Os estranhos penhascos e colinas de Jiang Shen

Mi Fu (1051-1107), pintor, calígrafo e coleccionador de arte e de pedras caprichosamente formadas pela natureza, foi elogiado pelo modo como escrevia, concentrado no movimento elevado do cotovelo e não do pulso que segura o pincel, na expressão e não na perfeição dos caracteres.

As suas sugestivas pinturas de aspecto enevoado também não ficavam marcadas pelo curso do pincel na superfície pintada (wubiji). Em tudo parecia responder ao que está escrito no Zhuangzi sobre «esquecer as palavras depois de entender o seu significado». Na originalidade do seu estilo porém, se não havia explícitas marcas das obras do passado, muitas delas da sua própria coleção particular, reconhecia-se nelas um honesto estudo.

Um modo de proceder próprio dos pintores da dinastia Song, cujas pinturas são o resultado singular de uma informada combinação de elementos aparentemente fortuitos e contrastantes, cujo espelho era a própria natureza. E como ela, com trechos coincidentes e aspectos dissonantes, dependendo da experiência individual do homem que caminha consciente da riqueza de tudo o que o rodeia.

De modo elucidativo isso está manifesto na famosa pintura de Fan Kuan (c. 960-c.1030) Viajantes através de rios e montanhas (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 206,3 x 103,3 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé). A grandiosa majestade do espaço natural, contrastando vivamente com a minuciosa delineação dos pequenos vajantes e mulas carregadas, é parte desse vocabulário.

Outras especifidades resultam de uma cuidadosa atenção às possibilidades expressivas da mutável paisagem ao longo das estações do ano e estão presentes na impressionante pintura de Guo Xi (1020-90) conhecida como Árvores velhas, distância plana (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 35,6 x 104,4 cm, no Metmuseum). Aí se notam os ramos retorcidos como «pinças de caranguejo», que traduzem a emoção que desperta a queda das folhas das árvores no Outono.

Jiang Shen (c.1090-1138), um pintor que nasceu em Xinan (Zhejiang) e que frequentava a casa de família de Mi Fu quando este vivia em Wuxing, cerca de 1136, e adoptando embora algumas das inovações do mestre, como os célebres pontos de tinta de Mi Fu (Mi dian), acabou criando algo novo e estranho. Em dois rolos horizontais que lhe são atribuídos; Montanhas verdejantes (tinta sobre seda, 33,6 x264, 1cm, no Museu Nelson-Atkins, Kansas) e Espaço Infindável de rios e montanhas (tinta sobre seda, 46,3 x 546,5 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) também são visíveis características associadas aos pintores do século X, Juran e Dong Yuan, parte da sua síntese. Muitos anos depois, quando o influente Dong Qichang (1555-1636) expôs a sua própria grande síntese (dacheng) escreveu: «Para pintar colinas em contínuo e cordilheiras penhascosas há que aprender com Jiang Guandao (Jiang Shen)».

29 Jul 2024

Secção do curso Superior do Changjiang (长江上游)

O rio Longo, em chinês Changjiang (长江), conhecido também por rio Yangtzé, ou Yangzi (扬子), é o terceiro maior do mundo, depois do rio Nilo com 6690 km e o Amazonas de 6570 km. Designado por rio Azul, é o maior dos três grandes rios a atravessar a China, tendo 6363 km de comprimento, sendo ainda um dos cinco rios a cruzar o curso do Grande Canal.

As fontes de água do Changjiang encontram-se no planalto tibetano e nas montanhas Kunlun [a Leste da cordilheira dos Pamir e para Oeste do Vale de Sichuan marca o final Norte do Planalto Qinghai-Tibetano] de onde nascem os dois rios, Dangqu (当曲) e o Tuotuo he (沱沱河), que ao se juntarem formam o rio Tongtian (通天河), um dos muitos nomes do Changjiang ao longo do seu percurso.

As duas nascentes estão na montanha de Tanggula (唐古拉山, Serra Dangla): no lado da província de Qinghai, o rio Dangqu tem a fonte a 5170 m de altitude na montanha Xiasheriaba (霞舍日阿巴山, de 5395 metros); e na província do Tibete, o rio Tuotuo (ou Ulan Moron em tibetano) é formado na geleira a Oeste dessa mesma montanha de Tanggula, a Sudoeste do planalto tibetano, no seu mais alto pico Geladaindong.

