Segundo acto – Cena 5

O Capitão aquiesce, enternecido. O Major já recuperou totalmente do engasgo de há pouco e volta a reacender o seu Cubano. Os dois ficam em silêncio durante algum tempo, olhando para Gonçalo que continua a balbuciar sem se fazer ouvir. Estão os três sozinhos nesta sala subterrânea de alta segurança.

Major
[indicando Gonçalo]
O que é que vamos fazer com aquele peixe-bolha?

Capitão
[hesitante]
Pois… estava à espera das ordens do meu Major?

Major
[surpreendido]
Qual Major?!

Capitão
Do senhor!

Major
Qual senhor?!

O Major desata a rir às gargalhadas, mas desta vez não se engasga. E ainda consegue baforar pelo meio. O Capitão está mais perdido que uma carta sem remetente numa saca de carteiro dos CTT.

Major
Ou o Capitão endurece a espinha, ou toda a gente o vai pisar como se fosse relva num parque municipal.

Capitão
[esforçando-se]
Sou da opinião de que o devemos deixar ali ficar. Ele há-de ter um plano. Se for inimigo, há-de ter ordens. Se foi um erro de cálculo, ele dará pelo erro e saberá melhor do que nós o que fazer. Se tem uma missão específica e não nos quer mal, não tardará a partilhar connosco o seu propósito.

Major
E nós, nada?

Capitão
[inseguro]
Não percebo…

Major
E nós, não fazemos nada?

Capitão
Propus que esperássemos, meu Major.

Major
[desagradado]
Eu percebi… acha que sou estúpido?

Capitão
[medroso]
Claro que não, meu Major!

Major
[irado]
E esperar é o quê, meu merdas?!

Capitão
Eh… neste caso é aguardar activamente…

Major
[explodindo]
Aguardar activamente é para os panilas e as putas!

Uma pequena poça de urina começa a formar-se ao lado da bota esquerda do Capitão. Ele sua por todos os poros e faz um grande esforço para não olhar para ela. O Major repara e resolve fingir que não se deu conta da fraqueza do seu subordinado.

Major
[acalmando]
Aguardar activamente…? Puta que o pariu mais as suas curiosidades semânticas!

Capitão
[aniquilado]
Perdão, meu Major.

Major
[apaziguador]
Acalme-se, vá… [pausa] É desesperante, sabe… de cada vez que temos oportunidade para ombrearmos com as maiores potências mundiais… acontece o mesmo. [pausa] Aguardamos… aguardar é um acto passivo, Capitão. Deveríamos esquartejar o corpo dessa gelatina humana que está para ali a borbulhar um discurso inaudível e aguardar que viessem reclamar o corpo ou a vingança… e deveríamos estar armados até aos dentes. E quando aqui chegassem, nem lhes daríamos tempo para dizer um boa tarde… descarregávamos o arsenal todo em cima deles, fossem homens, ratos ou bonequinhos verdes com antenas. Porque é assim que um povo orgulhoso e com eles no sítio faria… é assim que D. João II quereria que o fizéssemos. E também é assim que o nosso presidente do conselho de ministros quereria que o fizéssemos. Mas estamos condenados a esperar… e a aguardar activamente… que nem cadelas no cio.

Capitão
Quais são as suas ordens, meu Major?

Major
Ordens?

Capitão
Sim, meu Major?

Major
Em relação a…?

Capitão
Ao homem ali deitado.

Major
Pois…

Capitão
Então, parece-me que o melhor é mesmo aguardarmos activamente, meu Major.

Major
[corando de vergonha]
Como disse!?

Capitão
O meu Major ladra, ladra, ladra… diz que faz e acontece… faz-me lembrar um rafeiro que os meus avós tinham em Figueira de Castelo Rodrigo… quando estava preso ladrava até ficar rouco e saltava e esperneava… quando o soltavam, encolhia-se a um canto…

Major
[irado]
COMO TE ATREVES, LEGUME!?

