1997. A imposição de uma única ordem mundial do comércio defendia um mundo mais pacífico mas neste episódio histórico podemos observar que após a abertura ao comércio livre, as invasões e tentativas de colonização por parte das potências ocidentais continuaram a fomentar a guerra na China numa lógica de expansão de poder e de soberania. 完

Notas

[i] O Mandato do Céu tem as suas origens no pensamento confuciano desenvolvido por Mencius (372 – 289 a.C.) e foi seguido desde então como forma de justificar a legitimidade dos imperadores.

[ii] Pinym e Wade-Giles são os dois sistemas de romanização da língua chinesa utilizados neste trabalho.

[iii] Exceção feita à Rússia, já que os seus avanços no leste representavam uma ameaça iminente para a China. Em 1715 os Qing concederam a possibilidade da instalação de uma missão ortodoxa russa em Pequim.

[iv] Conhecido como Cautau, o ato de prostração perante o imperador era uma forma de saudação ou de veneração ao imperador que implicava tocar com a testa no chão três vezes.

[v] «Lord Palmerston to the Minister of the Emperor of China» (Londres, 20 de fevereiro de 1840) Consultado emhttp://www.chinaforeignrelations.net/node/247 [19 de Novembro de 2012]

15 Ago 2025

Myanmar | Produção de ópio aumenta quase 90% em 2022

A produção de ópio em Myanmar (antiga Birmânia) cresceu 88 por cento em 2022, um aumento recorde explicado pela crise económica desde o golpe de Estado da junta militar em 2021, segundo um relatório das Nações Unidas.

Os autores do estudo divulgado ontem estimam que a produção de ópio atingiu 790 toneladas no ano passado, contra as 420 toneladas de 2021 e quase o dobro da produção em 2020, quando atingiu o valor mais baixo desde que os relatórios começaram a ser realizados, com apenas 400 toneladas.

“Agricultores em áreas remotas e propensas ao conflito tiveram pouca escolha senão voltar ao ópio. (…) Os agricultores vêem o ópio como uma garantia de rendimento sobre outras culturas”, disse Jeremy Douglas, representante do Sudeste Asiático e do Pacífico do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, durante uma apresentação em Banguecoque, na Tailândia.

“O ópio representa uma oportunidade de emprego”, acrescentou Douglas, que associou o aumento da produção à queda do investimento estrangeiro desde o golpe de Estado e à crise económica, reforçada pela pandemia de covid-19 e pela elevada inflação no país.

Os esforços para erradicar as plantações também parecem ter diminuído, com as autoridades a eliminarem menos 70 por cento a colheita do que no ano anterior. Douglas reconheceu que a corrupção das autoridades “aumenta as rodas do comércio do ópio”, mas evitou críticas directas à junta militar, dizendo que o comércio ocorre em territórios controlados pela junta ou por diferentes grupos étnicos e que “todos ganham dinheiro” com o negócio.

O representante da ONU indicou que estes dados são preocupantes para a região porque significam um aumento na oferta de heroína. “Se a tendência continuar, terá um impacto significativo nas sociedades”, alertou.

27 Jan 2023

História | A visita da Sociedade das Nações a Macau para analisar o comércio de ópio

No final da década de 20 do século XX Macau, então administrada por Tamagnini Barbosa, recebeu uma comissão da Sociedade das Nações que veio ao território fazer um inquérito ao comércio de ópio. A investigação, vista com desconfiança pelo Governador, concluiu que muitas das acusações imputadas a Macau não eram verdadeiras. O tema foi abordado num artigo da historiadora Célia Reis

 

Macau, território que sempre teve comércio e consumo de ópio no imaginário colectivo, recebeu a visita de uma comissão de inquérito da Sociedade das Nações (SDN), entidade internacional saída da I Guerra Mundial e do Tratado de Versalhes, para inspeccionar o tráfico do poderoso narcótico. Tamagnini Barbosa, então Governador, olhou para essa visita com desconfiança, mas depois acabou por aceitar os resultados, que se revelaram benéficos para a imagem do território.