O Dongqu após 234 km e o rio Tuotuo depois de 336 km, juntam-se e formam o rio Tongtian (通天), que ainda na província de Qinghai percorre 828 km antes de seguir para Sudeste e juntar-se em Yushu (quarta maior cidade de Qinghai) ao afluente rio Batang (巴塘河). Aí, de Yushu Zhimenda (玉树直门达) até Yibin (宜宾) em Sichuan percorre 2308 km e passa a ser conhecido por Jinshajiang (金沙江, rio das Areias Douradas), outro dos nomes do Changjiang. Como rio Jinsha atravessa as províncias de Qinghai, Tibete, Sichuan, Yunnan e volta a Sichuan, onde termina.

Na sua trajectória para Sul, alimentado por múltiplos afluentes, o rio Jinsha ao atingir a província de Yunnan envolve a cidade de Lijiang [localizada no planalto Yungui, ainda pertencente ao planalto Qinghai-Tibete] e pouco depois em Panzhihua, no extremo Sul de Sichuan, recebe as águas do rio Yalong (雅砻江), o mais comprido com 1637 km e principal afluente do Changjiang, proveniente das montanhas Hengduan [junção do planalto Qinghai-Tibete com o planalto Yunnan-Guizhou].

O rio Jinsha (金沙江) passa a correr para Nordeste por a província de Sichuan até Yibin (宜宾), onde termina a uma altitude de 305 metros. Após o afluente Minjiang desaguar em Yibin no Changjiang, este por atravessar Sichuan fica com o nome de Chuanjiang (川江) nos 1040 km até Yichang (宜昌), província de Hubei.

Nos 410 km de Yibin a Chongqing, em Luzhou desagua o rio Tuo proveniente de Leshan e já no extremo Leste da península colina onde o centro de Chongqing se encontra, o afluente rio Jialing junta-se ao Chuanjiang, encontrando-se próximo daí as docas Chaotianmen, onde vamos para embarcar. Após Chongqing, a altitude do Chuanjiang passa a ser de 40 metros, percorrendo 630 km até Yichang (宜昌), onde termina o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km desde as suas duas nascentes.

PERCURSO DAS TRÊS GARGANTAS

Em 1991 chegamos à segunda cidade mais importante de Sichuan, Chongqing com a intenção de realizar de barco a descida do Rio Longo até Wuhan, passando por o famoso cenário turístico das Três Gargantas, numa viagem de três dias. Na compra do bilhete de barco havia a possibilidade de escolha para desembarcar nos portos fluviais de uma série de cidades existentes a jusante do Yangtzé [assim chamado o rio por os estrangeiros].

Em Chongqing inicia-se a parte navegável do rio para navios de grande porte e a viagem até Shanghai (Xangai) dura cinco dias e em sentido inverso, para percorrer os 2400 quilómetros contra a corrente, leva sete dias.

Chongqing desde 1983 tinha já a parte financeira e económica sob o controlo do Governo Central, mas administrativamente os seus treze milhões de residentes pertenciam à província de Sichuan, então com 100 milhões, a mais populosa da China. Em 1997, devido à necessidade de construir a Barragem de Sanxia [三峡壩, das Três Gargantas] deixou de pertencer a Sichuan e tornou-se o Município Administrativo de Chongqing.

Aquando da nossa primeira viagem por o Changjiang em 1991 ainda não havia referência alguma à Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), cuja decisão governamental ocorreu no ano seguinte, ficando a obra pronta em 2008, tornando-se a maior barragem do mundo.

