Os bugs da maré ansiosa

[dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman).

Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas).

A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo.

Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas:

1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares.
2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares.
3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares.
4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares.
5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares.

Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes.

Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á.

Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*.

Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou.


*Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999.
*Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016.
*Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.

11 Abr 2019

Um apocalipse para levar a brincar

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho amigos que têm ídolos e muitas vezes nem fazem ideia de que assim é. Numa esfera mais alargada, conheço muitíssimas pessoas que fazem depender grande parte das suas vidas de heróis. Podem esses heróis ser poetas, pensadores, pedagogos, filósofos, comunicólogos, antepassados ou até silhuetas virtuais (personagens, actores, bandas, cantores e outros seres a partir dos quais se imaginam virtudes, dotes e dons). Nem sei se os humanos conseguirão viver de outro modo, identificando-se e projectando-se, ao mesmo tempo, em existências que lhes são (em princípio) exteriores.

Na nossa época e em partes significativas do planeta, o facilitismo paródico-lúdico aliado a uma disposição desagregadora e niilista governa a nossa ‘intelligentsia’. Este tipo de poder – que funciona como um polvo de muitos tentáculos e origens – exerce-se sobretudo num movimento que oscila entre o ‘dogma’ das redes sociais (um horizonte imediato que se desactualiza logo que se actualiza) e o discurso fantasmático (o que aparece na rede – e nos rumores mediáticos – surge como imagem de imagem quase sem contexto). Um tal ziguezague social dá-se na perfeição com o reducionismo e com os limites suscitados pelas deusificações, pelos ídolos e pelo culto secreto ou desabrido de heróis.

Os autores do iluminismo vangloriaram-se com a invenção da ciência histórica, entendendo-a como um mandamento que fazia preceder o seu tempo (definido como racional e virado para o que viria a designar-se, já no século XIX, por “progresso”) de uma idade heróica e de uma outra original e selvagem (a pré-história). Essa definição de contemporaneidade baseava-se, pois, na oposição entre uma racionalidade que naquele tempo se via ao espelho como uma evidência e o culto dos heróis que teria ficado irremediavelmente para trás. Como se percebe, as utopias alimentam-se das euforias do imediato, mas, no reverso (e nas suas ressacas históricas), tornam-se distópicas porque inevitavelmente falham. O que talvez melhor caracterizará uma época são os anseios e os projectos que foram sonhados, mas que acabariam por nunca se vir a realizar (veja-se o caso dos muitos ‘plots’ da guerra fria, por exemplo, que tão bem definem a segunda metade do século XX).

Apesar de quase trezentos anos de fôlego moderno, para além das grandes guerras e dos holocaustos do século XX (não sei, sinceramente, se haverá um “para além do” holocausto), a nossa era, que se pode definir como um cocktail em que se misturam as ‘quêtes’ babyboomers, o ‘pós-moderno’ dos millenials e o aquário em rede da geração Z, criou as condições ideais para um reatar do culto dos heróis. Algo que seria muito difícil de prever há algumas décadas, quando a ‘intelligentsia’ ainda era movida a vapor por “intelectuais”, ideólogos e por outros arautos dos grandes “sujeitos sociais”. Moral da história: o que cai por terra, cai sem qualquer compaixão. E o que aparece em cena subitamente, como se fosse uma aura que viesse do nada, aparece sem quaisquer explicações. Eis o que melhor caracteriza o que é, hoje em dia, um “ídolo” (traduzido cada vez mais na linguagem corrente de um modo falacioso, através da palavra “ícone” e, ainda por cima, com a alarvidade de ser pronunciada como se não fosse uma esdrúxula). Sinal dos tempos.

Quando eu era criança, os heróis corriam na BD, nos campos de futebol, numa ou noutra música e sobretudo nos livros de história. Na nossa era, os heróis começam no quarto entre mochilas, bonecos, carrinhos, penicos e um outro livro juvenil ou infantil caído no chão. É nos terminais tecnológicos que aparecem os primeiros heróis, os chamados youtubers que contam com vários milhões de subscritores. É o Wuant que brinca ao titanic, é o Feromonas que brinca com pacotes de leite aos gritinhos, é o Dark Frame que se dá a ver a dançar, enquanto visiona jogos de vídeo violentos, e é Sir Kazzio que aparece numa espécie de cabeleireiro com bolos e  chantili a cobrir-lhe a cabeça. O registo do cómico está ao nível dos concursos de peidos que eu fazia com o meu irmão, quando tinha cinco ou seis anos de idade. Não tenho nada  (dogmaticamente falando) contra a infantilização da sociedade. Seja como for, aqui corre dinheiro, muito dinheiro, e o modelo tende a exportar-se para outros patamares. As praxes nas universidades, por exemplo, são parentes íntimas desta espectacularização da idiotice radical e, em muitos casos, ameaçam durar quase um ano inteiro. Há meio século, as crianças eram vestidas (ou fardadas) como pequenos adultos; hoje a orwellização tecnológica está eufórica com este estado de perdição da infantilidade. Faz muito, mesmo muito jeitinho às receitas (de alguns). A vida ainda se há-de transformar num videojogo. Coisa lúdica. Um apocalipse para levar a brincar.

