Museu Berardo | Lisboa recebe exposição de Ung Vai Meng e Chan Hin Io

Guilherme Ung Vai Meng e Chan Hin Io decidiram formar o colectivo YIIMA, que se dedica a captar lugares e memórias de Macau que deixaram de existir pela força do desenvolvimento económico e dos novos tempos. A exposição é inaugurada a 6 de Novembro no Museu Berardo, em Lisboa, e conta com a curadoria de João Miguel Barros

 

[dropcap]S[/dropcap]ão 40 obras expostas em cinco salas do Museu Berardo, em Lisboa, que revelam aquilo que Macau ainda agora deixou de ser. Guilherme Ung Vai Meng, artista conceituado em Macau, conhecido sobretudo pelo desenho, ex-presidente do Instituto Cultural, juntou-se a Chan Hin Io, que trabalha sobretudo em fotografia documental, e decidiram fundar o colectivo YIIMA.

Este colectivo mostrou, recorrendo à fotografia, vídeo ou instalação, os lugares históricos de Macau que as novas gerações vão deixar de poder ver de perto. João Miguel Barros, ele próprio fotógrafo e curador desta mostra, resolveu dar-lhe o nome de “(Des)Construção da Memória”, por ela não “registar a memória de um tempo linear e cronológico”.

“Não é, tão-pouco, o desfilar de uma memória construída a partir de factos sistematizados, que permita revisitar a história de modo estruturado ou científico. É, antes, uma forma de os artistas olharem livremente o passado, confortavelmente instalados no presente”, escreveu o curador sobre a exposição.

Ao HM, João Miguel Barros revelou que foi a amizade com Guilherme Ung Vai Meng que o fez conhecer de perto estas obras. “São trabalhos que incidem numa recolha de situações de Macau mas trabalhadas numa perspectiva artística.”

“A grande preocupação dos dois tem a ver com o património e a memória de Macau, a identidade cultural e o desaparecimento de muitos elementos culturais e urbanísticos do território. Quando perceberam as grandes transformações a que Macau tem estado sujeito, os dois artistas foram fazendo um registo desses lugares para que não se perdessem, fazendo uma base de dados de todos os elementos que estavam nesses locais”, acrescentou o curador.

O “antes e depois” destes lugares não ficou registado apenas em fotografia documental, mas através da realização de performances artísticas ou vídeos. A “(Des)Construção da Memória” apresenta “uma mistura completamente diferente, com uma particularidade”, aponta o curador.

“Em todas as fotografias tanto Ung Vai Meng como Chan Hi Io surgem vestidos de anjo como sendo protagonistas do momento. Estas fotografias são o resultado de uma preparação muito intensa. Vamos também ter os desenhos feitos por Ung Vai Meng antes das fotografias terem sido tiradas”, frisou o curador.

Celebrar Macau e China

Esta mostra visa comemorar não apenas os 20 anos da transferência de soberania de Macau para a China, mas também os 40 anos de estabelecimento de relações diplomáticas entre China e Portugal.

Para João Miguel Barros, “há aqui uma forte carga simbólica”, além de considerar esta exposição importante porque “recupera memórias de Macau”. “Se não fosse este trabalho que os dois autores têm vindo a fazer, estavam perdidas”, assegura João Miguel Barros, que destaca também o facto de se tratar de um “trabalho inédito”.

A exposição “(Des)Construção da Memória” está estruturada em cinco partes: “Memória”, “Ritualismo”, “Leveza”, “Cerimónia” e “Paraíso”. De acordo com o prefácio escrito por Ung Vai Meng e Chan Hin Io, constante no catálogo da exposição, as imagens que fazem parte da secção “Memória” são “delicadas e historicamente mais sensíveis”, incluindo “cenas da realidade social e de reconstrução de acontecimentos passados de Macau”.

Em “Ritualismo” existe um “espaço de memória constituído por fotografias que têm como denominador comum estruturas de bambu”. Nesta parte da exposição, uma grande escultura de bambu que representa a síntese entre o túmulo octogonal existente no Mosteiro da Batalha e o estilo típico do pavilhão chinês.