Quando possível, o barco é um bom meio para viajar no centro e Sul (a parte mais populosa da China), sobretudo nas deslocações feitas por o interior. Apesar de vagarosas, são agradáveis viagens. Por água, [lembrar estarmos em 1991], conseguimos fugir às enchentes dos comboios e às más estradas do interior do país. Devido à lentidão deste transporte, a permitir repousadamente saborear a paisagem e a possibilidade de conviver com os chineses, faz dele um meio privilegiado. Esta vez o rio sofre uma cheia a inundar os campos, aumentando bastante a largura entre as margens.
O barco partiu de Chongqing às 7 horas da manhã e após parar em Fuling e Fengdu, ancorou na margem esquerda do rio às 18 h em Wanxian, um dos dez importantes portos do rio. [Chamado agora Wanzhou, devido à construção da barragem perdeu quase metade da sua área urbana.]
De Wanxian saímos às 4 horas para a partir das 8 da manhã navegar na zona das Três Gargantas e chegar a Yichang às 16 horas.

Pouco depois de Wanxian, na mesma margem aparece Yunyang, onde atravessando o rio, na margem direita se encontra o Templo de Zhang Fei.

Segue-se Fenhjie (Yong’an), antiga cidade capital do reino Kui durante a dinastia Zhou de Leste (771-256 a.n.E.), e para Leste após oito quilómetros inicia-se a Garganta Qutang. À sua entrada, na margem esquerda aparece a povoação-fortaleza de Baidi (Cidade do Imperador Branco, ou Celeste Dragão Branco).

Aí, há mais de dois mil anos teve origem o antigo reino Bashu [a cultura Bashu tardia terá começado nos finais do Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.) e com doze gerações de governantes durou até 316 a.n.E., quando o reino Qin eliminou os Ba]. Já no Período dos Três Reinos, Baidicheng foi o local para o governante do reino Shu, Liu Bei (161-223) se retirar após derrotado por o reino Wu e ao sentir-se muito doente, entregou o filho Liu Chan a Zhuge Liang, o seu primeiro-ministro, para o orientar na governação; episódio conhecido por “Confiar o órfão em Baidi”.
Navegando oito quilómetros entre altas falésias na Garganta Qutang, dizem-nos poder aí ver incrustados a meio da montanha caixões suspensos do povo Ba.

A seguir aparece a Garganta Wu com 45 km de comprimentos e falésias em ambos os lados, onde no ano de 208 terá sido firmada a aliança entre os reinos Shu e Wu contra o Wei. Esta segunda garganta termina em Badong, na margem direita do rio e onde vive a minoria Miao e Tujia, que no passado desde as margens puxavam com cordas os barcos rio acima.

Pouco depois, na margem esquerda do rio encontra-se Zigui (Maoping), o início da última das três famosas gargantas, Xilingxia, a mais comprida delas com 76 km. [No percurso desta garganta encontra-se construída em Sandouping, no distrito de Yiling, desde 2008 a Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), onde a profundidade não natural, mas criada das águas do rio é de 320 metros.]

Por fim, após 38 km está a comporta Gezhouba a deixar a embarcação numa cota cinco metros mais abaixo. Nos 200 km entre Fengjie e Yichang a largura do Chuanjiang varia entre os 300 e menos de 100 metros, dependendo da estação do ano.
Em Yichang termina o Curso Superior do Changjiang e o barco faz a primeira grande paragem.

DE BARCO ATÉ WUHAN

De Yichang, a viagem de barco já no curso médio do Changjiang (长江中游) levou 22 horas até Wuhan. Ainda na margem do lado esquerdo do rio, agora chamado Jingjiang, apareceu pouco depois Jingzhou (província de Hubei).

Seguiu-se Yueyang (o único porto internacional de Hunan) situada na margem direita e onde o lago Dongting a Nordeste se liga às águas provenientes do rio Longo. A localização do lago criou o nome das duas províncias, Hubei (a Norte do lago) e Hunan (a Sul do lago). De Yueyang, o Changjiang corre para Nordeste e por a província de Hubei vai até à sua capital Wuhan, onde o rio Han após percorrer 1532 km se torna seu afluente.

