O homem que olhava fixamente o sol

Há que fragmentar o medo. Frequentar. Enfrentar bocadinho a bocadinho para que a coragem possa deixar-se ser pequena de cada vez. É nos pequenos gestos que não custam que devemos deter o olhar. Pequenos passos se não os conseguimos enormes como a enormidade do sentir evoca.

Há que frequentar o medo. De visita e passagem. Avançar em passo miúdo. Deixá-lo ser. Deixar-nos ter.
Passamos uns pelos outros, sem entender sequer a pele do rosto. A vida secreta da carne. Passar. Desfiar campos onde houve pensamentos. Porque os campos descansam na imanência percorrida do tempo. Pele da crosta à flor, de uma terra que atrai os corpos e neles almas em turbilhão uma espécie de arrepio do frio cósmico que habita a caixa pequena do crânio. Pequeno universo fechado a sete chaves. Pequena chave perdida, a de verdade.

A cidadela de luzes cénicas a afastar os perigos da noite. Uma encenação de vigilância. O que não dorme. Como um suceder de salas nocturnas de museu fechado. As pessoas, no que é visível, deitam-se cedo ou escondem-se portadas fechadas adentro. Qualquer passo, ecoa de longe num som cavo e único como se da última pessoa do mundo e anunciada de longe. Denunciada.

Os cantos misteriosos que tudo podem conter. Surpresas, sustos. Sair das muralhas da cidade, a luz a queimar as areias secas e estéreis, mas é o deserto preciso e necessário. A alucinação dos tapetes de água a iludir os sentidos, sempre. Quando a sede é muita. 
Quando há e se sabe, e a ilusão se há somente depois se soube. Por isso é o deserto sentido e cumprido como caminho planeado e já visto, já conhecido. Caminha-se, a economizar as águas do corpo como se para nada se sentir perdido. E voltar. Os lábios secos e os ossos doridos, os pés, aos muros da cidadela, a casa, aos confortáveis sentidos.

Persegue-me aquele que aquém da fronteira da infância, ao longo de anos encontrei petrificado a olhar o sol. Fixamente. De frente, como experiência literal de mergulho na cegueira. E depois rodava a cabeça levantada e dirigia-me um olhar verde, transparente e com uma espécie de sorriso no fundo que não sei se para mim que passava, ou restos vindos do sol. Não sei se já com o olhar esvaziado da possibilidade de ver. Invejava-lhe apenas a liberdade de parar num lugar qualquer sem se ater à esquadria do lugar ou a preceitos de arrumação do corpo no espaço público. Estava, simplesmente. Num lugar qualquer e sem paralelismo às paredes ou racionalização das diferenças utilitárias. O meio da estrada, como outro lugar qualquer. Ainda o vejo à distância dos anos como se do alto de uma janela para aquele tempo. O rosto nítido barbado de desleixo e impotência. Parado a olhar para o sol.
E se existiu existe. Senão sentido, lembrado. Não pode ter sobrevivido

O que diz da medida em que se é frágil, aquilo que abismalmente se sente, ou aquilo que resta em imagem sobrevivente e visível do exterior. O que diz da força diz da fraqueza? A terra do nunca é o lugar (de) onde se sonha maior… Maior do que nunca…Maior do que nunca por nunca ser.

Com medo da própria sombra que as suas palavras desenham. A fuga para outras. E outras. Como ilhas ínfimas em que os pés quase não assentam de tão mínimas as polegadas de solidez. O olhar errante. O burburinho voluntário da alma a tapar os ouvidos como pode. Que nada entre. Que nada surpreenda, fira, golpeie. Permaneça. Toque. Ao toque.

Venho encontra-lo igual, num recanto dos muros da cidadela. Ao lado do feixe de luz. Parado, arrumado agora como a cobrir-se da sombra fantasmagórica que ao lado subia pelas muralhas. Com o saco de plástico caído pela mão abaixo esticado e a conter um pequeno desconhecido. Fuma beatas que recolhe atrás dos passos dos outros. Acende e logo depois já terminou o curto prazer de fósforo. Deixo cair um cigarro novo e sei que não lhe escapa o gesto que nos protege a ambos. A ele a face a mim o medo.

Sei que o apanha. Depois. Escuro e clandestino. De olhos intensos. De tanto ter olhado o sol na minha memória de final da infância.

