O rosto de Dom Dinis

Fez agora setecentos anos a sete de Janeiro que faleceu o rei mais emblemático de um país ausente de feições e formas, que em termos estéticos e anatómicos nada poderemos considerar emblematicamente representativo, ou mesmo sonhar a forma física de certos muitos outros representantes, mas com ele, aconteceu. Vimo-lo como a um Janus renascido no tempo (deixando no entanto para trás aquilo que poderia ter sido o seu jovem rosto) e foi com alguma comoção que o olhámos, e isso não se apagará da memória colectiva que jamais foi alheia ao seu encanto.

Dom Dinis é um pouco como as lendas e que tenha um rosto enche-nos de empolgação e estranho entusiasmo, que, no dia exacto da sua hora grave, ali o tínhamos. A região que o coroou está porém repleta daqueles rostos, aquela costa atlântica de pinhal e litoral é emblemática em parecença fisionómica, e estas coisas são comoções a acrescentar ao muito impacto do momento- ele vinha de uma bruma que as de Avalon talvez ainda reclamassem – e tinha a serenidade incontestável de um poeta.

Um monarca pode ser, ou não, sereno, numa perspectiva política, estatal, portanto, mas nele sentimos-lhe uma outra coisa que não vem nos mapas das referências do seu próprio estatuto. Diz a lenda que era ruivo, mas o que nos chegou, foi aquele ser do século XIII que morrera com sessenta e três anos, uma idade considerada de grande longevidade para a época, que seu corpo sepultado não representou como é claro o outro homem que fora, e foi a imagem possível retirada do seu sepulcro de Odivelas que nos chegou como uma estranha aparição que nos silenciou e nos obrigou a uma sentida vénia.

Os seus olhos azuis, que dizem ter tido reflexos esverdeados, os seus cabelos brancos de louro esquecido, foi o que nos restou e deslumbrou: e se retratássemos o seu avô Afonso X o Sábio, iriámos buscar as mesmas subtis características que fizeram de avô e neto a harpa por onde ainda hoje os nossos corações se alinham. As Canções de Santa Maria também devem ter estes olhos azuis, que Aragão em sua insígnia fúnebre ainda foi sua sepultura, e isto tudo nos deixa, claro está, bastante pensativos. Ele foi o sexto rei português, e nunca as quinas poderão exercer ordem tamanha na demanda da sua numérica. Talvez tivesse sido a nossa Estrela de David sem os recentes aspectos que a definem, quando ainda, e amorosamente, chamou para si «os seus judeus». Também chamou os mouros, templários, e todos aqueles que em seu coração cabiam.

Dirigimo-nos a ele com o respeito intacto de setecentos anos volvidos, que a nossa matriz não pára nas rosas, nem os nossos sonhos são mais livres que a profunda natureza de seu sentido de missão, onde cumpriu e foi senhor, amando ainda por todas as terras de seu reino as mulheres que o inspiraram: onde brotou ainda um Afonso Sanches, um filho bastardo que seguiu as pisadas de um pai que cultivou a língua e a impôs pela primeira vez como língua oficial. Depois teve um neto chamado Pedro a quem dera alvíssaras no momento do nascimento com moedas de ouro e outros recitais para que a sua voz fosse límpida como convinha a um monarca, mas o menino seria mais tarde muito gago, um amante de seu avô, e o mais belo príncipe do mundo.

De seu filho excrementício, Afonso IV, teve batalhas com lágrimas e algum sangue, mas Dom Dinis não fugia aos embates como homem de seu tempo, e sua natureza de gesta deve ter sofrido com a rudeza e os golpes destas coisas. Ele nasceu a 9 de Outubro de 1261, foi aclamado rei em 1279, e morreu em 1325 neste 7 de Janeiro tão cheio de más memórias. Nós devemos lê-lo para saber cantar, conhecer o verde, cheirar os pinhos, e saber construir as novas embarcações. Tinha ainda um perfil truculento, nariz grande e semblante terno e tenaz. Mas a centelha que emblema os seres nenhuma ciência ainda sabe como reproduzir, identificar, e mostrar enquanto domínio pragmático.

– O amor como guia «ai deus e u é» –

21 Jan 2025

Uma noite como as outras

[dropcap]N[/dropcap]o reverso do estafado aforismo “uma imagem vale 1000 palavras” pode entender-se que uma imagem será capaz de inspirar e desencadear 1000 palavras.

