Exposição | “In-Between”, de José Drummond, na galeria ATTN até Junho

José Drummond, artista e ex-residente de Macau, expõe “In-Between” na galeria ATTN, sediada em Guangzhou, até 4 de Junho, numa mostra que introduz a representação do artista na China. A exposição faz uma espécie de retrospectiva do trabalho de Drummond realizado nos últimos anos através de oito séries de peças que divergem entre pintura, instalação ou vídeo. Destaque para a nova instalação “So the darkness shall be the light”

 

A nova exposição de José Drummond junta uma ponta de ironia a um pedaço de coincidência. “In-Between”, patente na galeria ATTN, em Guangzhou, até 4 de Junho, marca o início da representação do artista na região, logo agora que Drummond decidiu deixar temporariamente Xangai, onde vivia há alguns anos depois de um longo período a viver em Macau.

“Até tem alguma piada, porque a partir do momento em que decidi regressar a Portugal apareceram uma série de coisas, como que a quererem prender-me à China. Esta colaboração é muito recente e não sei muito bem o que vai sair daqui”, confessou ao HM.

“In-Between” faz uma espécie de retrospectiva do trabalho artístico multidisciplinar que José Drummond tem realizado nos últimos anos na área das artes plásticas. A curadoria é de Lijun Liu e Ryan Wang e foram eles que escolheram todas as peças. Assim, o público chinês poderá ver peças já expostas.

A única novidade é mesmo “So the darkness shall be the light”, uma instalação com espelhos baseada numa outra peça já apresentada em Macau entre 2017 e 2018 e inspirada no verso de um poema de T.S. Elliot. Há aqui um lado interactivo, pois o público será convidado a ir colando fita adesiva nos espelhos até não restar mais nenhum outro espaço livre.

“Em Macau tinha um corredor com espelhos dos dois lados que iam acendendo e apagando. Esta instalação é uma variação desse tema e tem a ver com essa necessidade ou sujeição a que estamos dispostos, como pessoas, às redes sociais, com a extrema visibilidade. Tem também a ver com a forma como os Governos cada vez mais nos controlam e a forma como tratamentos a nossa persona, daí a presença do espelho.”

A “escolha ecléctica” de trabalhos presente em Guangzhou é o início de uma parceria que traz “boas perspectivas” a José Drummond. “Esta é uma galeria bastante recente, revelaram interesse no meu trabalho e eu aceitei. É importante ter uma galeria que represente o meu trabalho na China. Há outras galerias e museus que durante este ano e início do próximo ano vão mostrar o meu trabalho.”

“Estamos ainda numa fase pós-pandemia e as coisas economicamente ainda estão a ser feitas com algum cuidado, porque especialmente o último ano já foi complicado para a economia chinesa. Assim, a exposição vai estar patente mais tempo do que é habitual. Gosto do projecto, das pessoas que estão por detrás dele, e tenho boas expectativas”, adiantou ainda sobre a parceria com a galeria ATTN.

Em Portugal o artista já tem projectos agendados, mas não quer, para já, revelar mais detalhes. “Não acredito que o meu trabalho seja especial ou se destaque de outros. Acho que trabalhamos todos mais ou menos com o mesmo tipo de linguagem, uma linguagem contemporânea. Mas uma coisa é certa: eu sou a soma das minhas experiências, aquilo que vivi tem sempre influência naquilo que faço e no modo como abordo as coisas. No meu trabalho isso até é bastante nítido, porque é a tal história do estado intermédio entre culturas. Tenho trabalhado bastante esse tema da influência de uma outra cultura na minha própria cultura, criando esta entidade mista.”

Ser e estar

O nome da exposição, “In-Between”, nasce precisamente de um estado intermédio em que o artista português tem vivido nos últimos anos desde que emigrou para Macau, uma terra da qual tem saudades, mas que nunca foi verdadeiramente sua, tal como não foi Xangai.

“Sempre trabalhei este estado intermédio, o ‘In-Between’, com muita consciência, pelo menos nos últimos dois anos. É um estado que geograficamente diz respeito a alguém que passa muito tempo fora da sua terra natal e depois acaba sempre por viver nesse espaço intermédio, de não fazer parte do sítio para onde se vai e deixar de fazer parte do sítio de onde se veio. Daí as minhas referências ao Camilo Pessanha, por exemplo.”

De frisar que o poeta português, considerado o expoente máximo do Simbolismo na poesia portuguesa, viveu entre Lisboa e Macau por longos períodos, mas foi a Oriente que morreu, em 1926, depois de anos dedicado às letras e ao Direito, estando sepultado em Macau.

“Este tema foi-se acentuando no meu trabalho, mas não se esgota nesse sentido existencial. Tem também a ver com a minha prática artística, que também é, em si, uma prática ‘in between’, que se move de um lado para o outro, entre pintura, vídeo ou instalação. É uma prática que vive no meio destas disciplinas”, acrescentou José Drummond.

Assumindo que está “numa fase de maturação ao nível de temas” para trabalhar artisticamente, e que já não fogem muito “do trabalho em torno deste lado existencial e de espaço intermédio, com a ligação à poesia e filosofia”. “Penso que as coisas vão seguir por esse caminho”, concluiu.

13 Mar 2023

José Drummond com dois projectos expostos nas cidades de Foshan e Changsha

Com uma laboriosa produção criativa, mesmo durante a clausura pandémica, os trabalhos de José Drummond saíram do estúdio numa escala maior do que a habitual, mas mantendo as tensões e dicotomias que caracterizam o seu trabalho. O HM falou com o artista português radicado em Xangai, que tem trabalhos expostos em Foshan e Changsha, conquistando cada vez mais um espaço único no mundo artístico da imensa China

 

Actualmente, tem dois projectos expostos em duas cidades, Foshan, na província de Guangdong e Changsha, na província de Hunan. Pode fazer-nos uma breve apresentação destes trabalhos?

As duas instalações têm características formais relativamente diferentes. Uma está inserida num espaço interior, outra num espaço público exterior. Uma é uma caixa preta de um espaço museológico, e que funciona um pouco de uma forma transgressiva porque propõe a existência de um espaço dentro de um outro espaço.

Vamos por partes. Como caracteriza a obra exposta no Xie Zilong Museum, em Changsha, “The Dream Of The Red Chamber”?

Tenho trabalhado bastante com luz e com néons e para este espaço a minha proposta andou à volta de um sentido algo híbrido. O néon principal, que é uma espécie de um labirinto fechado tem uma imagem que faz lembrar motivos chineses e microchips de computador. A peça tem uma série de ambivalências ligadas entre si, em reflexo ao néon central na parede principal. Existe também um LED preto e vermelho, muito característico de restaurantes e lojas chinesas. Em geral, servem para vender um produto qualquer e aquilo que eu fiz é algo de disruptivo. O produto que estou a vender ali é uma citação do livro que dá o título à peça: “The Dream of the Red Chamber”, um dos quatro clássicos chineses. A citação, que aparece em chinês, traduzida seria algo como “a verdade torna-se ficção, quando a ficção é verdade e o real torna-se irreal quando o irreal se torna real”.

Uma dicotomia quase existencialista.

São coisas que trabalho há bastante tempo, estas bipolaridades, estes binómios de opostos. Para completar a instalação existe uma frequência sonora, que inunda o espaço e acaba por envolver os visitantes. Essa frequência sonora é a chamada Ressonância Schumann, que corresponde à frequência do planeta Terra, à frequência mais intensa e interior, uma frequência de 7,83 Hz. Curiosamente corresponde também à frequência que o nosso cérebro emite quando sonhamos.

Porquê introduzir um elemento sonoro?

Foi importante inserir este elemento, porque acredito que está tudo ligado, o mundo não é composto por partes diferentes. Nesse sentido, esta correspondência entre o cérebro humano e o coração da Terra fez todo o sentido. Também permite ao visitante, dentro da instalação, entrar num sentido mais hipnótico de labirinto fechado, neste binómio entre a verdade e a ficção, entre o real e o irreal. Tudo isso acaba por compor, no final, uma espécie de espaço que não é só de contemplação, mas também uma mediação entre o presente e uma realidade alternativa, que surge quando temos a possibilidade de parar e sentir coisas. Tenho usado muito a expressão “templo pós-humano” para caracterizar este caminho que os meus trabalhos têm seguido mais recentemente.

Esse conceito especulativo é algo curioso. Podia alargar esse conceito?

Os meus trabalhos sempre foram um pouco existencialistas num sentido beckettiano, com algum absurdismo. Mas recentemente tenho-me interessado mais por um certo lado do budismo, é algo que tem tomado mais forma. Existe aqui qualquer coisa, qualquer sugestão. O meu trabalho não se livra de referências ao mundo da arte, especialmente em instalação, aí é ainda mais óbvio. Estas referências existem para criar algum desafio, alguma disrupção, até porque acredito que os trabalhos devem ser autossuficientes. Ou resultam ou não, não precisam necessariamente de trazer muitas coisas atrás. Mas voltando a esse ponto do templo pós-humano. Penso que estamos a atingir um momento muito interessante na nossa civilização, em que começamos cada vez mais a funcionar por meios digitais. Temos inteligência artificial a simular muitas coisas. Apesar de o meu trabalho ser contemporâneo, e ter estas referências todas do passado da arte contemporânea ligada ao conceptualismo e ao minimalismo, inclui elementos que o levam para um lado retro-futurista, ciberpunk, porque é especulativo, tem uma ambição que já ultrapassa a própria vivência neste tempo presente.

O nosso tempo de vida, enquanto espécie.

Fala-se muito das alterações climáticas e do ambiente. Obviamente que é preocupante, todos deveríamos tentar fazer mais neste capítulo, mas se olharmos para a história do planeta Terra, para o que aconteceu nos últimos 50 anos, isto na história do planeta são duas horas na nossa vida. Não significa muito. Encontro aqui paradigmas que são interessantes para mim. É uma existência irrelevante quando encaramos no big picture. Possivelmente, aquilo que as alterações climáticas vão potenciar cada vez mais é exactamente a não existência de humanos, porque o planeta vai continuar a existir. Sabemos que tudo isto é cíclico.

Até quando estará patente este trabalho em Changsha?

Esta instalação está aberta ao público até 19 de Fevereiro.

Passando para a instalação patente num parque público no distrito de Nan Hai, em Foshan. Até quando pode ser visitada? E como surgiu este projecto?

A instalação vai estar no parque até 16 de Abril. Em termos de referências, há quem mencione o Dan Graham e no “2001, Odisseia no Espaço”. Mas a ideia para o projecto nasceu de uma coisa mínima, uma moeda antiga chinesa. Estas moedas têm em si duas formas infinitas, o quadrado e o círculo. Foi a partir daí que, entretanto, surgiu esse trabalho. Do meio do círculo sai o monólito. O círculo poderá ter mais a ver com land art, com o Richard Long, por exemplo. Na realidade, a ideia de criar o monólito em espelho vive comigo desde meio dos anos 90, mas nunca tive oportunidade de o fazer, e agora, por alguma razão, voltou quando me lançaram o desafio de participar nesta exposição de arte pública. Obviamente, o “2001” contém a ideia de pós-humano, de um espaço de mediação entre a ilusão e a realidade, é uma referência que tem a ver, claro. Não foi, no entanto, o ponto de partida. O começo partiu do espaço entre culturas e as antigas moedas chinesas.

Como foi a produção deste projecto?

Este trabalho deu-me bastante gozo a preparar, levou seis meses até ser concluído. Combina o conceito de monólito, uma estrutura muito rígida, enquanto que o círculo que está na sua base tem uma estrutura mais orgânica e flexível. Só combinar esse monólito com a ideia do jardim budista com pedras, onde as pessoas podem passear, interessou-me também como uma metáfora entre sistemas organizados e com sistemas flexíveis, apesar de o trabalho não ser sobre isso. Nomeadamente, o sistema político, que é extremamente organizado e funciona, na maior parte das vezes, como um monólito, e o círculo, as pedras onde podemos passear, que podem ser as pessoas. Mas, essencialmente, a intenção foi criar um espaço de contemplação, de meditação, um espaço para parar e esquecer, momentaneamente, o presente.

Apesar da rigidez geométrica, o monólito reflecte pessoas no espaço público.

No fundo, interessava-me que esta instalação fosse um objecto que dentro do seu minimalismo pudesse criar a ilusão entre invisível e visível. A questão de se olhar para uma paisagem, mas depois ter um elemento que interfere e reflecte a sua parte. Assim como, tornar visível aquilo que é invisível ao olhar, ao mesmo tempo omitir aquilo que está por trás dessa linha visual que existe.

Podemos afirmar que sai da pandemia, colocando a constante emergência sanitária no passado, em pleno de vigor criativo. O período da pandemia foi de acumulação de trabalhos?

Durante a pandemia não parei de trabalhar no estúdio. Mas há aqui um factor interessante, porque me perguntou sobre vigor, que tem a ver com a escala. Estes dois trabalhos, especialmente o último com cinco metros de altura, têm uma escala considerável. A escala no meu trabalho mudou com estas duas instalações, era algo que já tinha a tentação de experimentar, e que finalmente tive a oportunidade de fazer. Uma escala maior permite criar este tipo de narrativa sobre espaços, sobre os templos pós-humanos, estes espaços de mediação entre o tempo e o humano, entre o tempo presente e o tempo do sonho. Tudo isso não existe quando estamos a falar de uma fotografia, ou de uma coisa bidimensional.

O aumento de dimensões é algo que já entrou no seu processo criativo?

Tenho inúmeros projectos diferentes e todos eles são instalações com uma escala considerável. Apesar de a maior parte estar ainda em fase de projecto, se tiver oportunidade para continuar a fazer coisas, esta será provavelmente a área que me interessa mais prosseguir neste momento.

27 Jan 2022

Arte Contemporânea | José Drummond promove “Tête-à-Tête” com Wang Yanxin

José Drummond, artista português de Macau, promove esta quinta-feira, dia 4, uma conversa online sobre arte com o artista chinês Wang Yanxin, intitulada “Tête-à-Tête”. O evento, com performances que duram cerca de 30 minutos, tem o apoio da associação local BABEL

 

Os interessados em arte chinesa contemporânea ou amantes do trabalho de Wang Yanxin poderão saber mais sobre o trabalho deste artista esta quinta-feira, dia 4 de Fevereiro, graças a um evento via Zoom promovido por José Drummond, artista português de Macau com estúdio em Xangai. O evento, intitulado “Tête-à-Tête: Wang Yanxin – A project by José Drummond” conta com o apoio da associação cultural BABEL, de Macau.

Ao HM, José Drummond explicou como surgiu a possibilidade de abordar o trabalho deste artista. “Este é um projecto meu que acompanha a tendência do último ano, ou dos tempos de pandemia que vivemos. Os encontros, conferências, aulas e por aí em diante ganharam voz especialmente através do Zoom. Tendo dito isto não existe oportunidade mas sim intenção de fazer para poder continuar a contribuir para o diálogo da arte contemporânea.”

A parceria com a BABEL é para continuar, estando programada a realização de “uma ou duas conversas online todos os meses”, estando já dois artistas chineses pensados para participar nesta iniciativa.

O primeiro contacto de José Drummond com Wang Yanxin aconteceu em 2017, quando ambos se conheceram num festival na cidade de Lijiang, província de Yunnan. “De imediato nos interessamos pelo trabalho um do outro até pelas enormes diferenças que existem no produto final. Muitos aspectos, de contexto, são próximos, como a ideia de não permanência e repetição”, descreveu. Este contacto fez com que o trabalho de Wang Yanxin tenha estado representado no VAFA – Video Art for All, um festival de vídeo local dirigido por Drummond.

O corpo e o seu ambiente

Nascido em Lanzhou, na província de Gansu, Wang Yanxin estudou na Academia de Belas Artes de Sichuan e desde 2012 que tem estado envolvido com o mundo das artes multimédia. Já participou em festivais e eventos artísticos de países tão distintos como China, Hungria, Polónia ou Japão, incluindo mostras em Macau e Hong Kong.

O trabalho de Wang Yanxin foca-se muito em experiências emocionais e físicas, numa constante exploração do corpo humano e de como este se relaciona com os ambientes à sua volta. A ideia principal é um teste permanente aos limites do corpo, à medida que este se vai focando nos elementos sensoriais e espirituais. “Muitas das suas performances não duram mais do que 30 minutos, consistindo em acções repetidas e sequenciais”, que ajudam “a compreender a existência humana”.

Drummond destaca “uma certa crueza, um risco e honestidade que se sente” nas performances criadas por Wang Yanxin. “Ele conta já com alguns prémios, o que de algum modo o destaca como um valor a seguir. É um artista que vive numa cidade alternativa [Chengdu] aos grandes centros, como Pequim e Xangai.”

Isso “ajuda a ter uma noção mais alargada do espectro artístico do país que não está dependente das modas das duas principais cidades”, e onde existe “um crescente número de artistas e uma diversidade de práticas”.

