Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasConto de natal por ser Maio Não é uma mulher que glorifique as mulheres. Nem é uma mulher que escreva sobre mulheres por estar na moda. É apenas uma mulher, mas sem a senha da virgem Maria que, como se sabe, foi contrariada pelo destino. O sinal repete a forma duma espada curva de gume único. É o mesmo sinal que desenha a sombra na testa da mulher. Algumas alvenarias decompostas por trás, a maior parte invadidas pelo cheiro intenso das amoras negras. A voz grave traz consigo a ameaça. O peso do caos. A alcatifa azul que aparece tantas vezes em sonhos sai do quarto e penetra no pomar até à estrada. Nas bermas de areia solta, a mulher come rapidamente os últimos gomos da laranja como quem salta pela janela. Um equilíbrio interrompido no centro do corpo. O autocarro avança a estalar os metais. É manhã cedo. A mulher diz muitas palavras sobre aquele suspiro que apenas se escuta no fundo do cesto de verga, embora as mãos apertem as asas do cesto com tenacidade de guerreira. Diz o mesmo dessa tarde que parece ter-se apoderado de todas as tardes anteriores. O corpo flanqueia ilhas invisíveis e os braços espreguiçam-se para tactear essa possibilidade. O passado é apenas feito de luz e o que se sabe são os músculos agora a desafiar as suas discretas extremidades. Os recantos da mata são os recantos dos humanos, talvez mesmo os mais antigos. Refúgio ou reentrância para que os braços longilíneos sejam riscados pela mulher sobre a pedra. Até que abre o saco numa das clareiras do jardim, hesita, mas acaba por deixá-lo ali entregue à sua sorte. Há lagos com cisnes e choupos à volta que são mulheres, mas só ela abandonou o filho num presépio natural. Lagos que levantam reflexos para esquecer a escuridão, lagos que inventam mapas volúveis para aprender a falar. De cada vez que lá passava, a mulher transformava-se numa ramagem e, vista de cima, caberia ao longo pescoço do cisne pensar o significado dessa ramagem. Um menino igual a Jesus sai do saco e faz-se gente. Ele sabe que as grandes mansardas foram concebidas para os sótãos que se perfilam no topo das cidades. É num desses torreões que a mulher vive, já que o seu ofício passa por esquecer a terra e as suas armadorias desconhecidas. Só ela sabe quantas são as escritas, as quilhas e também os mastros enterrados no fundo da duração. Ela ama Botticelli por causa dos cabelos de Vénus. Ama com a língua todas as outras mulheres. A luz é o defeito da grande noite que precede o nascimento, mesmo o de Vénus por ter escolhido a concha para desafiar a obscuridade. Jesus é um bebé abandonado que cisma com hortências a falar em voz baixa. O bebé, depois rapaz e depois homem vê deus nas duas hortências que se debatem com aquele verde das pequenas vagas. Na realidade vê deus no seu próprio bosque, um deus selvagem que lhe levanta a cegueira na direcção de algumas das madressilvas menos acessíveis à mão. Nos dias em que não regressa a casa, a mulher entrega-se a imersões profundas e prolongadas com breves aparições à superfície para respirar. E arrepende-se fortemente. Transforma-se então numa mariposa como se o movimento ondulatório dos golfinhos fosse o seu. Por vezes, quando coloca o pé num dos extremos desse percurso, grita. Um grito que dá a ouvir o mais claro batimento do mundo. Também ela se decompõe em várias partes à imagem daquelas estrelas cadentes com rasto luminoso que dividem o céu em dois numa fracção de segundo. Quem a olhe vê um ponto branco a subir a rua apenas para ir comprar pão. A mulher mantém muitos címbalos dentro do pensamento. São meios globos que repercutem nas nuvens ideias ainda inabitadas. Quando as fixa na memória, volta a arrumar todos os lugares por onde nunca chegou a passar. Foi numa dessas tardes que regressou à mata. Tarde demais. O autocarro deixou de estalar os metais. Será essa a sensação de uma chegada, mas uma chegada em vão. A mulher diria o mesmo do xilofone que pára por instantes de tocar. A pausa que se cria é tão parecida com uma encosta que abruptamente se precipita sobre o mar. Com uma perna de cada lado desse mar, a mulher faz da gestação um par de andas que se movem por si. Nada as fará chegar a lado nenhum. E o que terá sido feito do saco? Responde a voz que fala por dentro da mulher. Diz que a insónia é uma das mais raras gazuas, porque entra por todas as portas, infiltra-se em todas as camadas da pele e penetra em todos os continentes. A mulher conhece esta outra voz como mais ninguém, porque