21 Mar 2019

Lamno -A vila de pescadores esquecida*

[dropcap]M[/dropcap]acaense é símbolo do intercâmbio cultural entre o oriente e o ocidente, e o mesmo acontece no noroeste de Sumatra, na Indonésia, a duzentos quilómetros de Banda Aceh, numa remota vila de pescadores no vasto Oceano Índico, Lamno. Além de ser um local de excelência mundial na produção de lagosta, Lamno destaca-se pela singular existência de um grupo étnico misto de portugueses e indonésios. Os rostos típicos do Sudeste Asiático convivem com um par de olhos azuis cristalinos e de cabelos loiros. Esta aparência especial, que parece expor tranquilamente o seu passado histórico, atraiu também a atenção da imprensa estrangeira.
Infelizmente, Lamno ainda hoje é uma vila desconhecida.

Devido à sua localização, Lamno sempre teve relações com a China desde os tempos antigos e durante o grande período de navegação dos europeus dos séculos XV a XVII. Antes dos portugueses chegarem na procura de especiarias e na ânsia de espalhar a religião católica, o imperador da dinastia Yuan já tinha enviado mensageiros ao local, em 1284. No entanto, existem duas formas para tentar explicar o aparecimento do grupo mestiço português-indonésio local. A primeira é a de que muitos dos marinheiros da frota portuguesa que chegaram à vila optaram por lá ficar tendo muitos deles casado com as mulheres locais. Mas, de acordo com um comunicado oficial, quando os navios portugueses atravessaram a área marítima de Banda Aceh, foram capturados pelo Sultanato de Aceh. Naquela época, os marinheiros portugueses estavam misturados com a tripulação da Andaluzia, Espanha. A Andaluzia é a última dinastia islâmica do território espanhol, “Nasrite”. Devido à semelhança da religião dos dois povos, a tripulação e os habitantes locais facilmente se integraram, e o Jaya Sultan também os ajudou a estabelecer o sultanato “Lamno”. Esta pode ser uma segunda explicação para o surgimento desta mistura peculiar.

A minha viagem para Lamno foi bastante complicada. O avião teve de fazer duas paragens desde Hong Kong até chegar Banda Aceh, e precisei também de contratar um motorista e de alugar um carro no dia seguinte. Devido à falta de alojamento em Lamno, a viagem de ida e volta até Banda Aceh tem que ser feita no próprio dia. Embora estivesse sozinho, a jornada foi tranquila. Felizmente, o motorista que contratei era da organização de socorro às vítimas do tsunami da ONU e nasceu em Lamno.

De Banda Aceh para Lamno, o carro percorreu uma estrada costeira, passando por campos verdejantes, praias lindas e selvagens. O pequeno carro subiu as sinuosas estradas da montanha onde a beira da estrada era coberta de floresta tropical. Durante esta viagem, o cenário ecológico original dos penhascos perto da beira da estrada, era assombroso e mostrava-me o infinito. O Oceano Índico estendia-se diante dos meus olhos.

À tarde, chegámos a um vasto campo, onde se localiza a vila de Lamno. Ao passear no pequeno mercado da aldeia, pude observar vários edifícios com o estilo arquitectónico do sul da Europa e islâmico, que revelavam assim as características culturais locais. O motorista e os aldeões levaram-me para uma casa de madeira onde se sentavam à porta duas mulheres tímidas de meia- idade. Após as apresentações, vim a saber que o marido de uma delas era um homem mestiço luso-indonésio da quarta geração e que a sua filha possui cabelos loiros. O balanço geral da minha jornada foi muito bom, mas fiquei um pouco desiludido por não conhecer pessoalmente estas duas pessoas, que estavam a trabalhar e a estudar noutra ilha.

No entanto, esta viagem encheu-me de satisfação e deu-me a conhecer a vila de “Lamno” registada nos dados históricos chineses, portugueses, ingleses e indonésios.

 

Ritchie Lek Chi, Chan
*Artigo publicado no Macao Daily Newspaper em 14 de Novembro de 2018

 

18 Mar 2019

Os primeiros imperadores Qing

[dropcap]N[/dropcap]urhachi (1559-1626), do clã Aisin Gioro, tribo jianzhou dos nüzhen, nasceu em Hetuala e com 18 anos casou-se pela primeira vez, sendo em 1583 eleito chefe dos jianzhou. Contraiu matrimónio mais quinze vezes e o de 1588 foi com Yele Nara Hala, filha de um príncipe nüzhen que em 1592 lhe deu o seu oitavo filho, Aisin-Gioro Huang Taiji.