A título pessoal, José Drummond promete não parar e já tem algumas ideias para novos projectos. “A maior parte ainda não posso divulgar, mas esta primavera pretendo tratar a sério do meu quintal e torná-lo numa instalação permanente”, concluiu.

1 Fev 2021

Fotografia | José Drummond distinguido com menção honrosa por revista Monovisions

“The Ghost” é o nome da série de fotografias a preto e branco da autoria do artista plástico José Drummond que acaba de ser distinguida com uma menção honrosa nos Prémios Monovision Photography, da revista Monovisions. O autor, que tem feito carreira artística entre Macau e China, mostrou-se “satisfeito” com o reconhecimento

 

[dropcap]O[/dropcap] artista plástico José Drummond acaba de ser distinguido pela revista Monovisions, dedicada exclusivamente ao universo da fotografia a preto e branco, com uma menção honrosa na área das artes plásticas. As imagens premiadas têm como título “Your soul just gets a little darker until there’s nothing left aka The Ghost”.

O reconhecimento deixou o autor muito satisfeito. “Este prémio é atribuído anualmente e a competição é aberta a toda a gente, revelando uma grande diversidade. Ano após ano chama a atenção de muitos fotógrafos. Nesse sentido, sinto-me obviamente satisfeito que o trabalho seja, de algum modo, reconhecido”, disse ao HM.

José Drummond confessou que trabalha pouco com fotografia a preto e branco, possuindo apenas mais uma colecção além da que apresentou a concurso. Apesar de se expressar artisticamente com mais frequência através instalações e vídeo, defende que “a fotografia faz parte do trabalho plástico”.

No que diz respeito ao título da série, que tenta capturar em imagem a alma, José Drummond esclarece que ao longo dos anos o seu trabalho “foi ganhando cada vez mais intensidade poética” e é por isso que tem dedicado “cada vez mais importância aos títulos”.

“Neste caso, o título diz-nos que a alma vai ficando um pouco mais escura até não haver mais nada. É um título de algum modo existencialista, que reflecte a condição humana, sobre a necessidade de não deixarmos escurecer completamente essa luz que existe dentro de nós”, acrescentou.

“Trabalho de intimidade”

Rui Cascais Parada, autor e tradutor, refere-se a estas imagens como “um trabalho de intimidade e silêncio”, onde os principais protagonistas “são a beleza e o terror”. Contudo, “o silêncio é, claro, a grande circunstância e contingência daqueles que falam, o seu estado de terror, e a intimidade representa um alcance variável, mas altamente sensível”.

Depois de vários anos a residir e a expor em Macau, José Drummond mudou-se para Xangai, onde prepara uma série de exposições colectivas que devem ver a luz do dia até final do ano. O artista revelou ainda ao HM estar a preparar uma série de “open studio”, programada para acontecer todos os meses.

“Nessa série abro as portas do estúdio aos visitantes e apresento trabalhos e projectos numa série de sessões que têm como objectivo um contacto mais directo entre artistas e a audiência”, confessou. “Poderá dar-se também o caso de aqui e ali poder envolver projectos de curadoria que tenha feito com outros artistas. A ideia é combinar o envolvimento do estúdio com a ideia da sala branca da galeria”, concluiu.

31 Jul 2019

José Drummond apresenta amor e a morte na Casa Garden

“There´s a light that never goes out” é a principal peça de José Drummond exposta na Casa Garden e traz ao público uma oportunidade de integrar a própria instalação. Tudo tendo por base a canção dos “The Smiths”  que dá nome à obra e reflecte o lado negro e romântico da existência

 

[dropcap style≠‘circle’]U[/dropcap]m dos mais famosos temas da banda britânica “The Smiths” dá nome à principal peça que José Drummond apresenta na exposição patente desde quarta-feira, na Casa Garden. “There´s a light that never goes out” é uma das três peças do artista local e, para fazer jus ao nome, trata-se de uma instalação com “uma componente de som em que há uma espécie de adaptação à música dos smiths”, conta ao HM.

José Drummond é acima de tudo artista plástico mas não menospreza o poder e importância da música e dos sons. “A música tem esta grande vantagem, está em todo o lado, e não precisa exactamente de significado porque nos atinge de uma forma muito directa”, explica.

Para Drummond é difícil o desligar do som, mais até do que da imagem. “Os olhos são autónomas e podemos fechá-los, sem ajuda de nada, já os ouvidos são diferentes, não os podemos fechar sem pelo menos recorrer a ajuda das mãos”, diz. É por isso que Drummond considera que “o som nos atinge de maneira diferente, de uma forma mais intensa do que a visão”

Poderá tratar-se ainda de pureza. “A visão, se calhar, é muito mais intelectual e perde muitas vezes a questão do significado mas gosto de coisas que nos possam criar emoções sem que tenhamos forçosamente de dizer mais ou explicar mais, e a  música tem realmente este dom”, aponta ao HM.

Por outro lado, a escolha do tema em causa foi muito ponderada. Apreciador de poesia, “There´s a light thet never goes out” é, afirma, “um dos poemas mais belos daquela banda”. Mesmo dentro daquilo a que chama clichés, é mais um tema “com uma forte componente negra que remete sempre para a esperança”. “Há aqui uma sensação de esperança mas depois a letra em si é fala de morte e amor. Não há coisa mais bonita do que isso e é esta ambiguidade que me atrai muito”, conta.

 

Um híbrido maior

Tratando-se de uma instalação, José Drummond fala ainda da sua forte componente híbrida aplicável tanto à obra como ao artista. “O meu trabalho vive muito de híbridos, a começar pela minha própria condição: sou um português ocidental em Macau, que bebe influencias do sitio onde vive, ou seja, tudo o que sai de mim já é um produto híbrido que vive na fractura das duas culturas e que não é uma coisa oriental mas também quase que já não é ocidental, muitas vezes”, explica.

O mesmo se pode dizer da forma como José Drumund sente que trabalha a imagem, “em que a fotografia parece pintura mas não é”.

Nesta instalação há ainda uma espécie de diálogo que, para José Drummond “se expressa de uma forma muito teatral porque há uma coreografia, com a luz”.

Mas a contracena passa ainda pelo público em que “o visitante é corpo integral da peça e com a sua participação, a peça ganha outro sentido, ou seja, os protagonistas neste momento são as pessoas quando estiverem dentro da peça”, conta. O objectivo não é ter a concordância do público ou mesmo o agrado, até porque uma das tarefas dos artistas plásticos passa não só por tentarem inscrever as suas ideias naquilo que fazem como tentarem ter um debate com o público e mesmo acabarem por recusarem a sua obra”.

 

Fora da parede

É também esta mistura entre público, obra e artista que marca os tempos contemporâneos das mostras. Chegou a hora de sair da parede a arranjar novos suportes. “Uma das coisa mais importantes, especialmente nos dias de hoje, é que nós enquanto artistas consigamos ter propostas de exposições diferentes e que vão além dos quadros na parede. É necessário que consigamos criar outros espaços, outros mundos que não fiquem reduzidos à banalidade do quadro na parede”, refere.

“There Is a Light That Never Goes Out” integra a participação de Drummond na exposição “A luz na alma – Exposição de Luz de Macau” que conta ainda com as participações dos trabalhos de João Ó e James Chu. José Drummond participa com mais duas peças em néon vermelho: “Each man kills the things he loves”, de Oscar Wilde e “Find what you love and let it kill you” do poeta norte-americano Charles Bukowski.

As peças integram a exposição “A luz na alma – Exposição de Luz de Macau” integra o festival da luz que se comemora no território e traz ao publico peças de João Ó, James Chu e José Drummond.

20 Dez 2017

Salão de Artistas de Macau apresenta 33 obras originais

Denis Murell, Konstantin Bessmertny, José Drummond, Vítor Marreiros. Estes são alguns artistas que participam este ano no “Salão de Artistas”, uma mostra que é hoje inaugurada no Clube Militar. José Duarte, responsável pela associação que organiza a exposição, garante que esta é apenas uma mostra de pintores e artistas com diferentes idades e visões

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap] rinta e três obras originais que ilustram a diversidade e criatividade das artes visuais em Macau vão estar patentes no Clube Militar até ao próximo dia 6 de Janeiro.

O objectivo desta exposição é reunir “um conjunto amplo de artistas e suas obras que seja representativo da vitalidade e a criatividade da comunidade artística local”, indicou a APAC – Associação de Promoção de Actividades Culturais, que organizou este Salão de Artistas de Macau.

Ao HM, José Duarte, responsável pela associação, explicou que a ideia é mostrar um pouco do que se faz em Macau em termos de arte.

“São artistas de várias gerações, com várias abordagens de pintura e várias técnicas, é esse o objectivo desta exposição. A ideia é, no fim do ano, juntar artistas cujo elemento comum é o facto de serem de Macau e mostrar um pouco a diversidade e a vitalidade da pintura e do desenho em Macau.”

Artistas como Denis Murell, o consagrado Konstantin Bessmertny ou José Drummond, que também tem uma outra exposição patente na Livraria Portuguesa, intitulada “Ao meu coração um peso de ferro”, participam nesta iniciativa. Estão também incluídos nomes como o do designer Vítor Marreiros e Alexandre Marreiros, arquitecto e artista.

“Temos o Denis Murell, que este ano é o decano, e depois temos duas jovens nascidas em 1985. Não tem a pretensão de ser a mostra de toda a arte que se faz em Macau. São apenas 33 artistas com obras recentes”, adiantou José Duarte.

A “cada artista” foi pedido que escolhesse um único “trabalho recente e significativo” para integrar este Salão, que apresenta 33 artistas de renome e jovens artistas emergentes, com mais de 50 anos a separar os mais velhos dos mais jovens, acrescentou a APAC.

A exposição pretende também assinalar o 18.º aniversário do estabelecimento da RAEM, acrescentou a organização.

Esta mostra é a terceira da série anual intitulada “Pontes de Encontro”, promovida pelo Clube Militar de Macau, e que incluiu em Junho uma exposição de pintores portugueses, e em Outubro uma apresentação de 27 obras de nove pintores lusófonos.

11 Dez 2017

Pessanha, 150 anos | José Drummond apresenta “O Exorcismo” este domingo

Conhecido artista plástico, José Drummond lança no domingo um livro que reúne poemas escritos à mão no início dos anos 90. Os textos falam de sentimentos mas mostram também o próprio autor na pele de artista

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]entimentos e palavras sobre pintura, ou simplesmente reflexões. O universo privado de José Drummond cabe todo em “O Exorcismo”, o livro de poesia que será lançado este domingo no edifício do antigo tribunal, inserido nas comemorações dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, uma iniciativa do Hoje Macau.

A revelação de Drummond como poeta não passa de uma forma do autor exorcizar – daí o nome – aquilo que lhe ia na mente e na alma no início dos anos 90. Mais de uma década depois, poucas alterações foram feitas e a publicação aconteceu mesmo.

“Este foi um período bastante intenso, em que tinha sempre uma série de cadernos antigos e ia escrevendo duas ou três linhas”, recordou ao HM. “Escrevi reflexões sobre pintura mas também reflexões sobre o que me acontecia na altura, fosse relacionado com amores ou o com o estado do tempo, por exemplo.”

Drummond nunca deixou esses cadernos, e no meio de idas e vindas, a poesia acabou por acompanhá-lo sempre. Alguns poemas chegaram a acompanhar uma exposição que o autor realizou em 1992.

“Alguns cadernos desapareceram, outros permaneceram. Há cerca de um ano e meio, voltei a pegar neles e olhei para eles de uma outra forma. Comecei a encontrar correspondências com o trabalho que continuei a fazer e algumas linhas dos meus trabalhos na área das artes plásticas estão ali expostas.”

Daí a ligar a publicação do livro ao evento dedicado ao Camilo Pessanha foi um passo. Inicialmente havia a ideia de editar as crónicas que o Hoje Macau publicou no suplemento H, mas os poemas fizeram mais sentido na cabeça de José Drummond.

Palavras com sentido

Aquilo que Drummond escreveu à mão há anos atrás, quando escrever no computador estava longe de ser algo comum, ainda faz sentido nos dias de hoje. O artista plástico lembra que até utilizou alguns escritos para a última exposição que fez na Casa Garden, com curadoria de Margarida Saraiva e apoio da Fundação Oriente.

“Tenho algumas expectativas de ver como é que as pessoas vão reagir. Pessoalmente penso que o livro faz sentido também enquanto artista plástico, porque o que lá está escrito é um reflexo de um período no qual as linhas condutoras do meu trabalho como artista se mostram ali”, contou.

O nome do livro surgiu da necessidade de colocar cá fora “demónios privados”, um acto de exorcismo que aconteceu através das palavras.

Depois de ter dado provas como artista plástico, José Drummond não tem grandes expectativas face aquilo que o público vai pensar dele na versão poeta.

“Espero que o público olhe para o livro como ele é. É apenas um livro de poesia, mais nada do que isso.”

Pessanha, a influência

Associar o lançamento de “O Exorcismo” à efeméride dos 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha é, para José Drummond, uma grande oportunidade. O poeta português faz parte dos seus autores favoritos.

“Para mim o Pessanha foi um génio, e está dentro do grupo de escritores que mais me influenciaram, ou que influenciam. Também lá estão o Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e alguns poetas americanos. Há um lado que me interessa muito no Pessanha que é a forma simbólica e a musicalidade que as palavras têm na sua obra. É uma oportunidade óptima poder participar nestes encontros”, rematou.

31 Ago 2017

José Drummond, artista: “Não tenho problemas em olhar ao espelho”

Fotografia, vídeo, instalações e também poesia. José Drummond apresenta hoje na Casa Garden “I’m too sad to tell you”, uma exposição que é um exercício de reflexão sobre o desencanto e a ausência do outro. Ao HM, o artista fala de influências, de pós-colonialismo e do que é isto de se viver numa terra a que não se pertence, correndo o risco de perder as raízes

[dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver nesta exposição?
A exposição chama-se “I’m too sad to tell you”, que é o título de um vídeo de um artista holandês, chamado Bas Jan Ade, dos anos 70. É um vídeo muito famoso na história da videoarte. Ele está permanentemente a chorar, em angústia. A arte interessa essencialmente à arte e, apesar de a arte estar cada vez mais próxima da sociedade em que é feita e de reflectir cada vez melhor os problemas que lhe estão à volta, o ponto de partida e o de chegada são sempre no domínio da arte. Todos os trabalhos que estão em exposição têm quer ver com o estado de desencanto, tristeza, ausência do outro. A exposição tem uma peça central – uma instalação vídeo –, três séries de fotografias que se estendem pelas restantes salas e há outros objectos pontuais que ajudam a criar aquilo que, de início, pensei para esta exposição. Tentei criar algo que não fosse só pendurar umas coisas na parede, mas que pudesse envolver a audiência de um modo diferente, obrigando-a a ter uma atitude quase participativa pela forma como poderá descobrir os trabalhos.

A arte interessa essencialmente à arte, mas também lhe interessa, enquanto artista, chegar a um público.
É o público que, no final, faz o trabalho. É só quando o artista decide que vai mostrar o que fez, e entretanto tem um público, que o trabalho se completa. Se não houver isso, o trabalho não passa de algo que aconteceu dentro do estúdio ou de uma ideia qualquer dentro de uma cabeça qualquer que não foi dita e que, depois, pode ser esquecida. Nesse sentido, é sempre o público que valida a arte e é isso que faz com que seja uma coisa tão importante, porque cada pessoa pode fazer a sua interpretação e podem criar-se narrativas muito mais para além do que a narrativa inicial do artista.

Dizia também que a arte está mais próxima da realidade que a rodeia. Neste trabalho, em que foca a angústia, o desencanto, a solidão, há um reflexo da sociedade em que vive?
De há uns anos para cá que o meu trabalho se alterou profundamente, no sentido em que comecei a fazer parte do meu trabalho. Especialmente nos trabalhos em filme ou em vídeo, passei a fazer de personagem dentro dos meus trabalhos. Nessas narrativas, existe quase uma tentação pós-colonialista, há sempre a imagem do ocidental seduzido pela Ásia e que quer fazer parte de um mundo que não é seu. Isso é muito evidente no vídeo da máscara chinesa, como era na série “O Intruso”, e é também evidente agora, embora as narrativas andem à volta do falhanço, da ausência do outro, e haja mais personagens. Deixou de ser de mim para mim, passou a ser de mim para qualquer desejo continuado de fazer parte dessa sociedade e a impossibilidade, ao mesmo tempo, de fazer parte dela. Embora não esteja objectivamente a apontar problemas sociais ou políticos, algumas coisas importantes da nossa sociedade estão subtilmente reveladas lá.