vive dentro e fora da insónia ao mesmo tempo e apenas os animais corpulentos lhe conseguem tatuar as entranhas. A alcatifa azul que aparece regularmente em sonhos é um mar impiedoso a bater nas arribas. Lê sempre em voz alta o mesmo livro escrito no areal, às vezes ascende pelas escarpas e projecta-se no céu da boca da mulher que aprendeu a cantar o cheiro das amoras negras. O bebé que se fez homem confunde-se hoje com esse cheiro que canta. A mulher não o reconheceu, nem nunca o reconhecerá. É verdade que a beleza é uma forma de evasão que se aproxima do caos, ainda que sem essa ideia de peso. O que torna leve a percepção do caos e da beleza, uma e outra partos tão profundamente incertos, é o facto de a intimidade não ter voz. O que não significa que não a procure fora de si em certos andamentos da natureza. É por isso que a mulher continua abraçada à sua árvore. A viagem desacerta o local de partida, mas afasta-o definitivamente do esquecimento. Há troncos de palmeiras que convivem com a maré baixa e esta é a imagem que melhor marca a distância. Um continente inteiro pode escapar ao corpo que o visita. Razão por que o local de partida não viaja, embora empreste a si mesmo o mais apurado dos viajantes. A distância é a medida criada por esse empréstimo quase invisível. A mulher regressa ocasionalmente ao lugar de origem, mas nada aí a prende, a não ser o homem sentado que há muito perdeu a cabeça. O sinal desenhado no pescoço repete a forma duma espada curva de gume único. A mulher que nunca reconheceu o filho enterrou-o sem saber de quem se trataria. A mulher que se mata sem o saber acorda sempre à mesma hora e leva todos os dias aquele saco de serapilheira para a mata, antes de chegar ao emprego. Jura que o saco suspira e que a mata é um presépio com um burro, uma vaca e três reis magos.
Flora Fong Manchete Política1º de Maio | Menos de mil pessoas nas ruas. Defesa de Coloane dá sentido à manifestação [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]em mil pessoas se juntaram à habitual manifestação do Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador. O número de manifestantes desceu de 1800, no ano passado, para 508 este ano, segundo a PSP. Além de ter sido oferecida tolerância de ponto, pelo Chefe do Executivo, no dia de ontem, o que permitiu um fim-de-semana prolongado a muita gente, no Dia do Trabalhador aconteciam o Sarau Desportivo e Artístico no Estádio do Tap Seac e, na praia de Hac Sá, o festival “Hush!”. O entretenimento ganhou ao activismo: no primeiro evento – que começou às 14h00 – estiveram cerca de três mil pessoas e no segundo mais de duas mil. Para as manifestações, foram destacados 150 agentes policiais. Dinossauro come-tudo Foi do jardim junto à Alameda da Tranquilidade que saiu, na tarde de domingo, o “dinossauro” destruidor da montanha de Coloane. Um “tiranossauro-rex representava o sector imobiliário e da construção” e avançava sem piedade sobre uma figura humana, uma “Coloane” ferida, quase a morrer. A representação, como explicou Lei Kuok Cheong, subdirector da Associação Juventude Dinâmica, é fácil de interpretar para os mais distraídos: o dinossauro representa a hegemonia e monopólio do sector imobiliário face aos terrenos, que se perdem para os empresários mais poderosos. A Juventude Dinâmica foi a associação que juntou mais pessoas – 200, sobretudo jovens – e caminhou ao lado da Associação Novo Macau e do grupo “Our Land, Our Plan”, apelando ao uso razoável dos terrenos. Como não podia deixar de ser, foram diversas as referências ao projecto de luxo a construir no Alto de Coloane. “O construtor [do projecto na montanha de Coloane] rejeitou publicar o relatório de avaliação ambiental que o Governo aprovou e a obra poderá avançar a qualquer hora. A montanha é preciosa e Coloane é o pulmão da cidade. Se não sairmos para a rua agora, não temos nada para preservar para as próximas gerações. Fazemo-lo, mesmo que não possamos mudar nada”, disse Lei Kuok Cheong. Coloane, representado por uma estátua feita por um artista local, foi carregado por quatro “médicos” com máscaras em forma de pulmão. Tudo porque, como diz Amy Sio, fundadora do “Our Land, Our Plan”, a ilha precisa de salvação urgente. Lei Kuok Cheong recordou que há três anos uma manifestação já solicitava a manutenção dos espaços verdes de Coloane, mas até ao momento “as pessoas não vêem que Coloane esteja a ser protegido”. Há, assegura, “intenção de escavar e desenvolver. E há a autorização do Governo.” O deputado