Nas minhas mãos agito um Globo de Sangue

Calvino: O olhar percorre ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz…

 

Caso acompanhem os contos das minhas Teorias de Céu – que as originais foram escritas por Kant, como é uso saber-se – já viajaram no planisfério neles emergente e percorreram cidades baptizadas com o nome de poetas, filósofos e artistas, que espantaram e comoveram a minha vida. Ao contrário do mapa-mundi perfeito de Cassini, neste os topoi escolhidos coexistem e até se movimentam, criando a famosa rota das urbes moventes, sem o fechamento e conservadorismo das culturas nómadas. Nesta teia esburacada da humanidade que se lê, localizo os continentes preferidos da minha geografia: Arte, Música, Literatura, Filosofia, Teatro, Cinema. Como um geógrafo atento, fui ver de perto e depois, já longe, mediante uma certa distância e perspectiva, risquei os mapas à escala das mãos e do olhar humano. No labor paciente de um escriba ou de um iluminarista, represento-os entre os mares Divino, Empírico, Racional, já sem respeitar as proporções elegantes de Ptolomeu, e de todos os Globos de Sangue que escreveram o mundo nascido dos Descobrimentos. Sabe a ferro esta história de dor e conquista, nas mãos de descobridores-ocupantes, alheios ao duplo abismo cosmológico e etnológico que os capturava também, à medida que domesticavam o espaço capturado nos Globos Terrestres. Nesses media visual dominante de seiscentos, vemos como a humanidade encontra a imagem da sua habitabilidade, ocupando os vazios desconhecidos, focando-se e desfocando-se em dispositivos prováveis e cada vez mais universais, concebendo o mundo como uma grande instalação humanista.

Eu sigo o meu plano que não se amordaça no nexo do real. Encaro Heraclito como uma das primeiras comunidades que se desloca, e Parménides como aquela que primordialmente nos reflectiu, quando o tempo vira espelho do ser e não sal destruidor. Sinto-me confiante. Atravesso o Mar Empírico, num barco viking ou numa caravela portuguesa – ambos prisioneiros da História e da Literatura. É verdade que cada obra dita uma tomada de território, uma guerra aberta, entre os vencedores e vencidos. É também verdade que as fronteiras aumentam e encolhem ao sabor de uma geografia do imaginário. E não se usam cruzeiros e baldaquinos, como se ouviu dizer em Sloterdijk, para marcar a terra como gado numa ganaderia ou mulher num bordel, numa profunda desontologização das margens fixas. Não.

No meu globo, que é diferente do de Berhaim, há cidades parturientes, que geram nascimentos do que mais belo resta na humanidade, desde Confúcio, Platão, Cícero, Averróis… Outras há, mais recentes, que se olham uma à outra, como Benjamin e Baudelaire… E ainda as que se apaixonam, afastam, odeiam, como Rimbaud e Verlaine. Nestes partos nascem obras magníficas – é esta a função de se estar neste meu Mundo que está mais interessado “em cortejar o infinto” “implantando o impossível no real”, “criativamente, sem sucumbir às rotinas nocivas” do universalismo. E entre planícies, planaltos e vulcões, tive consciência que, para além de autênticas agências de aceleração, como as cidades de Platão, Espinoza, Marx, Nietzsche, Foucault, que propulsionaram o movimento de tantas outras, havia uma a que inquietantemente designei por Hotel dos Mortos. E lá voltarei um dia.

Chego a um lugar chamado Manzoni. Para minha surpresa a praça principal é geometricamente centralizada por um pedestal virado ao contrário, onde se lê a inscrição: Base do Mundo, como se suportasse o Mundo-Terra-Planeta sobre o qual caminhamos. Neste gesto simbólico Manzoni transforma tudo o que está no mundo em arte, e expõe o planeta tal e qual o que ele é. Ocorre-me ao pensamento a imagem do Atlante, de nome Atlas, condenado por Zeus a sustentar os céus para sempre. Ironicamente representado a sustentar o Globo Terrestre, confirmando a esfericidade da Terra, que desde a mais remota antiguidade se intuía, e que Aristóteles confirmara cientificamente, baseando-se na forma circular da sombra da terra e na intuição formal que todas as coisas se movem em círculo. A esfera é uma geometria de segurança nas grandes narrativas cosmológicas, e o cosmos – a esfera omniabrangente – é uma cosmética imaginária cuja importância será substituída pela Terra, o habitat humano, à custa da evidência observacional. Nunca mais o mar ou o céu serão olhados da mesma forma pelos humanos-terrestres, ouço dizer em Sloterdijk, onde se defende que a ontologia clássica é uma esferologia que entra decadência com as viagens dos portugueses e o sistema heliocêntrico de Copérnico. Até lá se cantam estrofes de Camões. A presença da nova máquina-mundo é o centro do canto X dos Lusíadas, em que as novas experiências derrotam o temor fantástico do desconhecido.