18 Mai 2021

A Covid-19 e o medo

“Pandemic is not a word to use lightly or carelessly. It is a word that, if misused, can cause unreasonable fear, or unjustified acceptance that the fight is over, leading to unnecessary suffering and death.”
Dr. Tedros Adhanom – director geral da OMS

 

[dropcap]O[/dropcap] medo é um alerta que nos ajuda a reagir face a potenciais perigos, activando o corpo e a mente para desenvolver os recursos necessários para enfrentar ou evitar uma ameaça, bem como para a prevenir. Assim, mesmo perante uma emergência como a propagação da infecção COVID-19, ter medo é absolutamente normal e saudável. O primeiro passo para ultrapassar o medo é aceitá-lo, o segundo é geri-lo e o terceiro é enfrentá-lo. Porque os medos não devem tornar-se excessivos e descontrolados, especialmente face a uma pandemia, onde a invisibilidade do inimigo pode desencadear reacções fortes e levar ao pânico. Nem devem transformar-se em fobias, um poderoso condicionamento da nossa liberdade de agir e do seu impulso infeccioso. Neste momento, o medo e a ansiedade habitam na alma e no corpo de todos, forçados a abdicar de muitas liberdades e oportunidades para nos proteger deste inimigo impiedoso e invisível.

Nestes meses, muitos falaram, tentando dar conselhos, alguns estão a minimizar mostrando-se na rua sem protecção recomendada, outros vêem nesta emergência uma situação apocalíptica. Em todos, porém, o medo e a sensação de perigo encontraram um lar e guiaram o nosso comportamento. Gerir o medo significa, antes de mais, ter informação correcta, não só sobre o perigo actual (neste caso a ameaça de infecção, o modo de transmissão, a duração, o risco de graves consequências sanitárias e económicas), mas também sobre as emoções que nos afectam. Emoções que infelizmente são desagradáveis e causam grande desconforto, mas que podem ter um valor fundamental para nos orientar para comportamentos que nos podem salvar.

Sem ter a presunção de oferecer receitas improváveis para se tornar corajoso e fazer desaparecer o medo, é necessário que se compreenda o mesmo nas suas expressões, nas suas funções e nos seus mecanismos e como distinguir o medo “pequeno”, o normal, do “grande”, patológico, a que mais correctamente podemos chamar de fobia. Partindo da premissa de que não é a intensidade da emoção experimentada que distingue o medo da fobia, mas a experiência e o contexto em que ocorre, é preciso agarrar e compreender as implicações emocionais do medo em situações não urgentes. As pessoas têm de aprender técnicas comportamentais e práticas sobre como gerir o medo e lidar com a fobia, mesmo que, no caso de perturbações fóbicas, a ajuda de um profissional seja essencial para reconquistar a liberdade perdida.

É importante conhecer as implicações emocionais que a propagação do vírus tem induzido em todos, especialmente nos seus componentes de medo e ansiedade, tornando-nos temporariamente fóbicos por necessidade. Além disso, é urgente que as pessoas sejam ajudadas a gerir o stress e a dirigir os seus recursos psicológicos da forma correcta para enfrentar com confiança este momento difícil, em que a COVID-19 está a perturbar radicalmente as nossas vidas individuais e colectivas. Além da normal prevenção que tem sido feita, o suporte psicológico é de primordial importância e tem falhado substituído pelo crescente alarmismo dos números de mortos, infectados e recuperados que a cada minuto a média fornece.

A pandemia COVID-19 é um acontecimento que nos apanhou de surpresa nos últimos meses, mas não é a única emergência epidémica que a humanidade conheceu.

Também noutros períodos históricos (durante a propagação de doenças infecciosas como a peste, varíola, gripe espanhola, asiática, Ébola, SARs, só para citar algumas…) o homem teve de enfrentar riscos e perigos que são substancialmente invisíveis aos seus olhos, mas extremamente agressivos. E é precisamente a invisibilidade do inimigo que pode desencadear em nós fortes reacções de ansiedade e medo e levar ao pânico, popularmente entendido como uma emoção de extremo medo e angústia. Nestes momentos, a nossa mente joga à defesa a fim de minimizar os riscos e obriga-nos a comportamentos que limitam a nossa capacidade de explorar, pondo-nos em espera até ficarmos imobilizados. Face a um perigo como a pandemia, será correcto ter medo? Uma das principais funções da nossa inteligência emocional é ajudar-nos como indivíduos e ao ser humano, como comunidade e espécie, a sobreviver. A bagagem das nossas emoções primárias é composta por uma emoção positiva, alegria; uma neutra, surpresa; e quatro negativas que são a raiva, medo, repugnância e tristeza.