Capitão
Eu mijei-me pelas pernas abaixo… sabemo-lo. Mas se o meu Major dissesse mata, eu matava. Se dissesse beija, eu beijava… mas o meu Major só fala do que nunca acontece e vive lá nas suas fantasias do quinto império bélico-lusitano… e tudo o que imagina mete picha, já reparou, meu Major? Ele é bazucas e espingardas e balas grandes e gordas… tudo picha. Como essa que tem na boca, agora… mas tomar uma decisão é que nada…

Major
[humilhado]
Meu cabrão, Hades apodrecer numa cela!

Capitão
Hades!? Como é que chegaste a Major, minha borboleta de cativeiro.

O Major engasga-se outra vez e é dominado por um violento ataque de tosse que o obriga a sentar-se na sua cadeira. Pousa as mãos abertas no tampo da secretária e espera que o ataque de tosse passe, mas não tira o charuto da boca. Este continua a fumegar entredentes. O Capitão tira uma faca de mato que tinha escondida nas costas.

Capitão
[possuído]
Die Welt braucht keine Feiglinge!

O Capitão avança para o Major, empunhado o facalhão. Espeta-o com toda a força nas costas da mão direita do Major. Este grita, sem deixar de morder o charuto, e com a mão esquerda abre uma gaveta e tira de lá um revólver. O Capitão agarra na mão esquerda do Major e torce-a até a arma estar apontada a ele. O Major, aplicando toda a sua força, solta a mão direita e levanta-a à altura da cara do Capitão, ainda com a faca espetada nas costas da mão e com a lâmina a sair pela palma ensanguentada, e espeta-a no olho esquerdo do Capitão. Este ainda tem tempo de disparar a arma e os miolos do Major explodem e pingam um pouco por todos os lados. O Capitão cai com as ventas no tampo da mesa, inanimado.

29 Abr 2021

Segundo acto – Cena 4

Os dois militares ficam em silêncio, nada mais há para dizer a propósito do assunto Os Panteras vs Os Pantufas. O Major volta a cruzar os pés em cima do tampo da secretária e reacende o seu canhão Cubano. O Capitão acende um cigarro. Os dois fumam em silêncio. Gonçalo continua a articular o seu discurso, inaudível, mexendo a boca, e só a boca, incessantemente. O Major olha-o, intrigado.

Major
[indicando Gonçalo]
E agora temos ali aquele peixe fora d’água… raios m’ partam! De onde é que ele apareceu?

Capitão
[suspira]
Está cá desde ontem… ninguém o viu entrar. Não se sabe como é que ele entrou.

Major
Mas ele… surgiu… apenas? Isto é uma base militar altamente secreta… Ou pensávamos nós que era! Está a dizer-me que aquele indivíduo, com roupas estranhas – será uma farda militar desconhecida? – passou despercebido por todos os portões e todas as portas, sem dar cavaco a ninguém e deitou-se aqui para dar à guelra?

Capitão
Meu Major, parece-me impossível que alguém possa chegar aqui sem ser identificado, pelo menos, em três pontos: o portão principal, o portão intermédio – antes de começarmos a descer aos pisos subterrâneos – e a porta azul, antes desta sala onde nos encontramos agora. E isto é num dia calmo… eu já cheguei a ser identificado sete vezes antes de aqui chegar.

Major
[interrompendo]
E muito bem!

Capitão
E muito bem, sim, meu Major!

Major
[rindo]
Ó homem, relaxe.

Capitão
[sorrindo, atrapalhado]
Sim, meu Major…

Major
O som do coro bem melado nada tinha de meloso…

Capitão
[confuso]
Perdão?

Major
[rindo]
O som do coro bem melado nada tinha de meloso.

Capitão
[a medo]
Não percebo.