Um sorriso ilumina-se na minha mente ao pensar que todos nós temos um conto de Jorge Luis Borges dentro do esqueleto, ou pelo menos um pequeno osso designado por atlas! O Atlas borgiano constrói um planeta imaginário, que desdenha a geografia moral dominada pelos jesuítas, que criou a imagem da terra antes de Copérnico e da abertura à experiência. Em Borges, Vasco da Gama poderia proferir: “estou aqui, forjando um tempo para lá do tempo, onde você percorre as constelações e aprende a linguagem do universo”. Uma vez desloquei-me a um mesmo e misterioso Aleph e fiz parte de um acontecimento extraordinário: a cidade de Borges moveu-se à cidade de Lisboa.

Encontrei um “ homem que se propôs desenhar o mundo”, e “pouco antes de morrer, descobre que este paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”. Borges é o geógrafo do espaço fantástico, infinito, da eternidade que se pode surpreender no meio de nós e que fala comigo e confessa que aquilo que tem mais pena na vida é não ter mostrado aos seus pais, quando eram vivos, que ele era um homem feliz. Entre os meus olhos cegos de mundo e os dele plenos de olhar clarividente, desenhou-se uma estrada que ainda hoje procuro no meu planisfério. Num voo rasante Borges acaricia-me com essas palavras: “O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de intangíveis escadas para o viajante (…) somente pode ser obra de um deus.”

Salto, corro, fujo porque não sei ainda se posso concordar. O Planeta continua rolando universo fora inaugurando o design de um novo mapa, incitando-me a salvar a carga humana e o que ela representa. Terei de partir com ela, tendo como Marte a primeira paragem, enquanto a Terra agoniza e gela mais uma vez, agora por acção do homem.

Olho para trás, mas Borges não me vê, e não me diz a que deus entregaremos, afinal, o nosso destino. Não há como aperfeiçoar a imperfeição humana, sibila-me Nietzsche. É um desvario. Quase sufocada, agarro-me ao meu tempo. Certo é que estamos condenados a comungar a preocupação de Kant e Foucault, perguntando ao universo: quem somos nós na actualidade?

30 Abr 2021

A resenha de Immanuel Kant

Em 1764, Johann Georg Hamann, amigo e antigo aluno de Immanuel Kant, escreve uma carta a Moses Mendelssohn, onde diz que o filósofo estaria a escrever uma resenha da obra do sueco Emanuel Swedenborg, «Arcana Coelestia», oito volumes publicados durante oito anos, um por ano, acerca dos espíritos, e de como essa relação do autor com os espíritos o leva a uma nova interpretação do Antigo Testamento, conduzindo-o a uma nova religião. Essa resenha seria uma espécie de antídoto contra a crendice que se levantava na Europa acerca desse tipo de assuntos em geral e dessa obra em particular. A obra do sueco foi sendo publicada entre os anos de 1749 e 1756 e cedo criou uma aura de genialidade à sua volta, contrariando todo o trabalho do iluminismo. Tornou-se, aliás, uma espécie de arma de arremesso contra as teses iluministas. Segundo Kant, a obra do sueco em oito volumes não passava de uma espécie de sortido de crenças cristãs ao longo dos séculos, que ele pretendia desmontar, de modo a reconduzir as mentes no caminho são da razão. Na verdade, essa resenha seria publicada em 1766, em dois números da revista fundada e editada por Johann Georg Hamman, Revista de Estudos Académicos e Políticos de Königsberg, com o título «Sonhos de um Vidente de Espíritos, Ilustrado por Sonhos de Metafísica» e seria muito mais do que uma resenha à obra do autor sueco. Nesse texto, Kant ironicamente critica a posição de Swendenborg acerca da sua ideia de espírito, mais do que a sua interpretação da Bíblia a sua nova versão religiosa, e começa por desmontar a falsa autoridade do conhecimento metafísico. Mais do que a questão religiosa, Kant estava interessado em arrasar o ponto de vista pseudo-metafísico do sueco. Leia-se uma passagem desse texto: «Vive em Estocolmo um certo Swedenborg, cavalheiro de posses, financeiramente independente. Nos últimos vinte anos ou mais tem, palavras suas, se dedicado exclusivamente a cultivar um contacto próximo com os espíritos e com as almas dos mortos, para obter deles informações sobre o outro mundo […] e compõe volumosos volumes dedicados às suas descobertas […] Mas a longa obra de Swedenborg é completamente vazia e não contém uma pequena gota de razão.» E veja-se o que um dos seus biógrafos, Moritz Kronenberg, escreve a respeito deste episódio, nas páginas 161 e 163 de «Kant; Sein Leben und Sein Lehre / [Kant; Vida e Ensino]» (Beck, 1897): «Kant traçou um paralelo surpreendente entre as visões de Swedenborg e as dos metafísicos de seu tempo. Swedenborg acreditava estar tão familiarizado com o além quanto com a sua própria casa. Mas não também isso que acontecia com os filósofos? Kant acreditava estar em posição de explicar esses delírios, os de um pelos dos outros, e assim se livrar de ambos. Kant desprezou tão completamente Swedenborg e os metafísicos contemporâneos, acabando por fazer piada deles […]. Tal tom só é assumido por quem vê seu assunto muito abaixo de si. Assim se considerava Kant em relação aos metafísicos […].»