Após unificar as tribos nüzhen, em 1616 Nurhachi estabeleceu a Dinastia Da Jin (1616-1636, Grande Jin), tornando-se o primeiro khan (soberano), com o título de reinado Tianming e nome-templo Taizu (1616-1626). Fez a capital em Xingjing (antiga Hetuala), passando-a em 1621 para Liaoyang e em 1625 transferiu-a para Shengjing (Shenyang). Mas logo no ano seguinte morreu, sucedendo-lhe então como segundo khan Aisin-Gioro Huang Taiji (1592-1643) a governar a dinastia de 1627 a 1636 com o título de reinado Tiancong. Herdando o sistema das oito bandeiras (baqi), que organizara os nüzhen administrativamente, tanto no sector civil, como no militar, instituiu-o em 1633 aos han e mongóis sob o seu controlo. Existia já para comunicar a língua man, escrita baseada nas palavras mongóis e pronúncia nüzhen, o que em 1634 levou Shengjing a passar a ter o nome de Mukden e Huang Taiji a ser conhecido por Abahai. Em 1635 mudou a designação de nüzhen para manchu.

Usando o modelo chinês na administração pública desde 1631, Huang Taiji teve o cuidado de colocar nos altos postos de comando não só os nüzhen, como mongóis e chineses han.

O Palácio Imperial em Shengjing, iniciado em 1625 por Nurhachi, só ficou completo em 1636, quando Huang Taiji criou a Dinastia Qing (puro), tornando-se o seu primeiro imperador e tomou o nome de reinado Chongde (1636-1643). Com o fito de conquistar a China investiu num corpo militar forte para a invadir.

Ao grande desenvolvimento a ocorrer no Nordeste, a Dinastia Ming não prestou atenção, de tão ocupada estava com as revoltas dos camponeses e a cobrar cada vez mais impostos à já de si empobrecida população para pagar os luxos dos imperadores, que não se coadunavam com os cofres vazios e disfarçavam as manigâncias dos corruptos eunucos.

Abahai “impõe o seu domínio à Coreia em 1638 e acaba por ocupar toda a Manchúria até ao estreito de Shanhaiguan em 1642, bem como toda a região do Amur (província de Heilongjiang) entre 1636 e 1644”, segundo Jacques Gernet, que refere, a sua política “visa a imitação das instituições chinesas. Os seus conselheiros e os seus generais são chineses e o armamento moderno que possui é-lhe fornecido da China por trânsfugas.”

Apesar de ser o fundador da Dinastia Qing, Huang Taiji não chegou a ser Imperador da China devido à sua morte em Setembro de 1643, uns meses antes de os manchus tomarem Beijing. Com o nome de templo Taizong, o seu mausoléu, Zhaoling, a Norte de Mukden (Shenyang), foi iniciado em 1643, demorando oito anos a ser construído, encontrando-se aí sepultada a Imperatriz Xiaoduan e algumas das suas esposas, entre as quais a favorita Borjigit Harjol (1609-1641), a consorte Minhui.

Huang Taiji morrera sem designar sucessor, tendo um comité de príncipes manchus escolhido o seu terceiro filho Aisin-Gioro Fulin (1638-1661) para lhe suceder e por ter apenas seis anos, nomeou como regentes Jirgalang e Dorgon. A 8 de Outubro de 1643 no Palácio Imperial de Shengjing foi coroado como Imperador Shunzhi (1644-1661), o segundo da Dinastia Qing.

A ocupação de Beijing por um exército de camponeses liderado por Li Zicheng levou a que em 25 de Abril de 1644 o último imperador ming Chongzhen (1628-44) se suicidasse. Para desalojar os rebeldes, foi dada a possibilidade ao exército manchu de transpor a Grande Muralha e em conjunto com os ming combatê-los. Os manchus, encontrando o trono chinês vazio, em 6 de Junho de 1644 instalavam-se em Beijing, tornando-se Shengjing a sua capital subsidiária. Os imperadores desde então deixaram de ter o nome pessoal, que apenas se usava para as orações.

Imperador Shunzhi

Fulin, nascido a 15 de Março de 1638 e filho de Huang Taiji e de Xiaozhuang (1613-1688), já como segundo Imperador Qing Shunzhi foi no dia 1 da décima Lua de Jiashen (甲申), ano sob o signo do macaco, a Tiantan em Beijing oferecer sacrifícios ao Céu e na semana seguinte, a 8 de Novembro de 1644 realizou-se na Cidade Proibida a sua entronização como primeiro Imperador da China da Dinastia Qing (1644-1911). Devido a ser ainda uma criança, tomaram então conta dos assuntos de Estado os regentes Dorgon (1643-1650), 14.º filho de Nurhachi e Jirgalang (1643-1647), sobrinho de Nurhachi. Este último foi em 1647 destituído por Dorgon, que ficou a dominar tanto a política como militarmente a China.