O Hanshui (汉水) nasce na parte Sul das montanhas Qin (秦岭, Qinling) e percorrendo-as em longitude por o vale criado com a parte Norte das montanhas Daba [a separar Sichuan e Chongqing], passa na cidade de Hanzhong e do Sudoeste de Shaanxi flui para Leste, entrando na província de Hubei. Em Wuhan o Hanshui desagua no Changjiang, dividindo a cidade em três cidades: Wuchang (no lado direito do rio
Longo, situa-se à frente da foz do rio Han); na margem Norte do rio Han está Hankou e a Sul, Hanyang, banhando o Changjiang as margens destas três cidades, que formam a capital da província de Hubei.
De registar o enorme crescimento de Wuhan, quer populacional, quer em termos da criação de novas indústrias joint-venture com famosas marcas Ocidentais. A meio caminho entre Beijing (Pequim), Guangzhou (Cantão) e Shanghai, está Wuhan como centro do País do Meio, não sendo alheio o incremento dado por o governo central a esta zona especial. O desenvolvimento das vias rodoviárias ficou complementado em 1957 por a nova ponte de Wuhan, ainda então o orgulho dos chineses.
Atracado o barco em Hanyang, vamos à cabine de seis camas em beliches que nos coube no bilhete de terceira classe e recolhemos a bagagem. A espreitar do postigo, termina a primeira deambulação no rio Longo, por onde iremos navegar até à foz, entre novas zonas e outras cidades.

18 Jul 2024

O Grande Canal I | As montanhas Sagradas na China

A Água é o Elemento do tema a abordar, “O Grande Canal”, logo os rios seriam os primeiros a serem introduzidos, mas então, qual a razão de começar por falar de Orografia (parte da geografia física que trata da descrição das montanhas)?

Se a Índia tem rios e cidades sagradas, na China são sagradas as montanhas, sendo a mais alta do mundo com 8844,43 metros o Monte Qomolangma, nome proveniente da deusa tibetana da mãe Terra e conhecido por Evereste devido ao general George Everest nos anos 40 do século XIX por ali ter andado.

Este monte pertence à Cordilheira dos Himalaias, formada há pouco mais de 10 milhões de anos, na Era Cenozoica, quando o continente indiano chocou com a placa euro-asiática continental provocando na zona do choque uma deformação, criando-se assim planaltos com 2 mil até 2,5 mil metros de altura, atingindo alguns cumes os 3 mil metros. Há três milhões de anos, os picos das montanhas dos planaltos tibetanos já atingiam os 4,5 a 5 mil metros de altitude.

As altas montanhas na China situam-se sobretudo a Oeste, onde as faldas dos Himalaias chegam a Qinghai, Sichuan e Yunnan, tendo a cordilheira dos Pamir a Oeste de Xinjiang e a Norte, Tianshan. Importante para o nosso tema é a província de Qinghai onde no planalto Qinghai-Tibete nascem os rios mais importantes da China: o Huanghe (rio Amarelo), o Changjiang (Yangzi) e o Lancangjiang (rio Mekong, com 4350 km), que desagua no Vietname. Na província de Shaanxi, o rio Amarelo corre a Norte da cordilheira montanhosa Qinling e o rio Yangzi a Sul. Estendendo-se esta de Leste para Oeste, varia a altura dos montes dos 2000 aos 3600 metros e é considerada a divisão natural entre o Norte e o Sul da China, fazendo de barreira ao frio proveniente do Norte e à chuva do Sul.

CRÓNICAS DAS MONTANHAS

“No seu culto pela natureza, os primitivos habitantes da China não puderam deixar de ficar impressionados com as vertiginosas altitudes, que, só de longe em longe, surgem no seu vastíssimo solo, plano na sua maior extensão.

Como todas as coisas deste mundo que, quanto mais raras, mais estimadas são, essas escassas montanhas, de admiradas, passaram a ser veneradas e, ainda mais respeito infundiram no ânimo dos seus adoradores, no dia, em que, nas suas vertentes, principiaram a enterrar os seus mortos”, escreve Luís Gonzaga Gomes no Chinesices Vol. VII e continuando com ele, “achando que os deuses-montanhas não podiam como os simples mortais, prescindir da companhia do elemento feminino, passaram a conceder-lhes esposas, a inventar-lhes aniversários e a erigir-lhes templos, para a celebração do seu culto.

Entretanto, o espírito de hierarquia levou-os a ordenar estes deuses, em diversas categorias, conforme a altitude e a imponência das montanhas por eles personificados. Uma vez criado o culto pelas montanhas, cinco das mais majestosas elevações foram escolhidas para serem veneradas como divindades de maior categoria.”

