“Dá-lhe jindungo!”

[dropcap]C[/dropcap]ais do Sodré e as filas sempre longas para tudo. Entro, valido o novo e mágico passe social, o tal que, dizem, dá acesso a mais “leite, tabaco e drogas”. Deve ser o “Batido de atum para toda a gente!” deste século. Carris, eléctrico 15. Outro dia vinha, na sua versão moderna, silenciosa e bem menos charmosa, cheio de maratonistas femininas, t-shirt rosa a publicitar o evento. Era domingo e nem uma noiva de ares ucranianos faltou, bonita e sorridente, vestido branco em cascata. Não a esquecerei tão cedo, como não esqueço a velhota que, certa vez, no comboio, me falou da sua carreira de actriz, e mostrou fotos analógicas que, desconfio, trazia sempre consigo, como se fossem os seus verdadeiros documentos de identificação. Nelas, encontrei Gérard Depardieu composto, mais magro; foi no tempo em que ainda não trocara a França pela Rússia nem a nossa admiração pelos seus escândalos.

Este à minha beira é angolano, como o sotaque denuncia. Terá uns sessenta anos de pele clara e pouco tocada pelo tempo. Rapidamente lhe sinto o bafo a álcool, mas não me levanto, o carro vai cheio. Da última vez, num autocarro, fi-lo. Depois, observei a passageira seguinte enfiar tanto quanto pôde do rosto na gola da camisola (o inverno protege os audazes), ficando assim curvada o resto da viagem. Seria bom que tivéssemos como comunicar telepaticamente, nós passageiros incautos, numa espécie de Shining: atenção que esse esteve a beber desde manhã; olha que essa ainda não tomou banho esta semana. O verão, por sua vez, expõe todos. Ele vai proferindo pequenos insultos contra o que entende ser canalha irrompendo eléctrico adentro, e pergunto-me se é por desinteresse ou pena que nenhum dos visados o agride ou lhe responde. Mais rápido, já está, é passar, temos de ir embora!

Ele olha-me, pausa, as mãos hesitam, cheias de histórias. Fala. Desculpa, eu não reparei que estavas aqui. Lá se foi a minha boa sorte, olá radar de estranhos. Então agora podemos conversar.

És uma mulher bonita e interessante. Como é que vocês escrevem tão rápido? Eu não consigo… Isso. Dá-lhe jindungo, dá no jindungo! Saberá ele que voltei agora de Maputo? Grita, rosna, ri, ressona. Do álcool ou da apneia, quem sabe. Certo é que lhe vemos o pescoço tombar para trás a cada cinco minutos. Num momento está aqui e é a única voz que se ouve, no seguinte… bem, é o único ressonar que se ouve. Acorda ao fim de segundos, continuando o discurso de onde o interrompeu, como se tivéssemos sido nós e não ele a fechar os olhos. A mulher à minha frente continua a lançar-me olhares e sorrisos solidários. Eu tenho cada vez mais dificuldade em não rir, e evito olhar muito para ele.

Olha aquele a piscar-te o olho, estás a ver? Ele é paquistanês, tem um restaurante ali em baixo. Eu conheço-o. Está cheio de dinheiro. Ele é um bom partido para ti (eis um pretendente que também é casamenteiro). Dinheiro eu não tenho muito, eu sou assim-assim. Humm. Esse rapaz, esse tem qualquer coisa na mochila. Cuidado. Abriu, fechou… Este (o 15) agora só pára em Alcântara. Se eu fosse esse rapaz (o motorista) só parava em Algés. Ressona, ronca bem alto, acordado apenas pelos solavancos do eléctrico, em cujo percurso encontro simetrias com o seu discurso. Se ele deixasse aqui a mochila com a bomba… Olha eu então é que estava lixado, que era o primeiro a receber… a bomba. Bom. Ba. Bom-ba. Booomba. A palavra brinca-lhe perigosamente na fala. Eu, ele, espera aí… eu, ele, aquele, tu também um bocadinho (eu, obrigada, meu caro senhor, não quereria ficar de fora de tal acontecimento) e aquele jovem. A minha cara séria desfaz-se. É impossível não rir. Era bomba. Bom-ba. Boooom-ba. Íamos cantar Elton John lá para os anjinhos (deve estar a pensar em Candle in the wind, mas eu sugeriria Someone saved my life tonight). Mas pelo menos deixavas-me o casaco de pele. O alvo agora é um rapaz que vai em pé e o olha, preparando-se para sair na próxima paragem. Estava a brincar, gosto desse casaco. Deixavas-me o casaco de pele. E se eu deixasse a bomba E o casaco de pele? Pergunta o rapaz. Explodimos os três a rir. Só nós, não a bomba. Não sobrava nada, responde o homem. A malta brinca mas prestem atenção, temos de estar sempre atentos. Uma vez no metro entrou um gajo com um saco que fazia tic tac tic tac, as duas pessoas que estavam à minha frente fugiram logo e eu disse: pronto, se fui, fui-me. Mas o gajo agarrou o saco, levantou-se e saiu na paragem a seguir. Olha, não rezei. Disse apenas, se tiver de explodir, explodiu. Era uma vez eu. Paciência. Já não te conhecia. Deixei o carro em Algés e ainda tenho de ir para Cascais. Estou sozinho num T5. E chego a casa e, olha, fico a ver televisão. Se a bomba explodisse, eu não estava cá, tu não me conhecias, eu não te conhecia. É verdade (reitero, pensando em como a vida poderia ter-me poupado pelo menos ao seu hálito a lembrar uma das míticas personangens de Tieta do Agreste). Suspira novamente. Dá-lhe jindungo! Repete o seu mantra. Ressona novamente e de repente, como um pequeno motor. A porta abre, o eléctrico guina. Não pára, sempre a andar! Acelera, comanda ele, o motorista absorto no caminho, em silêncio.