Na secção “Leveza” apresenta-se um vídeo realizado numa sala secreta da cidade antiga de Macau. Em “Cerimónia”, apresentam-se “imagens registadas num espaço anteriormente utilizado pela indústria e pelo comércio marítimo, e que agora se encontra esquecido e abandonado”.

Finalmente, “Paraíso” constitui “o núcleo mais relevante desta exposição”, por conter obras que “retratam o mundo original de pessoas comuns e que foram pensadas com um propósito especial, uma vez que o interior de cada um dos espaços seleccionados está repleto de símbolos e objectos existentes no concreto tempo em que a acção foi registada”.

No final da sala de exposições, está exposto um gigantesco trabalho realizado no antigo Tribunal Judicial de Macau, para que os visitantes possam pensar e debater questões como “pátria espiritual”, “libertação” e “vazio”, apontam os artistas.

24 Out 2019

Museu Berardo | Lisboa recebe exposição de Ung Vai Meng e Chan Hin Io

Guilherme Ung Vai Meng e Chan Hin Io decidiram formar o colectivo YIIMA, que se dedica a captar lugares e memórias de Macau que deixaram de existir pela força do desenvolvimento económico e dos novos tempos. A exposição é inaugurada a 6 de Novembro no Museu Berardo, em Lisboa, e conta com a curadoria de João Miguel Barros

 
[dropcap]S[/dropcap]ão 40 obras expostas em cinco salas do Museu Berardo, em Lisboa, que revelam aquilo que Macau ainda agora deixou de ser. Guilherme Ung Vai Meng, artista conceituado em Macau, conhecido sobretudo pelo desenho, ex-presidente do Instituto Cultural, juntou-se a Chan Hin Io, que trabalha sobretudo em fotografia documental, e decidiram fundar o colectivo YIIMA.
Este colectivo mostrou, recorrendo à fotografia, vídeo ou instalação, os lugares históricos de Macau que as novas gerações vão deixar de poder ver de perto. João Miguel Barros, ele próprio fotógrafo e curador desta mostra, resolveu dar-lhe o nome de “(Des)Construção da Memória”, por ela não “registar a memória de um tempo linear e cronológico”.
“Não é, tão-pouco, o desfilar de uma memória construída a partir de factos sistematizados, que permita revisitar a história de modo estruturado ou científico. É, antes, uma forma de os artistas olharem livremente o passado, confortavelmente instalados no presente”, escreveu o curador sobre a exposição.
Ao HM, João Miguel Barros revelou que foi a amizade com Guilherme Ung Vai Meng que o fez conhecer de perto estas obras. “São trabalhos que incidem numa recolha de situações de Macau mas trabalhadas numa perspectiva artística.”
“A grande preocupação dos dois tem a ver com o património e a memória de Macau, a identidade cultural e o desaparecimento de muitos elementos culturais e urbanísticos do território. Quando perceberam as grandes transformações a que Macau tem estado sujeito, os dois artistas foram fazendo um registo desses lugares para que não se perdessem, fazendo uma base de dados de todos os elementos que estavam nesses locais”, acrescentou o curador.
O “antes e depois” destes lugares não ficou registado apenas em fotografia documental, mas através da realização de performances artísticas ou vídeos. A “(Des)Construção da Memória” apresenta “uma mistura completamente diferente, com uma particularidade”, aponta o curador.
“Em todas as fotografias tanto Ung Vai Meng como Chan Hi Io surgem vestidos de anjo como sendo protagonistas do momento. Estas fotografias são o resultado de uma preparação muito intensa. Vamos também ter os desenhos feitos por Ung Vai Meng antes das fotografias terem sido tiradas”, frisou o curador.