Em Beijing, os manchus ocuparam a Cidade Interior e daí colocaram os han para fora das muralhas que a circundavam, ficando estes a viver na Cidade Exterior. Os casamentos entre ambos os grupos foram proibidos, tal como os han irem viver para o Nordeste [conhecida pelos ocidentais como Manchúria e designada Dongbei pelos chineses, é composta por três províncias: Liaoning, Jillin e Heilongjiang, com as respectivas capitais em Shenyang, Changchun e Harbin].

Os manchus rapavam o cabelo deixando apenas uma trança (bianzi) no topo da cabeça, penteado usado pelos povos nómadas das estepes. Após chegarem ao poder na China, logo em 1645 o tornaram obrigatório aos sedentários chineses han, que tradicionalmente usavam o cabelo comprido apanhado num carrapito. Essa submissão foi entendida como uma humilhação, mas quem não acatasse tal disposição ficava sujeito à pena de morte.

Encontraram no Centro e Sul do território da China uma resistência dos chineses han, a qual Macau apoiou, e só em 1661 os manchus conseguiram pôr fim às pretensões de quem queria restaurar a Dinastia Ming. Contaram com a ajuda militar de alguns generais ming dissidentes, desagradados com a corrupção na corte ainda antes dos manchus obterem o Mandato do Céu e a esses trataram como pertencentes à sua família. A falta de pagamento levou muitos outros, entre oficiais a soldados a uniram-se-lhes, assim como os que se renderam aquando da tomada para Sul das cidades ocupadas pelos ming. Para os manchus, quem não se rendesse era massacrado até à morte e foi o que ocorreu no Verão de 1645, quando durante dez dias oitocentos mil habitantes de Yangzhou morreram às mãos do exército imperial qing, comandado pelo Príncipe de Yu (Aisin-gioro Duoduo). Este seguiu depois com as suas tropas para Nanjing onde a população imediatamente o deixou entrar, terminando com o primeiro regime Ming do Sul, que teve um ano de existência. Fugindo para Sul, a corte ming dividiu-se, formando novas bolsas de resistência, que só iriam terminar já o segundo Imperador Qing tinha morrido.

Shunzhi iniciara com 13 anos a sua governação, após a morte no último dia de 1650 do regente Dorgon, até que com 22 anos morreu de varíola, sendo o sucessor o seu terceiro filho Xuanye, o Imperador Kangxi.

18 Mar 2019

História | Livro reaviva papel do Seminário de S. José na formação das gentes de Macau

Desde princípios do século XX, é uma escola vocacionada em exclusivo para a formação de padres, mas o Seminário de S. José foi muito mais ao longo de quase 300 anos de vida. João Guedes foi revisitar o passado, reunindo peças de um ‘puzzle’ que estava por montar, num livro a ser apresentado na próxima semana

[dropcap]C[/dropcap]om quase tantas páginas como os anos de vida do Seminário de S. José, o novo livro de João Guedes figura como um capítulo da história de Macau que estava por escrever. Aceitando o repto lançado pelos Antigos Alunos do Seminário de S. José, o autor lançou-se à missão de recolher os pedaços dispersos sobre a vida e o papel de uma instituição, cujo legado, olvidado pelos tempos, fica agora cristalizado em livro. A obra, intitulada “O Seminário de S. José – Na Formação das Gentes de Macau”, é patrocinada pela Fundação Macau. O lançamento está marcado para o próximo dia 19, pelas 19h, no restaurante Metrópole, localizado na Avenida da Praia Grande.

Não se sabe exactamente quando tudo começou, porque a data da fundação do Seminário de S. José continua a ser “controversa”, mas as estimativas, com base em documentos da época, apontam para o intervalo entre os 1728 e 1749. Projecto dos jesuítas, o Seminário de S. José surge no contexto da almejada evangelização do Oriente que tinha o Japão e a China como principais eixos, constituindo-se como a “ponta de lança” para a missionação do império do Meio. “Os jesuítas fizeram a grande acrópole que é S. Paulo, com o colégio, para a evangelização do Japão, e depois, uma segunda, também erguida num alto, com uma imponência semelhante, para a evangelização da China”, começa por explicar João Guedes, em entrevista ao HM. Por ali passaram “nomes importantíssimos”, principalmente da cultura, e em escala antes de seguirem para o tribunal das matemáticas, em Pequim, iluminados da área das ciências, complementa.