Esta é uma das conclusões do artigo académico “Macau e o Tráfico do Ópio no Contexto da SDN (1925-1930)”, da autoria da historiadora Célia Reis, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, que recentemente foi apresentado no ciclo de conferências da primavera do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM).

À época, o jogo já era muito importante para a economia local, mas o ópio era fundamental. A título de exemplo, no ano de 1929, o seu comércio representava cerca de 22 por cento das receitas obtidas pela Administração.

A comissão de inquérito da SDN não se cingiu a Macau e andou por todos os territórios a Oriente onde o comércio do ópio tinha expressão. “Os inspectores verificaram que a situação de Macau não estava num mau caminho, pelo contrário”, começou por dizer ao HM Célia Reis.

“O número de estabelecimentos da venda do ópio estava a diminuir e o facto de grande parte dos rendimentos de Macau serem ainda provenientes do ópio não era uma questão apenas do território, verificando-se sobretudo nos territórios mais pequenos.” Além disso, a comissão concluiu que, no território, “era extremamente difícil controlar todo o comércio, dada a ligação comercial que existia com a China, que fazia com que o tráfico ilícito fosse muito fácil”.

Como prova da redução do peso do ópio na sociedade local, o artigo aponta que em 1927 existiam no território 65 estabelecimentos de venda, número que passou para 63 em 1929, ainda assim uma diminuição ligeira.

Até à visita da comissão de inquérito da SDN, Macau era alvo de acusações por parte de outros países relativamente ao ópio que “não correspondiam à realidade”, aponta a autora do artigo.

“Havia interesse das outras nações, quando havia algum problema, em dizer que o ópio era proveniente de Macau. Era difícil ao Governo controlar esse tráfico antes de ele ser administrado pelas próprias autoridades, mas havia muitas acusações que eles consideravam infundadas. No final da década [de 20], mesmo com o acordo dos responsáveis internacionais, passou a ser dado um aditivo ao ópio de Macau, que não lhe alterava as qualidades, mas que dava para reconhecer se este era de Macau ou não. E isso foi uma grande vantagem para ver que, de facto, muitas acusações não eram verdade.”

Em termos gerais, Tamagnini Barbosa “até ficou satisfeito com os resultados desta análise, pois não colocava Macau numa situação à parte em relação a outros territórios do Oriente”, disse Célia Reis.

Administração assume controlo

Outrora explorado por particulares e concessionado, o comércio do ópio e a sua gestão foram alvo de remodelação em finais da década de 20, o que levou à criação, em 1929, da Inspecção dos Serviços Económicos, que tinham à frente figuras conhecidas da comunidade macaense como Pedro José Lobo e Joel José Choi Anock, entre outros. Importa frisar que estas figuras já antes estavam ligadas à inspecção e fiscalização deste tipo de comércio, embora inseridas noutro tipo de estrutura pública.

Célia Reis

A criação da Régie, como se chamava, ficou determinada após ter sido decidido, na Conferência de Genebra, que a gestão do comércio do ópio teria de passar dos particulares para o próprio Governo.

Célia Reis adianta que Pedro José Lobo e Joel José Choi Anock eram, acima de tudo, pessoas próximas do Governador, que na altura “tinha graves problemas com algumas figuras da comunidade local, nomeadamente as que estavam mais ligadas ao poder do Leal Senado, com quem o Governador tinha um confronto aberto”.

“Havia muitas acusações do antigo concessionário contra essas pessoas [Pedro José Lobo e Joel José Choi Anock] e o Governador disse mesmo que ele confiava muito nelas e que por isso é que estavam à frente dessas actividades.”

A posição da metrópole

O Governo chegava a obter uma taxa de lucro na ordem dos 35 por cento com o comércio do ópio, que vinha sobretudo da região da Pérsia, Índia Britânica e Hong Kong, até chegar a Macau. Nesta altura, as autoridades fizeram progressos no controlo contrabando e foi proibida a exportação de ópio através do território, tendo-se registado ainda um aumento da importação entre 1928 e 1929.