Assim, cerca de 67 por cento das nossas emoções primárias são negativas, porque o processo evolucionário seleccionou as emoções negativas como o melhor sistema de defesa para a nossa sobrevivência. Portanto, viver o medo, a raiva e a tristeza num momento perigoso como indivíduos e para a humanidade, é absolutamente natural. Nesta perspectiva, a sensação generalizada de medo e ansiedade, se por um lado cria desconforto, por outro, reforça a nossa capacidade de nos defendermos, estimulando a atenção, a cautela, tornando-nos mais reactivos. O medo e a ansiedade tornam-se assim amigos preciosos para pôr em prática todas as defesas e comportamentos necessários para superar o momento difícil. É de lembrar que ter medo e ansiedade perante o perigo é normal e útil. Uma das melhores estratégias que a nossa mente põe em prática, face a uma ameaça como o vírus, é identificar o mais possível o inimigo.

Por esta razão, agarramo-nos às notícias, emissões de televisão e rádio, catapultamo-nos ansiosamente para o mar magnífico da Web, procurando notícias, sugestões, garantias, com o risco de sermos atraídos pelo que queremos ver e de cairmos num estado de confusão, esmagados pela incerteza devido aos montões de informação contraditórios. É pouco mais do que uma gripe trivial, é perigosa apenas para os idosos, tem uma taxa de mortalidade muito superior à da gripe, destruirá a economia, os cuidados de saúde entrarão em colapso, temos um dos sistemas de saúde mais válidos do mundo, ficamos em casa, trabalhamos, usamos máscaras, as máscaras não são tão úteis, e assim por diante. A confusão, a incerteza, a sensação de impotência assaltam-nos e invadem-nos cada vez mais, libertando ansiedades e medos que são acompanhados por comportamentos nem sempre realmente úteis, se não mesmo prejudiciais. Como podemos ter a quantidade certa de medo?

A reacção emocional deve obviamente ser proporcional ao perigo que enfrentamos e a resposta é tanto mais apropriada quanto mais o perigo é conhecido. Ter informação clara, precisa e fácil de compreender é a chave para encontrar o nível certo de ansiedade, alerta, e medo. A responsabilidade pela comunicação adequada por parte dos órgãos institucionais e da imprensa é crucial, tal como a nossa capacidade de discriminar entre informação fidedigna e informação não verdadeira. Quando o perigo não está bem definido e a informação é inconsistente, então colocamo-nos no mais alto grau de ansiedade, alerta, e medo. É de lembrar que para se ter uma reacção de ansiedade e medo adequada, é essencial ter informação clara e correcta. Em situações de emergência, a informação desempenha um papel fundamental, porque nos permite activar correctamente as nossas defesas de forma mais apropriada.

Face a qualquer perigo, só podemos escolher o comportamento ideal se tivermos uma ideia clara do “inimigo” que enfrentamos, e quando este é invisível, como no caso de infecções bacterianas e virais, torna-se ainda mais crucial poder escolher onde obter informações válidas. Muitas vezes estas fontes são os peritos na matéria, que têm as ferramentas para melhor ler a situação, como com uma espécie de lupa, e que nos fornecem dados e opiniões que nos ajudam a ter a melhor imagem possível da situação. Contudo, frequentemente nestas circunstâncias, os líderes de opinião e peritos parecem estar divididos em duas categorias distintas, o “tranquilizador” e o “catastrófico”. Pessoas de alto perfil e experientes discutem dados, medidas, experiência profissional e trazem diferentes pontos de vista. Então, porquê toda esta confusão? Porque é que os peritos e pessoas de reconhecida sabedoria dão tanta informação incoerente e opiniões muito diferentes ou mesmo opostas?

A resposta reside no chamado “viés confirmatório” que, em resumo, não representa mais do que a tendência muito tenaz de se cingir aos seus pontos de vista de uma forma prejudicial. Mesmo os peritos, todos, estão à mercê deste limite. A expressão viés confirmatório (literalmente “tendência para confirmar”) define em psicologia um dos fenómenos mais humanos e frequentes em cada tempo e latitude. É um termo técnico, mas poderia simplesmente ser definido como preconceito, no seu significado mais comum de julgamento que é dado antes de conhecermos factos ou pessoas, e que condiciona o que vemos e o que ouvimos. Em suma, a nossa mente, através deste mecanismo, forma uma opinião sobre um assunto ou uma pessoa, baseada em crenças pessoais ou comummente aceites, após o que procura todas as notícias e informações que confirmam o seu pré-julgamento, tornando-se cega a tudo o que contrarie a sua ideia inicial.