Ng Kuok Cheong, que participou na manifestação em nome individual, juntou-se à Juventude Dinâmica no início do protesto, apelando ao Chefe do Executivo, Chui Sai On, que dê ordem para que o projecto em Coloane – com a altura de cem metros – seja apreciado pelo Conselho do Planeamento Urbanístico. No meio da marcha, encontrámos ainda Ben e Ellen, dois namorados que decidiram, pela primeira vez, passar o feriado a participar no protesto. Ambos consideram que a protecção de Coloane tem a ver com todos os residentes de Macau e que é urgente manter os espaços verdes de Macau porque “são muito poucos”. Chegados à Praia Grande, em direcção à Sede do Governo, o grupo entrou num pequeno conflito com a polícia, porque não puderam continuar a caminhar na estrada como até ali e foram encaminhados para o passeio. Vários manifestantes ficaram irritados e gritaram “desbloqueiam a estrada”, já que era dia de manifestação, mas de nada adiantou. A carta chegou à Sede do Governo, mas via passeio. Pela labuta, com o capital Era de manhã na Praça do Tap Seac quando surgiu um “mar vermelho e branco”. Membros da Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) mantiveram no local um encontro subordinado ao tema dos direitos dos trabalhadores, abstendo-se de desfilar até à sede do Governo. Chiang Chong Sek, director da FAOM, disse no seu discurso que o desenvolvimento da economia e sociedade de Macau fez “milagres”, mas que o território está a enfrentar problemas e conflitos profundos, tal como a diminuição contínua da proporção da remuneração laboral face ao PIB. “É extremamente necessário melhorar o ambiente de trabalho e a segurança ocupacional de alguns sectores. Há sectores que ainda sofrem restrições de aumento de salário e de promoção por causa da introdução de trabalhadores não residentes (TNR)”, avançou. A FAOM diz que foram cerca de 1200 os membros de sete associações que participaram no encontro, mas a PSP faz as contas de forma diferente e diz que foram apenas 550. Outro responsável da organização, Chan Kam Meng, voltou a frisar a criação de uma Lei Sindical que, diz, “deve avançar o mais rápido possível, mesmo após ter sido reprovada várias vezes na AL”. Chan Kam Meng defende que a melhoria das leis laborais é a única forma de aumentar a protecção dos direitos dos trabalhadores. Da FAOM, também a Associação de Empregados do Ramo de Transporte apelou ao Governo que mantenha o princípio de não introdução de TNR como motoristas profissionais, garantindo esse lugar para os locais. Uma petição nesse sentido foi entregue ao Governo. Quem tem medo do Jogo mau? Foi a partir do Jardim do Iao Hon que começou a marcha da Associação Love Macau, do grupo Forefront of The Macau Gaming e da Nova Associação dos Direitos de Trabalhadores da Indústria de Jogo. Com destino à Sede do Governo, os manifestantes apelavam à diminuição do número de trabalhadores não residentes (TNR), à construção de mais habitação pública e à melhoria da situação de conluio entre o Governo e empresários, que foi apontada pelo Comissariado contra a Corrupção. A proibição total de fumo nos casinos, as horas extra sem pagamentos e os salários foram outras reivindicações, que não tiveram, contudo, muitos apoiantes. A manifestação do sector do Jogo, habitualmente uma das maiores, foi notoriamente mais fraca: quase uma centena de pessoas se juntaram ao protesto, mas da parte da Forefront eram menos de 50. Recorde-se que Lei Kuok Keong, um dos líderes da Forefront of The Macau Gaming, disse ao HM no mês passado que a manifestação do dia 1 de Maio serviria para testar a capacidade de mobilização de membros do grupo. O teste não terá sido muito positivo. Ieong Man Teng, que afirmou ao HM que “voltou a ser” líder do grupo, sem querer explicar mais, assumiu que “muito menos trabalhadores de Jogo querem sair à rua, porque a economia já não está boa”. Alguns, diz mesmo, “até pediram ao grupo para não se manifestar, por recearem a possibilidade de que o proteste afectasse o seu trabalho”. “As receitas a descer” foi também a justificação encontrada pela Love Macau para a pouca adesão. A Associação de Empregados das Empresas de Jogo, da FAOM, apelou ao Governo a implementação “de forma efectiva” do Regime de Prevenção e Controlo do Tabagismo, criando um ambiente de trabalho sem fumo, e ainda que resolva o problema de sobreposição de férias anuais com feriados obrigatórios. Marcha negra contra a Lei O dia começou com uma marcha lenta de taxistas – cerca de 140 táxis, segundo a