Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasA propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927, Walter Ruttmann Crise, Assassinato, Bolsa, Casamento, Dinheiro, Dinheiro, Dinheiro . . . [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s capítulos que Georges Sadoul dedica, no seu livro Histoire du Cinéma Mondial, ao cinema mudo, lembram como esta arte se implantou com uma velocidade prodigiosa um pouco por todo o mundo assim que se ultrapassaram alguns problemas técnicos. De algum modo, que não consigo definir, penso que o cinema mudo ganhou, nos dias de hoje, uma nova actualidade. A facilidade com que na era da tecnologia digital se produzem imagens reproduz uma inocência próxima à que envolve o cinema mudo. O à-vontade no tratamento e na recepção da imagem vem igualmente integrar de uma maneira mais natural a produção antiga de imagens no mundo de hoje. O seu aspecto e a sua gramática parecem fazer mais sentido hoje do que em alturas da história do cinema em que a maioria da sua produção seguia modelos demasiado comerciais e, sobretudo, demasiado semelhantes na sua sintaxe e nos seus desígnios. O digital veio igualmente libertar um pouco a produção da imagem (cinematográfica também) de uma obrigação lucrativa. Tendo-se, afortunadamente, desenvolvido no início do século XX, o cinema pôde aproveitar outras energias que lhe eram exteriores e que à altura mostravam grande fulgor. O cinema, a pintura, a escultura, a fotografia, a música e o bailado andaram, nessa época de grande excitação estética, muito mais ligados do que andam hoje*. Assim, paralelamente ao cinema narrativo, permaneceu durante vários anos uma linha mais ligada àquilo que podemos chamar a avant-garde e o cinéma pur. A diferença para hoje é que o cinema avant-garde dos anos 10, 20 e 30 parece natural e perfeitamente integrado na estética da época. Seria fastidioso estar a listar nomes mas será útil lembrar que este cinema tem origem em vários países, Alemanha, França, Itália, Rússia (e U.R.S.S.), E.U.A. ou Japão, para lá de exemplos mais isolados em outros países.** Há, nos anos 20, uma força dentro do cinema no sentido de o libertar do jugo da literatura e do teatro criando, ao invés, uma linguagem absoluta internacional para si próprio, um programa que se publicita abertamente num filme de que aqui se falará: Man with a Movie Camera, 1929, de Dziga Vertov – um filme sem guião, actores ou cenários, como no início se afirma inequivocamente. Walter Ruttmann juntou uma série de pontos programáticos semelhantes para a apresentação do seu filme de Berlim. Mas, como todos hoje sabemos, o cinema comum, ao tornar-se uma actividade para as massas, não se libertou nunca da literatura. Mas tudo isto vem a propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt/Berlin – Symphonie of a Big City, 1927, de Walter Ruttmann, um elogio futurista (uma Ode) a Berlim e à ideia da grande cidade, assunto dilecto das elites vanguardistas da época. Um amante desta mais extraordinária das criações humanas, a grande cidade, não pode deixar de integrar este filme no seu complexo admirativo. Lembre-se e releia-se a – muito mais agressiva, muito mais diversificada nas imagens e muito mais sexual – Ode Triunfal de Pessoa/Álvaro de Campos, anterior cerca de 15 anos. Por vezes o filme alemão parece ser uma ilustração do poema de Pessoa. O documentário foi desde cedo apontado como um dos géneros (para lá do Cinema Absoluto ou Puro) próprios à modernidade do cinema. Die Sinfonie…, estreado no mesmo ano de Metropolis, é um documentário, fácil de seguir se pensarmos que Ruttmann, que era inicialmente pintor e gráfico, se dedicara anteriormente ao filme abstracto (ver os seus pequenos Lichtspiel). Ao longo dos seus 5 andamentos, é-nos mostrado um dia na vida da grande metrópole sob a perspectiva do elogio da modernidade e das possibilidades promovidas pelas novas tecnologias (filmado