O preconceito confirmatório não tem consequências particularmente graves quando nos perguntamos se o mar ou as montanhas são melhores para a nossa saúde mental, mas pode levar-nos a comportamentos perigosos para nós e para os outros face a ameaças difíceis de identificar e não directamente observáveis. E como podemos abrir os olhos e desvendar as opiniões dos peritos? A resposta é simples e complexa, ao mesmo tempo. Para combater os nossos pré-julgamentos devemos deixar as opiniões em paz e confiar em factos, números e ser guiados na interpretação destes dados por fontes autorizadas e reconhecidas. Uma vez escolhidas as fontes que são respeitáveis, é essencial ouvi-las mesmo quando fazem declarações que nos parecem erradas, porque colidem com os nossos preconceitos.

E se quiséssemos ser ainda mais eficazes contra o nosso preconceito de confirmação, deveríamos prestar mais atenção e procurar precisamente todos esses dados e informações e, porque não, as opiniões de fontes autorizadas e pessoas que contradizem as nossas crenças e pontos de vista, seguindo um princípio chave do método de pensamento científico desenvolvido por um dos grandes filósofos do século passado, Karl Popper, que é o princípio da falsificação das nossas hipóteses. No final deste caminho, depois de concordarmos em ouvir “realmente” aqueles dados e opiniões que não sentimos que sejam nossos, só então poderíamos tirar conclusões capazes de encapsular a complexidade das situações e que se aproximem da verdade. Quais são as fontes de informação mais fiáveis? Nunca como agora são demasiadas pessoas a expressar opiniões pessoais e que podem alimentar medos excessivos, bem como comportamentos exagerados (como encher o frigorífico com comida fresca).

Na procura de informação, que actualmente depende demasiado facilmente da inclusão de palavras-chave em algum motor de busca, é essencial ter em mente uma escala de fiabilidade de fontes como Organização Mundial de Saúde, Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças e os departamentos nacionais responsáveis de cada país; peritos reconhecidos a nível internacional e nacional que exprimem frequentemente as suas opiniões pessoais com base na sua experiência e não em dados e para as restantes fontes de informação, a fiabilidade parece insuficiente para as considerar algo mais do que uma opinião pessoal. É de não esquecer que se deve ouvir apenas informação de fontes fiáveis. Que especialistas ouvir em caso da pandemia? Devem ser os peritos mais adequados para interpretar factos e dados são os epidemiologistas, infectologistas, imunologistas e virologistas.

A experiência adequada em investigação científica fomenta o desenvolvimento de uma mente crítica apropriada que, embora não isente tais peritos de pré-julgamentos, pode ajudá-los a ter uma visão mais realista e completa do contexto. Neste sentido, o cientista especialista não decide mas tenta informar correctamente, traduzindo os dados em informação compreensível para não especialistas, ou seja, cidadãos e instituições, que em vez disso devem tomar as decisões mais adequadas, com base em informação mais próxima da verdade. É de lembrar que a fim de obter informações correctas, devemos recorrer a cientistas especializados que nos informem e nos ajudem a tomar as decisões mais adequadas. Melhores dados ou opiniões? As opiniões pessoais, mesmo de figuras de autoridade no campo médico-científico ou de pessoas respeitadas no mundo político, tendem a ser superficiais, se não forem apoiadas por uma interpretação correcta dos dados. Números, modelos matemáticos, previsões estatísticas são ferramentas úteis para melhorar as opiniões, torná-las mais fiáveis e úteis para esclarecer a verdadeira extensão de um perigo.

É importante não dar demasiada importância às opiniões e ler os dados e factos tentando tomar a sua decisão. Qual deve ser o nosso comportamento face ao perigo de contágio? Quando somos confrontados com um perigo, não só activamos as nossas emoções negativas, como também activamos automaticamente três comportamentos defensivos que são a imobilização, luta e fuga. Face a um perigo grave e iminente, paralisamo-nos, na esperança de que o inimigo não nos veja. Quando pensamos que o perigo é demasiado grande para ser combatido, então fugimos; quando pensamos que temos a força para o enfrentar e ultrapassar, então lutamos. Estes comportamentos, como a história do desenvolvimento evolutivo do homem e dos seres vivos diz-nos, provaram ser os mais eficazes para a sobrevivência. É de recordar que estar zangado e triste com a pandemia é normal e deve ser aceite. Outro sentimento que nos acompanha durante a emergência pandémica é a perplexidade, a sensação de que o tempo parou.