Atente-se no instantâneo anexo. É cativante como captura os presentes no seu normal, ou seja, na atitude que deles se popularizou. Ella Fitzgerald, à esquerda, provavelmente a pessoa mais bem-educado do mundo, era de uma timidez compulsiva e tinha pavor a entrevistas com medo de cometer gaffe ou simplismo. Só se sentia livre e no seu elemento debaixo dos holofotes e diante de um microfone – ei-la aqui muito compostinha. Segue-se Georgiana Henry, sua prima e dama de companhia, solicitamente virada para ela embora atenta às circunstâncias. Depois está o saxofonista Illinois Jacquet, menos conhecido conquanto fosse uma personalidade nas entrelinhas do jazz, não apenas pelo seu talento musical como pelo seu activismo, a mostrar um módico de compostura e atenção. Por fim o extrovertido e jocoso Dizzy Gillespie exibe uns à-vontades de perna traçada e uma expressão que, vendo bem, dá uns ares de insolente.

Repare-se no vestido de tafetá e na estola de raposa de Fitzgerald, atavio que a indumentária dos companheiros não contraria. Presume-se, então, que vêm do palco ou estarão prestes a subir a ele.

Não é hiperbólico afirmar que por esta altura a celebridade de Dizzy e Ella seria planetária. Pelo menos nas capitais europeias a intelligentzia autóctone idolatrava-os como grandes artistas, apesar de ser restrita a sua aceitação pelos públicos domésticos. De qualquer modo em 1955 as autoridades civis de Houston, onde agora os vemos, ainda os tinham na conta de uns pretos saídos da casca e armados em vedetas.

Observando melhor o cenário, o banco corrido, o chão de pedra fria, a parede crua e, sobretudo, as grades nas janelas, depressa se percebe que o grupo não assenta em camarim ou bastidores – está no calabouço de uma esquadra.

O produtor Norman Granz chegara a Houston com esta troupe em mais uma digressão do seu afamado e esplêndido Jazz at the Philharmonic. Cidade rica, os magnatas que nela punham e dispunham tinham bem atada e subserviente a polícia, famigerada pelo seu intrépido segregacionismo.

Granz fazia ponto de honra que nos seus concertos não houvesse discriminação racial, quer em palco, quer na plateia. De modo que exigiu não se venderem bilhetes senão no dia do concerto, assim evitando compras em bloco, e mandou retirar as tabuletas que designavam os sectores da sala de “white” e “negro.”

A vingança não se fez esperar. Ia terminando a actuação de Gene Krupa quando uns chapas à paisana irromperam de revólver em punho no camarim de Ella, sossegada a comer uma fatia de tarte enquanto Jacquet e Gillespie entretinham a espera jogando aos dados. Granz correu a interpor-se entre os agentes e a casa de banho, não fossem eles plantar alguma droga para dar mais substância à rusga, no que viu o cano de uma arma ser-lhe encostado à barriga. “Dispara se és capaz” rosnou – mas o chui não foi. Isto vai tudo de cana por jogo ilegal, bradou o chefe da brigada, ao que Granz lhe retorquiu que subisse ele ao proscénio para anunciar aos 3.000 pagantes que o concerto estava cancelado.

Com receio de um motim – de espectadores maioritariamente brancos… – os polícias resolveram que os flagrados iriam à esquadra para lhes ser levantado auto mas regressariam a tempo da segunda parte. À chegada esperavam-nos uma bateria de repórteres evidenciando a premeditação da emboscada. Um deles teve o despautério de pedir um autógrafo a Ella Fitzgerald que choramingava – na foto fica agora evidente a sua tensão. Gillespie porém, insurrecto como sempre, ao ser-lhe pedida identificação declarou chamar-se Louis Armstrong.

O Houston Post publicou a reportagem no dia seguinte. À fotografia juntou com toque de ignóbil condescendência o comentário: “a senhora mais bem vestida que alguma vez apareceu numa esquadra de Houston.”

Norman Granz teve de esportular $2000 para que o processo se arquivasse, mas o despautério acabou por sair barato. A ocorrência deu escândalo nacional e nunca mais em Houston se realizaram concertos segregados.

28 Jun 2019