Já vais sair? Já vais embora? Vou. Já não o vejo, mal o ouço, mas ele continua. Gingando e profetizando na noite.

30 Mai 2019

Os dias cobram dívidas

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue obituário escreveria o coelho, personagem principal da crónica mais pequena da nação, tantas vezes surrealista em toda a potência e delícia do termo, para dizer da vida e obra do seu criador, Jorge Listopad? Não arrisco vestir-lhe a pele. Sei que devo a Listopad teatro, palavras, cidades, visões, servido o ensemble com irrequieta frescura. Desejava arrastar o dia à procura de flores e frutos na horta de papel onde guardo alguma daquela sua flora. «Jorge é o mesmo que Jíri. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em Novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro.» Assim se nomeou em autobiografia, passados os oitenta. Custa-me saber que o lavrador de Novembro deixou de amanhar a horta que mantinha na teia de um palco.

Horta Seca, Lisboa, 3 Outubro

Raspo dos dias apenas o mel. Quando devia estar a arrumar a casa, batem-me à porta com projectos. Primeiro o Bruno [Portela], que arrasta consigo a fotografia. Arrasta por alto, rente ao tecto onde habita. Gosto dos seus modos. De fazer. Neste país que prefere estender passadeiras, o Bruno desenvolve tapetes onde nos podemos sentar mediterraneamente, uns num canto, outros a meio, mas no conforto do encontro. Anima, com o Luís Vasconcelos, o ponto de encontro do fotojornalismo nacional, a Estação Imagem, iniciativa que vem rasgando o país para o mostrar melhor, que convoca parceiros internacionais de ofício e olhar, que anseia por preservar a memória, que procura resposta simples para o complicado: sobrevivência. Depois, também se pode discutir gostos. Assentados. A espessura das ideias que trouxe, como as que levei eu para a troca, adiante as partilharei.

Com o Alex [Cortez] chega-me, de seguida, o desafio de acolher em livro os «Poetas Portugueses de Agora», a mais recente empresa da Lisbon Poetry Orchestra, banda rica de vozes ditas e instrumentos tocados, quase canções com o texto a dançar sobre a rica tessitura de baixos e guitarras e tecladas e sopros de variegada respiração, além de mais cordas convidadas. Os versos são de próximos de agora ou nem tanto: Daniel Jonas, Cláudia [R. Sampaio], Paulo [José Miranda], Valério [Romão] e Filipa Leal. Ditos por Paula Cortes, Miguel Borges, André [Gago] ou um Nuno [Miguel Guedes] acabado de conhecer há uns 40 anos. Lá está: como dizer não ao presente? E o embrulho, que não terá apenas um CD, vem com aspiração a objecto, desenhado pelo Daniel Moreira, que ilumina ainda os detalhes. O Alex não tocou apenas argumentos, trouxe EP que oiço em modo vertigem. Diz o Paulo na voz do André: «Os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dívidas// ser-se cobrado/ é como andar à chuva e ter coração/ e precisar de respirar/ e precisar de andar/ e precisar de cuidar das plantas que enfeitam a varanda/ ou as marquises dos arredores de Lisboa.»

Horta Seca, Lisboa, 4 Outubro

Distinta estava a noite na auto-estrada. O escuro não se assume na via rápida, nem mesmo em pleno coração do Alentejo. Vislumbro ao correr do vidro as constelações, a mancha leitosa da via láctea. Não me podia alhear, que assim o exigia o cansaço de quem conduzia, de sul para norte, de quem me conduz, nas direcções cardiais. A Lua dizia mais luz, de cheia que estava. Nisto, o mal-estar. Mal dou por mim, ao quilómetro cento e trinta e seis vírgula oito, detalhe ampliado, aquele oito infinitamente maior que o resto dos numerais ordinais, tenho a meus pés uma mulher estendida no asfalto, sem dar cor dela. De que branco seriam os nossos rostos na escura noite nívea da auto-estrada, sem darmos por nós, um acordado outro nem tanto. Tomo por justa esta imagem para os dias que passam velozes.

Casa da Cultura, Setúbal, 5 Outubro

Ninguém dá por ela, como convém a um bom fotógrafo. A Graça [Ezequiel] desfaz-se nos cenários, nas paisagens, nos momentos. Ninguém a vê. E por isso o seu território outro não é que os bastidores. Mesmo quando fotografa o palco, o que nos dá a ver é o outro lado, o da preparação, o esboço antes do risco final, o momento em que o artista se apaga para deixar entrever o indivíduo. Em performance ou repouso, de atenção presa ou distraído no acaso, alguém foi apanhado sendo. Apenas sendo, vibrantemente existindo. Daí o negro, a enorme quantidade de negro que estas fotos contêm (conferir nesta página com a de Helder Macedo). No palco, pouco mais há além do negro profundo, a cor da arte, e precisamos do olhar e da câmara da Graça para libertar a luz destes rostos. Eles estão a criar para nós, a dizer que não podemos ser apenas isto, que no negro se encontram todas as cores que precisamos para abrir mundos neste. Ensaiando ou descontraindo, como representando ou dizendo, o escritor, o artista, o actor, o músico são mais, são maiores. Por serem nós, por que nos fazem ser com eles. Atenção, com eles, que não como eles. Por ora, estes esboços estão perto no sul feito de beira-rio.

