Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasEterna aprendizagem [dropcap]A[/dropcap] minha mãe tinha um hábito que eu, em criança, detestava. Quando me levava a uma consulta médica ou a um bailarico de imigrantes – ocasiões nas quais nos era exigido um aprumo suplementar – humedecia a ponta dos dedos com a língua e alinhava-me as grossas – e perpetuamente desarrumadas – sobrancelhas. Era tanto um gesto de cuidado como um tique incontrolável. Anos mais tarde, ao levar o meu filho à escola – ele que herdou de ambos lados da família umas sobrancelhas de nível florestal – dou por mim a mimetizar o gesto materno: antes de ele entrar na aula, componho-lhe as calças, ajeito-lhe o cabelo e alinho-lhe as sobrancelhas com um dedo húmido de saliva. Como numa das mais belas canções da Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Como os nossos pais…” Não foi só esse gesto que herdei da minha mãe; devo-lhe igualmente a teimosia, uma boa porção de sarcasmo, a capacidade de me rir de mim próprio e, tentando futilmente pôr de parte a inevitável lamechice que vem à tona sempre que falo da minha mãe, provavelmente as melhores partes de mim. Do meu pai recebi a propensão a não saber quando estar calado, o gosto pela caça, pelo tabaco e pelo álcool e uma tendência a não acabar algumas das tarefas que me disponho a fazer, sobretudo se implicarem construir ou arranjar qualquer coisa. Só percebi verdadeiramente os meus pais quando eu próprio fui pai. Sobretudo de todas as vezes em que falho ser pai, em que sou demasiado pequeno ou demasiado fraco para a tarefa incessante de educar e de cuidar de alguém. Nessas alturas lembro-me dos rostos fechados deles, tolhidos pela vergonha de não estarem à altura e pelo medo de nunca o conseguir estar. Conheço agora por dentro esses rostos. Essa declinação visual da impotência que todos os pais e mães desde sempre conheceram e exprimiram. A vivência da paternidade reperspectiva a condição de filho; de repente estamos do outro lado da fronteira, mal preparados, como quase em tudo na vida, e vivemos finalmente o interior dos gestos e das decisões de que víamos apenas, e mal, a casca. De repente percebemos as limitações, a angústia, o cansaço e, sobretudo e de uma forma completa e vertiginosa, o amor e a sua urgência complexa. A minha mãe nunca percebeu porque é que eu quis tirar filosofia ou escrever. Não aprovou muitas das minhas escolhas na vida, nomeadamente as que implicavam uma relação de custo-benefício no mínimo duvidosa. Mas nunca fez mais do que opor-se-lhes verbalmente. Nunca fez por me condicionar a escolha do caminho ou por me cercear a liberdade. Essa é a majestade suprema do amor materno: amar aquilo que não compreendemos, amar mesmo aquilo que exprime o que não gostamos. Enquanto pai, sei que nunca vou estar à altura da tarefa que me coube. Nunca ninguém está. Como escreve Philip Larkin, no poema This Be The Verse: “They fuck you up, your mum and dad / They may not mean to, but they do.” A minha módica esperança é a de nunca achar-me na posse da ilusão do conhecimento suficiente para ser pai. De achar-me sempre aquém, em falta e em dívida – sem que estas me esmaguem – para querer ser sempre melhor pai do que o sou hoje. Porque esse é o tributo maior que posso prestar ao meu pai e à minha mãe. Esse é talvez o único tributo possível.
Anabela Canas Iluminação ArtificialActualizar. Reiniciar. [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uardar. Não sei o quê, nem onde. É lá com ele. Olho-o. Antes ainda de abrir, adivinho. Actualizações. Sempre. Todos os dias em que nada lhe disse, nada lhe trouxe. Todos os dias, em que não me traz algo que ajude a desembrulhar as minhas questões para a vida. Para o dia. Para aquele instante em que deveria ser eu a actualizar a alma e a dar-lhe conta disso. Este caderno tecnológico e limpo, em que quase antevejo um subtil sorriso de troça, quando na minha precipitação de iniciar um trabalho, reter um pensamento que me ampara, ou arrumar esta casa cheia de objectos que proliferam como fungos, sim, quase lhe adivinho a malícia de, em vez de bons dias, começar por se mostrar indisponível. Temporariamente indisposto para colaborar, a necessitar de reinício, de actualizar as actualizações. Santo Deus. Esteve a dormir durante dias. Que raciocínios complicados se revolveram no seu interior adormecido que precisam uma ginástica e uma deferência para com estas suas complexidades, que passam à frente das minhas urgências. Depois começo. E lá está ele a fornecer mais possibilidades como um programa de moda, a fornecer tendências inadiáveis de estação, formas, comprimentos – de onda, talvez -cores para a alma senão o corpo. Padrões, texturas. Quando só quero escrever umas linhas. Rever a alma e os sonhos, voltando um pouco atrás, ou tentando prender um momento antes que se dissolva no esquecimento. Ao