ao longo de 1 ano e montado para fingir 1 dia). Exibe-se o gosto pelo movimento e pela velocidade. Neste conjunto de afirmações os transportes públicos (como acontece insistentemente na Ode… de Pessoa) têm um lugar de destaque – como meio de transporte das massas e como elogio à beleza da máquina e da velocidade – comboios (imensos, locais, nacionais e internacionais) táxis, autocarros, aviões (já a Lufthansa) eléctricos (como ainda hoje), metropolitano, alguns carros particulares. É uma imagética que encontramos em outros filmes da época com programa semelhante. O espectáculo do movimento, objecto do cinema abstracto e do cinema de animação, não é aqui muito diferente. Continua-se com a fábrica, a máquina e a sedução económica mas também estética das possibilidades ilimitadas da montagem em série, a reprodução infindável do produto que permite uma abundância que se acreditava vir a ser generalizada. No Acto II, a actividade frenética das primeiras horas da vida da cidade, a foule, as massas, a abertura dos estabelecimentos, etc. …hé-lá-hô la foule! Berlim, como sabemos, é uma cidade de muitas faces. A guerra e a divisão em duas partes obrigou-a a permanecer num estado peculiar. Não transmite hoje – mesmo que seja uma cidade vibrante e bela a muitos níveis – o vigor do tipo de cidades que este filme, Metropolis, ou até o conhecido filme de Vertov, Man with a Movie Camera, prometiam. Isso vê-se hoje em Tóquio, Hong Kong ou Nova Iorque. Man with a Movie Camera segue uma ideia muito parecida, mostrando o acordar da cidade e a sua agitação dando especial atenção à montagem e ao ritmo. No entanto, no filme soviético (filmado ao longo de 3 anos e montado para parecer 1 dia), são várias as cidades que se mostram, permanecendo o sentido de exaltação da vida urbana em geral. São muitos os tipos sociais mostrados no filme alemão. Há muitos pobres e uma afirmação sólida de que a cidade é insaciável no seu desejo de juntar riqueza e que não se deterá em tentar os seus objectivos seja por que meios for. A parte que corresponde ao período da tarde (depois de uma hora de almoço despreocupada e quase lânguida) é de uma velocidade frenética, favorecida pelas técnicas de montagem em moda na altura, para, mais para o fim, abrandar de novo ao mostrar o lazer do fim de tarde (o desporto, especialmente as corridas)***. Peço de novo ao leitor que leia a ode de Pessoa/Campos em conjunto com esta sinfonia. Os pontos de contacto são, na verdade, inúmeros. O último acto, o V, é dedicado ao lazer nocturno. Não vale a pena estar a adiantar uma descrição. Recorde-se apenas que este é um filme que mostra a cidade como ela é e não uma visão de uma cidade do futuro (como Metropolis). Antes a exibição de um orgulho e uma satisfação pela pertença a uma modernidade que Berlim demonstrava. Por muito que se mostre como um filme de exaltação das energias da grande cidade (que Berlim nesta altura era) este prende-se muito com as pessoas que a povoam, descendo ao nível da rua e tornando-se muito físico e bondoso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Manhatta, 1921, de Paul Strand e Charles Sheeler, um dos mais antigos filmes sobre uma cidade. Nem todos concordam com esta afirmação. Existe um filme de 2002, de Thomas Schadt, chamado Berlin. Sinfonie einer Grosstadt. Como o próprio nome indica é uma versão moderna do filme de Ruttmann. Deve ver-se. É inquietante, vagamente disfórico – o futuro do Futurismo já passou. Enquanto a demonstração da montagem em série, no filme de 1927, parece moderna, no de 2002 é sinistra, como se tudo – até os produtos de pastelaria – não passasse de uma conspiração. Cria uma desconfiança em relação à Bola de Berlim. Foi filmado antes de Berlim se tornar numa cidade da moda, artística, gira e turística, durante os anos um pouco cinzentos de Gerhard Schröder. Também se passa durante um dia, o que faz lembrar um outro filme muito recente (não documentário) de que já aqui se falou, Victoria, de Sebastian Schipper, cuja acção se passa em Berlim durante uma noite (filmado em apenas um take de 138 minutos). (Finalmente. Lembre-se a existência um filme brasileiro não há muito tempo referido nesta página mas que eu nunca vi: São Paulo, A Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, fortemente inspirado no de Ruttmann). * com excepção do período do mudo, o cinema nunca andou muito próximo da dança. Hoje em dia, tirando uns exemplos alemães, o desinteresse por esta arte continua. Um artigo de Robert Gottlieb, no primeiro número da N.Y.R.B. de 2016, chamado Dancing in the Dark, chama a atenção para o modo como a dança tem sido (mal) tratada pelo cinema e pela literatura. A única excepção que Gottlieb consegue apontar é o paradigmático Red Shoes, de Powell e Pressburger. ** os admiradores do cinema japonês não devem deixar de ver o tenebroso e inquietante Kurutta Ippeji/A Page of Madness, 1926, de Teinosuke Kinugasa, passado numa instituição para doentes mentais. Mesmo que não mantenha ao longo de tudo a história uma imagem ousada tem-nas suficientes para justificar um interesse enquanto filme de vanguarda. Jujiro/Crossroads, de 1928, tem algum interesse, deste ponto de vista, mas limitado a alguns planos. Kinugasa é o realizador do conhecido Jigokumon/The Gate of Hell, de 1954. *** Rien que les Heures, 1926, do realizador brasileiro Alberto Cavalcanti, é um documentário que se centra na exibição do quotidiano das classes desfavorecidas, interessante do ponto de vista de alguma imagética vanguardista. Tem a mesma estrutura na apresentação de um dia na cidade, neste caso Paris. Mais tarde, Cavalcanti, que foi colaborador de L’Herbier, viria a trabalhar com Ruttmann em Berlin – Die Sinfonie der Großstadt.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasA propósito de cinco realizadores [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m pouco em jeito de conclusão acho que Pasolini, Fassbinder e Bergman me bastavam. Juntando-se-lhes duas sensibilidades distantes geograficamente a este centro necessariamente europeu, Ray e Imamura. Em todos caberia o suficiente, a música e a poesia, a velocidade e o estrondo, a bondade e o corpo, um olhar distante e uma cítara e a dança. Todos me parecem autores que não guardariam um segredo se algum valor mais alto se levantasse. Esta gente, sim, é a minha pátria de pederastas e curas, cantoras e ladrões, mães corajosas e soldados, a Capadócia, Munique, Fårö, Calcutá, Aomori. Há num filme de Bergman duas pessoas vítimas de uma guerra civil que chega ao que eu penso ser a ilha de Fårö, a ilha onde o autor viveu grande parte da sua vida e cuja conotação bergmaniana continua a atrair forasteiros inclinados à sua memória e à meditação. Não é dos seus filmes mais conhecidos mas é daqueles que deixam uma marca subtil mas indelével. É um filme, como o da hora do lobo, que contém cenas que usamos constantemente como termo de comparação. Por vezes acontece algo e nós pensamos que é como num filme de Bergman (por exemplo) mesmo que não o consigamos identificar. Neste é a instabilidade dos dois membros do casal, o medo mal escondido de participar na guerra, um comprazimento na incompreensão e no conflito ou apenas o patinar das rodas de um velho Volvo numa estrada lamacenta. Quem quiser perceber até que ponto a análise e a exposição dos conflitos sociais é interior ao mundo de Bergman pode ler Laterna Magica, o livro em que Bergman expõe uma longa lista de situações conflituosas com membros da família, mulheres a que se associou, amigos e relacionamentos profissionais. Mas não é obrigatório. Começa bem, com a possibilidade do pequeno Ingmar morrer de malnutrição, como se logo de início houvesse alguém a quem fosse imperioso atribuir culpa. Álcool e silêncios, os mesmos silêncios dos seus filmes, pardos, indecisos e um pouco antes de haver