No entanto, o plano, “bem organizado”, vai perdendo fôlego até se esvanecer com a chamada “questão dos ritos”. Em causa o conflito que opôs os jesuítas – que defendiam a continuação da prática dos ritos pelos católicos chineses – e outras ordens religiosas, como os dominicanos – que alegavam que os permitir nos ritos era alimentar superstições incompatíveis com o catolicismo – terminou no século XVIII com a veredicto de Roma contra os homens da Companhia de Jesus.

“A polémica foi de tal ordem que o imperador [da China] não teve alternativa senão pura e simplesmente expulsar os padres todos da China”, contextualiza João Guedes. Muitos procuraram refúgio em Macau, em concreto no Seminário de S. José, incluindo o último bispo consagrado da China que fica no território 14 anos à espera de poder entrar em território chinês, mas em vão, salienta João Guedes. A ordem de expulsão dos jesuítas dada pelo Marquês de Pombal chega em 1762, com a execução a redundar num cerco às instalações pertencentes aos jesuítas e na prisão de todos os professores em Macau. Com a expulsão dos jesuítas, o Seminário de S. José fica praticamente ao abandono, um reflexo, aliás, do encolher da força do padroado português do Oriente, mantendo-se pelos 15 anos seguintes na ‘mais apagada e vil tristeza até à chegada dos lazaristas’”, que irão “refundar” o Seminário de S. José que “regressaria, ou mesmo ultrapassaria, o seu antigo esplendor”.

Ecos revolucionários

Como narra o autor, foi nesta segunda fase da história que o prestígio do Seminário de S. José “se consolidou de facto”, constituindo-se como “a instituição de ensino local, já que a educação laica era virtualmente inexistente”. O liberalismo em Portugal vem, contudo, abrir um nova frente de crise, com os ecos da revolução a fazerem-se sentir localmente a partir de 1822. “Estamos numa altura em que o Seminário de S. José concentra a inteligência local e os professores eram todos sujeitos de grande formação e, portanto, progressistas, pelo que o liberalismo é decididamente apoiado por eles” e “contestado pelo clero secular, principalmente pelos dominicanos”.

Após o golpe, Macau singrou durante um ano independente do intermediário poder de Goa e também à revelia de Lisboa”, um período que João Guedes descreve como “muito interessante”: “Durante um ano, Macau foi gerido como uma República e quem mandava era o Leal Senado e, aliás, esteve por um fio de deixar de pertencer à coroa portuguesa e passar a pertencer à brasileira”. Isto porque estávamos na altura do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e “existia em Macau uma corrente liberal para a qual fazia mais sentido Macau ser administrativamente gerido pelo Brasil”. Desde logo porque “quem justificava a existência de Macau eram os comerciantes que, naturalmente, preferiam os brasileiros democráticos em detrimento dos portugueses absolutistas”, mas essa aspiração nunca vingou.

A ascensão ao poder dos miguelistas e, por conseguinte, o fim do liberalismo em Macau, dita a prisão ou a fuga dos padres do seminário que volta a mergulhar “numa lenta agonia”. “A educação em Macau simplesmente acaba. Não havia mais nenhum sítio para estudar em Macau. Era muito oneroso para as famílias terem que mandar os filhos para Portugal ou para as Filipinas, por exemplo…”, realça João Guedes.

Durante a guerra civil travada em Portugal (1828 a 1834) mantém-se o interregno na formação, mas o cenário que viria depois estaria longe do ideal: “O Seminário de S. José seria novamente afectado, desta feita, por outra razão: o facto de o poder instituído em 1834 ser liberal anticlerical”, explica João Guedes.

Os apelos para que o Seminário de S. José voltasse a ser entregue à Companhia de Jesus foram ganhando ímpeto, com os jornais da época a chamar a atenção para a “crassa ignorância” que reinava em Macau, com críticas de que “não existiria um só macaense de 20 anos que soubesse ler, falar e escrever com acerto a sua própria língua”. Os jesuítas acabam por voltar, num regresso que, segundo João Guedes, foi “tão marcante quanto fugaz”. “Durante os nove anos dos Jesuítas, o Seminário, além de ter crescido exponencialmente em quantidade revelou-se igualmente pela qualidade do ensino”, forjando alunos que “acabariam por ter papéis de relevo não só na vida eclesiástica, mas também noutras áreas”.

O liceu

Em 1870, por virtude de um decreto, o Seminário passa a “servir de liceu”, oferecendo “instrução secundária aos indivíduos que não se destinarem aos estados eclesiásticos”, tornando-o no “único estabelecimento de educação onde se ministrava o ensino secundário, com programa de estudos oficializado”, antes da criação de um Liceu em Macau, em 1893. Uma portaria definia que os professores teriam de ser obrigatoriamente de nacionalidade portuguesa e, pela segunda vez, os jesuítas foram novamente “arredados da história de Macau”. A saída do corpo docente não redundou, como antes, na ruína do seminário, já que no mesmo dia em que os jesuítas partiram (em 1871) chega a Macau um novo grupo, ainda que com um único padre entre os professores.