Horta Seca, Lisboa, 6 Outubro

Podia a entrada estar datada de 11/9, o dia exacto e icónico em que disponibilizámos este denso e fulgurante ensaio do António [Araújo]: «Consciência de Situação – Um Ensaio Sobre The Falling Man». A partir de uma fotografia célebre, a de Richard Drew a que alude o título, o António ajuda-nos como nenhum outro a enfrentar a ferida que se abriu nos nossos mundos, em 2001. A queda é o eixo desta poderosa reflexão, que vai muito além da costumeira compilação de notas de leitura, provavelmente de toda a bibliografia sobre o assunto, para tocar a história da fotografia, o miolo do jornalismo, a análise de comportamentos em situações de risco real, a filosofia e a religião unidas pela umbilical ideia de salvação, mas também de beleza ou presente. Este pensamento vem, como gosto tanto, insuflado de um sopro de – ia escrever emoção, mas é – humanismo, que me comove e perturba, mesmo nas descrições violentas, nas esmagadoras reflexões, nas poéticas construções. Apesar de ser sobre este incandescente assunto, há-de concluir, são as «divagações vazias que constituem a melhor metáfora do nosso tempo». Não será o caso, garanto. «Na manhã de 11 de Setembro de 2001, as câmaras de televisão filmaram uma mulher na rua, horrorizada pelos corpos em queda do cimo das Torres Gémeas. Aos gritos, dizia: «há ali gente a saltar, gente a saltar! Acho que estão a tentar salvar-se!» Ninguém pode tentar salvar-se saltando de um 102.º andar de um edifício. Tudo depende, no entanto, do que entendermos por “salvação”. Em função disso, o grito descontrolado daquela mulher pode ser encarado como uma frase insensata e ditada pelo pânico; ou, pelo contrário, como a observação mais certeira e sagaz alguma vez feita sobre os suicidas do 11 de Setembro.» Sei bem onde estava (e com quem estava, certo, Cristina [Sampaio]?). Mas nunca mais soube onde estamos.

P.S.: Cultivo a superstição de contrariar a vontade de abrir o livro mal me chega da gráfica. Costumo dar logo com a gralha grasnando. Confirmou-se: na 123, esquecemo-nos de limpar a repetição da capitular.

Horta Seca, Lisboa, 7 Outubro

Divertido, não fora perturbador. Percebo melhor a tatuagem do presente: business as usual. Estás bem? Péssimo, respondo: exausto por isto e por aquilo, além de que a minha distribuidora faliu. Que maçada! Olha, o meu livro, quando sai? E a factura, quando me pagas? ‘Bora jantar? ‘Bora, respondo.

11 Out 2017

Trompete

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou uma onda contínua de embalo cruel, quero encher todos os copos com whisky, os oceanos e sistemas de canalização com single malt e trazer substância caótica às vossas inócuas vidas. Sou olhos cerrados no sublime, capturados pela fantástica nota que destrói o mundo. Uma escala imprecisa de variados agudos e precoces graves, uns soltos, outros despidos, expondo melancolia ao sol, a caminhar para onde o vento escolher em direcção à arritmia de cósmicas tarolas.

Sou um vibrato de dourados. Dou o remate entre saliva e vida, deslizo com o veludo do Chet e corto com as facas do Miles, sou trilogia oscilatória, um metal dourado erigido em direcção ao firmamento. Fixo as coisas no definitivo, transformo o momento numa fotografia de nota azul.

Levo os exaltados Deans e Jacks a saltarem afirmativos num amplexo que embarca todo o tempo que os relógios são capazes de conter. Sou exaltação de metedrina, combustível para almas que rasgam continentes de costa a costa. Tenho carícias de cetim e vertigem de suor, aceito tudo o que o alcatrão me traz, sou o seu mais benevolente filho e amante.

Vivo em sessões a preto e branco em caves do East Side, uma sépia alma, longos e sofridos dedos negros em mim a voar num indómito vento melódico.

Sou o ultraje que matou Lee Morgan, demasiado ousado para chegar aos 30, estouvado e escandaloso maquinista do comboio azul. Que me perdoem os saxofones, mas vocês são a minha salada, o acompanhamento, os lençóis onde me espreguiço libidinosamente. Tenho estado calado, antecipação nervosa no bocal, à espera de uma abertura para trazer o abismo ao ritmo do contrabaixo.

Sou o melhor que a vida tem para oferecer, autenticidade recheada de ingenuidade, sou uma prenda inesperada num dia triste. Bochechas em lua cheia, amendoins salgados e descida ritmada até à mais aguda nota abafada pela surdina numa noite tunisina. Como fui feliz e torcido naqueles duplos balões de ar, cercado por anticiclones de fumo e corações brutos, meu querido pai Dizzy, minha alada mãe Bird, percursores artísticos da luta por direitos civis dos negros. Miles nosso que estais no céu, santificado seja o vosso bop, tanto no Harlem como em Nova Orleães, venha a nós o beat e livrai-nos de Kenny G. Amen-doim.

Salt Peanuts, errante e aos saltos, com ginga na anca, matreiro como uma sorridente hiena e mais ágil que qualquer metal de orquestra.

A minha voz é o som que exclama: Sim! Que impele à fuga das triturantes maquinações do tédio, que arranca sorrisos demolidores a anjos sacanas. A minha campânula é a fonte de vida desbragada, a liberdade que esmaga a conformidade, a paisagem adequada à ferocidade dos amantes, um divino chafariz sonoro.

Trago alucinações e corpos suados a caves escuras, um sentimento sacramental a tudo o que é transitório, o gosto do ferro na saliva. Sou o completo oposto da docilidade, a estrada que se abre para a viagem infinita sem qualquer vestígio de destino no horizonte.

Venham os saxofones e o titubeante contrabaixo suspirar pelo Terror vindouro, pela estridência que vai da agonia ao êxtase num amplo ápice. Que a luz rompa a treva como nos primeiros clarões de Vermeer e na revolta das alvas ondas de Turner. Sou um veículo de dom, o pedaço de metal que faz a extensão do Homem até ao Cosmos, a transcendência numa escala de notas astrofísicas.