Um exemplo?
O feminismo. Digo isto muitas vezes: o feminismo é o ‘ismo’ mais importante dos últimos 50 anos e continuamos a ter esta enorme incapacidade de tentar um equilíbrio entre as mulheres e os homens. Continua a ser um mundo de homens e as mulheres continuam a não ter as mesmas oportunidades, sujeitas a condições de bonecas. Nestes últimos anos, houve um crescendo da ideia da mulher perfeita enquanto boneca nas capas das revistas, e a mulher real é cada vez mais sujeita a ter de se formatar a determinados modelos para poder existir dentro da sociedade. Esse problema existe nos meus trabalhos mais recentes, sendo que não digo ‘é isto’, correndo até o risco de ser mal compreendido, porque isso também é importante. Tento que a coisa seja ambígua: ‘Será que é a mulher que é o objecto ou é o sujeito?’. É uma das preocupações dos meus filmes: na realidade, o objecto sou eu e não as mulheres. Elas são o sujeito. Essa ambiguidade também me interessa.

Tem uma forma crítica de olhar para o seu trabalho, no sentido em que o analisa para identificar uma presença numa sociedade na qual não é um elemento natural. E faz referência ao pós-colonialismo. Como é que acontece este exercício de desconstrução?
Não tenho problemas em olhar ao espelho, aliás, os espelhos fazem parte do meu trabalho. Nesse sentido, também digo muitas vezes que os meus trabalhos são existencialistas, não exclusivamente por uma via do existencialismo tradicional do Sartre ou de Heidegger, mas um existencialismo beckettiano, kafkiano, onde a coisa é psicológica. Não tenho problemas em olhar ao espelho, da mesma forma em que não tenho problemas em autocriticar-me, sendo que isto não é forçosamente mau. O pós-colonialismo, no meu trabalho, é uma camada que quase poderíamos considerar que está virada ao contrário. Aquilo a que se chama pós-colonialismo resultou do facto de uma série de escritores e de artistas ter começado a virar os olhos para África, chamando a atenção para esse mundo e para os seus problemas. Ao utilizar a palavra, é porque estou a fazê-lo ao contrário. Não estou a chamar a atenção para os problemas da Ásia, até porque só agora é que se fala de Macau como colónia. No tempo da Administração portuguesa era proibido falar de Macau como se fosse uma colónia, escreveu-se sempre como sendo ‘o território’. Foi através da língua inglesa, no pós-transferência, que se começou a ver mais o termo ‘colónia’. Também a China não assume que tenha sido alguma vez colonizada, pelo que há aqui um problema que também acho interessante. Ao utilizar o termo, estou a forçar a nota de que houve aqui qualquer coisa. Estou a tentar baralhar as cartas e a tentar apresentar as coisas pelo outro lado. Neste factor, sou muito influenciado por vários autores e alguns têm coisas comuns – uma delas é o isolamento. Essa é também uma condição dos ocidentais que estão na China. Poderá não se sentir tanto em Macau porque a comunidade portuguesa é, ainda assim, bastante grande e entreajuda-se, mas quando se vai para dentro da China existe um isolamento maior, com a sua carga de solidão e com a questão do sentido da existência. Há um problema de existência, na medida em que não se sabe de onde se é e de se começar a perder as raízes por se querer fazer parte de qualquer coisa.

Sente isso? Veio para Macau há já muitos anos. Começa a sentir as raízes distantes e, ao mesmo tempo, que não pertence aqui?
Sinto essa batalha quase diariamente, com a agravante de ter feito a parte mais importante da minha educação em inglês, e de ler e escrever muito em inglês. É quase a minha língua diária. Enquanto pessoa e autor, torna-me ainda mais fragmentado. Um dos aspectos que os curadores em Berlim e Nova Iorque apontam no meu trabalho é precisamente esse nível de fragmentação e de os trabalhos serem um híbrido estranho, porque já não são ocidentais, mas também não são asiáticos.

Esse estado de fragmentação acaba por ser uma ajuda à forma como se expressa do ponto de vista artístico, ainda que de modo inconsciente?
Não sei. Há coisas que podemos escolher como é que as fazemos, mas há outras que não necessariamente, que nos acontecem e levam-nos a tomar decisões em função daquilo que nos aconteceu. Essa fragmentação não é uma coisa forçada, não penso muito nela, mas se olhar para determinadas coisas que me interessam ao nível das artes, na literatura e no cinema, os autores que mais me influenciam fazem parte de uma escola qualquer de fragmentação. Se calhar é natural, por ser o rio ou a corrente onde estou.

E que influências são essas?
Não quero saber muito daquilo que se passa na arte contemporânea, para não ser influenciado por ela, porque sinto que as minhas influências maiores vêm do cinema e da literatura. Quando estou muito chateado, enfio-me em casa e ponho-me a ver Fassbinders atrás de Fassbinders. Há pessoas que comem gelado, outras bebem whisky, eu vejo Fassbinders. E não me canso de ver sempre os mesmos, apesar de Fassbinder ter uma obra vasta. Há qualquer coisa que me atrai especialmente, e penso que as pessoas vão sentir isso na exposição, que é uma tentação de teatro. Fiz cenografia quando era muito novo, estudei cenografia e trabalhei no Teatro Aberto em duas ou três peças, e o teatro, nestes últimos dez anos, reapareceu no meu trabalho de uma forma que nunca imaginei que pudesse ter tanta importância. Não só as séries fotográficas são encenadas, como os vídeos são encenados. É tudo forçado e, nesse sentido, é um bocado como Fassbinder, que levava a tragédia e o drama de várias questões, mas fazia-o com uma classe e, ao mesmo tempo, com uma rudeza que me interessa muito. As pessoas, vulgarmente, apontam os filmes dele por outras razões completamente diferentes e dizem que é um autor político, mas o que me fascina mais é a forma como os seus personagens são sempre derrotados, falhados, e há em todos eles uma história de amor. Poder-se-á dizer que são clichés, mas são esses clichés que fazem com que a obra dele seja realmente imortal. São os mesmos clichés do Bergman, por exemplo.

São os clichés das pessoas.
São os clichés dos humanos. Nesse sentido, há outro fundamental para mim, que é Beckett. Sendo uma coisa ainda mais desconstruída do que Fassbinder, Beckett é quase como se fosse um bocadinho de Bergman e de Fassbinder, mas fá-lo pela ausência e pela repetição. A repetição é muito importante, porque a vida é feita de repetições e é nelas que vamos alterando e falhando. E, de repente, temos a morte, que é um ponto comum entre estes três autores que aqui temos. É o destino final, o que me leva filosoficamente a pensar se não será a morte a grande realização, sendo que nunca podemos falar sobre ela, porque é sempre demasiado tarde para falarmos sobre a nossa morte.

Esta exposição é organizada pela Babel. Como é que está a ser esta parceria?
A Babel é uma associação fantástica. Tem conseguido fazer coisas impressionantes para o mundo de Macau. É, talvez, a associação que tem a perspectiva mais contemporânea, ao tentar criar diálogos sobre arte contemporânea que são os mais importantes do momento. Todo o trabalho que tem feito também ligado à educação faz com que se esteja a tornar numa das associações mais importantes do território. A minha experiência está a ser óptima. Tanto a Margarida Saraiva, como o Tiago Quadros têm um conhecimento bastante vasto sobre arte contemporânea e acaba por ser mais fácil trabalhar com pessoas que sabem o que estás a dizer. Depois, é difícil recusar a oportunidade de poder expor na Casa Garden, de ter aquele espaço todo para fazer uma exposição. Estou a gostar imenso de trabalhar com a Margarida Saraiva enquanto curadora, porque dá bastante espaço ao artista para que ele se encontre. Vai sugerindo coisas mas tem uma capacidade de diálogo bastante interessante.

20 Jan 2017

José Drummond na lista final do Sovereign Asian Art Prize

É a terceira vez que José Drummond, artista plástico português radicado em Macau, é nomeado para o prémio mais importante da região vizinha na área das artes. O reconhecimento lá fora não acompanha o que se passa em casa

[dropcap]T[/dropcap]rata-se de uma nomeação directa, conquistada pela presença este ano no Sovereign Asian Art Prize. José Drummond foi finalista na edição de 2016, tendo o seu trabalho sido mostrado na Christie’s, garantindo um lugar na competição do próximo ano. Regressa ao mais importante prémio das artes em Hong Kong com três trabalhos, todos eles feitos com caixas de luz. É a terceira vez que o artista português, a viver em Macau há mais de 20 anos, entra na lista daqueles que a organização entende serem os melhores da Ásia. “É sempre bom. Não acho que os prémios sejam completamente reveladores do trabalho que as pessoas fazem no trajecto da sua carreira, mas são veículos de reconhecimento que acabam por ser importantes, especialmente nos dias de hoje”, comenta José Drummond ao HM. “Nesse sentido, é óptimo.”

Organizado anualmente, o Sovereign Asian Art Prize convida artistas contemporâneos, que estejam a meio da carreira, para submeterem três trabalhos online. As obras são depois avaliadas por um júri da região constituído por especialistas em arte, que escolhem os 30 melhores trabalhos.

É esta selecção que vai estar ex- posta num local público em Hong Kong, sendo que se segue depois uma nova apreciação. O artista vencedor recebe 30 mil dólares norte-americanos. À excepção da obra vencedora, os restantes trabalhos são leiloados durante a gala de atribuição dos prémios. Além da obra seleccionada pelo júri, é ainda distinguido o trabalho que mais votos recebeu do público que foi ver a exposição.

“É um dos prémios mais importantes da região Ásia-Pacífico”, contextualiza José Drummond. “Já começo a ser um repetente, é a terceira vez que estou nesta fase. Penso que será a primeira vez que acontece a um artista de Macau.” O artista português foi o único do território presente na fase final da iniciativa.

DA NOITE E DO DIA

Na edição de 2017, Drummond concorre com um media que tem uma presença importante na sua obra: as caixas de luz. “Tem que ver com o meu interesse em espelhar todos estes conceitos à volta da luz e da sombra. Depois, embora sejam fotografias tiradas no momento, há sempre nos meus trabalhos uma condição teatral, cenográfica, quase encenada. É por isso que tenho optado, para estas séries, pelas caixas de luz.”

As três obras a concurso resultam de fotografias tiradas à noite, um momento em que a cidade se transfigura. Na sequência de um trabalho que tem vindo a fazer, as imagens obedecem a uma narrativa poética, que “tem que ver com o estado de desassossego, com a insónia”.

No primeiro trabalho, “Think of the saddest thing in your life”, vê-se uma fotografia tirada num lago. “É só água. Digo, a determinada altura no texto, como a água pode ser tão opaca quanto a vida. Temos esta ideia de que a água é transparente, mas não é”, observa. “Mais uma vez, tem que ver com a teoria da luz, com as cores. Nesse trabalho usei luz que transformasse a cor normal do lago. Ficou azul porque forcei a que casse assim.”

“All those moments at night when you’re not with me”, a segunda fotografia, “é mais próxima de um instantâneo” e está relacionada com uma investigação que o artista plástico tem estado a fazer, associada à ideia da “ausência do outro, que nos leva a deambular pelas ruas”.

Trata-se de uma série em que José Drummond procurou captar situações que entende serem interessantes na cidade. A imagem em questão mostra o recanto de uma pessoa que “colecciona coisas inúteis que recolhe do lixo”. “Colecciona garrafas de plástico e pendura-as à entrada de casa. Tem as portas de casa abertas e consegue-se ver tudo o que se passa lá dentro.” Há uma certa organização no espaço fotografado, explica: “Tem uma cadeira pendurada, há uma lógica muito pessoal que nos faz confusão. Esta pessoa em especial tem sido objecto da minha investigação há algum tempo, com fotografias em diferentes momentos do dia e com objectos diferentes”.

“Não acho que os prémios sejam completamente reveladores (…), mas são veículos de reconhecimento que acabam por ser importantes.”
JOSÉ DRUMMOND, ARTISTA PLÁSTICO

A fotografia enviada para Hong Kong tem “um ar quase de ficção científica”. “Não tenho qualquer intervenção na imagem, a não ser clicar”, refere. No entanto, o lado cénico mantém-se. “Tudo aquilo é encenado, mas por outra pessoa.” A fotografia insere-se numa série em que Drummond vai à procura de pessoas que estão, de certa forma, fora do que é convencional, “personagens que são deixadas para trás” na sociedade.

O último trabalho, “When my hands make your heads spin”, tem a morte como subtexto. “É uma reflexão. São dois ravers no final de uma festa. O final da festa significa também quase o final do corpo. A paz é quase morte, naquele sentido. Depois de toda a excitação e do excesso que possa ter havido, há depois este momento, completamente oposto”, mostra. “Esta dualidade entre vida e morte é um lado que tenho andado a explorar. É muito difícil falar sobre a morte e registá-la. Nunca conseguimos fazer uma boa representação da morte porque não sentimos a nossa; só a sentimos através da morte dos outros.”

LÁ FORA

Nos últimos anos, José Drummond tem sido mais valorizado fora de Macau do que em casa. “De algum modo, parece que o meu trabalho vai sendo mais reconhecido fora de Macau do que aqui”, diz.

Além do lugar conquistado entre os finalistas da edição de 2016 do Sovereign Asian Art Prize, o artista teve o seu trabalho exposto na Berlin Transart Trienalle, em Agosto passado.

Durante este ano, participou em festivais de vídeo de Portugal, Espanha e Áustria. Juntamente com a artista Peng Yun, teve uma obra no Rosalux Project Space em Berlim. Por cá, fez um trabalho especificamente para a última edição do Festival Literário Rota das Letras.

José Drummond teve ainda um ano muito activo enquanto curador. Foi responsável por mais uma edição do VAFA e do festival de vídeo experimental EXIM, além do papel desempenhado na selecção de obras para a exposição que assinala o nono aniversário da Art For All, cuja inauguração está marcada para esta semana.

O ano do artista plástico termina com uma projecção de um trabalho na Cinemateca Paixão, no próximo dia 28, que serve de introdução à obra que, em Janeiro de 2017, vai apresentar.

20 Dez 2016

Radical USA ou No Future 2016?

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s teorias de supremacia racial – que como se sabe também se baseiam em dados estéticos e antropométricos – que têm aparecido associadas a Donald Trump são de um bizarrismo absoluto se nos decidirmos a julgar a beleza dos focinhos e o fulgor de inteligência que salta pelos olhos do próprio Trump, de Steve Bannon – o seu escolhido para White House Chief Strategist e conhecido extremista de direita, das três autarcas que chamaram “macaca” a Michelle Obama após cuidadoso exame à sua aparência e agora de Richard Spencer – líder do movimento neonazi americano – que apesar de um corte de cabelo de estética alemã dos anos 30 não esconde o sebo físico e mental.

Quanto aos primeiros peço desculpa por dizer isto mas por favor comprem um espelho antes de abrir a boca. Quanto a Spencer tudo isto é grave. Muitíssimo grave. As recentes imagens da conferência onde utilizou o termo “Hail Victory” e onde várias pessoas na audiência se exultaram com saudações nazis são, no mínimo, preocupantes. No radicalismo do seu discurso questiona-se se os opositores de Trump são pessoas – “Indeed, one wonders if those people are people at all”, exige que se viva no mundo que imagina – “We are the dreamers of the day, those who do not want our vision or even our fantasies to be escapes from reality. We want them to be the reality… We demand to live in the world we imagine”, faz a retórica do branco vitimizado (eu sei apetece dizer WTF) – “a white who takes pride in his ancestors’ accomplishments is evil, but a white who refuses to accept guilt for his ancestors’ sins is also evil”, prossegue em exprimir ódio por judeus ricos – “a wealthy Jewish celebrity bragging about the end of white men”, ataca a cor racial e considera que os esquerdistas são comunistas até confirmar o pior – “America was until this past generation, a white country, designed for ourselves and our posterity. It is our creation, it is our inheritance, and it belongs to us… They need us, and not the other way around… We are, uniquely, at the center of history… No one mourns the great crimes commited against us. For us, it is conquer and die… We were not meant to beg for moral validation from some of the most despicable creatures to pollutte the soil of this planet. We were meant to overcome, overcome all of it”, e acaba com – “Hail Trump. Hail our people. Hail Victory.”

O aparecimento desta eloquência de teor nazi, em discurso público, nos Estados Unidos junto com o crescimento da extrema direita numa Europa complexa apenas confirma que o mundo onde a intransigência é questionada, em que muitos de nós acreditamos e considerarmos como certo, está em perigo iminente. O New York Times publicou, à uns meses e antes do Brexit, um gráfico sobre o crescimento da extrema direita na Europa onde era possível de ver que os únicos dois países da Europa sem extrema direita reflectida em votos são Portugal e Espanha e que o país que se segue com o número mínimo é a Alemanha. Nesse mesmo gráfico pode-se também ver como Hungria a Áustria lideram uma tendência inquietante. Se Le Pen vencer as eleições francesas no inicio do próximo ano será mais uma afirmação dessa tendência e passaremos a olhar para o quinteto do conselho de segurança das nações unidas como a afirmação da manipulação de massas através de uma oratória de prepotência e conservadorismo do poder. Se Le Pen ganhar junta-se a Trump, Putin, Xi Jinping e Theresa May e neste momento torna-se essencial que, aquilo que muitos pensamos nunca vir a defender aconteça que é a continuação de Angela Merkel à frente da política alemã.