Quanto à posição da então metrópole, resolver a questão do ópio revelava-se fundamental por uma questão de imagem internacional do país. “Para Portugal, estas questões ultrapassavam muito Macau, porque, por um lado, sempre houve a pressão de que o que era proibido em Portugal poderia não ser proibido nas colónias. Aqui o jogo era regulamentado, mas não tinha nada a ver com o jogo em Macau, e o mesmo se passava com o ópio. Mas isso acontecia também com os outros países, Portugal não era uma excepção nesse aspecto. Mas, nesta fase, para as autoridades portuguesas, não são apenas as questões do consumo da SDN, mas também a imagem que o país oferece.”

Célia Reis ressalva que “Portugal tinha grandes dificuldades, e havia sempre o receio de perder as suas colónias, era alvo de muitas críticas”. Desta forma, “resolver o problema do ópio era uma forma de não acrescentar mais dificuldades a este relacionamento” internacional.

O artigo desta historiadora dá conta que o comércio do ópio “constituiu um elemento essencial no expansionismo no Oriente a partir dos séculos XVIII e XIX, quando, envolvendo as diversas fases, da produção à distribuição e consumo, se tornou fundamental para suprir o desequilíbrio das transacções ocidentais na China”.

O estupefaciente, consumido em Macau inclusivamente por algumas figuras proeminentes da sociedade, como o poeta Camilo Pessanha, era fundamental para a economia de muitas nações do sudeste asiático.

“A sua importância e os principais elementos sociais a que estava ligado permitia ultrapassar a visão do ‘vício’ que tinham os ocidentais”, descreve o documento. Se, inicialmente, o comércio era concessionado sob forma de monopólio a privados, depressa essa gestão passou para a hasta pública, criando-se as Régies. “A França foi pioneira dessa forma na Indochina, ainda no final do século XIX. Em 1914 aplicou-se em Hong Kong”, escreve a historiadora.

24 Mar 2022

Anhedonia II

[dropcap]N[/dropcap]ietzsche diz que os orientais e os ocidentais têm dois tipos de narcóticos diferentes. Os chineses o ópio. Os europeus, o álcool. Nietzsche acentua a diferença mais na rapidez dos efeitos do que na consequência.

Hoje, não a diferença geográfica que N. traça não faz sentido. É interessante o critério que emprega. A rapidez dos efeitos e a duração da eficácia. Quando se fala de eficácia, é de alteração do estado de consciência. A alteração do estado da consciência transforma a biologia do nosso corpo, a psicologia dos nossos comportamentos, a própria forma da nossa existência. A dimensão em que passa a existir quem usa substâncias psicotrópicas é diferente da da realidade.

Desde a antiguidade que a lucidez “seca” é diferente da lucidez “molhada”, a vida sóbria e seca opõe-se e contrasta com a vida ébria e encharcada. A invasão do álcool, normalmente, do vinho foi estudada na antiguidade como uma forma de perceber como é que a melancolia, um líquido segregado pelo corpo humano pode afluir ao cérebro e transformar o modo de pensar, a forma de agir, a mentalidade e a própria existência das pessoas.

O uso de drogas, mas também o uso das diferenças bebidas, identificam diferentes personalidades. Pode haver quem “goste” de toda a espécie de substância de que se torna adicto, pode haver que tenha substâncias de eleição e não consuma nenhuma outra. Há bebedores que não se drogam. Há quem fume, por exemplo, erva e nunca beba álcool. Há sem dúvida quem nunca use nenhuma substância nem sequer alcoólica. Há também, ainda que mais raras, pessoas que usem mas não possam ser consideradas ou adictas ou alcoólicas. A adicção é uma doença. Desenvolve-se uma obsessão compulsiva por uma substância. O elemento comum, do ponto de vista neurofisiológico, é que ficamos “viciados” em dopamina. O nosso doce preferido na infância, a nossa comida preferida nos jantares com amigos, a nossa bebida de eleição, o rosto da atração erótica, seja o que for tem uma estimulação de dopamina. O que nós chamamos sex-appeall ou sexy, o que é atraente, o que é estimulante, excitante, segrega dopamina. É por isso que o nosso cão de estimação lá de casa rouba bolo de chocolate e não puré de brócolos.