Projecto delírio fulminante e o nascimento do cool, pedaços de Espanha e África trasladados através do Atlântico. Sou um milhão de olhos raiados de sangue, veias salientes, esgares gelados, a perdição da carne com um trio de pistões que nascem e se põem como o Astro. Transformo marginais em deuses, becos em catedrais, fome em abundância, silêncio em amor.

Sou a Anunciação, as sete trompetas do Apocalipse que pintam tudo de preto depois de rompido o sétimo selo. Trago presságios de fim, declaro o óbito da humanidade, a tudo precedo e a tudo sobrevivo. Sou o céu e o inferno.

11 Set 2017

Noites todos os dias

Joaquina, Lisboa, 13 Junho

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e vez em quando, mergulho em apneia no grande oceano da música brasileira. As redes permitem pescar com fartura e nas profundezas do passado. Se feito ao desafio, como há um ano e muito por culpa da Elza Soares, então as agruras ganham o perfume da dama-da-noite. Incontáveis vozes femininas cantam em veludo os desamores e as pedras da calçada do quotidiano. E ao serviço de letras que constroem sabiamente contos, crónicas, poemas, aforismos. Cresceu-me o introito a propósito de uma daquelas noites que só o Junho alfacinha contém. Na Rua Joaquina, vila sobranceira a uma das minhas colinas preferidas, ainda que sejam muitas as dilectas, costuma acontecer festa rija e fado solto. Desta vez, na ressaca da noite sacrificada ao santo, estamos postos a celebrar a amizade, que o André [Gago] acaba de fazer comovida pelo discurso aniversariante. Eis que o puto Gaspar [Varela Silva], bisneto de Celeste Rodrigues, com primeiro concerto anunciado para Novembro, pega na viola portuguesa, deixa assobiar o vento nos caracóis, e ali mesmo celebra Dolores Duran, pois adora «A Noite do Meu Bem»: «Eu quero toda beleza do mundo/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Ah! como este bem demorou a chegar/ Eu já nem sei se terei no olhar/ Toda pureza que eu quero lhe dar». O talento ouve-se a olhos vistos, mas custa a crer na força de vontade que prende o Gaspar às cordas. Pureza enfeitando a noite.

Feira do Livro, Lisboa, 18 Junho

Sob sol inclemente e com o país mergulhado na tragédia, fecha mais uma edição da Feira. Por mais voltas que dê, vejo-lhe os modos e as maneiras a moribundar. Mais do que momento anual de ter ao alcance do entendimento e da bolsa o catálogo completo de cada editora, o armazém tornado montra, o rosto a vislumbrar-se muito para além da marca, aquilo está disforme venda de saldos ao ar livre. Tudo entalado entre isto e aquilo. A maltosa passeia, mas já não disfruta. Vai para comprar o barato, mais do que livro. Praças inteiras de maduros, mais ou menos anónimos, à espera de quem lhes reconheça o autógrafo. Barracas de farturas e fartura de barracadas. Talvez não haja volta a dar, apenas subir e descer. Sem dispensar uns encontrões, que andamos sem ver onde pôr os pés.

Horta Seca, 19 Junho

Acabo a «Marquesa de Alorna» contada aos pequenos, e nem tanto, pela Luísa Paiva Boléo e pelo André [Carrilho], minha vizinha na colecção «Grandes Vidas Portuguesas». O conto espraia-se sem floreados, acreditando bem a Luísa que a personagem se agiganta só com o estender dos factos. «Querida Leonor» foi grande figura, não restam dúvidas, antes páginas. Prometo visitá-las. O mister do André usa o esboço nos cenários de um modo que parece história, sugerindo apenas para que completemos nós. (Confira-se com a ilustração do terramoto de 1755, algures nesta página) Leonor surge de rosto definido em detalhes e de corpo enchendo o tempo e os lugares. Entre cenário e corpo, dá-se a aventura.

Horta Seca, Lisboa, 21 Abril

Sem variação, mas com variantes, cada um que entra na minha oficina se espanta com a aparente desarrumação das mesas e das estantes. Não, o plural não é gralha, que são várias as mesas onde acumulo, sobretudo livros, mas também revistas e jornais e revistas, a repetição não é gralha, e cartazes e documentos, enfim, papel e pó. Esta acumulação resulta de um processo único, próximo do zen, desenvolvido com preguiça e argúcia ao longo dos anos: se não estiver perto, esqueço. Por folha estará ao menos uma ideia, cada monte contém infinita potência de leitura ou de projecto. Preciso sopesar formatos, respirar grafismos, tocar a haste da letra, beber a imagem, mergulhar no pensamento, enfim, achar que posso ler, a qualquer momento. Esta proximidade define horizontes e estruturas, sem as colunas em altura desmorono, sem a visão dos tons infinitos e movediços do papel paraliso. Moro nos antípodas do origami, ess’arte de, com dobras engenhosas, domesticar o espaço. Para que o mundo e as suas formas caibam na mão. E assim encolher o tempo. Aqui o caos parece congelar o tempo, propondo-lhe um labirinto. Não morro menos por isso.

Belém, Lisboa, 22 Junho

O Filipe [Raposo] deixa-me nas mãos uma «Inquiétude» em tons de amarelo. Os dias seguintes caminharão sobre pianos. As composições, quase todas suas, resultam de dois anos de aprendizagens várias em Estocolmo, pelo que nos chegam com as marcas da viagem, pedaços de paisagem nas botas, as malas cheias de elementos, água e vento, fogo e céu. E palavras. Há voz, ligeira, que se toca como instrumento, pois não são canções. Contudo, este jazz das planícies (interiores, ainda que lá fora) tem, no que parece ser uma constante no trabalho do Filipe, fortíssima ligação à poesia. Ténue como corda de funâmbulo. A cada tema corresponde um poema, mesmo que seja só frase, no desdobrável que acompanha o disco, entre os quais o de Louise Bourgeois que forneceu o acertado título, metendo estudo nisto do desassossego. Logo me desperta o jogo de ler o poema e ir tentar descortinar as notas que cosem relações. Surge uma Leonor, acontece Grabato sobre o Cosmos página branca, e «coisas deixadas para trás» a pretexto de um haiku: «Enquanto com a manga/ varro a minha cama/ e me sento nela/ à tua espera/ a lua já se pôs». São degraus, estas teclas.