Esta novidade perturbadora e incerta, este sentimento de ser confrontado com um perigo real mas também não bem definido, a quebra dos nossos hábitos, a impossibilidade de planear o futuro próximo, desencadeia em todos nós, uma das reacções mais típicas do medo, a imobilização. Quando somos confrontados com um perigo, o nosso cérebro está predisposto a activar três mecanismos de defesa a luta, fuga ou imobilização. A luta é activada quando somos confrontados com um perigo que podemos vencer, que de alguma forma sabemos enquadrar e sentir que podemos vencer; a fuga é activada quando somos confrontados com um perigo conhecido e claramente superior às nossas forças. A imobilização, que é frequentemente a primeira reacção face a um perigo inesperado, está ligada precisamente à incerteza sobre o inimigo que temos de enfrentar e à impossibilidade de avaliar qual é a melhor estratégia, seja para lutar ou para fugir.

A imobilização traduz-se em perplexidade, abrandando a sensação de tempo, incerteza e espera. Este estado de suspensão cria uma espécie de silêncio interior que nos permite aguçar os sentidos e a mente em busca da informação e das pistas que podem lançar luz sobre o perigo que temos de enfrentar, planeando a acção mais apropriada para activar, a luta ou a fuga. Tentamos compreender o que está a acontecer, quais são os riscos, qual é a força do inimigo que temos de enfrentar, quais são os nossos recursos, com quem podemos contar e, no caso específico da COVID-19, tentamos compreender como é transmitida, quem a pode transmitir, como nos podemos defender e prevenir da infecção, como as instituições nos podem ajudar, como fazer as compras correctamente, como trabalhar eficazmente no trabalho inteligente, e assim por diante. Há muitas perguntas que precisamos de fazer a nós próprios para termos uma imagem suficientemente clara que nos permita agir. Sentimo-nos “entre cores que estão suspensas”, nas palavras de Dante em O Inferno, e esperamos que a natureza, a ciência, os médicos e, porque não, também Deus, nos dêem a sensação de certeza e previsibilidade necessárias para voltar a planear o futuro e a agir.

27 Ago 2020

Coragem ou lá o que é isso

[dropcap]O[/dropcap] medo é um veneno que se intromete nos corações e determina vontades e acções. Mas, como todos os venenos, o medo pode ser útil se usado em doses sóbrias. Platão admite que só os estúpidos não sentem medo pois não compreendem o que lhes ameaça a vida. A sua e a dos seus.

E define a coragem como a capacidade racional de enfrentar uma situação perigosa, pela análise comedida dos dados em questão e pela tomada de uma resolução que, no limite, salvaguarde o que para o sujeito existe de mais precioso: a sua vida, a sua família, o seu país… Portanto, a coragem não se define pela ausência de medo, mas pelo domínio racional desse mesmo medo, ele mesmo fundamental para o garante da sobrevivência.

Os chamados “bravos” não sentem medo porque não têm consciência e a isso não se chama coragem mas estupidez. Corajosos, para o grego dos ombros largos, serão os que, tendo consciência total do perigo, sentindo medo, são capazes de racionalizar a situação, superar as suas emoções e controlar as suas acções. Eu preferiria dizer que: a guerra ganha-se antes de sair de casa – para parafrasear liberalmente Mestre Sun.

17 Fev 2020

Dói-me o medo

CCB, Lisboa, 6 Outubro

 

[dropcap]P[/dropcap]ara alguns, o Verão interrompe o rolar dos dias, pedras lisas em fundo de rio. Há até quem viva mais por não haver nuvens e o mar lhe beijar os pés e os olhos. E muitos mundos se descobrem nos quais as estações se revelam indiferentes, nada nelas se apanha, são apenas mais paisagem a passar.

Em pleno dia de eleições, o Obra Aberta regressou com local e horário para a gravação ao vivo no Centro Cultural de Belém. Trocámos as lombadas da sala de leitura pelo horizonte azul da sala Ribeiro da Fonte e o fim da tarde, de quinta, pelo fim da manhã, de domingo. E começámos com Paulo José Miranda que descobriu, a julgar pela sua biografia na badana da biografia «A Morte Não é Prioritária», que o seu destino outro não era que contar-nos a vida de Manoel de Oliveira. Certo é que o faz muito bem.

Veio de par com Benjamim, que já foi Walter, e se revelou um leitor atento dos meandros da música. Afinal, um manual, por mais técnico, pode ajudar-nos a desdobrar esferas, a viver nas superfícies movediças do viver. Andei dias a ouvir «Madrugada», do seu mais recente «1986».

«Por cada hora que acabar/ Tenho outra guerra para travar/ Eu tenho a casa a arder/ E só vou chegar de madrugada// Eu olho-me ao espelho porque às vezes espero/Pelo meu regresso à estaca zero/ Eu nunca me encontrei no endereço errado/ É que é melhor falhar do que passar ao lado».