Mas o que tem a narcose? O que tem a alteração da consciência? Para quê a alteração da consciência? Há uma procura clara dessa alteração. Ou por curiosidade ou para experimentar ou porque é uma possibilidade já dada na vida. O ser humano gosta da alteração. O ser humano não gosta de estar sempre na mesma. A mudança que se experimenta com a rapidez de um rastilho a queimar-se e com a influência de uma substância do mundo é que é diferente de uma experiência da mudança que se possa ter com a alteração de perspectiva e uma verdadeira mudança de vida. O que há nas drogas, no álcool, no café, no tabaco, no açúcar, na comida ingerida em excesso, é uma busca artificial da experiência rápida da mudança. A alteração pode dar-se mas de tal forma que se ultrapassa o ponto sem retorno. Ou seja, o que gostaríamos de ter era uma consciência ainda da alteração da consciência e não uma perda da consciência ou uma abertura a uma dimensão alucinante onde não existimos, agimos sem pensar, sem ver, como se tudo fosse um sonho, ao sabor dos caprichos, daquilo para o que nos dá, mas sem sermos nós próprios.

A outra alteração da consciência seria assim a da toxicidade para a sobriedade. Podíamos pensar que estávamos sempre inconscientes e ganharíamos consciência, que estávamos a dormir um sonho, a sonhar e acordávamos. Ou então podemos pensar que estamos numa situação que os teólogos descrevem como conversão, não víamos e passávamos a ver, não éramos e passávamos a ser.

Há uma enorme dificuldade em lidar com a luz, com o estado de vigília, com a consciência que ganhamos da situação em que nos encontramos. Uma das relações que se estabelece com a sobriedade é uma relação com a lucidez, com a possibilidade de ela não se apagar nunca. É difícil viver sem nunca apagar, sem nunca descansar. Viver com a lucidez é extraordinariamente difícil, mas é por isso que algumas pessoas usam drogas ou álcool, porque não aguentam a realidade. Mas a aproximação à lucidez e à sobriedade é uma forma complexa de aproximação à aurora, à madrugada, ao nascimento, ao princípio, à infância, à atmosfera disposicional em que a vida se bastava a si própria como as vibrações sonoras e a cadência temporal da vida.

Nietzsche falava dessa outra possibilidade da vida se encontrar com o êxtase, com uma embriaguez que se dá na sobriedade e na lucidez e ainda assim nos deixa fora de nós. Dentro de nós e fora de nós, com a possibilidade mais extrema e radical musical que é a do ser humano.

Virá sempre uma fragrância, um entardecer, um lugar à mesa em companhia de amigos em que o êxtase que queremos será aquele rápido e breve, como se não houvesse amanhã, mas a nossa aventura, a nossa demanda pela música será interrompida não se sabe por quanto tempo.

31 Jul 2020

Procurador, entre outros encargos, juiz

[dropcap]N[/dropcap]o relatório da Comissão para propor reformas às atribuições do tribunal da Procuratura narra-se em relance o período entre os finais do século XVIII e meados do seguinte: “Em Macau, o andar do tempo obrigou gradualmente o Procurador a exercício mais atento e especial. A chegada de muita gente da China para aqui residir num crescendo da comunidade chinesa, levou as suas autoridades, que até aí se continham em regular do seu território o comércio que fazíamos, deliberaram acompanhá-la e administrar-lhe aqui justiça; e deste modo se originou, em Macau, o concurso de duas jurisdições com diferente nacionalidade, o qual, não tendo existido nos princípios desta colónia portuguesa, não obstante se prolongou depois por muito tempo.

Deste facto ressalta bem clara a segunda época da Procuratura com respeito à sua alçada ou competência nos negócios sínicos, que de então se tornou a principal feição da sua existência. O Procurador que, nesta parte, era só negociador nomeado pela cidade para a boa conciliação dos interesses dela com o amigo trato do país vizinho, ficou sendo além disso, e cada dia mais, ora juiz de paz, ora juiz de instrução de todos os pleitos que se davam entre os cristãos e os chineses. A natureza destes deveres o foi sucessivamente obrigando a constituir amiúdo a sua repartição em tribunal, que, por mais tolerante e menos custoso, atraia maior número de litigantes que o do mandarim da cidade, ainda nos casos em que era este mais competente segundo o prática recebida. Viram sempre com gratidão os moradores chineses, nessa entidade, o árbitro indispensável em meio da diferença de carácter e usos que os separava dos europeus, com quem aliás tinham interesse em conviver. [Na China governava a dinastia Qing da minoria manchu proveniente do Norte].