Hoje Macau, 23 Junho

Saravá, António, que agora trazes novas tonalidades a estas páginas. Nós, os escravos do tempo, te saudamos ó grande intérprete das faldas e sinuosidades. Deixa ainda acrescentar que se fez pedra no charco o teu, tão breve quanto intenso, «É Um Clássico», na RTP2, aos sábados, pelas 21h22, mas a qualquer hora, como se vê agora televisão. Até te perdoo as mãos nos bolsos, se continuares a desfiar melancólica clareza com a perfumada alvura das manhãs que se sucedem às noites alfacinhas de Junho.

Horta Seca, 25 Junho

Vejo desta coluna a semana que passou e são tantos os sítios onde gostaria de ter estado sem o conseguir que me arrisco a perder assunto, a perder o pé: as leituras que a Rita [Taborda Duarte] organizou na Leituria, o lançamento da Patrícia [Portela], a inauguração do Jorge [dos Reis], a festa dos vizinhos na rua Joaquina, a homenagem ao Bernardo Sassetti, que será doravante também uma sala-jardim, o Nuno [Saraiva] a mostrar originais das Festas, a visita guiada do Jorge [Silva] ao Pavia. Verdade fique dita, o social dói-me sempre algures.

28 Jun 2017

Melhores cidades grandes da Ásia Extrema

1. Tóquio – um mundo próprio, cosmopolita, enorme, futurista, excelente oferta de tudo, muitos parques e jardins, livrarias, exotismo. Tem a língua mais bonita do mundo. Muitos dos pequenos bairros da cidade oferecem uma vida tranquila, quase aldeã. A modernidade traz um efeito enganoso, o de se esquecer como o Japão, também nas grandes cidades, é um país bestial e tribal.
Poucas cidades transmitem um sabor irreal como Tóquio e a completa impossibilidade de a compreender é o seu grande mistério. O sistema de transportes internos ou para fora da cidade é impecável (o Shinkansen tem uma média de atrasos de 6 segundos). É perfeita para fanáticos por comboios e para fanáticos de tudo, de unagi a bakushi.
Contras: bastante fria a nível do contacto humano, em geral cara.

2. Hong Kong – futurista, excitante, com muita gente, muito boa oferta de comida e bebida, rede de transportes muito eficiente, uma população suficientemente contestatária para criar frissons, abundância de dim sum. Muito mais excitante que Singapura.
O sistema de vias pedonais elevadas e a interligação com espaços comerciais e de trânsito e metropolitano é um pequeno sonho modernista (ver o livro Groundless City). Muitas ligações aéreas internacionais. Permite um tipo de vida ilhéu recatado ou em versão frenética de grande metrópole. Fica-se com a impressão de que aqui tudo é possível.
Contras: um pouco claustrofóbica, muito poucos espaços verdes no interior da cidade (mas muitas zonas protegidas no exterior), habitação cara mesmo longe do centro.

3. Taipé – cidade jovem, bons cafés e muito fácil acesso a montanha e costa, actividade artística, excelentes livrarias, boa qualidade de vida, muito segura e relaxada. Bom sistema de transportes. Várias zonas muito atraentes e com produtos de qualidade. Habitantes muito generosos.
Contras: pode ser um pouco aborrecida e não é particularmente bonita em certas áreas. Muito poucos espaços verdes grandes dentro da cidade.

4. Osaka – muitos restaurantes e bares, uma cultura do prazer da mesa (ou apenas balcão) e da conversa difícil de ultrapassar. Não recordo outra cidade onde, pelo fim da tarde, haja tantas pessoas a comer e a beber em pequenos estabelecimentos. Produtos de altíssima qualidade. Sistema de metro suficiente e eficiente. Há uma certa descontracção geral. Boas lojas, comida excelente. Extremamente perto de outros lugares de interesse, como Nara, Kobe, Koyasan, Ise e Quioto.
Contras: um pouco provinciana e insular, como é geral no Japão – com excepção de Tóquio. Poucos espaços verdes (ao contrário de Tóquio).

5. Singapura – tudo perfeito a nível de infraestruturas, muito verde (mesmo muito verde, o governo apostou-se em tornar Singapura na primeira verdadeira Cidade-Jardim), excelente comida (e acessível), zona central de aspecto moderno com muitos arranha-céus. Segurança. Cafés, restaurantes e lojas de Little India muito atraente. Muitas ligações aéreas internacionais. A gestão do trânsito afasta qualquer possibilidade de caos
Contras: aborrecido, administração paternalista e controladora. Não tem a vibração de grandes metrópoles como Hong Kong ou Tóquio.

6. Kuala Lumpur – cidade pequena com aspecto moderno, muitos locais de entretenimento, transportes bons, tudo num espaço pequeno e fácil de negociar. Tem uma atmosfera tropical mas arrumada. Hill Stations perto e praias boas no resto do país. Alojamento e comida ainda com preços muito acessíveis.
Contras: imediatamente por baixo do seu aspecto moderno esconde-se uma sociedade conservadora e provinciana. Regime político muito controlador, imprensa pouco livre. Talvez um pouco claustrofóbica por ser pequena.