Casa José Saramago, Óbidos, 10 Outubro

Não vos conto das corridas travadas para conseguirmos chegar ao momento em nos sentamos perante ilustre plateia para anunciar dose dupla do José Luiz [Tavares]. Comecemos por esta coincidência rara, e para mim prazenteira, de duas editoras se juntarem para celebrar um mesmo autor. «Instruções Para Uso Posterior ao Naufrágio», sob o signo da viagem ao coração do poema, mereceu por parte da Imprensa Nacional, de Duarte Azinheira, o prémio Vasco Graça Moura, o qual gostaria, estou em crer, de ser evocado por junto com «Ku Ki Vos/Com Que Voz», título que reúne sessenta e cinco sonetos de Camões atirados pelo poeta caboverdeano às ondas da sua língua materna. O tom de verde sujo da capa, no formato próxima de uma das edições mais manejadas de «Os Lusíadas», introduz o notável tour de force, que inclui até a proposta de variantes, sempre em busca da palavra exacta, tantas vezes com ternura. E quem o demonstrou sabe melhor, pois a professora Dulce Pereira sabe bem dos modos, nem sempre suaves, como as línguas se entretecem.

Avisa o Zé Luiz no prefácio, e só posso sublinhar. «Nalguns passos terei traído miseravelmente o grande Camões, mas a língua cabo-verdiana terá ganho um incontornável monumento literário, fecundo solo onde amanhã poderão enraizar-se os poetas cultos e eruditos, e todos aqueles que apostam num porvir de poética resplandecência para a nossa sagrada e maltratada língua materna, por vezes rebaixada por alguns nostálgicos filhos dos sobrados que soçobraram (ainda que em pose professoral, ou de tardios, rasos escribas, alcandorados aos pináculos de patuscas academias, em perseguição da glória no céu chão da literatura), quando não mesmo funestos peões, padecentes de mal disfarçada síndrome de orfandade identitária, ou de derrotadas visões luso-tropicalistas, ou ainda de caducos e reincidentes propósitos adjacentistas. Sirva este trabalho (ambicioso enquanto ideia, se não pelo resultado) como pretexto de um fito bem maior: a construção duma comunidade de povos, línguas e culturas, ao abrigo de tentações hegemónicas, tutelares ou neo-imperiais, ainda que urdidas sob os véus da «política da língua».

E temos doravante, por sugestão feliz do Jorge [Silva], mestre do desenho da página, um logótipo em caboverdeano, abrindo o círculo às profundezas ao céu: abysmu.

Tenda dos Editores, Óbidos, 11 Outubro

Mais uma corrida, mais uma viagem, os pequenos nadas a rolarem nas margens do rio e «As Orelhas de Karenin» chegam imediatamente antes de subirmos ao palco para apresentar o volume #100 da abysmo (mise en). Apurem os ouvidos para entender ao que vem este tufão, um vórtice que se ergue a partir dos restos do corpus da tradição, dos corpos femininos, dos rostos dos mitos, das cicatrizes do quotidiano, do fogo que nos faz arder a cada instante. São, afinal, vários livros que se aqui se apresentam, a começar pro aquele que os desenhos do Pedro [Proença] suscitaram no devir da Rita [Taborda Duarte]. Cada livro espreme-se em resumo, para o carrocel ganhar balanço, e armar a teia que parte ao encontro dos que acreditam ser o mundo feito de palavras. Os resumos estão em papel diferente, para tornar mais luminosa a ruptura do que sobra, o que pode perdurar dos poemas anteriores, o que fica do que passa. Mas será tanto assim? Deixamos cedo de saber quem desafia quem, se os desenhos respondem ou interpelam. O Pedro transfigurou-se em máquina de recriar corpos, de recombinar as figuras dos mitos fundadores e o seu traço ganha a ligeireza de uma escrita. Os desenhos são agora texto e as palavras a imensa escultura, que pode ser casa e intimidade ou paisagem e urbe. Não se deixem enganar, este livro está feito uma máquina criativa, que precisa apenas dos nossos olhos leitores para se pôr em movimento.