“Conjunto conhecido pelo nome de Ung-Ngók-San [Wuyue shan, 五岳山, As Cinco Montanhas Sagradas] que, pela sua situação geográfica, representavam os cinco pontos cardiais – os chineses consideram também o centro como um dos principais pontos no seu sistema de orientação – bem como, as Cinco Cores, os Cinco Elementos e as Cinco Estações, outras montanhas de somenos importância foram mais tarde e em épocas diversas também incluídas, na sua extensa lista de divindades. Os nomes dessas montanhas, a sua orografia e a sua orogenia, bem como as lendas que se teceram em volta delas, encontram-se registadas no “Sán-Kei” (Crónicas das Montanhas).”

Será este o San Oi Keng, (山海经), em mandarim Shan Hai Jing, Clássico das Montanhas e dos Mares escrito por Liu Xiang e o filho Liu Xin entre 206 a.n.E. e o ano 23. É considerado o primeiro livro da literatura chinesa a falar sobre geologia e geografia. Com 31 mil caracteres, nos 18 volumes estão informações sobre montanhas, rios, jazigos de minerais e minas, assim como descreve costumes folclóricos, lendas e antigas histórias, medicina, tecnologia e ciência.

“Quanto às ‘Cinco Montanhas Sagradas’, a sua festividade costuma ser celebrada no sexto dia da décima lua e tanto o budismo chinês como o tauismo não duvidaram em homologá-las para o seu culto. É por este motivo que existem crentes chineses que adoram o Imperador Amarelo, ou o Espírito do Centro, representado pelo Sông-Sán [嵩山, Song shan, a montanha sagrada do Centro], ou o Pico Central, e situado na província de Honám (Henan), estando cometido a esta divindade o encargo de presidir à vida dos lagos, rios, canais e florestas; o Imperador Encarnado, isto é, o Espírito de Hâng Sán, [衡山, Heng shan a montanha sagrada do Sul], ou o Pico Meridional, situado na província de U-Nám (Hunan), deus dos astros e de todas as criaturas aquáticas, incluindo os dragões; o Imperador Branco, personificação do Fá-Sán [华山, Hua shan a montanha sagrada do Oeste], ou o Pico Ocidental da província de Sán-Sâi [Shaanxi], divindade esta a quem está incumbida a protecção do reino mineral e avicular; o Imperador Negro, incarnação de Hang-Sán [恒山, Heng shan, a montanha sagrada do Norte, província de Shanxi] ou o Pico Setentrional da província de Tchit-Lei, senhor dos rios e do reino animal; e o Imperador Verde, personificação do T’ái-Sán [泰山, Tai shan a montanha sagrada do Leste em Shandong], ou o Pico Oriental da província sagrada de Sán-Tông, a quem estão entregues os destinos da humanidade, tanto neste como no outro mundo”, escreve Luís Gonzaga Gomes.

MONTANHAS SAGRADAS DO BUDISMO

As quatro montanhas sagradas do budismo na China são, Jiuhua shan na província de Anhui; Putuo shan em Zhejiang; Emei shan em Sichuan; e Wutai shan na província de Shanxi.

Shanxi significa “a Oeste das montanhas” e fazia parte do território limite entre a civilização chinesa e as tribos nómadas do Norte, tendo por isso a Grande Muralha muita importância estratégica. Nessa província se encontram, a montanha Wutai a poucos quilómetros da montanha sagrada do Norte, Hengshan, e ainda a 75 km Sudeste de Datong, no concelho de Jiaocheng o Templo de Xuanzhong, construído no século V e onde nasceu a seita budista da Terra Pura.

Na montanha Wutai formada por cinco colinas encimadas por planaltos existem 47 templos budistas de arquitectura tradicional chinesa. O Budismo aqui chegou na dinastia Han do Leste (25-220), sendo Xiantong, o segundo templo budista a ser construído na China. Conta a lenda, o bodhisattva (pusa) Wenshu ao passar por Wutai, sentindo-se inspirado por boas vibrações passou a divulgar os ensinamentos de Buda.