Celebrar Macau e China

Esta mostra visa comemorar não apenas os 20 anos da transferência de soberania de Macau para a China, mas também os 40 anos de estabelecimento de relações diplomáticas entre China e Portugal.
Para João Miguel Barros, “há aqui uma forte carga simbólica”, além de considerar esta exposição importante porque “recupera memórias de Macau”. “Se não fosse este trabalho que os dois autores têm vindo a fazer, estavam perdidas”, assegura João Miguel Barros, que destaca também o facto de se tratar de um “trabalho inédito”.
A exposição “(Des)Construção da Memória” está estruturada em cinco partes: “Memória”, “Ritualismo”, “Leveza”, “Cerimónia” e “Paraíso”. De acordo com o prefácio escrito por Ung Vai Meng e Chan Hin Io, constante no catálogo da exposição, as imagens que fazem parte da secção “Memória” são “delicadas e historicamente mais sensíveis”, incluindo “cenas da realidade social e de reconstrução de acontecimentos passados de Macau”.
Em “Ritualismo” existe um “espaço de memória constituído por fotografias que têm como denominador comum estruturas de bambu”. Nesta parte da exposição, uma grande escultura de bambu que representa a síntese entre o túmulo octogonal existente no Mosteiro da Batalha e o estilo típico do pavilhão chinês.
Na secção “Leveza” apresenta-se um vídeo realizado numa sala secreta da cidade antiga de Macau. Em “Cerimónia”, apresentam-se “imagens registadas num espaço anteriormente utilizado pela indústria e pelo comércio marítimo, e que agora se encontra esquecido e abandonado”.
Finalmente, “Paraíso” constitui “o núcleo mais relevante desta exposição”, por conter obras que “retratam o mundo original de pessoas comuns e que foram pensadas com um propósito especial, uma vez que o interior de cada um dos espaços seleccionados está repleto de símbolos e objectos existentes no concreto tempo em que a acção foi registada”.
No final da sala de exposições, está exposto um gigantesco trabalho realizado no antigo Tribunal Judicial de Macau, para que os visitantes possam pensar e debater questões como “pátria espiritual”, “libertação” e “vazio”, apontam os artistas.

24 Out 2019

Exposição põe obras de artistas portugueses e chineses a dialogar

[dropcap]U[/dropcap]ma exposição de arte contemporânea, que põe em diálogo 16 artistas portugueses e chineses, em torno do sentimento saudade e explorando materiais diversos, como tela, tintas, tapeçaria, madeira ou vídeo, é inaugurada esta sexta-feira, no Museu Berardo, em Lisboa.

Com curadoria de Yuko Hasegawa, directora artística do Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, a exposição “Saudade, China & Portugal – Arte Contemporânea” gira em torno daquela palavra portuguesa “intraduzível”, que “transmite o desejo de um momento passado que pode ser permanentemente inatingível”, explicou.

“Em vários sentidos, esta palavra fala da nossa situação actual — na qual, devido ao desespero esmagador causado pela incerteza do presente e do futuro, o doce passado parece tão acolhedor”, afirmou a curadora.
Centrando-se nesta ideia, Yuko Hasegawa quis “criar um diálogo entre portugueses e chineses, entre dois povos completamente diferentes” e, para tal, pegou “na questão da globalização”, e de toda a instabilidade daí decorrente, para apresentar a saudade como “um calmante eficaz”, acrescenta a curadora.

Neste sentido, Yuko Hasegawa seleccionou 16 artistas de Portugal e da China, em cujas expressões se destacam “três conceitos: diversidade, festividade e ambiguidade, todos eles trabalhados em torno do sentimento saudade”.

Tintas e carvão

A visita à exposição inicia-se com três grandes quadros, de guache e caneta gel sobre papel, em vários tons de azul, da autoria do artista plástico Rui Moreira, que, para este trabalho, partiu da questão “de onde vem o sonho”.

Segundo a curadora, as pinturas de Rui Moreira levam o observador a um “estado de sonambulismo permanente”, que faz lembrar a vida vivida com saudade.

Um incêndio em Trás-os-Montes e a imagem de girassóis a arder, uma frase de um livro de Roberto Bolaño, o filme “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog, e as paisagens desérticas foram alguns dos elementos inspiradores desta obra, contou o artista aos jornalistas.

Rui Moreira segue depois para um outro conjunto de três quadros – em guache, caneta de gel, tinta da china e lápis sobre papel – o primeiro dos quais, inspirado na sua paternidade, simboliza o nascimento, o segundo simboliza “a morte de um pai espiritual” e tem a ver com a morte de Herberto Helder, e o terceiro representa a fase de “matar o dragão”, ou seja, matar os sentimentos que atrasam a entrada na maturidade, tais como medo, raiva ou inveja.

Tecidos e xilogravuras

Outras peças em destaque são as grandes xilogravuras do artista plástico chinês Sun Xun, que pretendem mostrar que há mais do que arte contemporânea numa exposição de arte contemporânea – também há história.
A primeira peça é um tríptico intitulado “Flor”, composto de xilogravuras – representando um grande vaso de flores – cravejadas com fósseis, pedras e âmbar.