Para que o mundo possa manter alguma sanidade tem que haver tolerância, independentemente de opiniões políticas diferentes, religião, raça e género. Um mundo regido por déspotas é um mundo perigoso. Uma América onde alguém como Spencer aparece é uma América muito perigosa. Temos todos que fazer uma breve revisão da história e de alguns crimes contra a humanidade: A colonização de todo o restante mundo pelos europeus, durante séculos consecutivos, e sem números concretos de mortos (200 milhões?) ; Toda a escravatura no mundo inteiro sem números concretos de mortos (200 milhões?); A colonização da América pelos europeus com mais de 100 milhões de mortos; O “Grande Salto em Frente” de Mao Zedong com 45 milhões de mortos em quatro anos e mais uns calculados 33 milhões de mortos durante o resto da sua permanência à frente da China; O Holocausto com 17 milhões de mortos mais todos os outros horrores do nazismo de Hitler e calculados 65 milhões de mortos pela segunda guerra mundial; O genocídio de Holodomor com 7,5 milhões de mortos mais os restantes calculados 50 milhões de mortos do regime de Estaline; Gengis Khan com as suas conquistas pela força e calculados 40 milhões de mortos (10% da população mundial no seu tempo); A acção britânica na índia com calculados 27 milhões de mortos; A queda da dinastia Ming com 25 milhões de mortos; A rebelião Taiping na China com 20 milhões de mortos; O Império Romano e a sua queda com pelo menos 7 milhões de mortos; As invasões de Napoleão com calculados 4 milhões de mortos; A guerra do Vietnam com mais de 4 milhões de mortos; A guerra civil da Nigéria com pelo menos 3 milhões de mortos; O genocídio do Camboja com pelo menos 2,5 milhões de mortos; As bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki; Aleppo…

O infindável número de atrocidades onde a mesma retórica de Spencer da conquista, do nacionalismo, da imposição política ou da superioridade racial resultou em crimes horrendos contra a humanidade – os quais não nos podemos esquecer – foi aplicada, não é um bom prenúncio. Um ser humano é um ser humano com os mesmos direitos que todos os outros seres humanos. Não há melhor nem pior. A Europa não é a origem do mundo. Não há raças superiores. Não há religiões superiores. Os homens não são superiores às mulheres. As pessoas com escolhas sexuais diferentes não são pessoas doentes e etc… Este é o ano 2016 e não é 1949, 1933, 1928, 1206, 1769, 1635, 1850 e etc… Há-que entender isto.

24 Nov 2016

Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xiste uma diferença substancial entre culpa e vergonha. Existe uma diferença substancial entre sentirmo-nos culpados de algo e sentirmo-nos com vergonha de algo. Para nos sentirmos culpados não precisamos necessariamente de sentir vergonha e para termos vergonha não precisamos necessariamente de ser culpados. É exactamente aquilo que parece se passar com o caso da demissão de Marco Muller da direcção do Festival internacional de Cinema. O culpado não tem vergonha de como se porta, e nós, pessoas da cultura de Macau, sentimos vergonha. Sentimos vergonha que Macau protagonize continuadamente o desrespeito por qualquer ideia de dignidade para com quem trabalha e dá o melhor de si pela evolução da cultura em Macau. O pior de tudo é que olhamos para o que aconteceu sem surpresa, ora porque somos – também nós programadores e artistas locais repetidamente tratados de forma semelhante, ora porque o vimos acontecer vezes sem conta em relação a tudo.

A oligarquia muito específica de Macau e à qual eu me referia no texto da semana passada antes de passar à situação dos Estados Unidos está, em Macau, sempre descaradamente em prática e quem tiver o assombro de a desafiar sofre com isso. E sofre porque quem beneficia desse estado oligárquico tudo faz para destruir ou apagar quem tem o arrojo de questionar o establishment da cidade.

Repugnância existe mais ou menos em oposição a atracção. Isto para dizer que se o Festival Internacional de Cinema era atraente por ter uma figura de tanta importância na sua direcção torna-se agora repugnante pelo modo como se trata essa pessoa. E este sentimento de repulsa associa-se ao da vergonha quando se pensa no modo como uma determinada associação (MFTPA – Macau Film and Television Production Association) se acha no direito de interferir, manipular, abusar, e ultrapassar as decisões de quem foi contratado para dirigir o festival. Vergonha pelo modo como Macau mais uma vez falha e se maltrata pelo modo como trata uma pessoa com tanta qualidade e que tantos benefícios poderia trazer à cultura de Macau. Vergonha pelo desrespeito para com a pessoa e por não se mostrar ter um pingo de carácter no processo avançando para tribunal em vez de tecer um agradecimento pelo trabalho feito agindo de forma adulta independentemente da diferença de opiniões.

As pessoas que, num processo como este, avançam para tribunal não merecem ser chamadas profissionais. São pessoas que mostram não ter maturidade nem classe para fazer aquilo que estão a fazer. As pessoas que fazem este tipo de coisas são exemplos do vírus continuado do amadorismo existente debaixo da capa do talento local onde apenas se enriquecem a si e que em nada beneficiam a sociedade. Estas pessoas não têm lugar em organizações de eventos culturais. Estas pessoas não respeitam o outro. A estas pessoas não pode ser conferido poder numa área tão importante como a cultura.

Agora voltamos aquilo que conhecemos. Voltamos àquele estado umbilical onde somos olhados de fora com desconfiança e até desprezo por aquilo que representamos. E é esta a santa sina de quem faz cultura em Macau. Para poder ambicionar a ser-se minimamente reconhecido fora de Macau tem-se que: ou dizer que não se é de Macau, para não levar logo com a etiqueta do jogo, do mau ou muito mau, e para evitar aqueles sorrisos condescendentes de quem se controla para não rir directamente na cara; ou tem-se que, através de um trabalho de excelência, conseguir ultrapassar o estigma local do benefício de uns em detrimento da qualidade – prática que durante décadas tem prejudicado a sociedade. Poucos conseguem ser reconhecidos fora de portas e os que conseguem quando voltam à terrinha voltam a ser tratados da mesma forma porque são uma ameaça para quem beneficia financeiramente com todo o circo oligárquico, numa pantominice que exaspera qualquer pessoa séria. A cidade do entretenimento, onde se confundem todos os valores da ética e onde se força a verdadeira cultura e arte a definhar, é nesse sentido uma vergonha.

Macau não está 50 ou 100 anos atrasado culturalmente. Macau simplesmente não existe. E não são patos gigantes, paradas ou carrinhos de choque que a colocam no mapa. Macau não existe porque não quer existir. Porque se quisesse existir percebia que há artistas e programadores de Macau com desempenhos elevados ao nível do discurso contemporâneo, que se tornam internacionais devido ao seu talento, que são apreciados e reconhecidos em festivais, prémios prestigiantes, bienais e Museus no ocidente, na  ásia e no continente, e que em Macau são tratados da mesma forma que se tratam diletantes ou estudantes do secundário. Macau não existe porque há já muito tempo que deveria ter percebido que num mundo global os directores de Museus e festivais são pessoas com cartas dadas na área e não funcionários públicos. Macau não existe porque não respeita uma lenda do cinema mundial e ao não a respeitar não se respeita a si própria.

Para terminar há-que recordar que o mesmo grupo económico que está ligado à MFTPA está também ligado à estranha saída do coordenador do Grande Prémio de F3, que estava no lugar desde 1983, a cerca de dois meses do evento. O mesmo grupo económico que gere os fundos de 55 milhões para o Festival Internacional de Cinema dos quais 20 são das finanças públicas. Coincidência ou piadas de mau gosto que custam muito dinheiro? A cultura em Macau é um cálice que antes de ficar cheio se estilhaça pelo ar. Macau é o perfeito exemplo da Lei de Murphy: “Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal”.

17 Nov 2016

A recompensa da ignorância

[dropcap style≠’circkle’]N[/dropcap]ão! Nada disto faz sentido! Não faz sentido que continuemos à espera que as coisas se resolvam com medidas políticas ou que exista justiça quando existe tanta gente tão fácil de manipular. Não faz sentido acreditar que alguma vez as coisas vão mudar e que não vão ser sempre os mesmos a ser privilegiados. Não faz sentido acreditar num qualquer qualquer estado de graça onde teremos todos os mesmos direitos e onde ninguém irá sair prejudicado. Não, isso não existe. Não faz sentido pensar que o real valor de cada um será alguma vez reconhecido em vez de serem reconhecidos os amigos ou os oriundos de famílias influentes ou de grupos de poder dominantes. Nada disto faz sentido porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! O estado de graça não existe. O que existe é um continuado exercício do mal no qual se prejudicam muito rapidamente as minorias. O que existe é apenas um tenebroso recolhimento onde permanecemos sem respirar e onde nos fechamos em concha. Onde deixamos de dizer, pensar, ser. O que existe é sermos constantemente empurrados para não falar, não exprimir opinião, não ter vida porque qualquer uma dessa coisas nos prejudica e mesmo assim iremos sempre acabar a mendigar para comer. O que existe é que vão sempre ser os mesmos a ocupar os lugares mais favorecidos, não porque tenham mais qualificações ou mais qualidade para o fazer mas sim porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! É vergar e obedecer. Não questionar a autoridade. A ignorância é recompensada. O venerar falsos ídolos é recompensado. E qualquer luz disfarçada que possamos querer acreditar, neste ou naquele comentário político, não é mais que uma luz falsa, não é mais que uma ilusão. Toda e qualquer luz em que queiramos acreditar será imediatamente usurpada do seu brilho, da sua esperança, pelas elites, pelos demagogos, pelos oportunistas. Toda e qualquer luz será retirada de um e dada a outro que por mérito próprio nenhum a absorverá apenas porque se chama assim ou assado ou tem este ou aquele amigo ou obedece e se porta bem. Não faz sentido acreditar em mérito ou mesmo lutar, trabalhar, fazer melhor, porque tudo isso de nada vale e a tudo isso se renuncia em favor de pessoas menos qualificadas mas com maior poder de intrujar.

Não! Nada disto faz sentido! Não faz sentido acreditar nos direitos humanos, na igualdade das mulheres, no respeito racial. Não! É mesmo uma ilusão! Não faz sentido dedicar toda uma vida a um lugar que nunca reconhece o real valor do trabalho que se faz. Não faz sentido ficar nesse lugar quando fora dele se é reconhecido e acariciado. Não faz sentido que se tenha que renunciar a uma melhor qualidade de vida apenas por amor a esse lugar. Não! Nada disto faz sentido e não vale a pena chorar porque é assim que o mundo é.

Não! Não! Não! Se esse lugar é tão burro que continua a dar tudo a uns e nada a outros o melhor é tomar coragem e tomar a decisão correcta e, como numa separação amorosa, pedir o divórcio. Se esse lugar não reconhece, não dá o devido valor, então é tempo de partir. Se esse lugar não merece quem mais trabalha para a sua evolução, ou para o desenvolvimento de uma área da sua sociedade, então é tempo de o abandonar. Se esse lugar não está interessado em evolução e não está interessado em ser melhor, e se está apenas interessado em proteger os mesmos que sempre protegeu, então não há nada mais para fazer que abdicar da esperança, partir, manter a sanidade mental, porque nesse lugar não importa nada. Nesse lugar o que importa é como é que cada um se chama, assim ou assado, ou se tem este ou aquele amigo, ou se pertence a este ou aquele grupo de poder e é assim que o mundo é. E isto é verdade tanto aqui, deste lado, como aí, do vosso lado, amigos americanos.

Sim! Não faz sentido! Mas era esperado ou pelo menos eu esperava. Assim o previ há 18 meses atrás. Simplesmente óbvio para mim que Baudrillard e a híper realidade se reviam do fenómeno Trump e na teoria do reality TV, e que o asno iria ganhar sobre qualquer outro e é por isso que ainda faz menos sentido. Um predador sexual, mentiroso, aldrabão, racista, misógino, apoiado pelo KKK derruba com qualquer ideia da América como ideia de infinito sucesso individual e de liberdades colectivas. Um homem que nem a universidade terminou, que passou a vida toda a viver à conta do dinheiro do pai, que apresentou bancarrota inúmeras vezes, que tem inúmeros crimes fiscais, empréstimos dúbios, negociatas ilegais, que tem uma acusação de violação a uma menor e mais um número enorme de outras alegações de crimes sexuais e de racismo, chega a presidente e destrói com qualquer possível ideia de equilíbrio e de um futuro melhor e com qualquer ideia de esperança de balanço político e justiça social. É assim. Não faz sentido mas é assim que o mundo é.

Não faz sentido mas a América, que cai vulgarmente no mais grosso nacionalismo, expressou-se em massa de modo naïf pelo candidato que lhe vai retirar direitos. E não irá chocar se a economia voltar a um estado de recessão. É absolutamente fantástico como as pessoas são tão facilmente atraiçoadas por uma questão de empatia. O homem que vai destruir com tudo o que foi conseguido durante as últimas três décadas em direitos sociais e nos últimos oito anos em direitos de saúde e melhorias financeiras ganha, porque na burrice dos americanos, gera mais empatia com a sua malcriadez e porque se resolveu considerar que a sua oponente era a candidata do establishment.

Não faz sentido ser-se tão burro. Trump quer dizer establishment seus burros. Ou o que é que acham que um gajo com hotéis e casinos é? Os vossos direitos estão agora em perigo seus tontos, e isto é tanto verdade que basta apenas saber ler as suas declarações. A América que cai sempre na usurpação do nome do continente como se não houvessem outros países, que confunde continuadamente Estados Unidos com América. Sim essa mesma América que se considera a líder do free world e o país mais importante  do mundo e etc. e tal entregou o seu destino a um wannabe déspota que apresentou como política a fabricação de caminhos ínvios que apenas o beneficiam a ele próprio e aos que continuadamente praticam a mesma arte da intrujice onde tudo vai ser “great, you’ll see, so great, the best.” De repente até parece que estamos numa qualquer continuação do “They Live” do John Carpenter e onde apenas alguns têm o poder de ver os extraterrestres que estão no poder a dominar-nos.

Sim, não faz sentido que o candidato que acha que a China esteve bem no modo como limpou Tiananmen da revolta estudantil, que idolatra Saddam Hussein, Putin, Kim Jong Un e que acha que os países europeus têm que pagar para serem defendidos militarmente tenha ganho – embora que também isto seja uma mentira porque ele vai é aumentar a posição militar no mundo ou não fosse ele republicano. Sim não faz sentido que tenha sido a mesma pessoa que vai destruir com todos os acordos comerciais e que ao fazê-lo irá entregar o mundo de mão beijada à China. Boa sorte na vossa falência minha querida América. Tenho pena que tenhas escolhido o suicídio. A China, neste momento, estará secretamente a celebrar o facto de se ir tornar no país mais rico do mundo muito mais cedo do que o esperado. A Rússia por seu lado celebra ter eleito o seu primeiro presidente dos Estados Unidos. Muitos parabéns a todos.

E muito obrigado América, acabas de fazer com que todos as outras pessoas do mundo se sintam imensamente espertas. Quanto a mim estou oficialmente do lado da resistência e estou ao dispor se alguma cidadã americana se quiser corresponder comigo com vista a casamento. Tenho passaporte europeu, residência permanente de Macau, visto de longa duração na China e sou carinhoso, bom companheiro, não sou um bad hombre e até acho interessante se a senhora for um pouquinho nasty.

10 Nov 2016

Que mundo é este?

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue mundo é este? Que mundo é este que morde e nos aprisiona por entre raivas e tentáculos de febre? Para que serve um mundo assim? Um mundo onde Aleppo existe. Um mundo onde ditadores se juntam a ditadores para continuar guerras onde são os civis que mais sofrem. Que mundo é este que se desvia do prometido? Que se escurece entre negras emboscadas de princípios? Onde não há refúgio. Onde o refúgio é noutro país e nunca garantido, e não é equivalente de liberdade ou aceitação. Não falo do meu espanto. Não falo do que disfarço. Não falo das minhas asas quietas. Falo das mentiras. Do jogo de poderes. Falo do medo. Um medo que é de todos. Falo da insegurança do ser. De ser. Que mundo é este onde ser é equivalente a retraimento? Que mundo é este onde a tortura se tornou normal? Onde o tempo é indeciso e evita igualdades? Onde todos nos tornámos culpados de alguma coisa simplesmente pela cor da nossa pele? Que mundo é este que me alveja o peito com dor? Uma dor profunda, um gládio certeiro na existência. Que se escapa por entre dedos. Que mundo é este que nos puxa e onde nos puxamos uns aos outros por entre areias movediças?

