Imperatriz

Há jogos, como aqueles de Michel Tournier no seu Tarot de Marselha em «Sexta -feira ou os limbos do Pacífico», em que a jogada era estranha e dava repostas desconcertantes, mas todo o enredo acaba por corroborar a resposta de xadrez do jogo visionário. O herói cai ao mar, não morre, vai para uma ilha, e ali irá passar longos anos que vamos conhecendo pela narrativa do autor. Mas as cartas do Tarot não ficaram, contudo, naufragadas, circulando por aqui em forma oracular, que entre o Mediterrâneo e o Atlântico há forças bem diferentes, que mares não são oceanos, embora tudo seja água. A trajectória vai dar ao Pacífico e a passividade a lado nenhum, que viajar é preciso e viver não é preciso, trazendo à lembrança os velhos Argonautas. Preciso, só mesmo o acaso.

Pode uma Imperatriz ficar dentro da gaveta sem que no jogo oracular ninguém dê pela sua falta? Não só pode, como aconteceu. Também lá poderiam ter ficado o Diabo, o Imperador, o Mundo… enfim, todos afinal cabem dentro das gavetas, mas sentiriam sua falta os consulentes, que estas coisas são como os alfabetos, uma soma de caracteres que em média dá vinte e dois, e se aos diálogos faltar alguma destas componentes, lá estão os mestres escola a procurar as faltas, que estes atentos ao erro são em si mesmo uma paralisia que não deixam espaço livre a falhas alheias. Ora num jogo de imponderáveis vamos então saber que não há excluídos, e que a força do domínio de cada um, impera, e se nem com a razão altaneira conseguimos vislumbrar por vezes um elefante à frente do nariz, imagine-se fontes outras em que nada está de acordo com a sistematização da infalibilidade racional!? Não acreditar é como não saber, duvidar é medir com o ponteiro do relógio a vida que se teme, estar preso a si mesmo é a denúncia de uma condição tristíssima, e assim jogamos a extenuante falta do aprendizado que continua sem ver a falta de uma Imperatriz.

Mas vamos voltar então às nossas gavetas onde escondemos, guardamos, atolamos, vislumbramos… e saber que tal como escondemos as coisas, também as coisas se escondem de nós, e que na medida que as vamos possuindo elas também nos possuem, e que depois de nada estar a resultar no jogo desta travessia me lembrei então de súbito ir de novo à gaveta: e ei-la deitada, olhando para cima como um sinal. Neste aparato deveras transformador, lembrei todas elas e a marca deixada de um poder com raízes tão terrenas que os céus se fecharam para que as pudéssemos contemplar, e que um simples jogo de Tarot numa noite amena de quase Primavera fustigou a buscá-las. A primeira lembrada foi Teodora, depois Catarina, no centro uma impressão grave de que uma Imperatriz era muito mais que uma Rainha, que estas espectaculares mulheres não nascem na Europa Ocidental senão em forma de caricatura, e que a caricatura impressa por esposos governantes fê-las muito governáveis. Era a noite para contemplar a Imperatriz que não desejou pertencer a nenhum baralho onde a sua influência contemporizasse com forças outras. Ela ficou fechada, por fim falou. O que disse em sua divisa foi enorme; não estava ali para prestar favores, nem seguia nenhuma romaria ao altar dos poderes, ela era um poder. Esta impressão transversal ao que desejamos incluir, pode ser por momentos um instante extremamente angustiante…não sabemos se nos fustiga… interroga… suplica… ou nos dá um código para denunciar grandes equívocos.

Justiniano era forte e não lasso,

Justiniano era feito de aço.

E agora Justiniano, o bravo,

Está aí de uma mulher escravo

Situacionismo! Falamos do Código Justiniano. Teodora elaborara as leis que restringiam a liberdade dos homens, destronara de seguida um papa presidindo a todas as petições e julgamentos. Teodora não era a consorte, em termos de sorte também nem sempre fora bafejada, sendo aqui o império Bizantino a fonte imperial mais conseguida para uma evolução gigantesca que o mundo de então, e o de agora, ainda desconhecem. Julguei vê-la no baralho do Tarot, mas logo surgiu Catarina, e na contemplação arquetípica que se havia dado por esquecida, era evidente a supremacia a Leste destas figuras. Catarina, a Grande, a mediadora nata que já lá para trás pelejara na guerra Russa-Sueca, no Império Otomano, soube como transformar a relação com a Europa Ocidental, reduzir com firmeza o poder da igreja ortodoxa russa, e ainda ampliar as fronteiras do Império para sul e para ocidente: Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, acrescentando assim 518 000 quilómetros à nação. Uma Imperatriz que se ocupou das artes e da filosofia, um intercâmbio civilizador que viria a resultar como modelo humanista. E dito isto vamos omitir agora a sua águia de ouro e a cruz que encima o orbe e buscar sua outra imagem ao livro do Apocalipse:

“…e surgiu uma grande maravilha no céu;

uma mulher vestida de sol

com a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça,

uma coroa de doze estrelas”

Nada mais parecido que o seu desejo de um vestido branco em sua mortalha, apenas ornado com uma coroa dourada na cabeça.

7 Jun 2023

Amores de Shunzhi

[dropcap]O[/dropcap]Imperador Qing Huang Taiji morreu em 1643 sem designar sucessor e um comité de príncipes manchus elegeu, entre os seus onze filhos, o nono [e não o terceiro, como por engano ficou referido no artigo da semana passada], Aisin-Gioro Fulin (1638-1661) como continuador da Dinastia Qing. Tal ficou a dever-se em muito ao trabalho de bastidores da sua mãe, Bumbutai (1613-1688), a Imperatriz Xiaozhuang após Aisin-Gioro Fulin ser Imperador. Era uma das três mulheres que o clã mongol Borjigit enviara à corte nürzhen para estreitar relações, sendo as outras duas, a tia de Bumbutai, a então Imperatriz Xiaoduan (Jerjer, 1599-1649) e a irmã mais velha, a favorita consorte Minhui (Harjol, 1609-1641).

Fulin tornou-se o Imperador Shunzhi (1643-1661), o segundo da manchu Dinastia Qing, quando em 8 de Outubro de 1643 no Palácio Imperial de Mukden (Shenjiang) foi entronizado. Por ter apenas seis anos foram nomeados os regentes Jirgalang e Dorgon, filho mais novo de Nurhachi e meio irmão de Huang Taiji.

Quando os qing atravessaram em 1644 a Grande Muralha contava o seu exército aproximadamente dois milhões de homens no sistema das 8 bandeiras. No nono dia da décima Lua de Jiashen (8 de Novembro de 1644) Shunzhi tornou-se em Beijing o primeiro Imperador da Dinastia Qing da China. Aí, os jesuítas acabavam de alcançar uma grande vitória sobre os astrónomos chineses ao conseguirem prever um eclipse solar para o primeiro dia do oitavo mês lunar de 1644, não calculado pelo então calendário chinês. Tal demonstrava a necessidade de substituir o Calendário Shou Shi (Narração do Tempo) feito por Guo Shoujing em 1281.

Em Beijing, os jesuítas vinham trabalhando desde 1629 na correcção desse calendário e contra a vontade dos astrónomos da Dinastia Ming preparavam um novo calendário para o substituir.

Reinava já a Dinastia Qing quando aconteceu como previsto por Joannes Adam Schall von Bell o eclipse lunar de 15 de Janeiro de 1645, o que levou a ser oficializado o Calendário Shixian feito por esse jesuíta alemão, logo nomeado Director do Departamento de Astronomia de Beijing e a quem o Imperador Shunzhi sempre deu protecção.

Liberdade religiosa

Os padres da Corte puderam continuar em Beijing devido ao entusiasmo da Dinastia Qing para com o novo calendário. O elevado estatuto que gozava o então mandarim jesuíta Schall von Bell e a sua grande intimidade com o Imperador levaram-no a conseguir em 1650 autorização para construir a Igreja da Imaculada Conceição, mais tarde Catedral do Sul (Nantang).

Durante seis anos esteve o Imperador Shunzhi liberto da governação do país, entregue ao regente Dorgon, e por isso teve tempo para se dedicar às artes, sendo um bom calígrafo e um excelente desenhador de paisagens. Estudou o confucionismo e como extremoso adepto da piedade filial escreveu uma série de poemas dedicados à sua mãe. Após a morte de Dorgon, no último dia de 1650, Shunzhi iniciou com doze anos a governação do país.

Em 1651, numa caçada pela Montanha Jingzhong em Hebei, ao saber encontrar-se ali há nove anos o monge Bieshan em meditação numa gruta, para lá se dirigiu. Após ser por ele recebido, regressou ao palácio e mandou construir um local especial para o acolher, mas o monge recusou. Assim se iniciou o interesse do Imperador Shunzhi pela doutrina budista.