Major
Pois não… Mas a culpa não é sua. [pausa] Nem minha…! O som do coro bem melado nada tinha de meloso… [pausa] Coisas minhas… Gosto de poesia, sabe. [pausa] Significa que o som do coro, o que quer que cantavam, fosse a letra ou a melodia, era doce, mas não era piegas… que era suave, mas não era insípido.

Capitão
Compreendo…

Major
[indica Gonçalo]
Bem pode ser isto o que aquele pobre peixe está para ali a borbulhar. O som do coro bem melado nada tinha de meloso…

Capitão
Já sabemos o que ele está a dizer, meu Major.

Major
[surpreendido]
Desde quando?

Capitão
[hesitante]
Desde hoje de manhã?

Major
E falava de quê?

Capitão
Balbuciava… sobre vícios. Fumar, roer as unhas… vícios de boca, dizia ele.

Major
[olha desconfiado para Gonçalo]
Vícios de boca… será algum código?

Capitão
[baralhado]
Código, meu Major…?

Major
[humilhado]
Sim, código, porra… sabe o que é um código?! A águia aterrou!? [pausa] A marreta está no ar?! Dêem-lhes música?!

Capitão
Sim, meu Major!

Major
E ENTÃO?!

Capitão
Não nos parece ser um código…

Major
[desconfiado]
E como é que souberam o que ele estava a dizer?

Capitão
Um dos oficiais tem um filho surdo-mudo e aprendeu leitura labial e língua gestual portuguesa…

Major
Língua quê!?

Capitão
Língua gestual portuguesa, meu Major.

Major
Certo… e sabe ler lábios?

Capitão
Sei, meu Ma… SABE, MEU MAJOR!

Major
Não grite!

Capitão
Perdão, meu Major!

Major
Mas, afinal, quem é que sabe ler os lábios e falar não-sei-quê Portuguesa… é você?!

Capitão
[inseguro]
Eh…

O Major levanta-se, pousa os punhos no tampo da secretária e continua a falar com o canhão Cubano entredentes.

Major
Sabe quem é que lê muito bem lábios?

Capitão
[apanicando]
Não, meu Major…

Major
[sorrindo, malicioso]
SÃO AS PUTAS E OS PANELEIROS!

O Major desata a rir alarvemente até se engasgar num pedacito de tabaco mais maroto que saiu do charuto em direcção ao seu goto. Tosse tanto que às tantas começa a ficar muito vermelho e a bater com os punhos no tampo da mesa. O Capitão aproxima-se para o auxiliar, preocupado, e dá-lhe uma pancada nas costas para o desengasgar. O Major responde com um socão no queixo do pobre coitado que veio em seu auxilio, deixando-o estendido no chão. O Major recompõe-se, bebendo água do seu cantil. Depois, despeja o resto da água na cara do Capitão. Este acorda em pânico, como se tivesse sido arrancado das portas do inferno. Levanta-se a custo e recompõe a farda.

Major
Mas o que é que ele estará a dizer agora?

Capitão
[assustado]
Ele fala… [pausa] É muito lento, demora duas a três horas para completar uma frase. É quase como se estivesse… [hesita]… como se estivesse…

Major
Desembuche!

Capitão
Como se estivesse desfasado…

Major
Desfasado?!

Capitão
Sim, meu Major?

Major
De quê?

Capitão
Dele mesmo, meu Major. [pausa] Tudo nele indica estar numa normalidade, perdoe-me a expressão. O discurso é lógico, embora irrelevante. Não há razão para acreditar que se trate de um código… os peritos assim o disseram. Não encontram um padrão reconhecível ou disfarçado, nada… Além de que não há ninguém para o ouvir, ou ler, neste caso, apenas o meu Major e eu.

Major
Certo… [pausa] Mas, afinal, quem é o oficial que sabe ler os lábios e a gestual-não sei-quê?

Capitão
[a medo]
Sou eu, meu Major.

Major
Já desconfiava! [pausa] Perdoe-me a insensibilidade de há pouco… das putas e não sei que mais… às vezes sou um porco.

22 Abr 2021