Mas que realidade é esta? Como podemos aceitar que neste mundo é possível mudar governos sem que o povo tenha uma qualquer voz nesse processo? Que mundo? Que sintomas clínicos? Que passos seguros? Para onde vamos? Onde existe o pulsar do sangue? Onde está a bondade? As rugas do conhecimento? De que esperança nos acreditamos portadores? E que esperança existe num mundo onde se elegem pessoas que defendem separações de raça, género, opção amorosa de género? Um mundo que parece voltar atrás a cada dia. Que se amálgama em sangue. Que se amálgama em malefícios de julgamento. Que se aniquila por poder. Que se autodestrói levando consigo tudo. Que nos separa em vez de nos unir. Que não nos dá força para enfrentar a solidão. Que nos faz solidão. Que nos ignora. Que nos abandona num precipício. Num abismo. E de que iremos falar quando não houver água? Quando não houverem manhãs? Quando não houver planeta? Quando nas margens das nossas vozes se tiver apagado o fogo das palavras? De que iremos então falar? Que mundo é este? Que século é este que parece ter destruído todos os valores para os quais se lutou durante tanto tempo?

Que mundo? Que realidade? Onde apetece não saber mais. Não ler mais. Desligar. Fechar os olhos. Deixar acontecer. Calar a alma. Este não é o mundo com que sempre sonhei na minha adolescência. Não. Este não é o mundo da justiça e igualdade e possível felicidade. Nesse meu mundo imaginado na adolescência não existe espaço para presidentes que mandam matar antes de qualquer julgamento, antes de qualquer condenação. Nesse meu mundo imaginado existem valores humanistas. Compaixão. Nesse meu mundo imaginado existe conhecimento e não existem fanatismos. Não existem cegueiras de considerações. Nesse meu mundo existe respeito por todos. Um mundo onde não existe espaço para ditadores e guerras e regimes onde se perseguem as pessoas pelas suas opiniões, pelas suas opções de vida. Mas o mundo não é o meu mundo imaginado na adolescência. Nunca foi. Foi sempre injusto. Foi sempre palco de cobardes sem valores morais que usam a violência para dominar aqueles que não têm hipóteses de se defender. Afinal o mundo parece não ser mais que um jogo de conquistas globais, qual batalha naval, qual risco.

Mas que mundo é este afinal onde se apresentam mísseis nucleares capazes de fazer desaparecer países inteiros ao qual se dá o nome de Satan 2? E há pessoas que acham bem. Um mundo onde se fazem ameaças constantes. Ameaças nucleares. Ameaças de invasão. Ameaças de destruição. Que mundo é este onde o candidato à presidência do país com maior armamento do mundo considera que regimes autoritários são de louvar? Que considera que o estado chinês agiu bem na reacção que teve para com a revolta estudantil em Tiananmen? Que elogia déspotas como Kim Jong Un, Putin, Saddam Hussein. Que acha que as mulheres são julgadas numa escala de 1 a 10. E que defende que as mulheres devem ser penalizadas severamente por terem tido a infelicidade de ter que fazer um aborto. Que se acha acima de tudo e que pode fazer tudo. Que defende divisões de raças e géneros e tudo o mais que é tão horrível de pensar quanto mais dizer.

Mas o que é isto? Mas que mundo é este e o que é que é preciso para que todos estes políticos e pessoas do poder percebam que vivemos todos no mesmo planeta? Que as fronteiras são ridículas? Que somos todos humanos e que temos todos os mesmos direitos independentemente das nossas origens, extractos sociais, raça, género ou opção amorosa? Que temos todos o direito de existir e de ser respeitados e protegidos independentemente de possíveis maiorias e de possíveis escolhas de elites. O que é que é preciso para perceberem isto que é tão básico? Uma invasão extraterrestre?

Que tipo de angústia nos está preparada num futuro próximo?  Que mundo é este onde é possível em Macau cometer um crime tão violento como o crime de violação e tentativa de assassinato que aconteceu nesta última semana? Que mundo é este? O que é isto afinal? Existe esperança? Sou de imediato levado a pensar que não e quero de imediato refugiar-me no amor e nos sorrisos dos meus filhos e na arte e nos livros. Quero de imediato refugiar-me em algo que possa confiar porque o mundo desconfia de todos. Quero de imediato refugiar-me num fio de música. Numa noite que transforma. No rio oculto de emoções que o amor nos dá. No núcleo que arde dentro de nós e que nos altera para melhor ao qual muitas vezes chamamos alma. Nesse sonho onde se elide o sofrimento e onde a eternidade é possível. E refugiado penso que afinal existe esperança. Existe esperança no amor, nos meus filhos, na arte, nos livros, na bondade e em tantas outras coisas tão boas neste mundo. E existe esperança nas pessoas. Em pessoas como o motociclista que, de passagem ao lado de um contentor, conseguiu ver a perna da rapariga violada, esfaqueada, violentamente agredida e deixada pelo seu agressor no lixo com a presunção de que estaria morta. Existe esperança em pessoas como o motociclista que na presença de um crime hediondo não vira a cara e telefona para a polícia e que, com isso, poderá ter salvo uma vida. Mas que mundo é este? Um mundo horrível certamente, no qual não sabemos o que nos destina o dia de amanhã mas temos que acreditar que existe esperança enquanto houverem heróis desconhecidos como este motociclista.

3 Nov 2016

Você está no lugar certo e no momento certo

Caro leitor,

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitas vezes ficamos com arrepios na espinha quando uma coincidência se apresenta perante nós. Quando me apercebi de todo o seu imenso potencial percebi que tinha que falar consigo. Um potencial ainda por se revelar mas que pode finalmente encontrar o seu rumo. Percebi que você é uma das pessoas que pode usar o incrível poder de comprar Arte. Arte e não simples artesanato feito com materiais baratos e que pode ser adquirido nas feiras regionais. Arte com aquele sentido angélico, carregada de símbolos misteriosos, incrível poder relaxante e elevação do ser. Arte que abre portais e transcendências para o conhecimento.
Meu caro amigo, esta é uma oportunidade verdadeiramente rara e magnífica de se tornar um coleccionador de Arte. De conquistar, para a sua vida, algo absolutamente mágico. Já se imaginou protegido por objectos artísticos que lhe podem trazer milagres, orientação e amor? Peças que irão mudar a sua vida. Obras que lhe permitirão viver os seus sonhos. É por isso que, por exemplo, desde os tempos antigos, a Arte é coleccionada por todo o mundo por uma certa elite mais informada. Esta é uma oportunidade que muitas pessoas não têm por isso por favor leia com atenção.
O seu objecto artístico irá criar um “Portal” (uma ligação exclusivamente sua) com o artista e através do objecto artístico terá o milagre de desfrutar uma vida mais feliz e mais completa. Irá poder ver que Arte não é uma peça de artesanato comum. Os materiais e a dedicação que existem na sua produção são condizentes dessa magnitude. Na verdade, a Arte tem sido coleccionada ao longo da história por uma elite que não queria revelar o segredo da sua fortuna espiritual. Essa fortuna espiritual está agora ao seu alcance. A incrível beleza, que existe na elaboração de objectos artísticos torna-os sagrados e todo esse sentido de felicidade, protecção e iluminação está agora ao seu alcance.
Ao longo dos tempos os coleccionadores de Arte sabem que coleccionar objectos artísticos aumenta o seu próprio poder pessoal, a sua coragem, a sua confiança e força de vontade. Arte também atrai riqueza. Já ouviu a expressão “dinheiro atrai dinheiro”? Ora se a sua peça for comprada por um preço justo para o artista não tenha dúvidas que o artista se valorizará ao longo do tempo e que mais obras de arte irá atrair para si e mais património financeiro terá ao seu dispor. Esta é outra das razões pela qual a Arte tem sido tão procurada e acumulada por pessoas mais poderosas.
Os objectos artísticos são os bens mais poderosamente misteriosos e espiritualmente absorventes na Terra. Têm a habilidade de nos surpreender, proteger, curar e evitar infecções da alma. Mas isto é apenas a ponta do iceberg, porque a Arte também aumenta e fortalece habilidades psíquicas e de intuição. A sua energia amplia todos os seus poderes enquanto pessoa. Coleccione Arte e verá o quão verdadeiramente maravilhosa e linda a vida pode ser.
Mas há mais! Muito mais, porque a Arte tem uma existência requintada e trará para a sua vida uma elegância que quem não colecciona nunca conseguirá. Por favor mantenha isto em segredo mas se coleccionar hoje muito possivelmente o seu investimento será imediatamente expresso na sua cara. As pessoas à sua volta irão notar que algo está diferente em si. Uma felicidade que irão invejar. A Arte protege-o de forças negativas e atrai boa sorte, riqueza e amor. Os padrões que envolvem a dedicação que cada artista põe na criação de objectos artísticos são padrões com mais de mil anos. Padrões com energias positivas poderosas que convocam entidades espirituais, companheirismo, orientação e milagres. É por isso que quero que mantenha o seu objecto artístico à vista de todas as suas visitas em casa. Estas linhas de força podem também ser encontradas no Neolítico e foram utilizadas para guiar o homem antigo pelos caminhos invisíveis de energia que ligam os humanos aos seres mágicos e espirituais. Se alguma vez se sentir ameaçado ou inseguro, ou se achar que está a faltar motivação ou direcção, ou se está num lugar onde realmente precisa de um milagre para resolver um problema ou superar um obstáculo que está entre si e os seus sonhos, basta deixar-se envolver e apreciar a obra artística por alguns minutos por dia e toda a vitalidade, sorte e coragem serão suas.
A Arte é o seu perfeito talismã. Encontre o segredo e a segurança espiritual dos antigos e das elites. Com cada objecto artístico terá o seu próprio certificado de autenticidade. Esta é uma rara oportunidade de transformar completamente a sua vida e a dos que estão ao seu redor. A sua satisfação será garantida. Não perca mais tempo. Você está no lugar certo e no momento certo. Coleccione Arte.

Atenciosamente,
Um artista ao seu dispor

29 Set 2016

Querida, embora dar umas beijocas debaixo da torre?

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]aris é habitualmente considerada a cidade das luzes e a cidade do amor. No número de clichés que contribuem para essa definição incluem-se, entre outros, a viagem de barco no Sena ou simplesmente um passeio à beira rio,  os campos Elísios, a atmosfera de Montmartre e de Montparnasse, a Notre Dame, uma ida a um espectáculo no Moulin Rouge, um jantar no Tour D’Argent, os inúmeros Museus, os cristais dos candeeiros de rua, o escrever os nomes dos enamorados num cadeado para colocar na Pont Des Arts e mandar a chave para o rio e, claro, uma beijoca debaixo da Torre Eiffel. Depois existe a língua francesa, na qual tudo o que for dito num determinado tom parece incitar à beleza e a tudo o resto que gostamos de associar com o amor. Mas o amor já não é como era. Os enamorados têm que escolher outras pontes, noutras cidades, pois a tradição, iniciada em 2008, fez com que um milhão de cadeados, com três toneladas de peso, fizesse ruir uma parte da Pont Des Arts em 2014 e, em virtude disso, as autoridades francesas removeram todos os cadeados dessa e de outras pontes. Como se não bastasse, no ano passado, Paris tornou-se também numa das cidades vítimas de atentados terroristas. Hoje em dia uma visita à Torre Eiffel implica ter que passar por medidas extremas de segurança e a tal beijoca poderá ter que ser dada a uma distância considerável.
Das mais de 30 réplicas da Torre Eiffel que já existiam por esse mundo fora podiam-se contar na China com: a de Harbin, uma imitação não assumida de 336 metros que serve de torre de comunicações e que portanto não nos interessa para este devaneio; a de Hangzhou, no famoso empreendimento de luxo falhado e hoje cidade fantasma, nos subúrbios da cidade, com 108 metros; a de Shenzhen, também com 108 metros, no parque temático “Window of the Worlds que em dias de céu limpo pode ver-se a partir dos Novos Territórios de Hong Kong; e a de Pequim, no parque temático “World Park”, que serviu de cenário para o filme “The World” de Jia Zhangke, e que foi construído em 1993 (depois do de Shenzhen). Ora a Torre Eiffel de Pequim existe no tamanho real do da torre original e esse facto faz realmente diferença pois praticamente tudo o resto no parque é uma réplica em miniatura. Jia Zhangke aproveita inclusivamente isso para o plano inicial do filme e para uma nota no discurso de um dos personagens.
A nossa torre não é tão ambiciosa como a de Pequim na altura mas tem metade do tamanho da de Paris que tem 320 metros, ficando assim à frente, em tamanho, da de Shenzhen e da de Hangzhou. Boa. Fixe. Infelizmente não tem um chapéu de cowboy, como a da cidade Paris no Texas, mas não interessa porque “Paris não é Paris sem a Torre Eiffel”, como disse o Cônsul Geral de França para Hong Kong e Macau a determinado momento.
Mas quantas mais Torres Eiffel é que o mundo precisa? E quantas mais réplicas precisa Macau? Já não chega o Coliseu de Roma, a Grande (pequeníssima) Muralha da China, umas ruas holandesas, uma praça portuguesa, uns canais de água venezianos interiores, uma pretensa Gotham, e nem sei mais o quê que fico tão entediado que quase adormeço quando começo a pensar nisso? E qual é a próxima réplica? O Taj Mahal? O Big Ben? Uns Guerreiros de Terracota? Uns túmulos da Dinastia Han? Ou umas Ruínas de São Paulo com o dobro do tamanho, que mudam de cor quando a caravana passa? E quantos espaços todos iguais deresorts, com carpetes semelhantes, mármores semelhantes, e nem sei mais o quê que já adormeci, precisa Macau? Quantas lojas mais da Dior, da LV… Ok. Ok. Ok!!! Estou a desconversar.
Diz-me o Facebook que o que as pessoas gostam mesmo é destas pirosadas portanto embora lá viver alegremente nesta cidade por entre dois mundos no qual se vai adensando um abismo imenso entre eles. Vamos fechar os olhos e partilhar o mundo da ilusão fatela, todo “nice” e brilhante, e fazer “gosto”. Sim, embora fazer isso, pois sendo uma cidade tão pequena tudo passou já a ser parte do parque temático e os residentes, quer queiram quer não, são  também uma atracção. O outro mundo onde realmente se vive, que tem pessoas ricas a insultar aqueles que acham serem inferiores a eles, não interessa. O mundo do tráfico humano não interessa. O da violência doméstica também não. O das injustiças e dos desequilíbrios, não interessa. 
Voltando ao que se esmiuçava no início. Paris e o Amor. Ah, o Amor. Essa palavra tão forte que faz até o mais duro dos corações palpitar. Pois é “Parisian loves locals”. É assim que se tenta seduzir os residentes oferecendo “Instant Rewards” e “Special Offers”. Quanto à inequívoca exploração do tema do amor dedicarei os meus pensamentos para outro texto. Quero mesmo ficar-me pela análise da frase na sua versão em chinês, na qual deparamos com uma manipulação publicitária mais eficaz que o “love locals”. Ora na versão em chinês, 巴黎人愛我, lê-se literalmente “Paris pessoa 巴黎人 ama 愛 eu 我”, portanto “Parisian loves me”. É esta inversão de quem fala e de quem pensa que se opera como sedução psicológica. Em vez de assumir a oferta como se fosse o sujeito, dizendo 巴黎人愛你 “Parisian loves you” (Parisian ama-te), o alterar do sujeito de tu 你 para eu 我 imprime no cérebro a segurança desejada, como se estivéssemos a falar para nós próprios, como se nos assegurássemos a nós próprios que é bom, que vale a pena. É exactamente esse o truque psicológico. A definição para os locais também não é deixada ao acaso e acontece com o caracter amor 愛, em chinês tradicional e não no simplificado 爱, que seria a oferta mais óbvia para os turistas da China Continental .
Agora o que falta dizer é que é feio tentar comprar o amor e que ninguém nos pode obrigar a amar de volta. Mas isso não interessa e não importa se a Torre Eiffel é um dos monumentos com mais réplicas no mundo. O mais importante é que agora podemos passar uma noite completamente romântica a dar umas beijocas debaixo da nossa própria Torre Eiffel.

15 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]aphne é tudo culpa minha. Tudo isto. Eu mereço isto. Abandonei a Xiaolian sem sequer olhar para trás. Sem fazer ideia nenhuma que o sofrimento não se apaga. Que o tempo não cura o amor. Daphne as tuas pinturas. Nas tuas pinturas tu foste feliz. Foste feliz? Daphne é tudo culpa minha. O ciúme que tive pelo teu envolvimento com o Chaoxiong. O ciúme cega. E fiz aquilo. Daphne já te podes ir embora. Liberto-te agora desta tua presença. Depois de ter calado as consonantes dos teus olhos enormes que harmonizavam os sons das tuas pinturas voltaste. Sei agora porque voltaste. Não foi uma escolha tua. Não és um fantasma. Voltaste porque eu vivi todo este tempo desde que deixei a Xiaolian sem face. Um homem sem face. Sem honra. Sem vontade própria. Um exemplo miserável da espécie. Um medíocre em todos os aspectos. Voltaste porque eu tinha que chegar a este ponto de te falar na Xiaolian. E de te falar no remorso. Na culpa. No arrependimento. Naquilo que deveria ter feito e não fiz. Naquilo que deveria ter dito e não disse. Naquilo que não deveria ter feito e fiz. Naquilo que não deveria ter dito e disse. É tudo culpa minha. Se eu tivesse sido mais homem. Mais pessoa. Mas não. Fui igual a todos os outros. Um falhado em tudo o que realmente tem importância na vida. Que não é a carreira. Que não é o dinheiro. Que não são as férias em lugares exóticos. Que não são os apertos de mão a pessoas consideradas importantes. Que não são as casas, os carros, as joias, os relógios, as roupas, e todo esse inferno de possessões que não significa nada. Porque quando nos vamos. Quando desaparecemos. Quando desaparecemos de que é que valem essas coisas. De que é que vale esse pavonear de riqueza? Essa falsa riqueza. De que é que vale. A felicidade que se pode comprar com o dinheiro não é real. É momentânea. E de nada vale se dentro de ti não tiveres espaço para perseguir uma vida com real significado. E todas estas vaidades não têm significado. Não escolhemos onde nascemos. Não escolhemos as pessoas que se cruzam connosco. Tu deverias ter sido feliz. Eu deveria ter-te deixado ir com o Chaoxiong. Estive quase para o fazer quando interceptei uma das tuas cartas. As cartas que lhe enviavas quase diariamente do Japão.