7. Hanói – bonita, muitos edifícios coloniais, a zona antiga continuando, apesar do turismo, muito atraente. Um caos benévolo. Boa comida, muito fresca. Um povo interessante e interessado, aberto a ideias novas.
Contras: pobre, a confusão, fumo, poluição, sujidade podem cansar sérios desconfortos a longo prazo. Burocracia e as inevitáveis e dificilmente contornáveis inconveniências do comunismo, repressão.

8. Seul – cidade moderna, com várias bolsas de conforto. Tem os confortos do inverno, bons produtos, boas lojas, bons cremes de pele, casas de chá. Esqui perto. A internet mais rápida do mundo.
Contras: mentalidade muito fechada. Por vezes, de repente, percebe-se a extrema ruralidade de tudo aquilo.

9. Fukuoka – Muito calma e junto ao mar, de atmosfera muito atraente. A ilha de Kyushu, onde se situa, oferece muitas oportunidades de passeio. Produtos de alta qualidade, desejo municipal de tornar a cidade num sítio moderno, com muitos sítios para bicicleta e um comércio local sedutor. Muita atenção à arquitectura.
Contras: apenas ser um pouco pequena demais.

10. Bangkok – exótico num sentido quase violento do termo, muita gente, excitante, população misturada, comida de rua excelente e diversificada. O rio que a banha é um pequeno mundo em si, caótico e belo, cinematográfico. Muitas ligações aéreas internacionais e bons hospitais.
Contras: várias zonas pobres, maus cheiros, sujidade. A sua intensidade pode cansar ao fim de algum tempo. Muito grande, não muito fácil de atingir certos sítios. Neste momento tem um regime muito autoritário e problemas de liberdade de imprensa.

11. Manila – cidade grande, uso do inglês estendido. Há, em várias zonas, uma sensação excitante de perigo. Um povo único, brutalmente extrovertido. Toda a longa zona da baía, até ao forte de Intramuros e ao Hotel Manila poderia ser das mais bonitas da Ásia.
Contras: muito pobre em certas áreas, a confusão, fumo, poluição e sujidade podem cansar sérios desconfortos a longo prazo. A língua e a comida não oferecem razões para grandes entusiasmos. Não é uma cidade muito segura.

a) Não visitadas: Rangoon, Jacarta, Bandar Seri Begawan, Pyongyang.
b) Cidades de países muito pobres, como Birmânia, Laos, Camboja, Mongólia, não oferecem condições suficientes a não ser a uma vida de recolhimento e contemplação.
c) Cidades segundas como Busan ou Kaohsiun, não são suficientemente atraentes.
d) Países como a Tailândia e Filipinas têm apenas uma grande cidade, sendo a segunda relativamente pequena.