Já a entrada no século XX marca o ponto de viragem, assinala João Guedes, dado que o S. José passa a ser um “verdadeiro seminário”, existindo exclusivamente para formar padres, depois de ter tido, durante décadas a fio, o “exclusivo da educação” e a particularidade e a “grande vantagem” de formar ambas as comunidades de Macau – a portuguesa e a chinesa –, enaltece João Guedes.

Alunos notáveis

Do universo de vultos que frequentaram o Seminário S. José, o autor do livro destaca nomeadamente o marechal Gomes da Costa, líder do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que instauraria o Estado Novo, mas outras figuras de relevo nacional ali completaram a educação primária e secundária, como os irmãos Artur e João Tamagnini Barbosa, exemplifica João Guedes. O primeiro foi, por três vezes, governador de Macau, enquanto o segundo foi ministro do Interior, das Colónias e das Finanças e desempenhou o cargo equivalente a primeiro-ministro durante a I República. Já da área da cultura emergem nomes como o pintor Luís Demée ou o intérprete-tradutor Pedro Nolasco da Silva.

O livro, dividido em 12 capítulos, traça o percurso do seminário, fazendo-se acompanhar por uma série de fotografias de diferentes momentos de uma instituição que “entronca” na vida social da própria cidade.

12 Mar 2019

A tasquinha do senhor Osório

[dropcap]N[/dropcap]o início do século, Peter Sloterdijk, no seu Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária*, considerou que os media e especialmente a televisão constituíam a última técnica de “meditação da humanidade”, depois da era das grandes receitas (ideologias) e das “religiões regionais”. Deste modo, a televisão teria sido a primeira das redenções a libertar verdadeiramente os humanos. Uma teoria extraordinária que encontra nos fluxos suscitados pelos plasmas e pela pele dos monitores uma paz que teria sido apenas sonhada pelas muitas espiritualidades das escatologias. Leiamos o texto original:

(finalmente), “na televisão, a história da redenção da humanidade chega ao seu termo” (…) “a televisão informa-nos sobre o facto de, no fundo, tudo ser apenas imagens” (…) “Qual a diferença entre um televisor ligado e um televisor desligado?” (…) “não há diferença nenhuma, é só ritmo, tam-tam, som-pausa, ligado-desligado, é o mundo tal como o conhecemos. Olhar, não olhar, acontecimento, não acontecimento, imagens, não imagens” (…) “A televisão é a última técnica de meditação da humanidade na era que se segue às altas religiões regionais” (…) “Este (redentor), a televisão, é o primeiro que nos deixa realmente livres” (…) “os indivíduos querem que os deixem em paz; e esta tranquilidade é uma coisa que agora podem ter de uma vez por todas”.

Quase duas décadas depois, há quem pense que as coisas se alteraram radicalmente. O argumento é do tipo self-service. Ou seja: dantes as televisões providenciavam uma ementa certa e os espectadores, na sua passividade, podiam encontrar um lugar para ancorar o corpo e deixar-se ir; enquanto hoje os canais de ‘streaming’, fugindo à programação tradicional, deixam ao utilizador a escolha livre do que ver e quando ver. Se se mostrar a dimensão do self-service, o argumento parece até um pouco convicente (Netflix, Amazon Prime Video, Nos Play, Filmin, Hulu, Fox Play, Mubi, YouTube premium, Meo go, Disney+ e mesmo a RTP Play).

No entanto, pensando bem, aquilo que mudou foi a pilotagem: passou-se da fase do piloto automático, baseada numa cronologia que visava essencialmente o serão, para uma aparente auto-gestão (lembro-me, em criança, de que havia um dia para o teatro, outro para um filme, outro para as “variedades”, etc, e, mais tarde, logo a seguir à revolução, veio a telenovela e depois os concursos enquanto matrizes orientadoras do tempo televisivo). A chegada das televisões privadas e depois do cabo dividiram as águas e compartimentaram os temas e as escolhas possíveis. A era do self-service viria a entregar, por sua vez, o leme e a pilotagem a quem “consome” (cito o verbo “consumir” a partir do vocabulário da actual ministra da cultura, pois temos que ir aprendendo alguma coisa ao longo na vida).