As pessoas morrem quando não têm mais energia para viver. Quando perdem a esperança. Algo morre. Uma luz que se apaga. Daphne voltei a ter esperança. Passado tanto tempo. A dor não significa nada. A dor só nos retrai. Vi a Viúva torturar lentamente a Empregada do Bar que serviu de penso rápido para toda a minha estupidez. Vi a Viúva cozinhar o cérebro desta pobre pessoa que não tem culpa nenhuma de se ter cruzado comigo. Daphne eu sei, percebo agora, que realmente a culpa é toda minha. E que mereço isto. Mereço este último desafio. E que só eu posso travar tudo o resto de terrífico que possa acontecer às pessoas que eventualmente se cruzaram comigo. Sem amor. Como pode uma pessoa passar praticamente toda a sua vida sem amor? Mais vale a morte? Será o silêncio uma morte? As memórias do amor são agora vívidas. Será que vivi sem viver?

Olho para trás. Aquilo que mais amei na minha vida, mais o destrui. “Each man kills the thing he loves”1. Daphne. Pode ser que este seja o único momento de lucidez na minha vida. Um homem sem face. Sem rosto. Redescubro-me. Existi apenas naquele caso de amor com a Xiaolian. E todas as minhas tentativas para encontrar um amor como o dela foram falhadas. Daphne. Tu também. Daphne. Derramei a minha vida sem significado e arrastei os outros. Envergonhado de mim próprio desapareci. A Viúva queria que eu acabasse com o Estripador. Seria essa a minha redenção quanto a ela. Matar-lhe o filho. Matar o teu Chaoxiong que enlouqueceu e que te procura em cada mulher que esfaqueia. À procura do bebé que trazias contigo quando os meus dedos foram os de um pianista no teu pescoço. Tenho apenas mais uma coisa para te dizer. Não o farei. Sei que não é esse o meu destino. Espera. A Viúva está mais nervosa que nunca. Aumentou o volume do som da televisão. “O misterioso criminoso apelidado como o Estripador foi encontrado morto esta tarde pela polícia. Os motivos que levaram este homem a fazer o que fez são completamente desconhecidos. A testemunha que encontrou o corpo do Estripador diz julgar ter visto o vulto de uma mulher a desaparecer.” Daphne não sei o que dizer. Mas o sofrimento dele seria horrível. Talvez agora a sua alma se encontre com a tua. É isso que desejo do fundo do meu coração. A Viúva está desolada. Completamente desolada. Todos os seus planos falham agora. O remorso. A culpa. O arrependimento. Daphne obrigado por tudo. Podes ir agora. Eu sei finalmente o que fazer. A campainha da porta. Quem será agora? Xiaolian?

Oscar Wilde, “The Ballad of Reading Gaol”

Fim da primeira parte

8 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 25 – O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Estou tão confusa. Não sei se a minha última carta chegou até ti. Sinto-me como um deserto ressequido. Olha para mim com este homem e vajo que nunca houve amor. Hoje voltou a deixar-me aqui presa no quarto. Enquanto procurava algo com que pudesse abrir a porta encontrei uma foto dele quando era jovem com esta outra mulher. É impressionante o quanto ela se parece comigo. Nas costas da foto estas palavras: “Para sempre tua baobei, Xiaolian”. E uma data: 1 de Setembro de 2016. Porque continua ele a guardar esta foto passado tanto tempo? Ele sempre me disse que nunca tinha tido ninguém na vida dele. Nenhuma relação séria. “Para sempre tua” parece-me suficientemente sério não achas? Será possível que este homem tenha alguma vez sido bom? Tenha tido bondade dentro dele? Ele não existe aqui, comigo. Não existe. É uma carne que não existe . é uma alma que não existe mas esta foto que encontrei hoje mostra-o feliz. Com um sorriso e uma aura que nunca vi nele. Será que ele alguma vez foi feliz? Que terá acontecido? Não seria tão bom que ele tivesse sido feliz com ela? Esta tal Xiaolian. Nao sei. Talvez os nossos destinos se tivessem cruzado mais cedo. Talvez. Ou talvez não. Talvez seja este o nosso destino. Tu aí, meu querido Chaoxiong, e eu aqui presa num quarto no meio do Japão. Sinto que começo a dar de mim. A não entender os meus processos mentais. Mas não te preocupes. Esta minha descoberta e eu estar a falar-te sobre ela não tem nada a ver com ciúmes. Não tenho ciúmes por ele. Odeio-o. Sinto que depois de passar uma certa idade a vida torna-se num processo de perda contínua. As coisas realmente importantes começam a desaparecer. Escapam-se. E as coisas que ocupam o seu lugar são imitações inúteis. Estou sem força física. A esperança. O que é a esperança? O que é a fé? O que são os sonhos? Os ideais? As convicções? O que significam quando já ase perdeu tudo? De que vale o amor? De que vale o amor se não pode ser cumprido? As pessoas que amamos a desaparecer uma após outra. Uns de forma anunciada e outras sem aviso. Simplesmente a desaparecer. E uma vez que as pessoas desaparecem nunca mais voltam. E tentamos encontrar substitutos. Será que é isso que eu sou para ele? Uma substitua da Xiaolian?

Imagina. Apenas flocos de neve solitários a marcar o começo de um inverno que não acaba. Ao fundo existe um templo. Oiço o badalar dos sinos. Oiço os monges. Todas as manhãs oiço os monges e as suas orações. Oiço os seus passos quando caminham à volta nos seus trajectos de meditação. Sinto estes sons em crescendo. A cada manhã tornam-se mais fortes. Mais profundos. E sinto as reverberações remanescentes. Sinto o fluxo do tempo. E após os sinos do templo do norte aparecem os sinos do templo do sul. Tantos templos e ninguém sabe que eu estou aqui presa. E os quimonos que comprei especialmente para tu mos despires. Será que alguma vez os vais ver? Desculpa-me se estou emocionada. Se me sinto perdida. Gostava de estar contigo. De não me estar a atormentar com esta dor de não saber o que vai realmente acontecer. De não me atormentar por esta tristeza. Por este arrependimento de não ter ido ter contigo e fugir em vez de me ter deixado levar por um sentimento qualquer de que tinha que lhe dizer que estava tudo acabado. Olha agora como eu estou. De que me valeu ter tentado fazer a coisa certa? Os sinos ecoam no meu coração. Mas por quanto tempo?

Odeio este mundo. Odeio esta angústia. Esta inquietação de hoje e tu sempre tão longe de mim. Gostava de ouvir a tua voz. Os teus sussurros quando me dizes que me amas. Por que será que me dói tanto ter descoberto que existiu outra mulher que ele nunca me disse. Que se calhar ainda existe. Ou que pelo menos existe dentro do coração dele. Porque razão guardaria ele a foto se ela não estivesse ainda presente no seu coração? Nunca deveria ter confiado nele. Deveria ter acabado com tudo mais cedo. E mais cedo valorizar o meu tempo contigo meu amor. E este vácuo dentro de mim que não é indolor. Porque existe maldade? Infortúnio? Sofrimento? Destino? Será este o nosso destino? Será este o meu destino? E este vazio. Este nada. Este nada de nada. Esta manhã esteve uma névoa espessa. Muito acima da neblina, nuvens brancas banhadas em uma luz brilhante que parecia irradiar-se da terra. A luz do sol, com raios oblíquos, conseguiu fazer descobrir a montanha em frente. Uma montanha coberta de pinheiros. Mais perto da janela uma moita de bambu com folhas amareladas. O nascer do sol foi roxo. Incomum. Uma suavidade no roxo cheio de graduações subtis. E a neblina ficou rosa por momentos. Isto poderia ser o lugar perfeito para nós. Eu poderia pintar. E até poderia pintar em papel de arroz. E arrastar os pinceis por entre carmins e por entre curvas na distância de nós. Porque estão as pessoas todas trocadas umas com as outras?

1 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Tenho tantas saudades tuas. Faz-me um favor. Coloca a minha música e canta comigo: “Yan jim jeui liu ye gang sam / Joi je yat hak do mo jip gan / Si seung fong chi joi yiu ham / Maau teun ya gang sam // Chang bei po seui gwo dik sam / Yeung nei gam tin hing hing tip gan / Do siu ngon wai kap yi man / Tau tau dik joi saang // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu dang / Je yat hak ching yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan // Chang hoi pa liu je yat saang / Si nei chi jung gam sam kaau gan / Ngo fong ji yung yau jeuk yun fan / Cheung gin ngo seun sam // Chang bei po seui gwo dik sam / Yeung nei gam tin hing hing tip gan / Do siu ngon wai kap yee man / Tau tau dik joi saang // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Jung chi yat saang ya fo bun dik yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu dang / Je yat hak ching yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan. 1


Por vezes gostava de poder acreditar em cartomancia. Acreditar que existe algo premonitório numa coisa completamente alienatória como uma sequência de cartas. Ou em astrologia. Acreditar que de cada vez que olho para as constelações algo se mexe a meu favor. Ou numa outra coisa qualquer que me desse a sorte que nunca senti ter. Por vezes gostava de poder acreditar em tudo isto se realmente significasse felicidade. Quando assim o não é tenho medo e recuso-me a acreditar. Ontem cruzei-me com esta estranha mulher na casa de chá. Ela olhou para mim, deitou umas cartas na mesa e disse-me que tudo é em vão. Que a confirmação de reunião do meu coração com o da minha alma gémea precisa de dez anos de romance para se confirmar. Dez anos. Nós estamos assim escondidos vai para um ano e meio. Ainda falta muito. Ela disse-me que era tudo em vão porque esse ciclo iria ser quebrado. É inacreditável. Tudo o que tenho sofrido durante este período com este homem. Neste casamento. Onde tudo tem sido amargo ou sem sabor. E tu. Tu que me fazes acreditar na felicidade. Tu que adocicaste a minha vida. Tu, e só tu. E o acreditar que seremos felizes e que o seremos muito, muito felizes. Vou-te contar uma outra coisa para perceberes esta minha súbita ansiedade. É sobre a tua mãe. Mas não fiques triste com ela. Tenta perceber que ela é de outra geração e que, na realidade só quer o melhor para ti. A tua mãe sempre se opôs ao meu relacionamento contigo mas eu também sempre acreditei que com tempo a iria conquistar. Sabes que ela encontrou-se comigo antes de eu vir para o Japão e insistiu que a nossa reunião está errada. Mas está errada porque as estrelas o assim dizem. Porque as estrelas não o querem. Que as nossas datas de nascimento não se conjugam e que esta nossa insistência nos acabará por trazer má sorte. Tenta percebê-la. Tu és filho e ela quer proteger-te. Na altura disse-lhe a brincar que as estrelas estavam tontas e não voltei a pensar muito nisso. Mas ontem, com este estranho encontro, voltei a ouvir o eco da voz da tua mãe. Se assim for é realmente uma história triste. Na realidade sempre odiei esse tipo de adivinhação que não deixa espaço para nada mais. Como se o destino fosse a única coisa que conta. E o que é mesmo o destino? Pergunto eu. Com apenas algumas palavras pode-se arruinar uma pessoa. Pode-se arruinar um par de amantes profundos. E tu meu doce? Acreditas em superstições? ‘Baby’, vamos chegar a acordo, ok? Não importa quantos obstáculos tivermos diante de nós vamos sempre segurar a mão um do outro e passar o resto da nossa vida juntos, ok?
Casar, sei eu agora, que é uma coisa fácil. Mas casar com alguém que te ame a vida inteira, que te respeite, que respeite a tua família, que lute pelo amor todos os dias, que seja sempre compreensivo, isso é difícil. Estou tão ansiosa. Eu acredito em nós. Acredito que quando duas pessoas se apaixonam elas irão tentar o seu melhor para ficar juntos. Não importa o quão difícil a estrada é. Promete-me que não desistes de mim. Que se eu desaparecer tudo farás para me encontrar de novo. Querido, eu sou sincera. Aqui, nesta terra, tão longe de onde estás. Que não te posso ver se assim o quiser. Não quero acreditar nestas premonições. Querido, talvez em todo mundo as pessoas tenham que sofrer. Talvez em todo o mundo exista traição. Mas que digo eu que traio o meu marido contigo. Mas não posso considerar isto traição. A maior traição é ter-te encontrado e não fazer tudo para ficar contigo. A maior traição é para contigo. A maior traição é para comigo. Sabes que por vezes julgo que o meu marido é gay. O que realmente me choca. Como pôde ele casar-se comigo? Nada lhe interessa em mim. A ele só lhe interessa a carreira. E eu sou apenas uma capa. Um instrumento para o reconhecimento dele na sociedade. Porque passa ele mais tempo com o seu assistente que comigo? Tudo isto me deixa imensamente triste. Parece que tudo está errado. Mas serei tola? Mas estarei errada? Estarei errada porque te amo? Então que posso eu fazer? Quando penso em ti tudo é beleza. Tudo é tão puro a meus olhos. Meu amor eu ainda sou apenas uma menina. Uma menina simples que não se quer enganar. Por isso hoje vou-lhe dizer tudo e amanhã volto para ti. Volto para que me contes as tuas histórias. Para que suspires e me digas que me amas a cada frase. Para que me confortes sempre que eu estiver em baixo. E a fraude deste meu casamento terá os seus dias contados. E será mais fácil de o terminar. Porque não posso mais viver com esta dor. Não posso mais perder o nosso tempo. Porque este homem não me valoriza. Porque tu existes e eu quero desfrutar a minha vida feliz, a cantar e a dançar e a portar-me como uma adolescente. Para sempre adolescente. E acreditar que tanto a tua mãe como esta mulher com quem me cruzei estão erradas. E acreditar nas cores. E acreditar na aventura. E acreditar que o amor tudo conquista. E acreditar na beleza. E acreditar na juventude em diferentes idades. E acreditar. E acreditar.
Amanhã vou acordar e vou acreditar que sou muito bonita. Que sou positiva, activa e aberta e que enquanto estiveres a ler esta carta eu vou estar no avião que me levará de volta a ti. Vou acreditar que esta inquietação é por saudades. Tantas saudades. Amanhã vou acordar e serei apenas e só tua e quando chegar iremos nos beijar como fogo.
A tua princesa.
Daphne

1. “Mulher frágil” por Faye Wong – Ficamos lentamente bêbados à medida que a noite se adensa / Neste momento em que estamos tão perto um do outro / Trémulos parecem os meus pensamentos / Contradições que crescem profundas // Mesmo que o meu coração tenha sido quebrado uma vez / Hoje deixo-te gentilmente aproximares-te dele / Que reconfortante embora que também existam dúvidas / Secretamente a crescer dentro de mim // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Não esperes mais / Beija-me apaixonadamente // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes // Eu estive uma vez com medo desta vida / És tu quem eu posso finalmente apoiar-me / Eu sei que devo abraçar este destino / Que irá ajudar-me a reconstruir a minha confiança // Mesmo que o meu coração tenha sido quebrado uma vez / Hoje deixo-te gentilmente aproximares-te dele / Que reconfortante embora que também existam dúvidas / Secretamente a crescer dentro de mim // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Até ao fim desta vida a beijar-mo-nos como fogo // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Não esperes mais / Beija-me apaixonadamente // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes (tradução livre)

José Drummond

30 Jun 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | A empregada do bar

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda atordoada tento perceber porque não me consigo mexer. Começo a sentir partes do corpo. Começo a sentir os meus seios inchados a serem pressionados por qualquer coisa. É uma corda. Estou toda atada. Não sei porque fiz isto. Porque vim contigo para o quarto. Agora sei porque não me consigo mexer. Mas porque estou atada deste modo estranho? Jamais alguém viu o frio na alma do outro. Jamais alguém viu o desencontro entre a mágoa e a máscara do outro. Jamais alguém viu o espasmo final do outro. Aquele espasmo trémulo, recolhido nos escombros da própria existência. Aquele espasmo turbulento que esconde pranto. Aquele espasmo de quando a esperança se apaga. Porque a esperança também se apaga. Por vezes apaga-se assim sem morte. Por ter sido apenas uma insinuação. Um golpe de asa. Um ‘one night stand’. Os meus olhos vagueiam em redor. Não é o fim da festa. Aqui não há traição. Pelo menos a isso poupas-me. Estás agora com um sorriso maldoso. Não é um sorriso de defesa. Dói-me este poder ser e não ser realmente. És um animal ferido. Mais ferido que eu. Existe tão pouco amor neste mundo.