fechar, a mesma coisa. Quero sair, à pressa. Não. Sua excelência, perentoriamente recusa-se a colaborar sem mais umas actualizações. Caprichos insondáveis a que não posso deixar de ceder. Impaciente. Quando só quero fechar o caderno e arrumar a caneta. Sair, encerrar o assunto. O contrário de mim. Questões de sistema operativo, talvez. Eu, sempre um pouco fora de moda, a oscilar entre apelos vários de várias épocas, do mundo, de mim. Numa cronologia de sentir, temperada de modo diferente ao do suceder de estações, tendências e mudanças. Tudo -sem querer – a um ritmo próprio. Actualizações também, e paragens, mas às vezes, ao contrário deste PC mais novo e mais caprichoso que os outros, refazendo dados que numa linha de um tempo de trás para a frente, situaria do lado que passou. Coisas válidas. Coisas a não perder na voragem desse fio de sentido único. Se me repito. Penso tantas vezes quando retomo as mesmas ideias, o mesmo sentir. Talvez. Como não repetir a casa onde vivo, o que vive comigo, o que mora, o que me habita? Como não me repetir na pessoa que sou através dos dias, das impressões, das emoções, do sentir. Um pouco retro. Um pouco démodée. Um pouco sem oscilações maiores que as das tempestades que me acolhem o acordar de sonhos tormentosos e felizmente no mesmo corpo, na mesma alma. Não posso tecer juízos sobre esta constância. Antes sobre tudo o que obriga a uma adaptação permanente. O que tende a forçar a uma renovação mais rápida e impertinente do que a simples renovação celular, a do ar nos pulmões. A uma mudança de imagem, de sentir sem tempo para lutos. Sem tempo para o tempo. Estes necessários e compulsivos updats da vida a pressionar como um hematoma. Um consumismo existencial a acompanhar o outro. As pessoas. Como se mudassem todos os dias e alguém tivesse algo a ganhar ou a perder ou a ver com isso. Sou tão old fashion, eu. Guardo sapatos com vinte anos. Guardo sapatos carinhosamente com mais tempo do que isso. Em tempo e em gosto. Claro que quando os calço, pregam-me sustos. Descolam. Talvez da realidade. Como eu, às vezes, no coração. Desabituados de caminhar. De aparência idêntica e fora do tempo – como gosto disso – e, no entanto, algo neles envelheceu. A saúde talvez. Nada que um bom sapateiro não remedeie como se nada fosse ou tivesse sido. Claro. A emenda do tempo. E, quando penso em “Updates”, só me apetece dizer: I’m always dating the same. Dreams. Em que fico. sossegada no meu sentir de ontem. De amanhã. Nos meus lutos. Intempéries. Derretendo da mesma maneira. Com as mesmas coisas. (Esta coisa talvez do feminino ou talvez de pessoas, de deixar o mar entranhar-se na pele como se não houvesse morte por afogamento. Uma coisa com a história de sempre. Este deixar-se. Entranhar. Deixar entranhar-se). O mar, o medo, gostar. Mesmo quando tudo se quebrar e segregar em pedaços ínfimos e irreparáveis, e todo o sopro se contiver de inércia e desconhecimento de qualquer caminho, e qualquer vontade de voar, e tudo parecer não estar. Mesmo quando. Ainda nada em mim será diferente, mesmo se não igual e hei-de morrer disso, de mim. Igual e diferente. Nasci alguém assim com o tempo percorrido e mantenho-me delimitada pela mesma pele e a mesma casa. Escolhi. Esta. Fui tratando. Aquela, esta. No possível e através da experiência do tempo. Mas não tenho outra. Assim mantenho-a e mantenho-me constante e subterraneamente metamórfica no pouco que consigo que o tempo produza. Uma atenção sem pressa. Uma luta para conter a velocidade. Que não posso evitar. Linhas que conduzem. Que delimitam e limitam. Poalhas que tolhem os gestos e o caminhar. Dúvidas nos dados que se multiplicam. Como se hoje tivessem dez, doze faces e muitas mais pintas pretas do que dantes. Circunvoluções nos dias, vindos da tormenta das noites a atravessar sem sono. O que ensombra, o que enfarrusca ou faz brilhar. Um tudo. Mas o que sobra dos sonhos, sei lá bem porquê é o regresso de uma batalha imprecisa e inconclusiva. Eu tento entender o medo. O meu medo, figura múltipla em árvore que invertendo redunda numa única raiz, causa, origem. Tento a todo o preço conhecer o que me tolhe. E tento entender os medos do outro. Sempre. E, às vezes exagerando talvez um pouco na expressão do dramatismo, vejo aí o bicho feroz e básico que projecta, reprime, define e redefine perpetuamente os passos de cada um por todo o lado, por onde vá, por onde não foi. Eu tento entender o medo. Mas o medo não é o género de criatura para se entender na noite porque aí, como é da sua natureza, exorbita e espalha-se por todo o espaço disponível da casa. Ou mais ainda. Eu sei o que dói antes do sonho da noite e sei o que se acrescenta depois. O que me revolve no escuro, me chicoteia na emergência da luz, naquela fímbria fina por cima da portada da direita que nunca encosto o suficiente. A luz a chegar – mas gosto