O clima era de extremos, as colheitas sempre fracas e perante a vida de miséria do povo resolveu em viagem ir pedir emprestada ao Rei do Dragão do Mar do Leste (东海龙王Donghai Longwang) a pedra preciosa mágica conhecida por Xielongshi (歇龙石, Pedra do Dragão Descansado), comprometendo-se a devolver num prazo de trinta anos.

Perante a grande prosperidade ocorrida desde então em torno da montanha Wutai, os habitantes, conseguindo grandes colheitas, foram erguendo templos para agradecer aos deuses, mas esqueceram-se de devolver a pedra mágica e passados os trinta anos, zangado o Rei do Dragão (龙王, Longwang) enviou o Dragão Preto (黑龙, Heilong) a Wutai para a recuperar. Este, sem a conseguir encontrar, circulou como um louco por entre as colinas e descontrolado deitou abaixo os seus cinco picos e daí o nome de Wutai, a significar Cinco Colinas Planas. Essa pedra Xielongshi encontra-se no pátio do Templo Qingliang construído em 472.

Já o templo Xiantong, seguindo o modelo de palácio imperial, é o maior de Wutai com uma área de oitenta mil metros quadrados, tendo para ver, o pesado sino de bronze, duas das cinco torres octogonais em bronze de treze andares com sete metros de altura e a sala de bronze mandada construir por o Imperador Wangli (1572-1620) em memória da mãe Imperatriz Xiaoding (1545-1614), concubina do Imperador Longqing que em 1563 lhe deu o herdeiro da coroa. Nas paredes dessa sala foram esculpidos dez mil budas em alto relevo.

CINCO MONTANHAS SAGRADAS DO TAOISMO

As montanhas sagradas da China, passaram nos finais do século VI a ser as cinco montanhas sagradas para os taoistas.

Ainda na província de Shanxi, após passar pela vila de Hunyuan, já na montanha sagrada do Norte Hengshan (恒山) descobrimos na ravina de Jinlong o templo Xuankong (mosteiro de Hanging). Uma barragem encontra-se oculta por trás da montanha de onde um enorme buraco jorra a água em cascata alimentando um pequeno ribeiro a correr por baixo do longo edifício construído nos finais da dinastia Wei do Norte (386-534), quando o nome de Datong era Pingcheng e capital dessa dinastia. No interior de um dos pavilhões soubemos ter muitas vezes sido destruído pela corrente do rio Heng e o actual edifício ser da dinastia Qing.

A 25 e 50 metros do solo, numa concavidade da encosta, o complexo é todo em madeira e está suspenso por altas estacas. Composto por diversos pavilhões ligados por estreitos corredores e escadas, alberga uma quantidade de quartos onde se encontram mais de 80 estátuas, tanto de bronze, como de ferro, de pedra e de argila, esculpidas em diferentes períodos. Num dos salões encontrámos juntas as estátuas de Lao Zi (Lao Tzé), Kong Zi (Confúcio) e Buda (Sidarta).

O templo Xuankong, incrustado e resguardado no monte Cuiping (翠屏), tem um ar frágil e não fosse estar há mais de 1400 anos naquele suspenso equilíbrio, não nos teríamos aventurado a nele entrar. De camioneta, nos anos 90 demoramos três horas para da montanha sagrada do Norte voltar à cidade de Datong.

Na província de Henan, a montanha sagrada do Centro, Song shan (嵩山), situa-se na margem Sul do rio Amarelo e é um parque geológico onde se encontra o Templo de Shaolin. Como cadeia montanhosa está dividida em duas partes, a Oeste a montanha Shaoshi, situada a Noroeste da cidade de Dengfeng, conta com 36 cumes numa extensão de 64 km, de Luoyang a Zhengzhou, e dos sete picos tem um com mais de 1512 metros.

Na encosta Oeste de Song shan encontra-se o mosteiro de Shaolin onde no ano de 527 chegou o monge Bodhidharma, o primeiro Patriarca do Budismo Chan e aí criou o wushu (kungfu) de Shaolin. Já na parte Leste, a montanha Taishi tem também 36 montes, totalizando assim a montanha sagrada do Centro 72 montes numa área de 450 km².