Inspirado na pintura holandesa do século XVIII, este trabalho de Sun Xun faz lembrar a parede de um museu de História, coberta de “objectos históricos”, genuínos e falsos, e de pinturas, explica Yuko Hasegawa.
André Sousa é outro dos artistas portugueses incluídos nesta mostra, com uma composição de cortinas – cada uma com a sua própria narrativa, inspirada por um acontecimento em determinado momento – dispostas em suspensão, para “criar espaços de tensão”, e formando uma semicircunferência, o que explica o título da obra: “1/2 Roulette”.

Estas cortinas são símbolos, ou um álbum, da jornada pessoal do artista na percepção que tem do mundo e na sua experiência.

André Sousa especificou que são várias as situações e imagens que as suas pinturas nos tecidos – uma de cada lado de cada pano – aludem: livros do século XX, viagens à China e ao Japão, a roleta russa e a cultura do jogo na China, os quadros pretos de ardósia da infância, ou o livro do escritor Venceslau de Morais, “Paisagens da China e do Japão”.

Esculturas, óleos e multimédia

A artista Luísa Jacinto apresenta quadros de acrílico e óleo sobre tela, bem como um vídeo, que se situam entre a figuração e a abstração, nos quais está “muito presente a ideia de vertigem”, explicou a própria.

Joana Vasconcelos está presente com quatro obras, uma das quais – “Valkyrie Marina Rinaldi” – ocupa o centro de uma sala, e consiste numa peça de grandes proporções, feita com croché em lã, tecidos, adereços, insuflável, e cabos em aço, numa espécie de grande dragão de “ricos ornatos, decorações preciosas, tecidos opulentos e uma multitude de técnicas manuais como o croché”, como descreveu a curadora.

As outras três peças, são esculturas cobertas de azulejos Viúva Lamego, mosaicos em pastilha, croché em lã, adereços, polyester, LED, sistema eclétrico, contraplacado e ferro.

A abrir a exposição há uma escultura monumental tridimensional, da autoria de José Pedro Croft, que convida o observador a ver-se no vidro espelhado e a tornar-se parte da obra.

A exposição, que vai estar patente no Museu Colecção Berardo, de 17 de Novembro até 6 de Janeiro de 2019, é uma co-produção com a Fundação Fosun e conta com trabalhos de Vasco Araújo, Pedro Valdez Cardoso, José Pedro Croft, Leng Guangmin, Tao Hui, Luísa Jacinto, Liu Jianhua, Rui Moreira, Cheng Ran, André Sousa, Joana Vasconcelos, Guan Xiao, Sun Xun, Shi Yong, Xia Yu e Liang Yuanwei.

16 Nov 2018

João Miguel Barros, fotógrafo, sobre a sua exposição no Museu Berardo: “Para ser vista como quem lê um livro”

É inaugurada hoje, no Museu Berardo em Lisboa, a exposição de João Miguel Barros “Photo Metragens”. São 14 histórias traduzidas em imagens, palavras e vídeo dentro de um projecto que não se fica por aqui

[dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver em “Photo-Metragens”?
“Photo-Metragens” é uma exposição que é para ser vista como quem lê um livro de shortstories. É uma síntese adequada, penso eu, do que é este projecto que inclui imagem, palavras e vídeo. Trata-se, portanto, de uma exposição que inclui 127 imagens, a maioria em grandes formatos, em A0 e até maiores. A exposição está organizada a partir de 14 capítulos, com um número diversificado de imagens. Uma das particularidades é que cada capítulo inclui um texto ficcionado, de que é parte integrante. Finalmente, um desses capítulos tem também um vídeo de quase uma hora. Esta é a edição de 2018. Quer isto dizer que este projecto está pensado para ter continuidade no futuro. Tenho o propósito de fazer edições da “Photo-Metragens” a cada dois anos, com o mesmo formato e obviamente com estórias diferentes. Sempre com imagem e textos ficcionados, e provavelmente com uma componente maior de vídeo. Algumas das imagens, correspondendo sensivelmente a um/quarto do que será exposto no Museu Berardo, foram já mostradas na exposição que fiz em Fevereiro do ano passado na Creative Macau. Tudo o resto é material novo. Mas mesmo as fotografias que já foram exibidas, foram, entretanto repensadas, e muito apuradas. As imagens que vão ser mostradas em Lisboa são as versões finais e últimas do projecto e não serão repetidas.