de a ver – e se a vejo chegar mau sinal para o descanso do corpo e da alma que não serenou no esquecimento do sono. Sei com que me deito. Acordo do sem dormir com mais equações do que sabia. A querer espantar uma espécie de agonia. Mas que se vai diluindo no dia. Esse dia a acudir ao reboliço da noite e a trazer talvez algum silêncio. Penso tantas vezes no silêncio. Como uma coisa boa de sentir. Como um refúgio quente e confortável. Como uma frase de amor. Como uma arma de arremesso. Esse. De todas as espécies, e como um cientista dedicado, passo tempo a bafejá-lo para o caso de lhe faltar a respiração e desfalecer. A olhá-lo com olhar leve, para o caso de lhe doerem as articulações a caminhar para a idade. Os silêncios envelhecem como as pessoas e seguramente com as mesmas qualidades, defeitos e achaques. É preciso, por isso tratá-los com carinho e cuidado. Mas saber distingui-los. Os que são inofensivos daqueles que mordem por querer. Penso tanto nisso quando os afectos desta vida me brindam com um. Distingui-lo. desembrulhar-lhe o papel bonito de silêncio, sem destruir o papel bonito. De silêncio. Desvendar a primeira aparição do rosto. Fechado. De silêncio. Entender que expressão minha, do rosto, esteve antes desse rosto pensativo e hermético. De silêncio. Perceber é tão difícil como saltar para o lado de lá do espelho e ouvir com o olhar desse silêncio específico, as palavras proferidas pelo meu olhar. E ouvidas de lá. Desse lado de lá. Desse silêncio que pode ser outro. Desse silêncio. E não do outro. É assim. O labirinto. Em que as pequenas coisas que fazem a vida nos conduzem a perder. E as pessoas, os seus silêncios assim também. A perder. A deixar-nos perder. E a perder de vista. O silêncio como toda a sua qualidade inexcedível, exige uma arte rara, momentos muito bem escolhidos e uma expressão, que de tão específica e adequada, faz dele uma obra de génio. Não confundir com qualquer sucedânea falta de resposta, qualquer engolir em seco ou qualquer contrafeita e artesanal habilidade de passar em frente. Um belo silêncio exige uma empatia no tempo e no espaço, que às vezes recorre aos olhos, espelhos que, quando querem, são límpidas portas da alma. Exige uma respiração como o canto, e que se sente, ouve ou intui na imperceptível reverberação dos átomos, no ar, nesse elemento comum. Exige às vezes o esboço de um gesto que não chega a ser mas conduziu o sensível, uma alma partilhada num território musical e sem perda. Anda tão desvalorizado este silêncio e confundido com a fast food do nada que se diz porque não se tem disposição, vontade, coragem para mais. E quem diga que é uma boa resposta e tão válida como outras, nada entende da alma solitária e humana que murcha na secura do não entender. O nada é a resposta pobre. O parente pobre do silêncio. Já um grande silêncio nunca o foi. Essa arte de tudo deixar expresso na mais fina matéria do que é manuseável pelo universo sensível do humano que somos. Hábeis em manipular a expressão do todo que nos foi dado usar. O mundo anda feio. Como sempre andou. basta pensar nas cadeias alimentares e mesmo sem metáforas em curso, para cair na tenebrosa impressão de que todos os desígnios concorrem para uma contranatura que só a nossa alma consciente e o intelecto de que fomos munidos sabe-se lá porquê, afinal, nos salva. Com critérios que em simultâneo nos fazem sofrer com o visível e em tamanha medida também nos catapultam para a compulsão de fabricar um belo que não há. Somos peritos nisso. Se formos e quando somos. Em produzir coisas artificiais e de beleza que conforte a nossa desnecessária inconformada solidão. A da desadequação. À violência. À crueldade. Ao não sentido por inábil insatisfação. Mais. Do que o simples ser existindo, e porque a natureza se fez de fenómenos complexos e desta forma. Subversivos é o que somos. E pouco naturais porque mais não conseguimos ser. Fugindo à barbárie de prosseguir a onda natural e sem ética, porque esta, humana. Aí chegamos. Ao contributo que sem querer ou sobretudo por querer rebelde, acrescentámos ao natural. A arte, o pensamento, a expressão. E o natural tem aspectos tão belos como ser natural na sua inocência de o ser e não intencional. Como o não é a maldade natural. A da natureza que se consome a si própria em ritmos de sobrevivência. Num equilíbrio qualquer que também aí, às vezes, se corrompe. Dramática. E, contudo, bela mesmo assim. Mesmo quando horroriza. Hesito, então, também às vezes, ante a maldade desta espécie humana. Entender-lhe os resquícios de fragilidade de quem – sendo-lhe dada mais consciência do que aos outros animais, e passe o criacionismo aparentemente implícito – sofre de excesso, de medo. Mais difuso por inúmeras vertentes do que é dado aos outros animais. Demasiadas pensamentos, demasiadas mudanças. Demaisiado em variáveis. Humanos. Demasiado humanos.