14 Jun 2016

A propósito de Magris e da Hungria

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma entrevista a Claudio Magris publicada recentemente num jornal português perdeu-se uma boa oportunidade para perceber como o autor de Danubio julga os transportes que se operaram nos últimos anos em algumas das regiões sobre que o seu livro paradigmático se debruça.
Se a importância que atribui aos espaços públicos onde se pratica a preguiça e a reflexão não deixa de ter lugar na conversa que se reproduz, uma preguiça e um exercício de reflexão que se terá transformado nas cidades contemporâneas em que se instalaram hábitos mais utilitários, menos presente está a reflexão sobre o que aconteceu às cidades ou vilas onde se passou de um regime de ditadura a um de democracia.
Lembre-se que Danubio foi publicado em Milão, pela primeira vez, em 1986, poucos anos antes das transformações que libertaram vários países do que se chamava a Europa de Leste da forte influência soviética que se impôs após a Segunda Grande Guerra. Ler Danubio hoje, no que respeita às páginas que se debruçam sobre a Eslováquia, a Hungria, a Roménia e a Bulgária (que correspondem a cerca de metade do livro, seguintes às que falam da Alemanha e da Áustria) levam-nos a um universo ao mesmo tempo muito longínquo e muito próximo.
Também se fala, e bem, da periferia como o lugar da “separação, mas também do encontro. Na periferia, há um conhecimento do centro maior do que o que existe no centro sobre a periferia” – afirma Magris durante a entrevista, reflexão que se pode aplicar também a países, como Portugal ou a Finlândia, onde existe um interesse pelo centro que não é necessariamente recíproco. Ou mesmo – acrescenta – “um conhecimento e um sentimento dos valores comuns mais fortes do que no centro. Por outro lado, o grande perigo da periferia é o de se considerar o mais autêntico da nação, por serem zonas onde se pensa que esse sentimento nacional está ameaçado. É nesse contexto que nascem os nacionalismos das zonas periféricas”.
Esta resposta poderia ter sido tomada como plataforma de partida para perceber melhor e aprofundar o que se passa hoje em países como a Hungria ou a Polónia (que por razões geográficas não entra na discussão danubiana) onde o nacionalismo e a opção pelo isolamento são cada vez mais fortes. Começa por se fazer – mas não se explora suficientemente esta linha – ao referir a obsessão de alguns destes países em escolher o isolamento e a protecção insegura da sua identidade em detrimento da abertura e da tolerância, um processo com raiz na tentativa de preservar a identidade própria em face da hegemonização imposta durante o período de influência soviética. Magris refere o fosso existente entre a Constituição húngara e a dos países da U.E.
É precisamente a Hungria que me interessa, como exemplo de fechamento e, mais interessante ainda, como exemplo de um país onde a um período de abertura que se seguiu a um de extremo enclausuramento que durou várias décadas, entrou numa fase de apetência por uma nova face de autoritarismo (como na Polónia) – algo que se não deu nos países do sul, Portugal, Grécia e Espanha, que nos anos 70 (74 e 75) rejeitaram regimes autoritários para nunca mais voltar a desejá-los. Não existem sequer em Portugal ou Espanha significativos grupos de direita que mostrem uma propensão nostálgica pelo autoritarismo.
O primeiro texto do capítulo que Magris dedica, em Danubio, à Hungria, chama-se At the Gates of Asia?, o que demonstra a condição periférica que o autor lhe confere, uma que se acentua num país onde a língua tem poucos pontos de contacto (ou nenhuns) com as dos países do centro ou as dos países circundantes. Esta é uma terra em que nos inícios do século XX existe um sentimento de despertença do Ocidente Europeu: “The West has rejected us, so we turn to the East”, uma terra cuja história demonstra um fervoroso nacionalismo que se funda, ironicamente, a partir da sobreposição de inúmeras camadas de invasão e mistura, matrizes formativas do particularismo magiar em que se inclui o elemento asiático – tatar, turco (mais de 150 anos de ocupação), cumano ou pechenegue.
O estado comunista impõs-se de modo paternal, reservando-se o direito de controlar todos os níveis da sociedade e suprimindo liberdades políticas, mesmo que a Hungria tenha sido (eu ainda me lembro) um dos regimes mais distantes de Moscovo de entre os que a U.R.S.S. controlava, constantemente alternando entre períodos de maior e menor autoritarismo.
Ao ler Danubio sentimos como este mundo (que forneceu ilimitado material ficcional), que parece distante, está, afinal, tão próximo de nós.
Na prática o período comunista sucedeu-se a um regime igualmente autoritário (que se inicia, como em Portugal, nos anos 20), o do período de Horthy, Almirante dum país sem mar, aliado de Hitler mas de um nacionalismo rigoroso que não poupou dissabores também à comunidade alemã húngara (que depois de 1945 foi violentamente perseguida).
De fins da Primeira Grande Guerra até 1989 são mais de 60 anos de regime musculado, primeira como ligado à União Soviética, depois como regime de direita e de novo sob domínio soviético após o Segundo Conflito Mundial, uma sucessão de Terror Vermelho-Terror Branco-Terror Vermelho.
A Hungria hoje, a Hungria de Orbán, é um país onde se tenta re-escrever a história de acordo com uma agenda nacionalista (um sinal de extremo perigo), um país membro da O.T.A.N. (assim como a Turquia e a Polónia) e da U.E. onde a xenofobia e a concentração de poderes se exibem sem vergonha, onde o primeiro-ministro, mais uma vez sem pruridos, proclama o desejo de construção de uma democracia iliberal non-Western e admira abertamente Vladimir Putin, onde a imprensa não é livre, onde a lei eleitoral foi alterada de modo a favorecer o seu partido, onde os tribunais têm cada vez menos independência e onde o primeiro ministro faz o que lhe apetece.
Se Viktor Orbán não tem mostrado hostilidade directa contra os judeus e os ciganos, a necessária condenação dos grupos que o têm feito não tem sido devidamente convincente. Paralelamente, o Primeiro-Ministro parece mostrar simpatia por alturas da história da Hungria em que se esta dominava território hoje pertencente a países vizinhos. Tudo isto num país que se revelou como um dos mais abertamente adversos ao domínio soviético durante a época da Cortina de Ferro.
Se Orbán, Erdogan, Netanyahu ou Kaczynski estão no poder é porque há uma vasta base conservadora popular que se identifica com as suas propostas. Tem sido difícil ao eleitor urbano supostamente mais sofisticado e educado entender esta gigantesca força silenciosa que não faz barulho na rua mas apoia em massa (basta votar) propostas políticas musculadas e rejeita liberalismos modernaços.
É aqui que se coloca a questão de saber se existe neste poderoso grupo uma força conservadora nostálgica ou uma força fraca que necessita de um poder forte que não questiona, que olhe por eles e que garanta um modelo de ordem que parece – a este complexo mental – não existir nas sociedades ocidentais liberais. Assim, como li algures num artigo cuja proveniência não recordo, o novo autoritarismo nasce também daquilo que no Ocidente parece ser uma falta de autoridade e um excesso de liberdades. O que em Portugal se chama: ela-havia-de-ser-minha-filha-a-ver-se andava-assim-na-rua.
Pensar na falta de tradições democráticas não ajuda a explicar as histórias de sucesso de Portugal, Espanha e da Grécia onde estas não sofrem (ou sofreram nestas últimas 4 décadas) qualquer ameaça significativa.
Acrescenta-se a esta parcela a da exportação de modelos autoritários bem planeados. Os países poderosos que hoje se auto-propagandeiam sem receio como crescentemente autoritários, a China ou a Rússia, têm vindo a criar um modelo que legitima, aos olhos de outros, como a Turquia, muitos países africanos ou os países da Ásia Central antigamente sob o domínio soviético, uma opção que limita as liberdades e a independência do sistema judiciário e se afirma paternalisticamente como dura mas necessária.
A esta necessidade cola-se um poderoso aparelho de propaganda nacionalista que ao liberalismo ocidental pode parecer bacoco e provinciano. Orbán tem elogiado a China, a Rússia, Singapura e a Turquia como modelos.
Falar do modo sistemático e obviamente muito bem planeado como a China tem tentado exportar o seu modelo (sedutor porque inclui crescimento económico e afirmação internacional) seria matéria para outras linhas.