Tenda dos Editores, Óbidos, 12 Outubro

«O Tempo e o Medo», com piscadela de olho à revista completamente esquecida, até na programação, fez-se tema desta edição do Fólio. Na linha do «Nuvens», tratámos de compor com o Carlos [Morais José] jornalinho de campanha, suplemento h deste jornal que se faz girândola, que enfrentasse o medo de enfrentar os medos e assim fosse pretexto para esta mesa, na qual pontuaram a Ana Teresa Sanganha e a Patrícia Câmara, do lado psi das ciências, do António Eloy, com os quatro cavaleiros do Apocalipse, ecológico e outros, e o David Soares, escritor e tradutor, com abundante trabalho nestas áreas recônditas da literatura. O conjunto seria orquestrado pelo Carlos, cuja tese de doutoramento rondava que nem lobos este mesmo assunto. Uma hora foi pouco para perseguir a fronteira com que o medo nos separa das coisas e do outro, do escuro e do mundo. Leva por título, «Quem Tem Cu». «É na sôfrega e imobilizadora força do medo que o humano, mais humano, revela a sua humanidade», escrevem a Ana Teresa e a Patrícia. «Fiel depositário da perda, o medo é o limite que nos limita, contidamente, pelo seu arguto controlo.

No grito, confunde-se com o pânico, mas, no sussurro, é angústia acutilante ou sistema de alerta contra predadores.»

O jornal, com a inestimável colaboração da Ler Devagar, surgiu de um dia para outro, sim, literalmente, e volta a juntar em um arrepio a reflexão, a poesia, a ficção e a pintura. Ontem era o caos informe, hoje uma existência esvoaçante me papel de jornal. De tanto desejar pelos fechos de redacção, transformei os meus dias em maratona de linhas mortas. Cícero, citado pelo Fernando [Sobral], dizia no seu escultórico latim, «nem esperança, nem medo». O Henrique [Fialho], no final do seu conto, escreve para mim: «Diagnóstico: dói-me o medo».

Óbidos, 13 Outubro

Múltiplas são as perspectivas com entrever um festival, quer dizer, encontros sociais, pequeno teatro de vaidades e outras extravagâncias. Diverte tanto que até magoa a dança com que certas criaturas vão dispondo os corpos, quando os conseguem os passos que a coreografia exige, para que os olhos não se cruzem. E, portanto, não se obriguem ao encontro breve e constrangido, a fingir alegrias de pechisbeque. Bendita hipocrisia, essa cola do bem-estar social.

17 Out 2019

Todos os dias o medo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] nosso quotidiano não disfarça ainda a nossa perplexidade perante o efeito do desastre e suas leis que devem ser muito precisas e por isso de infalibilidade revestidas: comovem-nos sempre como se não pertencessem por inerência a todo este propósito. O impacto dele nos é dado nos dias que vivemos e nem por isso nos insensibiliza cada vez que um acontece, como se estivéssemos em pleno cenário de guerra com lesões do funcionamento neuronal. Há gente que cai aleatoriamente enquanto passa por locais onde todos acabámos de passar, mares de azul lindíssimo feitos mortalhas, edifícios em chamas trespassados por máquinas voadoras, sangue em todas as arenas. Noite após dia, dia após noite, olhamos incrédulos, sempre, para o último amontoado de escombros como se um frémito violento nos levantasse das nossas calmas funções.

O longo caminho da História deu-nos terreiros e hortos para a compenetração formal da morte que vinha como inimiga a combater: tinha trombetas, frases mágicas, líderes que a encabeçavam, como se de um compromisso se tratasse. Isto embora saibamos que, por onde passassem estes guerreiros, as populações nem sempre estavam a salvo: a guerra obedecia a um plano, havendo mesmo datas combinadas com o inimigo para exercitá-la, mas a nossa realidade, de contingências feitas, não nos dá segurança nenhuma nestas coisas e tudo o que existe à vista é uma guerra contínua e disparatada, feita de picaretas e outros utensílios que nos rebentam nas mãos. Com choques, afrontas, colapsos, amálgamas de cimento e sangue, de luz e treva, que é de arrepiar as nossas reservas de coragem.

Nós, cuja liberdade nos fora consagrada como um registo pessoal, temos por isso toda a legitimidade de nos alhearmos e vivermos os dias à nossa maneira, transcritos à nossa realidade. Cada ser pode firmar para si um isolamento saudável como partícula de sobrevivência e, até chegar a esse globalizante desastre, nada entretanto aconteceu. Mas isto, que parece a melhor das aptidões do instante, tira-nos a perspectiva da ocasião e do momento histórico que nos foi dado viver – para viver – por vezes há que desviver devagarinho…

A realidade, essa, será sempre esse ponto de partida por onde nos é dado então regular o que queremos esteja inscrito nos acontecimentos não permitindo o acto invasivo do mundo se aproximar de nós.

Ao iniciarmos os dias, não devemos começá-los por notícias e visões esmagadoras: a nossa força vacila e a nossa coragem esmorece, a esperança ofusca-se, o diálogo embarga-se, os olhos ficam grandes de espanto perante imagens tão sobrenaturais… existe um imediato reflexo de insustentável pavor e, até nos colocarmos na marcha da lucidez necessária, temos de ir deixando passar as horas.