Como é que surgiu a ideia de contar estas estórias?
Surgiu como resposta à ideia politicamente correcta de que as exposições têm de ter uma narrativa. Não é algo com que concorde em absoluto, mas resolvi não contrariar o “destino”… Eu ainda não tenho nenhum projecto temático devidamente estruturado e com dimensão que possa ser mostrado autonomamente. E o honroso convite do Museu Berardo colocou-me um desafio interior, que tive de resolver e que, confesso, demorou algum tempo a estruturar. No fundo, tudo se resumia a dar uma certa unidade conceptual a um projecto artístico assente na imagem, a que eu depois juntei a escrita, e que tivesse alguma “lógica”. O espaço do Museu, bastante generoso aliás, que foi destinado a esta exposição, acabou por ser inspirador do resultado final. E foi a partir daí que cheguei ao resultado da “exposição que se vê como quem lê um livro de short-stories”. Um livro de contos é um conjunto de estórias, com autonomia entre si e que versam temas por vezes muito diferentes. “Photo-Metragens” é um pouco isso. Cada capítulo inclui uma história independente. E penso que é essa diversidade que lhe dá a riqueza do conteúdo. Deixe-me ainda acrescentar o seguinte. Cada capítulo da exposição contém uma estória que pode ter potencial para ser desenvolvido autonomamente. E, depois, seguir um caminho independente. E, provavelmente, isso irá acontecer num futuro próximo em relação a uma dessas short-stories, que tem potencial para se transformar numa long-story. Vamos ver.

Como pensou a exposição e a relação concreta com o espaço?
Esta exposição foi pensada não só em função do espaço, como não podia deixar de ser, mas também na sua forma de representação. Quem a visitar não irá encontrar apenas imagens presas à parede. Por exemplo, o primeiro capítulo chama-se “Sentido Único” e é, em rigor, uma grande instalação de trinta imagens em formato A2, que estão colocadas no interior de uma moldura de mais de 4 metros de largura por quase três de altura, sendo que as ampliações estão presas em cabos de alumínio esticados de alto a baixo dessa moldura. A solução de imagens suspensas em cabos metálicos finos foi adoptada em mais dois capítulos da exposição. Por outro lado, houve um cuidado especial com a iluminação, que exigiu um estudo detalhado e soluções novas devido às qualidades do papel que utilizo, que é um papel profissional metalizado, mas que reflecte muito a luz. Este papel projecta as imagens de forma diferente do que é normal, mas cria dificuldades acrescidas em relação ao tipo de iluminação a adoptar.

Que tipo de histórias nos conta?
Encontram-se no conjunto temáticas muito diferenciadas, desde a paisagem ao boxe, ao trabalho nocturno e à sombra dos holofotes, às árvores (que é um tema que me fascina), e ao movimento corporal.

Pode dar um exemplo concreto?
O capítulo primeiro, “Sentido Único”, que referi, é composto por 30 imagens que são detalhes de um enorme viaduto em Xangai, que tem vários níveis de circulação. Quando se olha para o conjunto a sensação que se tem é a de se estar perante um puzzle confuso de detalhes. Ou seja, a percepção que transmite é justamente a oposta daquela que o título induz. Mas, na verdade, não há na vida sentidos únicos e há sempre a possibilidade de seguir por caminhos diferentes. Outro dos capítulos deu o título à exposição de Macau. Chama-se “Entre o Olhar e a Alucinação” e é composta por um tríptico com uma imagem quase lunar e, depois, a misteriosa silhueta de um cão a olhar para outro. Mas o capítulo que provavelmente poderá chamar mais atenção é o que retrata alguns momentos de um intenso combate de boxe a que assisti em Macau. São imagens fortes. Esse capítulo chama-se simplesmente Homenagem, mas, na verdade, era para se chamar “Homenagem a um Perdedor”, porque se centra num lutador negro do Gana, que perdeu o combate.