Na província de Shaanxi, no concelho de Huayin, a cerca de 120 km a Leste de Xian a montanha sagrada do Oeste, Hua shan (华山) conhecida pela sua magnificência e ser muito íngreme e difícil de percorrer. Nos tempos antigos apenas tinha um caminho para a escalar e segundo a lenda o mestre tauísta Chen Tuan no século X aqui viveu em plena reclusão. Na dinastia Tang, a montanha Hua estava a meio caminho entre as capitais Chang‘an e Luoyang e o Imperador Xuanzong designou-a como montanha sagrada da família real Tang.

No topo da montanha Hua, uma gigantesca pedra faz lembrar um machado cujo mito refere ser esse o mágico machado usado por Chenxiang [filho da deusa Huayue Sanniang e do marido, o mortal Liu Yanchang, ou Liu Xiang] para cortar a montanha e libertar a mãe, aí encarcerada como punição de violar as regras do Céu. O castigo dado a Huayue por o seu irmão mais velho Erlang Shen devia-se a ser ela uma imortal e por amor se juntar a um mortal.

Na província de Shandong, a montanha sagrada do Leste, Tai shan (泰山) tem a reputação de ser o primeiro monte do mundo. Diz-se ser o Grande Imperador da Montanha do Leste, o Deus da Montanha Tai (Dongyue Dadi, descendente de Pangu) a governar sobre a vida das pessoas, dos mortos e das fortunas e a sua filha a princesa Aurora proteger as mulheres e crianças. Situada a Sul da cidade de Jinan, estende-se por mais de 200 km na direcção Leste-Oeste numa área de 426 km² e tem o pico mais alto a 1545 metros.

Com duas entradas, a do Norte mais longa e pela porta Sul, na cidade de Tai’an inicia-se a subida de uma ingreme e longa escadaria até ao Céu dividida em dois lanços de quatro quilómetros cada para se chegar ao Palácio das Dádivas do Céu no Templo do Deus da Montanha Tai.

Em Hunan, a montanha sagrada do Sul, Heng shan (衡山) tem 150 km de comprimento e 72 picos, situando-se no extremo Sul o pico Huiyan e oposto, a montanha Yuelu no lado Norte, num dos seis distritos urbanos da prefeitura de Changsha. O pico mais alto de Heng shan é o Zhurong (deus do Fogo) com 1300 metros. Foi a única não visitada das cinco montanhas sagradas e por isso a escassez da informação.

2 Jul 2024

Um homem velho a pescar sem anzol num rio frio

Ma Yuan (c.1160-1225), justamente admirado e ilustre pintor da dinastia Song do Sul, é geralmente reconhecido como a primeira pessoa a representar um carretel, a bobina em que se enrola a linha da cana de pesca.

Um pormenor singular numa surpreendente pintura figurativa em que apenas se mostra um homem Solitário pescando num rio frio (rolo vertical, tinta sobre seda, 141 x 36 cm, no Museu Nacional de Tóquio). E, de tal modo austera e desprovida de referências espaciais que, na sua abstração ela se percebe como um ponto-chave, não só daquilo que é a representação artística mas também como uma subtil inquirição à substância do tempo.

Quem olhasse aquela figura pescando numa embarcação poderia recordar um ditado: «Só os mais persistentes chegarão à linha de pesca de Jiang Taigong». Que refere a história de Jiang Ziya (1128-1015 a. C.), um estratega que serviu o último soberano da dinastia Shang (séculos 16 -11 a. C.) que se tornara um tirano e que, já com cerca de oitenta anos, os cabelos brancos, foi descoberto pelo rei Wen de Zhou sossegado a pescar sem isco ou anzol no rio Wei, perto da actual Xian. Ele esperava sabendo que os peixes viriam quando estivessem prontos. E foi assim que chegado o tempo favorável, o rei Wen o contratou para grande glória do seu reino.

Outra clara referência da pintura é o poema de Liu Zongyuan (773-819) Neve no rio, que termina com o verso Du diao han jiangxue, «Só, pescando no rio frio, à neve» em que a utilização da palavra du, traduzindo-se como «só», e não gu que seria «sozinho», «abandonado», prova que ele está ali por sua própria volição. Esse poema inspirador está na origem de muitas pinturas. E se um adepto budista poderia saber que um cenário frio como aquele pode ser o lugar propício para encontrar a iluminação espiritual, como prova o caso do «rapaz montanhas nevadas», nome de uma prévia encarnação do Buda Sakyamuni, uma pintura feita na dinastia Ming, levanta outras hipóteses quanto à razão de ele estar ali pescando.