Nós sofremos quando vimos os outros em dor. Nada daquilo é gratuito e apenas informativo, existirá sempre um fio condutor que nos liga aos outros no instante em que padecem, e tantos, e tão continuamente, gera a mais preocupante prostração. O facto de irmos antecipando a nossa defesa nestas coisas, promove uma vantagem contra o meio ambiente, que é o de haver pessoas saudáveis quando for preciso a sua imediata intervenção. Nota-se muito a desarticulação das fontes de salvamento, o titubear dos que podem e não sabem… da avalanche quase demencial deste cenário.

O medo aproxima-se de nós também como um amigo, pois que nos insufla de consciência, mas andar aterrorizado sem saber atrai o caos e a vida começa a ser um jogo diário onde não vemos o propósito maior que é o estar vivo para além dos nossos medos. Claro, esquecemos, temos de ir, de fazer, de continuar dentro de nós; no entanto, não sabemos bem como avançar de forma precisa, a nossa mente está em alerta, o nosso cérebro tem hoje, talvez, possíveis ligamentos em áreas que lhes estavam reservadas para funções que não se parecem com estas.

Toda a nossa antecipação na arbitrariedade da vida nos deixa inquietos na busca de a vivermos sem que saibamos dirigir o desígnio do viver. As coisas vão baixando como as pragas e se a economia nos secou a visão onírica, hoje estamos “salpicados” de sangue que nos dias corre no seio da União. Desconfiamos de todos, claro está, quem são os que nos matam? Serão quem se diz? Ou somos já nós a fazer esse projecto para adicionar interesses que fingem ser incólumes? Vamos vendo à medida que os sinais se propagam… vendo coisas novas que não estavam lá, e sabemos do medo imenso que é o da loucura mais grosseira nos ter possuído.

De quem, afinal, não devemos ter medo, quando nos dizem para não ter? Que calma querem que tenhamos no meio de tais acontecimentos e quem nos educa para a abulia total de sermos os espectadores de coisas tais? Que confiança, em que liberdade, em que maravilhoso sistema desejam que acreditemos? Desculpar-me-ão mas eu não acredito nele. Pois que tenho medo e sei o que significa chegar aqui de olhos abertos a ver todas estas impensáveis realidades que nem dela fugindo estamos a salvo. Construímos por ócio todos os fantasmas e tecemos a malvadez como um plano bastante inclinado mas deveras excitante, e, enquanto ele vogava na sétima arte, e na ficção, eram nossas todas as perversões da alma, já danada, de tanta felicidade, agora, eles mesmos, os espectros se tornaram tão autónomos como nós, e agora, somos nós e eles, de corpo presente a constatar a nossa mais medonha obra. Concomitante a toda a nossa realidade, seja ela resguardada, ou mantida em dose máxima de informação, há outras realidades que se passeiam, tão reais quanto estas. E dessas não temos memória, e estamos a construir espaço para a podermos abarcar, pois que nem em sonhos e visionarismos se teria previsto tanto! Como não ser a realidade uma esfera à parte, até da nossa capacidade de mediúnicos informadores?!

Nestes quotidianos, assim vamos vivendo como se de um cadáver nos estivéssemos alimentando, tornámo-nos necrófilos sociais, para não se desaparecer de vez e nos levarem as doces bactérias que restam à ameaçante guerra de neutrões que nos há-de suportar lavados de dissolventes naturais. E se as bombas não chegarem a Nova Iorque, vão chegar a outro local, que Nova Iorque é agora uma metáfora de Babel . E se os nossos filhos morrerem a percorrer o mundo, que tão generosamente lhes insuflámos na mente como lugar extraordinário, que mesmo assim não tenhamos medo das nossas lágrimas e saibamos com dignidade ir abrindo espaço à gravidade desta situação social.

Vivemos ameaçados, com cortes, com despejos, com ofensas, com desconsiderações tais que dava para nos atordoarmos de espanto até ao fim dos nossos dias, e agora mais esta terrível realidade de grupo que queremos contornar com uma compostura mumificante e nos trespassa a noite como um raio impúdico e imprudente. Sair disto sem feridas é impossível, nós estamos mais ou menos já em chaga, mas, talvez ainda se consiga uma certa nobreza que fará sempre parte de uma saudosa Humanidade sonhada. Nós, que inventámos o sonho e fizemos da vida uma obra de Arte ( os que a fizeram), não devemos acabar assim. O mundo é o cenário de um grande dramaturgo poético, um mundo em que o criador está presente em toda a parte, e em toda a parte oculto.

26 Jun 2017