Também por sua parte se não afrontavam os mandarins com se tornar em várias épocas excessiva a acção dos procuradores, porque em certo modo os consideravam autoridade sua dependente, ou homogénea e patrícia, da qual opinião raras vezes foram desiludidos, se algumas. Desculpava-se este indefinido estado de coisas com as circunstâncias do tempo e as ideias do maior número, pelo que se, em tão longo período, não ganhou a Procuratura as condições de forma que seriam para desejar e de que absolutamente carece a justiça ainda no seu mais excepcional ministério, – é certo ter adquirido o prestígio que dá a tradição.”

Continuando no Relatório de 1867: “Dá-se nesta colónia uma particularidade em que inteiramente se extrema de todas as outras da coroa portuguesa: e é ela que em território nenhum, igual ou ainda muito superior em extensão, nos achamos em meio de um povo indígena, trinta vezes mais numeroso, com civilização tão adiantada e ao mesmo tempo tão diferente da nossa. (…) A imposição de todas as leis europeias nada mais faria do que restituir os chineses ao propinquíssimo território, onde o seu governo mantém, solitário e cioso, os costumes e preceitos de vinte e cinco dinastias. Ora considere-se que esta população, que assim nos vence em número em tão breve circuito e nos opõe tão radicada diversidade de usos, é, incomparavelmente mais do que a nossa, activa, industriosa, dada ao comércio, e pleiteante; considere-se também que não poucas vezes a superstição e o vício lhe acometem os bons instintos; e ver-se-á quanto andaria iludido quem, pela comparação material dos limites, estimasse os requisitos da administração de Macau.

Devem as leis acomodar-se à índole e costumes do povo para que são feitas, sempre que tal condição não repugne aos princípios absolutos da civilização e da justiça. Querer, num país, aplicar sem distinção ou emenda, todos os preceitos que noutro mui diferente vigoram com boa razão, e condená-los a uma execução forçada, morosa, se possível, e prejudicial. A ciência do legislador em tal caso está em saber conservar o que, sendo universalmente justo, é absolutamente aplicável, e prover de diferente modo e com acerto nos assuntos que pedirem especial regímen, de forma que no produto desta selecção não haja deficiência nem sobras. (…) Sempre no governo das nossas colónias temos buscado atender àquela necessidade.”

Imposto legaliza o ópio

Na Europa, as antigas e empedernidas instituições políticas absolutistas com a Revolução Francesa de 1789 desmoronaram-se e o monopólio das grandes companhias de privilégio estatal com o liberalismo, dominante a partir da década de 1830, deu acesso aos “comerciantes livres que, em regime de licença ou em contrabando, acabarão por dominar os sectores em que se envolvem”, segundo Ângela Guimarães, e são eles, “os comerciantes da country trade, que assumem uma importância cada vez maior na percentagem do comércio” e no “uso dos mecanismos fora-da-lei.”

Em 1830, era Governador de Macau João Cabral de Estefique (1830-1833) quando caiu drasticamente a posição da cidade como centro de baldeação de ópio, mas continuou a realizar-se o seu contrabando. Nesse ano importou-se 1883,25 caixas, tendo as autoridades cobrado um ‘imposto alfandegário’ de 16 taéis de prata por caixa, legalizando assim o contrabando de ópio. Cada caixa variava entre 63 e 71 kg. Com este imposto as autoridades portuguesas obtiveram 30.132 taéis de prata, quase metade da receita total da alfândega de Macau, calculada em 69.183 taéis. Já em 1834 o volume era de vinte mil e quinhentas caixas e em apenas quatro anos subirá para as quarenta mil caixas. Ano que segundo Guo Weidong, “as autoridades portuguesas de Macau reduziram o imposto alfandegário do ópio para 8 taéis de prata por caixa, mas, como a importação atingiu as 3283,88 caixas, a receita subiu para 26.536,16 taéis”.