7 Jun 2016

A propósito de águas

Após semanas de angustiante espera saíram as listas da Drinks International dos melhores e mais trocados – nos melhores bares – espíritos, cervejas e águas do ano. Uísques, gins, vodkas, águas tónicas e não, até champagnes e cervejas merecem atenção.
Interessam-nos de sobremaneira as águas porque uma leitura das escolhas do ano revela vários nomes que se encontram com facilidade no território. Infelizmente o mesmo não se pode dizer das águas tónicas, uma vez que em supermercados e outras lojas do território se continua a encontrar apenas uma ou duas marcas aborrecidas.
O Relatório Anual oferece dois tipos de consideração por cada bebida: Best Selling Brands e Top Trending Brands, a primeira baseada no número de garrafas vendidas (repito, nos melhores bares de acordo com a D.I.) e a segunda baseada em nomes que estão na moda e que têm sido muito pedidos. Marcas da moda numa altura em que tudo está na moda.
A Fever-Tree é não só a mais vendida das águas tónicas como é a mais encomendada. Está na moda, não há nada a fazer. A Schweppes é a segunda mais vendida e a Fentiman’s a terceira (considerada por alguns como tendo um sabor intenso que interfere demasiado com os espíritos a que se adiciona). As mais in-fashion são a Fever-Tree, a Fentiman’s e a Schweppes. A Q Tonic, menos doce e menos calórica, (é uma questão de gosto) também está muito bem classificada.
Em Macau há Fever-Tree no bar do Ritz-Carlton, pelo menos. Na minha opinião, insisto em afirmar que o Gin Tónico é uma bebida muito simples e que se alcança domesticamente com facilidade. Basta o Gin de que se gosta, uma confecção correcta do gelo feito no dia com uma água pouco mineralizada, água tónica com bom gás, bom limão e uma disposição positiva.
A escolha das águas minerais espelha também (como aliás as escolhas de todas as bebidas) o poder das grandes marcas internacionais, a sua capacidade publicitária e de distribuição, um capitalismo aquífero. A marca mais vendida e mais in-trend é a San Pellegrino.
Nada tenho contra a San Pellegrino e o seu alto teor de sulfatos, uns brutais 549 mg por litro (por exemplo: Badoit 40; San Benedetto 5) ajudam a combater excessos alcoólicos ou gastronómicos, um auxílio de alto preço. Mas é pena que da Itália, onde existem, caso inultrapassável, mais de 600 marcas de água – para além de ser o país que mais a consome – não cheguem aos bares e mesas domésticas muito mais marcas para além desta vencedora, da Acqua Panna (a minha água lisa preferida) e a San Benedetto.
No Japão existem mais de 450 marcas de água mas não há nenhuma que se tenha imposto no mercado, possivelmente porque não é bebida que seja reconhecida no próprio país como importante.*
As mais vendidas nos melhores bares do mundo, segundo a Drinks International são: 1. San Pellegrino, 2. Acqua Panna, 3. Perrier, 4. Evian, 5. Vichy, 6. Fiji, 7. Mountain Valley, 8. Hildon, 9. Antipodes e 10. Strathmore. Destas apenas a 7 e a 10 tenho a certeza de nunca ter visto em Macau.
O mercado é muito flutuante. Há muito que não vejo à venda duas das minhas águas preferidas, ambas alemãs, a Gerolsteiner e a Apollinaris. A Antipodes existia no O.T.T. mas não sei se permanece.

Nota importante: Como já aqui foi dito em artigo exclusivamente dedicado a águas a propósito de livro de Mascha: “no território(…)vivemos abençoados, protegidos, pela presença de um número decente de excelentes águas portuguesas, da das Pedras à Vidago ou à Carvalhelhos”. Águas lisas há muitas.
As águas no topo da moda são: 1. San Pellegrino, 2. Perrier, 3. Acqua Panna, 4. Antipodes, 5. Fiji, 6. Mountain Valley, 7. Topo Chico 8. Vichy 9. Hildon e 10. Evian.

Outras notícias: 1. Dos Champagnes indicados como os mais vendidos e mais requisitados do ano praticamente todos se encontram com facilidade em Macau, marca da eficácia da distribuição e garantia de alegrias vastas. Esta categoria ilustra à perfeição a diferença entre marcas mais vendidas e marcas na moda, up-trending em bares do momento: A mais vendida, a Moët & Chandon, não figura sequer no grupo das 10 mais requisitadas nos bares mais na moda.
Na cerveja a Carlsberg é a terceira mais vendida mas nem aparece na segunda lista. A Peroni é a primeira das duas listas. As escolhas de cerveja espelham a predominância (ainda) das lagers, uma tendência com uma história relativamente curta, modelo perfeito de como 2 ou 3 marcas conseguiram impor a nível mundial uma preferência por um tipo de cerveja muitas vezes desinteressante. Como é que alguém pode beber Carlsberg ou Heineken é um profundo mistério. As japonesas estão bem representadas e aproveite-se para lembrar que não há cervejas japonesas más.
Os 3 Top-trending uísques são japoneses, um exemplo revelador de como uma boa distribuição, alta qualidade e paciência transformam o mercado.
Ketel One, Grey Goose, Absolut, Stolichnaya, Belvedere, Aylesbury Duck, Zubrowka, Beluga e Ciroc são os vodkas que figuram nas 2 listas. Apenas grandes marcas internacionais.
2. A D.I. apresenta igualmente a lista dos melhores cocktails clássicos do ano, o primeiro dos quais é um Old Fashioned, seguido do Negroni, Manhattan, Daiquiri, Dry Martini, etc., até ao número 50, um tiki com rum e cognac.
Os mais atentos terão reparado que se deslocaram a Macau, ao bar do Hotel Mandarin, num fim de tarde, 2 mixordeiros conhecidos do bar Please Don’t Tell de Nova Iorque, figurante da lista dos melhores bares da D.I., já aqui também apreciada. Apresentaram 6 cocktails clássicos que não desiludiram.
3. Abriu recentemente, para lá do bar do Hotel Ritz-Carlton e do bar do Hotel-Residências Ascott, ambos aqui descritos, um bar no Hotel St.Regis, não revisto ainda. As fotografias prometem um bom sítio.

* Michael Mascha, autor do atraente livro sobre águas Fine Waters, já aqui revisto, estima existirem umas três mil marcas de água, 50% das quais italianas, japonesas, alemãs ou francesas.

2 Fev 2016