Apontas para o pénis e forças-me a abrir a boca. Nunca fiz isto assim. Sem me conseguir mexer. Volto a tentar mexer-me. Os braços não respondem. Reparo agora que a corda me aperta outras partes do corpo. Arregalo os olhos quando me apercebo que estou no ar. Suspensa. Posição horizontal. Pernas abertas. Braços esticados. A cabeça puxada para trás. Sei disto. Sei do fetiche japonês. As cordas estão apertadas com tanta força que a minha circulação sanguínea demora a recuperar. Sinto um leve formigueiro aqui e ali. Sei disto mas nunca estive numa situação assim. Nunca fiz uma coisa destas nesta posição e muito menos sem me poder mexer. Terei certamente sonhado com isto. Estarei porventura a sonhar? Fazes com que perceba que esta é a realidade e que de algum modo irei ser castigada por acabar na cama com uma pessoa que não conheço. Abres-me a boca e forças a entrada. Sinto tudo no céu da boca. Tento acenar com a cabeça. Por uma razão qualquer fico extremamente húmida. Contra o que quero. Quero fugir. Não. Não quero. Não quero fugir. Quero ver o que me vais fazer. Quero sentir o que me vais fazer. Apertas os meus lábios enquanto introduzes o teu membro mais duro que nunca. Está mais quente do que eu estava realmente à espera. O sabor levemente salgado. Agarras-me a cabeça e lentamente começas a mover movê-la para trás e para a frente. E sorris. Continuas a sorrir. Acho que te odeio quando sorris. Toda a minha vida sexual passa diante de meus olhos num ápice. Não sou propriamente uma novata mas sinto-me como se o fosse. Lembro-me da primeira vez que dei prazer a um homem desta forma. Foi na praia. Tinha 15 anos. Em Boracay. Estava apaixonada por ele. Ele também se forçou. Era 10 anos mais velho que eu. Mas eu queria. Queria muito. Na minha inocência da adolescência acreditei que ele se iria casar comigo. Foi pouco tempo antes de o meu pai ter conseguido trabalho em Manila. Com ele a coisa foi bem diferente. Ele não se demorou. Ele não tinha truques como tu. Depois de o ter chupado continuou. Continuou e fez o que tinha que fazer na parte de baixo. Doeu-me. Saiu sangue. Não foi muito. Lembro-me de ter achado que não tive prazer nenhum. Duas semanas depois estava em Manila. Nove meses depois um bebé. Nunca mais o vi depois de nos termos mudado para capital. Hoje o bebé não é mais bebé. Hoje o meu pai já não tem trabalho. Hoje sou eu que tenho que enviar dinheiro para toda a família.

Deste vazio de dentro de mim algo nasceu que eu não posso tocar. Algo que eu não posso explicar. Uma dor que eu não consigo ilustrar. Que se esconde. Que me puxa para o abismo. E sei que tu também. Tu também tens um vazio que pariu algo que não podes tocar. Algo que devias deixar escondido. Mas não deixas. É o demónio. Decido que devo deixar tudo e fazer tudo. Decido mostrar que sei como fazer isto. E que gosto. E que estou a gostar. E que estou mesmo a gostar. Porque na realidade estou mesmo a gostar. Soltas um “mhhm” enquanto começas a girar os ancas para a frente e para trás com mais força. Com mais rapidez. Empurras-me a boca que deixo aberta. Suspendes o movimento por um momento. E lentamente, em crescendo, recomeças. Até que deixas de segurar na minha cabeça. E empurras o pénis até ao fundo da minha garganta. Sinto-me amordaçada pelo teu sexo. Lágrimas. Lágrimas rolam pelos meus olhos. Não por medo. Por prazer. Parte de mim gosta de ser usada desta forma. Estupidamente quero te dar prazer. Quero que te sintas bem. Estupidamente acredito que sentes algo por mim. Estupidamente acredito que me vais salvar. Que tudo se vai resolver e que temos um futuro em conjunto. Dás-me um estalo. E outro. E continuas o teu movimento. E rapidamente recuas e ordenas-me que te diga que és um homem horrível. “És um homem horrível” digo a medo. Mas o medo faz-me ficar mais húmida. Libertas-me apenas levemente. Apenas o suficiente para que eu me consiga apoiar de novo na cama. E ordenas-me para que estique os braços e me apoie bem. Viras-me o corpo. Reforças a posição das minhas pernas. Levantas-me o rabo. Tento esticá-lo. Faz tudo o que queres fazer. Oh, sim, faz tudo o que queres fazer de mim. Começas a dar palmadas, uma atrás da outra, na minha bunda redonda. Sinto o sangue a ferver. Os teus dedos brincam com a minha vagina. Os sucos escorrem. E penetras-me. Mais violentamente que nunca. Em estocadas precisas maceras-me o sexo. E em intensidade crescente sinto a vagina a dilatar-se. Transpiras. Transpiro. Paras antes do clímax. “Oh” sussurro. A minha voz é luxúria. Enfias dois dedos no meu ânus. “Ohhhh”. Seguras com força a carne nas bochechas do rabo e violentamente fazes aquilo que nunca antes algum homem tinha feito comigo. “Estou-me a vir” gritas. A tua voz é cortada por um grande gemido. É o ponto de ruptura. Dói. Dói-me tanto. Dói-me tanto, tanto, tanto. Mas não consigo dizer nada. Não consigo soltar um qualquer som. E, quando estás quase a vir-te, retiras o pénis de dentro de mim. “Ahhhhhhhh”. E o esperma que se vomita sobre o meu corpo. Sinto-me usada. Sinto-me tão usada. Tu ainda gemes. Levemente. Depois do orgasmo o sémen ainda pinga do teu pénis flácido. Reparo como pinga sobre o soalho do quarto. Não consigo pensar. Estou sem forças. Dás-me uns minutos antes de me voltares a suspender os braços e me colocares numa nova posição. Ainda nem te disse o meu nome. Sabes como me chamo? “Nicole” digo-te. Pareces surpreendido. Sorris. Ah como te odeio quando sorris. E desapareces. Quando voltas trazes uma garrafa de litro e meio de água. “isto ainda não acabou”, dizes, “agora vai ser a melhor parte”.

José Drummond
23 Jun 2016

Que estamos nós a fazer, tão longe de casa? | Ela

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] pôr do sol perdeu o seu brilho púrpura e tornou-se, de um azul escuro. Um azul frio. Um azul que se obscurece. Que surge de dentro de um cinza pálido e que se deixa desaparecer sem cor. Um pôr do sol que nunca mais foi primaveril. Desde que te foste embora que este pôr do sol existe, assim, sem vida, e, por isso, não existe mais primavera, e, por isso, só existe inverno. O sol aparece, mas aparece sempre desaparecendo. E desaparece, e desaparece. Como uma ilusão qualquer de um ilusionista sem talento. Aparece mas não o vemos. Sabemos que ele lá está e quando estamos quase a acreditar desaparece. Desaparece, sem nos darmos conta, em tons de azul escuro. Uma ilusão de maus fígados, destinada a maltratar a esperança. O sol que se foi onde não havia laranja. Não havia mais laranja. Nem amarelo. Nem havia mais qualquer cor de rosa na névoa fina. O sol frio, e como o sol tu, tu que desapareceste. E eu que começo a sentir frio. E eu que desço para o jardim e permaneço à volta de mim, à volta de nós. E eu que volto a esta janela, a esta cama, a estes amontoados de roupa por lavar onde consigo ainda sentir o teu cheiro. E eu que desapareço, assim, como o sol, como uma ilusão sem talento de um ilusionista de rua. Aqui onde desapareço é o lugar onde me vou encontrar. Aqui onde desapareço é o lugar por onde me vou embora. E vou conseguir. Vou conseguir atravessar aquela ponte faça sol ou chuva.
E o porteiro irá dizer aos novos inquilinos que eu era uma mulher jovem. E irá confundir-me com a vizinha do 10º andar que tem o mesmo corte de cabelo. E irá dizer que me chamo “Sushi” porque não confia em japoneses. Porque ela, embora não seja japonesa, tem uma tatuagem de um “koi Fish” nas costas em estilo japonês. E ele imediatamente a colocou nessa gaveta. Não confiar nos japoneses é vulgar na China. Dores históricas e políticas que pouco têm a ver com as pessoas dos dias de hoje mas que mantêm a sua influência nas relações dos dois países. Não confia neles porque o pai teve que fugir de Cantão durante a invasão e nunca mais viu a mulher que deixou para trás. Repetia vezes sem conta que quando o pai voltou para a buscar ela tinha desaparecido. Uma vez chorou em modo de confissão culpabilizando-se que ela tinha desaparecido por causa dele. Porque quando ele chegou a Macau uma semana depois do pai, ainda bebé de meses, no meio de um transporte de galinhas, ela teria ficado para trás por não haver lugar para ela. E que quando o pai conseguiu voltar a Cantão nunca mais a encontrou. E que, como se isso não bastasse, o pai foi morto quando ele tinha 6 anos por causa de um erro cometido num serviço, no qual, o ‘patrão’ o deixou ser emboscado pela seita adversária. Ninguém nunca saberá a verdade do que aconteceu à mãe daquele septuagenário. E muito pouca gente saberá realmente o que aconteceu ao pai. Disse ainda nessa vez que o pai foi-lhe entregue numa urna na qual sentiu o cheiro a sangue nas cinzas. Irá confundir-me com ela de todas as vezes e no final irá sempre lembrar-se da vez que viemos de férias da Europa e eu lhe ofereci um pacote de queijadas de Sintra. Irá lembrar-se disso porque as memórias, boas ou más, nunca desaparecem.

Sempre pensei nela como a heroína de um romance policial. Uma rapariga solteira capaz de atrair jovens empresários e que após uma sucessão de más decisões se vê acusada do assassinato de um político. Não sei se porque sempre que olho para ela nunca traço um retrato realista e me deixo inebriar por entre imagens e sentimentos ficcionais ou se porque por vezes penso em como seria bom poder ter uma aparência perfeita e afinal ser mesmo como ela. Ser mesmo como ela por eu querer ser a heroína de um romance. Ter realmente importância. E não este lento desaparecer nesta ténue insipidez do tédio. Neste pôr de sol que perdeu o seu brilho. Outras vezes penso nela daqui a vinte anos. Penso nela casada e feliz e sem mágoas. E sem lágrimas derramadas em paixões juvenis. E sem lágrimas derramadas em amores perfeitos. Ter esperança é o que me tem ajudado a passar por momentos difíceis. Mas essa desaparece como desaparece o sol. O sol que aparece desaparecendo.

Ela é assustadoramente bonita. Ao pé dela eu sou assustadoramente vulgar. Quis sempre acreditar que essas diferenças escapassem ao porteiro por causa da sua idade. Que com a idade dele não se consiga apreciar os cânones de beleza dos dias de hoje. Lembro-me de quando a vi pela primeira vez. Os meus olhos fixos e ela indiferente. Como se estivesse habituada a ter pessoas a olhar para ela com os olhos fixos. A pergunta “Quem é ela?” repetiu-se na minha cabeça em eco infinito, com ressonância intensa, percorrendo de um lado ao outro todos os compartimentos da memória numa tentativa louca de encontrar uma resposta. Ela fez o seu melhor para parecer indiferente mas a sua intuição feminina deve lhe ter dito que eu já estava à mais de 10 minutos de olhos abertos na sua direcção. A empregada do café surpreendeu-me ao perguntar-me se desejava alguma coisa mais. Nesse momento, em que o feitiço foi quebrado por momentos, os papéis inverteram-se e quando voltei a olhar para ela dei com os seus olhos como setas a fazer uma avaliação de mim de alto a baixo.

José Drummond
16 Jun 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 15 – O estripador

*por José Drummond

[dropcap styçe’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Escrevo-te aqui de uma cidade perdida nas montanhas do Japão. Espero que esta minha primeira carta desde que nos separámos te acalme e que te possa dar alguma esperança. É importante que saibas que eu não te esqueci. Vives dentro do meu coração. Sempre. Desculpa não ter conseguido contactar-te antes da minha partida. Tenho a certeza que ele desconfia de alguma coisa. Estou a ficar assustada. Ontem a voz dele alterou-se e frequentemente fica em suspenso e não acaba as frases. Como se estivesse realmente a pensar noutra coisa. Não sei porque não tive coragem de acabar isto aí. Deixei arrastar tudo e depois pensei que seria mais fácil de lidar com este palerma durante a viagem. Na verdade gostava que estivesses aqui ao meu lado. Agora. Neste preciso momento, para não ter que te escrever e poder sussurrar tudo ao teu ouvido. E deixar-me abraçar. E deixar-me beijar. Só estou bem ao pé de ti. Quero dar-me toda. Para que me conheças ainda melhor do que eu própria me conheço. Espero que não estejas triste. Não tolero o pensamento de que possas estar triste. Como sabes não sou o tipo de mulher que se enrola em infidelidades. Tudo isto é tão complicado. Tudo isto é tão novo para mim. Não sei como tens paciência para mim. Não sei o que vês em mim. Posso garantir-te que não estou nesta relação contigo para perder tempo ou para brincar com os teus sentimentos. Por favor acredita na minha sinceridade. Tu és o homem que eu amo. Que mais me iluminou. Que mais me faz feliz. O único que realmente me faz feliz. Aqui, ao lado dele, sinto-me rodeada por esta miséria. Untitled1

Espero com todo o meu ser que acredites que sou honesta quando te digo que tu és aquele que o meu íntimo deseja. Aquele que trago sempre no peito. Como gostaria de poder planear o tempo exclusivamente em tua função. Desculpa-me, sabes que nunca tive jeito para escrever, mas todas as palavras são puras e saem do meu coração. Contigo sou tão diferente. Estou sempre com vontade de fazer coisas. Como gostava de voltar a cantar ópera cantonense. Aquelas escapadas à sala privada de karaoke, onde acabamos uma vez por fazer amor, acordaram em mim o meu gosto em cantar. Sabes que quando era pequenina sempre quis ser como a minha mãe. Ela cantava frequentemente na associação de bairro. Ouve um período, no qual, fui a muitos concertos tradicionais com ela. Lembro-me que ela chegou a ganhar prémios. Dava gosto ouvi-la. ‘Uma mulher que sabe cantar bem pode hipnotizar o homem certo’, dizia-me ela com frequência. Ela podia cantar em todos os lugares. Era uma mulher muito corajosa e confiante de si própria e das suas decisões. Como gostava de ser um bocadinho mais como ela. Depois aquela horrível pneumonia acabou com as forças dela. Foi nessa altura que os meus tios me levaram para Macau. Nunca mais a vi e eles esconderam-me a sua morte até eu fazer 16 anos. Mentiram-me durante anos e anos. Nessa altura a minha vida começou a deixar de fazer sentido. Acreditei que o mundo estava contra mim e que Deus não existe. Acabei por seguir o trabalho mais estúpido do mundo. Como sempre odiei estar por ali a deitar fichas para jogadores porcos, almas penadas, pessoas sem interesse nenhum. Por causa do meu trabalho eu tinha que usar aquele uniforme completamente amorfo e sem estilo. Sempre que saia dirigia-me às casas de banho, na parte de trás do hotel, e carregava um pouco nos cosméticos até alterar o rosto. Trazia sempre um vestido leve num saco que me ajudava a voltar a fazer sentir-me pessoa de novo. Era mais forte que eu. Era o desejo de conseguir ter uma existência.

Sabes que a verdade é que eu sonhava um dia ainda conseguir fugir para Paris e estudar moda. Foi numa dessa noites depois do trabalho no Casino Lisboa que acabei por conhecer este palerma. Levou-me a comer ostras e lagosta e confesso-te que me deixei seduzir pelo seu dinheiro. A cada encontro comprava-me a alma com mais uma jóia. Não demorou muito até nos casarmos. Proibiu-me logo de trabalhar. Muitas vezes pensei que a minha vida acabou ali. Mal sabia eu que ainda te viria a conhecer. Uma vez resolvi pintar o cabelo com tons vermelhos. Nessa noite não me falou e na manhã seguinte deixou-me um bilhete, antes de sair para o trabalho, que dizia: ‘é favor mudar a cor do seu cabelo. Não é uma cor decente para a mulher de um político. Se alguém a vê com esse aspecto o meu lugar na assembleia fica em risco.’ E foi assim que nunca mais mudei o meu corte de cabelo nem o pintei de outra cor que não preto. Lembro-me que quando era miúda cuidava imenso do meu cabelo longo. Sonhava encontrar o meu príncipe e sonhava que ele me ajudava a lavar o cabelo. E que depois, com imenso carinho ajudava-me a secá-lo. E que brincava com ele quando encostava a minha cabeça no seu peito. A minha felicidade quando nos conhecemos. Meu amor. Finalmente alguém brinca com o meu cabelo. Finalmente alguém despertou em mim o romance. Esta paixão que me revelou que afinal a vida não tinha acabado.
Agora, aqui perdida de saudades tuas, sei que estou pronta para te dar todo o meu amor. Tu és tão especial. Espero que nunca te arrependas de estar comigo.
Sonha comigo meu amor. Dá-me tempo para acabar isto que estarei de volta muito, muito em breve.