Jacques Gernet refere, na China entre 1800 e 1820 entraram dez milhões de liang (ou tael, 37,72g, uma onça de prata), quantia igual sairia em apenas três anos, entre 1831 e 1833.

Em substituição da prata, desde 1781 a Companhia Inglesa das Índias Orientais (EIC) trazia como moeda de troca apenas ópio e quando em 1796 a China proibiu a sua importação, decidiu fazer de Macau o centro para o comércio dessa droga. Em 1816, com a abertura do comércio livre, começou a Companhia a ter a concorrência do country trade que, comercializando em contrabando o ópio resultou num crescimento das quantidades que entravam clandestinamente na China, no aumento do preço e em grandes fortunas para os contrabandistas, tanto ingleses, como alguns portugueses de Macau.

Em 1833, “o parlamento inglês aboliu o monopólio da East Índia Company e liberalizou o comércio em Cantão”, segundo H. Gelber. Assim, na China a 22 de Abril de 1834 os privilégios da Companhia Inglesa das Índias Orientais na China foram extintos e suspensa a sua sucursal chinesa, refere Marques Pereira e J. Gernet completa, “devido ao progresso do contrabando privado de ópio.” Sem o monopólio do ópio a Companhia transferiu a parte comercial para a Coroa Britânica, que nomeou um Superintendente chefe do Comércio Britânico na China, o lorde Napier.

20 Jul 2020

Pequim nega ser origem de opióide que matou dezenas de milhares nos EUA

[dropcap]C[/dropcap]hina negou ontem ser a origem de um poderoso opióide que matou já milhares de pessoas nos Estados Unidos, após o Presidente norte-americano, Donald Trump, ter acusado o país de estar por detrás daquele fenómeno.

A droga geralmente chega aos EUA por correio ou através da fronteira com o México. É mais forte e letal do que a heroína e responsável por dezenas de milhares de mortes no país todos os anos. No mês passado, o líder norte-americano pediu a todas as transportadoras que

“procurassem e recusassem entregas de fentanil enviadas da China ou qualquer outro país”.
“O Presidente [chinês], Xi [Jinping], disse que ia parar, mas não parou” com o tráfico do opióide, acrescentou Trump.

Liu Yuejin, vice-director da Comissão Nacional de Controlo de Narcóticos da China, afirmou que as alegações de Trump sobre o fentanil são “completamente infundadas e falsas”.
Liu afirmou que Pequim está a fazer grandes esforços para controlar a produção daquele poderoso opióide e que não deve ser rotulada como a principal fonte de fentanil dos EUA.

Em Maio passado, o país asiático começou a regular todos os medicamentos compostos por fentanil como uma classe de substâncias controladas, visando conter o tráfico de drogas.
Desde que as novas medidas foram aplicadas, não foi descoberto nenhum caso de contrabando de fentanil entre os EUA e a China, disse Liu.

No entanto, as autoridades norte-americanas disseram, na semana passada, que a China estava ligada a uma apreensão de fentanil suficiente para matar 14 milhões de pessoas.

Uma das 39 pessoas detidas na sequência da operação, que envolveu polícias de vários Estados, é acusada de encomendar fentanil a um vendedor localizado em Xangai, a “capital” económica da China.

Visões distintas

“A grande maioria do fentanil ilícito que chega aos EUA tem origem na China e muito chega pelos correios”, disse G. Zachary Terwilliger, advogado pelo Distrito Leste do Estado da Virgínia, citado pela imprensa norte-americana.

Liu observou que as mortes por fentanil nos EUA continuam a aumentar, apesar do controlo cada vez mais rigoroso do lado chinês, sugerindo que é uma indicação de que a droga não é proveniente da China.

Liu acusou ainda “alguns políticos” nos EUA de enganarem o público norte-americano sobre o trabalho desenvolvido pela China para ajudar os EUA a combater a crise de opióides.

As autoridades chinesas e norte-americanas estão a trabalhar juntas para lidar com crimes relacionados com drogas, afirmou o responsável.

4 Set 2019