Tudo isto são factos que servem de base a um romance de Anna Scheler, publicado em 2018, «Espanta Espíritos e Outros Males», onde a jovem Anna von Knobloch, estudante de filosofia – e octaneta da senhora Anna Charlotte von Knobloch que trocou correspondência com Kant, a propósito de Swendeborg –, descobre uma longa carta de Kant entre papéis perdidos na casa da avó materna, Charlotte von Knobloch, em que o filósofo alarga a crítica que levara a cabo na revista de Hamann e na correspondência conhecida. É assim que ao longo das duzentas e quinze páginas seguimos não apenas a resenha de Kant aos oito volumes da obra do autor sueco, mas também a carta do filósofo à octavó de Anna von Knobloch e as reflexões desta acerca do nosso tempo e da leitura de Kant. Não estamos perante um romance muito original, mas para além do estimulante contexto histórico, o mais interessante é a forma como a resenha de Kant e a carta ao antepassado de Anna se cruzam com a descrição política dos seus dias, que são os dias em que vivemos. Quase no início da carta lemos estas palavras: «Entregando-se aos seus instintos mais baixos, o homem tem tanta necessidade de dizer mal de alguém quanto de endeusá-lo. Deriva daqui a facilidade com que os homens seguem os fanáticos. E isto é tão válido para os assuntos religiosos quanto políticos ou artísticos. Espero que ao longo da minha resenha o leitor tenha visto que só a razão e o conhecimento podem servir de antídoto para tamanha doença do espírito.»

Segundo Anna Scheler, a ideia de escrever este romance veio quando assistia aos noticiários das notícias do Brasil e à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do país. Diz a escritora numa entrevista: «Nessa altura estava debruçada no estudo de Kant, particularmente o “Ensaio Sobre as Doenças da Cabeça” – texto de Kant também publicado na revista de Hamann em 1766, em cinco números, em que também critica Swedenborg – quando vejo aquelas notícias, que de imediato se ligaram à eleição de Donald Trump e ao crescimento dos governos autoritários e de partidos de extrema direita. Pensei na necessidade de voltarmos a Kant. Na necessidade de razão que o nosso tempo tem. Nestes tempos sombrios, estamos muito necessitados de voltar a ler Kant, que se bateu pela sanidade humana como poucos filósofos o fizeram.»

Independentemente da escritora e professora de antropologia filosófica na Universidade de Berlim poder estar certa ou errada, o que aqui nos traz é o seu romance. E no romance está tudo certo e cristalino. Na sua carta, Kant desmonta a falácia e o fanatismo de Swendenborg, explicando melhor do que na resenha, segundo ele mesmo escreve, ao mesmo tempo que Anna nos mostra a sua perplexidade com este tempo em que vivemos. Escreve Kant na carta: «Quanto mais anódina é uma vida, mais ela sente vontade de pertencer a algo irracional, o que justifica o enorme apreço que o livro do senhor Swendenborg acerca dos espíritos vem tendo. A vida anódina quer acreditar que já foi uma vida destacada no passado e voltará a ser no futuro. E esta aceitação da existência dos espíritos por parte dessas vidas é a prova de que, no fundo, o estar a ser actualmente anódina é um intervalo entre espíritos mais elevados. A sua vida não começou quando nasceu e nem vai terminar quando morrer. Este tempo em que vive é apenas um momento em que espera por voltar a ser um espírito destacado, que ainda não pode saber qual é, como se estivesse à espera da assinatura de um funcionário público na requisição que entregou num departamento do estado.» Depois de nos apresentar esta passagem da carta de Kant, Anna von Knobloch escreve: «Talvez não sejam apenas as vidas anódinas que necessitam de pensar que pertencem a algo que é maior que elas. Talvez estejamos todos a milímetros de resvalar para uma irracionalidade pura, bastando para isso algum contratempo com que não conseguimos lidar. A adesão às teorias da conspiração não é uma forma de pensarmos que de algum modo alguém nos quer fazer mal? E não será isso atribuir-nos uma importância que não temos?»

O livro de Anna Scheler leva-nos pelo mundo do iluminismo e seus inimigos, ao mesmo tempo que nos mostra o pensamento humanista de Kant. Mostra também como nos dias de hoje estamos a ficar cada vez mais longe desses ideais. Ou, como ela prefere dizer, através da narradora: «Estamos cada vez mais a ficar longe do que poderia ser o nosso melhor.» Há também passagens hilariantes acerca de alguns livros da moda actual, não apenas de auto-ajuda, mas também extensos romances, colocados ao nível da obra de Swedenborg e que poderiam ser alvo de uma resenha de Kant, mas que não transcrevo aqui para não estragar a surpresa, aquando da vossa leitura.

26 Jan 2021