Sempre tua.
Daphne.”

2 Jun 2016

José Drummond, artista plástico : “Macau é um embaraço para os artistas”

Define-se como um existencialista interessado na dualidade entre o visível e o invisível, no amor e na morte, pois “não existe mais nada que valha a pena falar”. Artista e curador, José Drummond foi recentemente convidado a representar Macau no prestigiado Sovereign Asian Art Prize. Uma foto para “construir uma narrativa existencialista” para um artista a quem a única coisa que interessa é “continuar a ter condições para trabalhar”

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]ual a história por detrás da imagem escolhida para o Sovereign Asian Art Prize?
“Parachute” faz parte de uma série de fotografias realizadas em Nova Iorque a que dei o nome de “There is no place like it”, frase de Walt Whitman num texto relativo à cidade. Escolhi o parque de diversões de Coney Island para construir uma narrativa existencialista onde, durante o Inverno e com a ausência de corpos humanos, é conferido um sentido único de isolamento e deslocamento, enquanto somos imersos pelas estruturas num desencanto cativante. Depois apeteceu-me trabalhar o efeito cinematográfico “day for night” onde a câmara é alterada na sua leitura de luz. Um efeito muito comum no cinema americano dos anos 50 e 60. Coney Island, um dia considerado “The Greatest Show on Earth” é um espaço que desafia a gravidade. No Inverno é uma paisagem fantasmagórica que reduz o humano à sua própria fragilidade.

Como surgiu a participação no concurso?

O Sovereign Asian Art Prize funciona por nomeação de um curador, não é de público acesso. A fundação nomeia um número de curadores que por seu lado decidem quais os artistas a nomear nas 16 regiões contempladas. Por isso, só a nomeação é um reconhecimento importante. Gary Mok, curador baseado em Pequim com largo conhecimento sobre o que se faz em Macau e Hong Kong, foi quem me nomeou para representar Macau.

Alguma expectativa para o desenlace?
Para dizer a verdade não gasto muito tempo em expectativas. O tempo que tenho gasto-o a trabalhar. Encaro concursos como exposições ou ‘screenings’. Como um veículo importante que confere visibilidade ao trabalho desenvolvido em estúdio. É uma faceta essencial do profissionalismo. Nos últimos anos tornei-me num verdadeiro ‘workaholic’. A experiência em Nova Iorque e Berlim terá contribuído para algum esclarecimento e amadurecimento do meu trabalho. Acredito que tanto a nomeação como a consequente selecção é fruto disso mesmo.

Mesmo não vencendo em que medida pode esta participação mudar o seu panorama?
Não sei bem. Por um lado vou continuar a ser o mesmo, ou seja, vou continuar a trabalhar e a emocionar-me com tudo o que o trabalho envolve e com todas as experimentações que ainda quero tentar. Por outro lado, acredito que os artistas são como esponjas que absorvem água e sabão e, quando se aperta, expelem um fluido com bolhinhas. Quero dizer com isto que obviamente trabalhamos em sequência do que nos acontece na vida, do que vemos, sentimos, etc. Nessa perspectiva, já mudou. A nível de reconhecimento do trabalho é obviamente muito bom estar nesta fase. O resto logo se vê.

"Parachute" foi a obra escolhida para o prémio
“Parachute” foi a obra escolhida para o prémio

E se ganhar?
Isso seria fantástico. Mas não penso nisso. Pés na terra, concentrado nos próximos projectos. O mais importante são os trabalhos. É isso que importa.

Quais os próximos projectos?
Muita coisa em filme. Mas demora tempo. Acabar a edição de algumas coisas. Duas novas séries de fotos que ainda não consegui ter meios para fazer. Depois gostava de conseguir trabalhar em espaço de exposição, uma reunião de disciplinas entre teatro, cenário, música e imagens em movimento. O meu maior problema é investimento. A minha produção actual exige um alto nível de profissionalismo que obriga a um exercício financeiro constante e sem expectativas de reembolso.

Artista a full-time agora? Como se sobrevive dessa forma em Macau?
Não nos fazemos artistas. Ou somos ou não somos. Quando és sabes que és. Não é um hobby. Sobreviver é difícil. Um artista em full-time deve ter uma certa noção comercial que por vezes entra em conflito com aquilo que se pretende da arte. A capacidade de continuar a inovar. A possibilidade de se fazerem coisas só porque sim, sem ter que se considerar que é uma comodidade, um produto adquirível com valor de mercado. Ser artista implica ser perseverante.

Mas está dedicado em full-time? Se sim, qual a vertente comercial que paga as contas?
Não pago as contas. A minha produção é sempre mais. Por isso, aqui e ali tenho de me desenrascar. Macau é um embaraço para os artistas. Com rendas e comida mais cara que Berlim, por exemplo, é impossível viver a full-time da Arte. Um artista precisa de um estúdio para além de um tecto para dormir. Em Macau isso parece impossível. Ou então faz pintura e mesmo assim não dá. Uma coisa é certa. Macau não chega. Ou temos galeria fora, ou fazemos projectos internacionais ou, se estamos à espera que Macau nos compreenda e chegue para pagar as contas, desaparecemos. Descobri entretanto que tenho um espaço de contribuição para o meio através da educação. O workshop que tenho leccionado tem sido bastante apreciado pelos estudantes. É um trabalho complementar como é o de curador. Naturalmente, estas respostas dão lugar a novas perguntas. Por exemplo, porque é que os projectos arquitectónicos de Macau não incluem artistas locais… (risos)

Pegando nisso, que impacto esta participação pode ter e está a ter no meio local?
Pessoalmente espero que sirva de incentivo aos artistas locais para acreditarem no seu trabalho e não terem medo de procurar uma voz única. Acho que há espaço para tudo e arte não tem de ser pintura. Pelo contrário. Quando Macau perceber isso dará um salto grande. Os artistas em Macau parecem-me, por vezes, pouco convictos da possibilidade de terem um trabalho mais contemporâneo.

A que chama um trabalho mais contemporâneo?
Corre-se sempre o risco de ser deselegante quando se fala de colegas ou se critica o meio em que se está. Afinal estamos, de algum modo, todos juntos. Mas faltam coisas em Macau. Nem tudo é representação. Tem de haver algo mais. Acho absolutamente fascinante que aquilo que melhor caracteriza a cultura de Macau seja também a razão da sua pouca importância. Demasiado umbilical. É uma cultura que vive muito fechada sobre si própria e impressionantemente tradicional. Existe medo de arriscar. Existem muitos ‘velhos do restelo’ que não deixam isto andar. Macau vive sempre preocupado com o que se vai dizer. O melhor é não levantar muito a bolinha.

Que o faz ‘correr’?
Não sei fazer mais nada? É mais forte que eu? Estou sempre a pensar em Arte. Sou um dos gajos mais aborrecidos possível. Por isso as namoradas não aguentam (risos). Estou a brincar claro. A falar verdade, no meu caso, o ‘correr’ obriga a um espaço considerável de isolamento e solidão em estúdio, onde ler, questionar, escrever, experimentar alternativas são importantes para tomar decisões. Fazer arte não é uma questão de ter jeito para o desenho. Pelo menos não é assim há pelo menos cem anos. Felizmente, os média com que tenho trabalhado mais, como o vídeo, obrigam a um envolvimento com outras pessoas. Desse modo, sinto que continuo sempre a aprender. A vida é uma aprendizagem contínua. A arte também.

Onde pretende chegar?
Não sei. Os objectivos depois de ultrapassados dão lugar a outros. Para já quero acabar uma série de projectos nos quais tenho andado a trabalhar nos últimos dois anos. Depois logo se vê. Quero continuar a trabalhar.

Que legado imagina um dia deixar?
Não penso nisso e não tenho medo de não vir a ser reconhecido. As coisas são o que são. Vou citar dois nomes que não são referências imediatas minhas mas servem para ilustrar um ponto: Louise Bourgeois, uma das artistas mais importantes dos últimos 50 anos, só foi realmente reconhecida depois dos 70 anos. O Manoel de Oliveira só após o seu segundo filme de ficção, com 63 anos, começou a ser reconhecido. É certo que um viveu até aos 98 e o outro até aos 106. O que pretendo dizer é que o ‘calling’ ou o ‘reconhecimento’ podem aparecer tarde. Precisamos é de capacidade para continuar a trabalhar. É o que eu quero e ter condições para continuar. Se o meu trabalho poder contribuir de algum modo tanto melhor.

Qual a pergunta para a qual mais procura uma resposta?
O meu trabalho é existencialista por natureza. Mas de um existencialismo beckettiano, kafkiano, até freudiano. As minhas duas grandes ‘questões’ são eros e thanatos. Amor e morte. Não existe mais nada que valha a pena falar. É nessa dualidade ‘absurdista’ que o meu trabalho se insere. Há quem já me tenha considerado como um ‘ultra-romântico’ e, nesse sentido, é uma vertente que parece ir no sentido oposto às vertentes actuais, que se focam numa certa frieza. A mim interessa-me o reino da emoção na arte. Não só o de poder representar emoção, como também o de poder causar emoção. Interessam-me certos autores e o meu trabalho está nessa linha de continuidade. Existe um certo sentido teatral que acho ser absolutamente importante para o seu entendimento. Altamente fascinado pelo trabalho de Fassbinder e Bergman, por exemplo. Existem muitas referências, todas no mesmo sentido. Plath, Duras, Pessoa, Sá-Carneiro, Lacan, etc… A máscara. A fragmentação do ser ou a sua multiplicidade. A solidão. A ilusão. A possibilidade ou impossibilidade do amor. O falhanço – “Fail again, fail better”, Beckett dixit. A morte é a única certeza da vida. Interessa-me também a percepção do mundo que cada um de nós tem. A Anaïs Nin disse: “nós não vemos o mundo como ele é, vemo-lo como nós somos”.

Estar em Macau abriu mais ou menos possibilidades para desenvolver o seu trabalho? Porquê?
Chego a esta fase por estar a representar Macau. Mas, por outro lado, existem aspectos do meu trabalho característicos de uma certa fantasia, de uma certa utopia para a qual torna-se necessário que o trabalho seja feito na China. Pelo menos por agora. Existe uma certa noção que envolve um espaço migratório que é essencial. Quero continuar por aqui. Ainda tenho muito sobre o qual quero falar. Além disso, torna-se curioso que esse hipotético ‘exotismo’ do espaço migratório e de confluência de culturas seja visto com interesse por Hong Kong, Pequim, Lisboa, Berlim e Nova Iorque e que Macau pareça, por vezes, ainda não ter realmente percebido, o que me leva muitas vezes a questionar sobre o é que estou aqui a fazer. Aliás, sem ter nada a ver com esta questão, o HM está a publicar um thriller poético/psicológico com esse nome: “Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa?”

Sim, é verdade. Mas isso espoleta três perguntas: que estamos a fazer, que está a fazer e onde é ‘casa’?
Embora a ‘novela’ semanal até possa dar a ideia de estar a falar de estrangeiros imediatos, na realidade está a falar de uma nova condição, que é esta: o Macau do futuro é um Macau estrangeiro onde todas as pessoas são fruto da emigração em primeira mão ou em segunda, terceira ou quarta geração. Isso já se sente. A ideia de ser de Macau só pode ser isso mesmo. Nesse sentido ninguém é realmente de Macau e somos todos de Macau. Sei que é uma visão polémica, mas este é o maior trunfo da cidade. Esta vocação natural para a multiplicidade de culturas. Acho absolutamente paradigmático que o melhor realizador de cinema de Macau seja português, que os melhores pintores sejam de Xangai e da Rússia e por aí adiante. Para mim, a melhor artista de Macau, na actualidade, é de Sichuan. Pelo meu lado, estou a fazer aquilo que é suposto fazer. Questionar, apontar ideias, contribuir para o mundo em geral. A casa é aqui mas isso não quer dizer que não mude. Estou sempre a viajar.

3 Mai 2016

Arte | José Drummond e Peng Yu apresentam-se em Berlim

Um encontro de almas predestinadas a estarem juntas é o tema da exposição de vídeo-arte que José Drummond e Peng Yun desenvolveram e vão inaugurar em Berlim já amanhã. No dia 20, os artistas seguem para a vizinha Áustria, onde dão uma palestra e apresentam trabalhos para o Festival de Vídeo Arte do Danúbio
A inspiração para o novo projecto de José Drummond e Peng Yun perpassa pelo antigo ditado chinês “embora nascido a mil li de distância, as almas que são uma vão encontrar-se” e é esse o tema da exposição de vídeo-arte que os artistas vão inaugurar em Berlim já amanhã.
O projecto alerta para algum tipo de força predestinada que une as pessoas mesmo que estejam distantes. A configuração deste reencontro traz um nível perturbador, embora criativo, existencial, onde o ponto de encontro predestinado é alcançado através de uma perspectiva nómada. Segundo os artistas, ela pressupõe que uma, ou ambas as “almas”, devam viajar para um determinado ponto para assim se realizarem.
Em declarações à imprensa, o par declara ainda que “este conceito de unicidade das almas concorre com a ideia de alma gémea que tem a sua origem no ‘Simpósio’ de Platão”. Nas imagens, “a ideia de quatro braços, quatro pernas e uma única cabeça feita de duas faces leva um valor interessante quando aplicado ao conceito de dois artistas trabalhando em conjunto para o mesmo objecto, o mesmo objectivo”. Uma reflexão sobre um caso específico de artistas que “embora nascidos separados por mais de mil li” reúnem-se num novo lugar como “almas que são uma”, trabalhando em conjunto e onde cada identidade individual é uma contribuição para um objecto que existe entre lugares, como garantem José e Yun.
Peng Yun nasceu na província de Sichuan, na China, e é bacharel do Departamento de Pintura a Óleo da Academia de Belas Artes de Sichuan, tendo ainda um mestrado em Belas Artes conferido pelo Departamento de Novos Média da Academia de Artes da China. O seu trabalho incide especialmente em imagens em movimento, fotografia e instalação tal como o de José Drummond.
Nascido em Lisboa, este residente de Macau estudou pintura e cenografia sob orientação do professor Pedro Morais e possui um mestrado do Instituto Transart. O par conheceu-se em Macau em 2010 e, em 2015, decidiram começar a trabalhar juntos em projectos relevantes.
No dia 20, os artistas seguem para a Áustria, onde dão uma palestra e apresentam trabalhos para o Festival de Vídeo Arte do Danúbio.

12 Fev 2016

José Drummond nomeado pela segunda vez para prémio asiático

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]artista de Macau José Drummond foi novamente nomeado para o Sovereign Asian Art Prize, um prémio de renome na região asiática, especificamente dedicado à Arte e que acontece há 12 anos. Foi com os trabalhos “Cyclone, Parachute e Wonder Wheel” da série “There is no place like it”, que o artista conseguiu ficar entre os escolhidos.
Os trabalhos foram apresentados em fotografias de estruturas do parque de diversões de Coney Island, sendo este o objecto de “uma narrativa existencialista”, como explica o autor.
“Sem a presença de corpos humanos, a dimensão enorme das estruturas da Coney Island revelam uma sensação única de isolamento e de estar fora-de-sítio. Sem a presença de uma escala ao tamanho humano, as pessoas ficam imersas num cativante desencanto”, diz Drummond, num comunicado enviado aos média.
O local onde Drummond tirou as fotografias é, actualmente, um espaço descrito como “assombroso”.
Artista e curador, Drummond vive em Macau, onde dirige o Festival Internacional de Vídeo e Arte (VAFA). Estudou Pintura, Desenho, Cenografia e Gestão Artística. Já expôs em Hong Kong, China, Taiwan, Coreia do Sul, Tailândia, Portugal, Espanha, França e Alemanha, além de EUA e Hungria.
Drummond, que trabalha principalmente com vídeo, fotografia e instalação, interessa-se pela “dualidade entre a visibilidade e invisibilidade e do espaço entre fantasia e realidade”. Como indica o próprio artista, o amor, a perda, a solidão, os sonhos e falta de concretização de objectivos pessoais são os temas mais escolhidos nas suas obras, coadunando-se com uma narrativa sempre presente que inclui uma história, uma tensão e “uma realidade alternativa”.
Drummond admite interessar-se pelas circunstâncias da vida e são essas mesmo que vão ditar se vence, em Janeiro de 2016, o prémio que lhe dará direito a 30 mil dólares americanos.

15 Out 2015