mistério. Nos seus filmes realistas uma das suas qualidades reside em se deter antes do mistério. Será tudo isto demasiadamente centrado nas suas obsessões pessoais? Sim, mas é esta fúria individualista que está na base da energia, da violência e da imensa nostalgia e sentido de desilusão que percorre o seu cinema e o torna belo. Este é um filme realista. Outros serão menos. Mas em todos a emoção estética é intensa porque em todos os registos aquilo que Bergman filma – quase sempre bem mas nem sempre – são partes de nós em cuja existência não queremos acreditar ou não queremos lembrar. Fassbinder faz o mesmo mas do realizador alemão já aqui se falou muitas vezes, insistindo-se na sua urgência e na sinceridade da exposição. Eu acho que os filmes de Bergman vão envelhecer mais depressa que os de Fassbinder. Isto é, vão continuar a ser admirados mas como objectos um pouco datados. A violência directa dos diálogos de Fassbinder não vai deixar que isso aconteça tão depressa. Além disso, há muitos bocados de filmes do autor alemão que vão continuar a desagradar a muitos, enquanto que os de Bergman continuarão a ser recebidos com boa vontade, cada vez mais, com condescendência. Este é o meu corpo, este é o meu sangue. Se o cinema tivesse sido inventado muito antes seria provavelmente como o de Pasolini, apaixonado, com sentido do espectáculo, tocado pelo espírito santo ou outro pneuma de outro mundo. Este é o cinema que une os pobres ao céu, um que não se fará nunca mais, generoso como nenhum outro. Não há plano nenhum que Pasolini não tenha concebido como uma dádiva – pescador de homens. Fassbinder e Pasolini gostariam certamente de saber que os esperavam mortes com efeitos cinematográficos. Lembrei-me que todos estes realizadores acompanharam a sua carreira no cinema com outras actividades, Bergman e Fassbinder muito ligados ao teatro, Pasolini à poesia, à prosa e ao teatro também, Ray (nascido numa família com ligações às artes) à música e também à escrita e à caligrafia. Imamura dedicou, na sua juventude, energias ao teatro e à actividade política mas parece-me que mais para o fim se inclinou para a vida boa dos copos e do convívio com os amigos. O melhor filme autobiográfico de Imamura não foi ele que fez. Foi, sem o saber, Paulo Rocha. Nele, o velho japonês parece pouco interessado no interesse que Rocha e o mundo lhe dedicou e não terá percebido o que viam nele. Talvez por esta razão estes autores parecem estar um pouco para lá do cinema. Este um pormenor muito amusant. Imamura parece não ter percebido, de início, que os retratos tribalistas do Japão que compôs têm um forte apelo universal. Daí o seu agora famoso espanto. A sabedoria de Imamura consiste em mostrar o modo como o ser comum se insere na sociedade e na grande complexidade do mundo. As suas figuras são sempre o ser das camadas baixas e, muitas vezes, o retrato é o da personagem marginal e criminosa. Imperfeitos sobreviventes. Todos estes realizadores, com a excepção de Pasolini, assassinado aos 53 anos com 12 filmes realizados, têm obras consideráveis, Ray e Fassbinder quase 40 filmes, Bergman perto de 50, Imamura mais de 20. São obras consideráveis, sólidas, consistentes, com poucos momentos baixos. Conhecer a obra de Ray é um privilégio elevado, a sua poética dos injustiçados difícil de igualar. Não me parece que seja possível fazer uma ideia do que é a riqueza do cinema sem pensar na sua contribuição. Ainda hoje Pather Panchali, seu primeiro filme, parece um milagre. Tal como Imamura, Ray mostra o lugar que ocupamos no grande estado das coisas e essa é uma contribuição de que poucos conseguem igualar. Eu sei que há muitos realizadores que faltam aqui, Godard, Resnais, Oliveira, Murnau, Buñuel, os russos, uns iranianos, Kurosawa, Dreyer, Fellini, Rossellini, etc., mas estes cinco constituem pilares suficientemente sólidos para fingir que se percebe o mundo e para se desejar o céu.