Esta entrega parece semelhante a outras que têm ganho ‘fôlego viral’ nos últimos anos: hipermercados em vez de mercearias, redes sociais e informação cruzada na rede em vez de jornais impressos e telejornais a horas certas, trivagos e congéneres em vez de agências de viagens; uber, chauffeur, cabify ou taxify em vez de táxis; formações em rede em vez de ensino por correspondência, compra online de livros em vez de encomenda nas livrarias clássicas, etc, etc. Na realidade, do hipermercado posso trazer o mesmo sabonete, mas a possibilidade de escolha é incomparável; da rede posso trazer as mesmas notícias, pois o aumento de informação não se traduz pelo aumento da tipologia de acontecimentos que ocorrem no mundo, mas a rapidez de acesso é incomparável; das viagens posso trazer as mesmas paisagens, mas com mais agilidade nos ingressos; das formações posso recolher idênticos frutos, mas a possibilidade de diálogo ininterrupto é incomparável; das livrarias online posso encomendar qualquer obra sem ter que depender das existências e dos stocks locais.

No caso da televisão, parece-me óbvio que continuamos ‘sempre a ver o mesmo filme’. Como escreveu Sloterdijk, estamos inevitavelmente a maturar “o mesmo ritmo, o mesmo tam-tam, o mesmo som-pausa”. É claro que me refiro àquele formato de sequência (ou de ‘filme perceptivo’) que a escritora Patrícia Melo caracterizou, um dia, como “transcendência fácil”. Recorrendo a linguagem de treinador de futebol: liga-se o chip, esticam-se as pernas, chupa-se uma pipoca e com um olho na acção e outro no facebook, passa-se um tempo do diabo. Umberto Eco na sua generosidade apocalíptica e integrada pousou a mão na consciência e disse que não havia mal nenhum em um gajo roncar a ver Visconti ou elevar o pingarelho glosando as entrevistas de Cristina Ferreira. As coisas convivem melhor do que se pensa. Mas não deixa de ser verdade que uma pessoa atravessa o self-service de lés a lés e dá sempre com os mesmos guerreiros a disparar bala, com os mesmos cadáveres fumegantes, com os mesmos polícias jovens e imortais, com os mesmos hospitais melosos, com os mesmos efeitos especiais a excitar a medula e com a mesma sonoridade tipo cuduro para bandarilhar a delicadeza dos tímpanos. Uma pessoa liga o cartão de crédito ao streaming – a tal “outra forma de ver televisão” – e sai do outro lado do self-service em forma de apagão.

Poderá voltar a questionar-se, por fim: mas o que muda realmente, se e quando salto da uber para o glovo e do trivago para o airbnb, antes de ligar o computador para aterrar na netflix e ficar impermeabilizado durante uma série de horas? O que muda é tão-só a perspectiva com que a ilusão toma conta de cada um de nós. Ao fim e ao cabo, a ilusão do tempo ‘que não era o meu’ transformou-se na ilusão do tempo que ‘passou a ser feito só para mim e à minha medida’. É realmente diferente conviver com um tempo que recebemos do ‘altíssimo’ e convivermos, depois, com um outro tempo que faz de nós a simulação do próprio ‘altíssimo’. No entanto, a carne é fraca em ambos os casos, pois, como escreveu Sloterdijk, “os indivíduos querem que os deixem em paz; e esta tranquilidade é uma coisa que agora podem ter de uma vez por todas”. Seja no self-service ou seja na tasquinha do senhor Osório que, nos tempos livres, continua a ser um apaixonado pelos remansos do velho cinematógrafo, pelas entranhas do crackdown 3 e pelo afã dos ‘colporteurs’ da lanterna mágica.


*Peter Sloterdijk. Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária. Lisboa: Fenda, 2001, p. 132.

7 Mar 2019

Livro | A história, a arquitectura e a funcionalidade do edifício-sede dos Correios

O aniversário da abertura do edifício-sede dos CTT há 88 anos foi escolhido para tema central das comemorações dos 135 anos dos Correios. A história, o traço arquitectónico e a funcionalidade do emblemático prédio, localizado no coração da cidade, foram vertidas para um livro lançado na sexta-feira, intitulado “Edifício-Sede dos CTT – História, Arquitectura, Funcionalidade”

[dropcap]C[/dropcap]orria o ano de 1931 quando o edifício-sede dos Correios, Telégrafos e Telecomunicações (CTT) abriu finalmente ao público. Projectada no tempo da Primeira República Portuguesa, foi uma das obras mais debatidas no século XX em Macau, levando quase duas décadas a ganhar forma, devido a uma panóplia de vicissitudes políticas e técnicas. Oitenta e oito anos depois da abertura, o imponente edifício, classificado como Património Mundial pela UNESCO, deu o mote para um livro, uma exposição fotográfica e uma emissão filatélica.

“Tendo o número 88 um significado auspicioso na cultura chinesa, escolhemos o edifício-sede como tema central das actividades comemorativas dos 135 anos dos Correios”, realçou a directora dos CTT, na cerimónia do triplo lançamento, que decorreu na sexta-feira. O livro, intitulado “Edifício-Sede dos CTT – História, Arquitectura, Funcionalidade”, reúne um largo conjunto de fotografias, muitas delas inéditas e constitui “um documento de referência”, complementou Derby Lau.