As esposas

A concubina Tunggiya hala (1640-1663) era proveniente de uma família manchu mas vivera sempre entre os chineses han. Entrara na Cidade Proibida em 1653 e a 4 de Maio de 1654 deu à luz Xuanye, o terceiro filho de Shunzhi e por este se ter tornado em 1661 o Imperador Kangxi tomou ela o título Cihe, mãe do imperador e após a morte, Imperatriz Xiaokangzhang.

Já por uma questão política e de tradição, para acalmar o clã mongol Borjigit, o Imperador Shunzhi casou-se em 1654 com Alatan Qiqige (1641-1718), que ficou a ser a Imperatriz mãe Xiaohuizhang, apesar do pouco afecto do imperador por ela.

A sua favorita era a concubina Donggo hala (1639-1660), que entrara no palácio em 1656 e tornou-se a consorte Xian. A 12 de Novembro de 1657 deu à luz o quarto filho do imperador e tal era o amor por ela que Shunzhi o escolheu para seu sucessor, mas este morreu passado três meses, trazendo um grande desgosto ao casal.

Em 1658 Shunzhi mandou chamar o monge budista Yülinxiu do Templo Baoen em Huzhou (hoje Wuxing, em Zhejiang) para ir a Beijing falar com ele. Este recusou e só após várias tentativas acedeu. O imperador ofereceu-lhe o título de mestre Dajue e tomou-o como professor, pedindo para que lhe desse um nome budista e assim ficou a chamar-se Xingchi, aliás Chidaoren. Após dois meses, o mestre regressou ao templo e o Imperador requereu que lhe enviasse um dos seus estudantes.

Shunzhi convidou um outro famoso monge do Templo Tiantong de Zhejiang, Muchenqin que nas conversas se apercebeu da sensibilidade do Imperador e seu entendimento sobre a abstracta doutrina do Budismo Chan. Teria na última reincarnação sido um monge, o que Shunzhi concordou pois, cada vez que visitava um templo não tinha vontade de lá sair e não fosse deixar a mãe sozinha já seria monge.

A Beijing chegou Xisen, o estudante enviado por Yülinxiu, com quem o imperador falava frequentemente sobre a doutrina e lhe pedia conselhos. Com a sua favorita Donggo hala conversava e discutia sobre os livros Chan tornando-se ela também budista. A sua morte em 23 de Setembro de 1660 afectou profundamente o Imperador, que logo passados dois dias lhe atribuiu o título póstumo de Imperatriz Xiaoxian e mandou celebrar um grande funeral budista, convidando 108 monges para durante 21 dias recitarem orações do Clássico budista.

O Imperador deprimido quis suicidar-se, obrigando dia e noite a ter uma pessoa a acompanhá-lo. Com uma tristeza imensa, pensou abandonar o trono e fazer-se monge. Dois meses após a morte da sua favorita, Shunzhi pediu a Xisen que lhe rapasse o cabelo e nem a Imperatriz viúva sua mãe o conseguiu demover. Esta, desesperada, mandou chamar Yülinxiu para vir ao palácio a fim de o obrigar a abandonar tal ideia. Levava 18 dias de monge, quando este chegou, mas nem as várias razões expostas o demoveram e em desespero, Yülinxiu ameaçou com a chantagem de mandar queimar Xisen. Só assim o conseguiu demover.

Dos oito filhos masculinos de Shunzhi, o primeiro nascido em 1651 morrera 89 dias depois.
Ao preparar a sucessão, dos seis candidatos o imperador inclinava-se para o segundo filho Fuquan (1653-1703), então com nove anos. Mas a mãe de Shunzhi, a Imperatriz viúva Xiaozhuang não concordou e por sugestão de von Bell, o único a saber sofrer o Imperador de varíola, propôs a escolha de Xuanye, pois aos dois anos tivera essa doença, bastante mortífera para os manchus que não tinham defesas contra ela. Assim vacinado, o seu terceiro filho Xuanye com oito anos foi o escolhido.

A 5 de Fevereiro de 1661, Shunzhi com 22 anos morreu, sendo sepultado conjuntamente com a sua favorita, a Imperatriz Xiaoxian, no Mausoléu Xiao.

25 Mar 2019