Shi Zhong (1438 – depois de 1506), o autor da pintura e do poema da Paisagem de Inverno com um pescador (rolo vertical, tinta sobre papel, 142, 2 x 32,1 cm, no Metmuseum) foi um pintor profissional de Nanquim cuja pincelada áspera se adequava à pintura dos cenários escarpados do Inverno. No sopé de uma dessas montanhas, Shi colocou o seu pescador de costas com chapéu de bambu e abrigo de palha, elementos que mostram a sua adesão à natureza, e uma comprida cana de pesca que quase chega à margem, mas cujo fio parece estar enrolado para trás e não cai na água.

23 Jun 2024

As Deslumbrantes Montanhas de Verão de Qu Ding

Hongli, que reinaria como o imperador Qianlong (r.1736-95), estudioso atento da cultura que desejava preservar e restaurar, sabia de um outro imperador coleccionador e apreciador das artes cujos traços, em pinturas, caligrafias ou em carimbos, que testemunhavam o seu olhar arrebatado diante de rolos de pinturas, reconhecia e anotava como inolvidáveis.

Fê-lo, por exemplo, numa minuciosa e deslumbrante pintura que pertencera à sua colecção e à qual se quis vivamente associar, escrevendo sobre ela no ano de 1748 numa rara grelha de linhas brancas, o texto:

«Elegante antiguidade cujo fragrante perfume
ainda se sente, tantos anos depois.
Os carimbos Xuanhe, do imperador Huizong,
fazem-na ainda mais preciosa.
As figuras nela aparecem cheias de vida,
Como se as árvores e as pedras
fossem retiradas da própria natureza,
Sente-se a humidade da luxuriante vegetação
das montanhas de Verão;
Dos desfiladeiros vem o murmúrio
do ritmo repetitivo das ondas ao sol.
Empoleirados lá nas alturas, surgem amplos pavilhões.
Como nos sentiriamos debruçados na vedação
apreciando semelhante panorama?»

Essa pintura, Montanhas de Verão (Xia Shan tu, rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 45,4 x 115,3 cm, no Metmuseum), que não tem nenhuma inscrição, carimbo ou assinatura do seu autor é atribuída a Qu Ding (c. 1023-c. 1056), um discípulo de Yan Wengui (c.967-1044) cujo nome consta do rolo, e será uma de três com o mesmo título no Catálogo de pinturas da era Xuanhe, «Afirmação da harmonia», de Huizong (Xuanhe Huapu), de 1120, que regista cerca de 6396 pinturas de 231 artistas.

E nela se pode observar aquela atenção ao aspecto mutante das montanhas ao longo do ano que os tratados da dinastia Song do Norte recomendavam, «para perceber o misterioso sopro dos próprios princípios da Criação» (Han Zhuo em 1121).

Qu Ding vai pacientemente figurando, sob altivas montanhas de «árvores luxuriantes, abundantes e cheias de sombras», um dia de Verão, com a sua «coloração azul-verde que parece derramar-se por todo o lado» e as «nuvens e vapores ricos e densos» como Guo Xi (1020?-1090?) descreve no Linquan Gaozhi, a Grande Mensagem sobre Florestas e Nascentes.

Da direita para a esquerda, numa progressão em que o observador se vai apercebendo de detalhes, há pássaros voando em bandos, pescadores com as suas armadilhas, aldeias, palácios e mosteiros surgindo das brumas. E ligando tudo, pontes, em número de cinco que no Yijing corresponde a Esperando, «é favorável atravessar um grande rio».

Sobre uma dessas pontes, sentado numa mula, a reconhecível figura de um homem de cultura disponível para se deixar assombrar pelas mutações da natureza, tão exuberante e assertiva no Verão, como fizeram poetas como Su Shi que notou: «É bem verdade que estas montanhas são encantadoras, e como nos agradam ao mudar a sua face.»

23 Mar 2023