“Um olhar que possa registar todos os pormenores até à complexidade das coisas, que através de uma minuciosa observação e num exercício de natureza sensível ou intelectual permita que as imagens nos saibam devolver e suscitar afectos e memórias”. Pode comentar esta afirmação?
Todos nós vivemos uma vida intensa e complexa em termos visuais, emocionais e ocupacionais. Tudo nos solicita, tudo nos ocupa e, simultaneamente, tudo nos distrai. Quando se faz fotografia o nosso olhar é ajustado e muda por vezes radicalmente a forma de vermos o que nos rodeia. Olhamos em volta e muitas vezes o que ressalta é o ângulo que poderia dar um bom registo, o detalhe que serviria para fazer uma excelente fotografia e por aí adiante. Algumas das imagens da Photo-Metragens são de uma enorme simplicidade. Por vezes são registos de uma certa banalidade. E apenas isso. Mas podem ser, também, uma surpresa porque as nossas permanentes solicitações muitas vezes não nos deixam tempo para esse registar das coisas pequenas que, por vezes, são maiores do que podemos supor.

A exposição é com imagens a preto e branco. Por quê? 
Eu fiz uma opção, que posso dizer incondicional, pela fotografia a preto e branco. Estou convicto de que dificilmente irei alterar este caminho. E ao longo dos anos, depois de muitas exposições já visitadas, de idas regulares às feiras de fotografia, o meu olhar tem vindo a ser treinado, cada vez mais, tornando óbvia a opção pela fotografia a preto e branco. Não tenho nada contra a cor, como é óbvio. Há fotografias e trabalhos a cor fabulosos e que, provavelmente, sem essa opção da cor perderiam alguma coisa. Muitas delas têm justamente como objectivo o contraste que as cores permitem e o efeito emocional que podem transmitir. Mas esse não é o lado que me interessa. O meu problema com a cor na fotografia é que nos pode distrair tremendamente do objecto e da essência do objecto registado. É um outro registo, e que acaba por se sobrepor a tudo.

Faça a experiência. Entre num espaço com trabalhos expostos e olhe de forma genérica e abstracta. O que capta em primeiro lugar são as diferenças cromáticas do que tiver à frente, e não as formas retratadas. É, antes, a intensidade dos vermelhos, ou dos azuis, e de outras cores, o modo como essas cores se espalham e ocupam o espaço impresso. Só depois, num segundo momento, e quando se conseguir abstrair ou recompor desse choque cromático, é que consegue entrar na essência da imagem. Isto se a essência não for, obviamente, o tal choque cromático porque, nesse caso, fica por aí!

A minha opção pelo preto e branco é claramente uma opção pela substância e pela prevalência do conteúdo que normalmente só a fotografia a preto e branco permite.

Onde recolheu as imagens?
Foram escolhidas um pouco em vários sítios. Mas a maioria é da Ásia e de Portugal.

O que diria da mediatização/banalização da fotografia na actualidade?
A sua pergunta seria um bom pretexto para uma outra conversa, em especial se a questão da mediatização da imagem se associasse à manipulação da imagem ou, a um outro nível, se se pensasse nos diversos veículos que as sociedades contemporâneas têm para que a fotografia se projecte nesse espaço mediatizado. E para a conversa ter utilidade teríamos de distinguir vários níveis de questões sobre essa ideia de “mediatização da fotografia”. Mas essa não é o tema de hoje. O que agora me parece de evidenciar é que os meios de comunicação formais e informais vieram dar actualidade à fotografia, dando-lhe uma importância acrescida no contexto das sociedades contemporâneas. Nos últimos tempos tenho-me interrogado é sobre um outro fenómeno que decorre dessa mediatização: o modo como se tem valorizado a fotografia como objecto de arte com valor nos mercados de arte. A fotografia é actualmente um bem artístico relevante, graças a essa mediatização. Há obras que começam a atingir valores significativos, criando um mercado de investimento importante e com um potencial de crescimento muito grande. Mas há perversões. Porque essa mediatização valoriza no mercado o bom, mas, algumas vezes, o mau e muito mau. Como também permite que facilmente se possa esquecer o bom e o muito bom.