organização, e dois motociclos. A polícia fala em cem motoristas. Organizada pela Federação de Motoristas de Táxi Profissional de Macau, a marcha começou às 10h30 no Centro de Ciência, passou a Ponte Sai Van para dar a volta à Taipa e regressou ao destino: o edifício da Assembleia Legislativa (AL), onde foi entregue uma petição. O motivo continua a ser o novo Regime de Táxis. Au Iat San, porta-voz do grupo, disse aos média que os manifestantes discordam com as novas medidas apresentadas na alteração do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer (ou Táxis), que inclui polícias à paisana e a punição de proprietários de táxis quando os taxistas cometerem ilegalidades, entre outros. Os manifestantes dizem que o Governo não consultou opiniões do sector e que as regras “não são justas”, porque estão a pagar todos os motoristas por erros que apenas alguns cometeram. Au Iat San diz que a marcha teve como objectivo fazer o Governo perceber a necessidade de ser gerado consenso e só depois implementadas as novas regras. E os outros… Nas ruas de Macau no 1º de Maio não faltaram também os pais dos filhos maiores. A Associação da União Familiar manifestou-se a partir do Jardim Triangular, numa marcha que passou pelo Gabinete de Ligação do Governo Central na RAEM onde foi entregue uma carta. O objectivo, que mereceu a entrega e outra carta na Sede do Governo, é sempre o mesmo: a autorização de residência de Macau para os filhos que estão no interior da China. A Associação de Activismo para a Democracia, liderada por Lee Kin Yun, protestou desde o Jardim do Iao Hon até à Sede do Governo apelando ao combate à corrupção, mais construção de habitação pública, a protecção de trabalhadores locais e o controlo do aumento da inflação. Além das manifestações que foram marcadas com antecedência, mais de cem proprietários do Pearl Horizon voltaram a manifestar-se. Desta vez, na Praça das Portas do Cerco, onde se sentaram no chão em silêncio solicitando uma reunião com o Governo e a construtora, o Grupo Polytec, para resolver a questão da perda de imóveis pré-comprados por causa da recuperação do lote pelo Executivo. Segundo o canal chinês da Rádio Macau, o presidente da União dos Proprietários do Pearl Horizon, Kou Meng Pok, afirmou que cerca de 200 proprietários que aceitaram a ajuda da empresa para pagar três meses de prestações do imóvel considera que a medida não teve grande efeito, porque a maioria dos proprietários prefere a conclusão da construção do edifício. Chui Sai On e as assume “mutações complexas” Pela ocasião do 1º de Maio, Chui Sai On, Chefe do Executivo, assumiu que actualmente Macau vive uma fase de “mutações complexas da conjuntura interna e externa”. “O desenvolvimento da economia mundial regista uma recuperação lenta, sem perspectivas de dinâmica e claridade. A pátria encontra-se na fase crucial da política de abertura e reforma. Perante o novo normal do seu desenvolvimento económico, e considerando a coexistência dos velhos problemas e novos desafios, a pressão do declínio económico tem vindo a ser elevada”, argumentou o Chefe do Executivo, durante um discurso num encontro com a Federação das Associações dos Operários (FAOM). Chui Sai On explica que é preciso “enfrentar o futuro com o sentido de alerta e espírito prudentemente optimista”, visto que Macau sofre um aumento de “factores de risco e de incerteza”, devido à fase instável da economia do território. “Estamos empenhados na promoção do ajustamento da estrutura económica e da diversificação da estrutura do mercado de emprego para proporcionar aos cidadãos mais oportunidades de emprego. Empenhamo-nos no aperfeiçoamento de legislações complementares relativas às relações de trabalho, na optimização do mecanismo de gestão de importação de trabalhadores não residentes, no combate ao trabalho ilegal, na protecção dos direitos e interesses legais dos trabalhadores, na aceleração da construção de mecanismo eficiente de longo prazo para a educação e na formação de talentos”, garantiu o Chefe do Executivo. DSAL garante revisão à legislação laboral Com o mote da comemorações do 1º de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores, a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), garantiu, em comunicado, que irá continuar “a acompanhar os trabalhos de produção e revisão legislativa no âmbito laboral”, passando pela recolha das opiniões dos diversos sectores. Mais inspecções preventivas e sessões de esclarecimento estão prometidas pela direcção.