© João Miguel Barros

#04 Homenagem

Ainda menino usava panos enrolados nas mãos para bater em sacas cheias de farinha. Enrijava os músculos, ouvira dizer. Queria crescer com o corpo cheio, acima de tudo para chamar a atenção das miúdas mais engraçadas do bairro. Eram essas as suas rotinas de tempos livres, demasiado livres.

Mais velho, começou a usar o corpo em combates a sério. Alimentava-se da ânsia de esmagar o adversário, mostrar o seu lado feroz e implacável, mas já não o de alimentar o sonho de namorar com a mais bonita do bairro. Apenas bater. Para ganhar.

Ao mesmo tempo ia engrossando o corpo, sem tempo para reforçar a fluidez da mente. Sim, sabia bater. Era conhecido por bater forte, de forma implacável, até inteligente. Ganhava. Outras vezes perdia. Mas, a mais das vezes, ganhava.

Com o tempo, e sem tempo, passou a viver enclausurado nas cordas do ringue. Batendo. Levando. Chorando. Rangendo os dentes protegidos. E ocasionalmente sorrindo de raiva. Sim, sorrindo.

No seu último combate perdeu os sonhos da sua vida. Mas saiu inteiro, pelo seu pé, continuando a sorrir.

21 Fev 2018

Trilogia fotográfica de Lu Nan no Museu Berardo

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inaugurada no próximo dia 10, no Museu Berardo, a exposição “Trilogia Fotografias [1989-2004] do fotógrafo chinês Lu Nan. A mostra conta com a curadoria de João Miguel Barros e traz a público parte do trabalho desenvolvido por Lu Nan durante um período de 15 anos.

“A obra de Lu Nan é a projecção moderna (também já datada no tempo) de uma trilogia clássica simbolicamente representada na Divina Comédia de Dante Alighieri”, lê-se na apresentação oficial da exposição, sendo que “cada uma das suas partes são, igualmente, projecções exemplares do que pode ser, na Terra, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso”.

No entanto, e de acordo com o curador, não se trata de um retrato de uma fantasia. As imagens recolhidas durante mais de uma década são “de um realismo cortante, “por vezes doloroso, que impressiona”, refere João Miguel Barros.

Tal como na trilogia dantesca, a mostra está dividida em três partes, correspondentes aos estágios da obra poética: a vida dos hospitais de doenças mentais, as comunidades católicas nas zonas rurais e mais recônditas da China e a que levou Lu Nan a acompanhar a vida quotidiana do Tibete.

De acordo com João Miguel Barros, “o inferno, o purgatório e o céu retratados no trabalho do fotógrafo de Pequim, “é a China de uma época talvez já diferente da actual, como bem poderia ser a realidade de muitos outros países e lugares por esse mundo fora”.

Do povo esquecido às quatro estações

As condições de vida dos doentes psiquiátricos da China constituem a primeira parte da trilogia de Lu Nan. De 1989 a 1990, o fotógrafo contactou com 14 mil doentes mentais em 38 hospitais, espalhados por 10 províncias e grandes cidades do China. As imagens constituem “O Povo Esquecido” é que é apresentada “de forma verdadeira e poderosa, as condições de vida de um estrato social esquecido”, refere o curador.

A viagem continua e encontra o purgatório “Na Estrada: a fé católica na China”. As imagens forem recolhidas entre 1992 a 1996 em que o fotógrafo visitou mais de 100 igrejas, O objectivo foi o de capturar a forma como o amor e a fé se concretizam na vida quotidiana dos crentes. “Mostra que a divindade interior está integrada na vida quotidiana e que, no fundo dos seus corações, é essa a verdadeira Igreja”, comenta João Miguel Barros.

“Quatro estações: o dia-a-dia dos camponeses tibetanos”, terceira e última parte da trilogia, foi produzida de 1996 a 2004. Como o nome indica, o trabalho “acompanha de perto o ciclo das estações, desde a sementeira, na Primavera, à ceifa, no Outono, desde a espera pela colheita, no Verão, até à sobrevivência, durante os meses agrestes do Inverno”.

Tal como as duas primeiras partes da trilogia, “Quatro estações” não se centra no que poderiam ser considerados os grandes acontecimentos da vida. É o quotidiano que interessa é a “vida quotidiana que proporciona uma forma básica de as pessoas aferirem o destino”.

9 Out 2017