Foi, aliás, a partir da “significativa colecção de fotografias, muitas inéditas, datadas dos anos 40 e 50 do século XX” que nasceu a ideia de dar à estampa um livro dedicado ao edifício-sede dos CTT que, apesar de integrar o conjunto do Centro Histórico de Macau, “até hoje não tinha merecido qualquer estudo de relevo”, explicou Helena Vale da Conceição, coautora do livro, a par com o arquitecto Nuno Rocha. “Porque os CTT se orgulham de ter por sede um edifício Património da Humanidade, considerámos ser nosso dever fazer justiça a estas instalações que, paralelamente ao seu valor arquitectónico, ao longo de mais de oito décadas, têm sido espaço de importantes e determinantes serviços para o desenvolvimento económico, social e cultural de Macau”, realçou, em declarações ao HM.

O livro divide-se em três partes – história, arquitectura e funcionalidade – propondo um “olhar mais atento” sobre um edifício que tem sido relegado para “um lugar secundário na história da arquitectura de Macau”, mas que emerge “como a última grande obra do ecletismo macaense”, diz a obra. O edifício-sede dos CTT, concebido de raiz para o efeito, figura também como um “testemunho histórico”, sinaliza o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário, no prefácio, recordando que foi construído numa época de “grandes mudanças”, desde o rasgar da Avenida Almeida Ribeiro ao fecho da Baía da Praia Grande e início da construção dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE).

 

A autoria

Se a data de abertura do edifício-sede dos CTT, resultado de um “longo e complexo” processo de decisão política e concepção técnica, não podia ser mais clara, desde logo pela inscrição em numeração romana que exibe a fachada, o mesmo não se pode dizer da autoria do projecto. Ao longo dos anos, “diferentes investigadores optaram, por atribuições contraditórias dividindo-se entre dois autores: o arquitecto Carlos Rebelo de Andrade e o desenhador das Obras Públicas José Chan Kwan Pui”. Ora, após análise das fontes documentais disponíveis, a conclusão a que chegam os autores do livro é que o edifício-sede dos CTT deve ser antes atribuído a quatro figuras. A saber: ao arquitecto Carlos Rebelo de Andrade, responsável pelo projecto entre 1919 e 1921, por lhe ser atribuído “o desenho que define a linguagem arquitectónica neoclássica original dos alçados”; ao engenheiro civil Eugénio Sanches da Gama, “que dirige o projecto, reformulando-o, entre 1925 e 1927, e define uma nova implantação”; ao desenhador das Obras Públicas José Chan Kwan Pui, “a quem cabe desenvolver o projecto de Sanches da Gama, entre 1927 e 1931, ampliando-o profundamente para albergar o novo programa funcional definido pelo director dos Correios, Lino Moreira Pinto”; e ao condutor de Obras Públicas Rafael Gastão Bordalo Borges, “responsável, entre 1931 e 1932, pelo desenho de acabamentos e interiores do edifício e pelo acompanhamento da última fase da construção”.

 

Um exemplo

Na cerimónia de lançamento do livro “Edifício-Sede dos CTT – História, Arquitectura, Funcionalidade”, e da exposição fotográfica homónima, esteve presente a neta de José Chan Kwan Pui, discípulo do arquitecto português José Francisco da Silva e que dedicou 30 anos de carreira às Obras Públicas. “Estou muito feliz pela publicação do livro, que documenta a história e a funcionalidade do edifício”, afirmou Choi Tin Tin, também ela arquitecta. “É muito encorajador, porque a arquitectura não é apenas o ‘design’. O edifício conta-nos muitas histórias da sociedade e da cidade. Não se trata apenas do edifício em si, mas também da cultura que encerra, porque resulta de um excelente trabalho de colaboração entre portugueses e chineses”, sublinhou.

Já de todas as figuras políticas avulta como principal responsável pela construção do edifício Arthur Tamagnini de Sousa Barbosa (1880-1940), governador de Macau que acompanha o projecto desde a fase inicial, durante o seu primeiro mandato, entre 1918 e 1919, e regressa muitos anos depois, em Dezembro de 1926, para um segundo, determinado em concretizá-lo. A conclusão é descrita em “Edifício-Sede dos CTT – História, Arquitectura, Funcionalidade”, que destaca ainda as figuras de proa no plano técnico, como o director dos Correios entre 1912 e 1927, Artur Barata da Cruz, que foi o principal responsável pelo lançamento dos primeiros projectos e pela escolha do local.

Já do ponto de vista da funcionalidade não há dúvidas de que o edifício cumpriu “inteiramente” as funções para as quais foi concebido. Com efeito, “durante a sua longa vida útil, os espaços interiores sofreram diversas modificações para adaptação a novos requisitos funcionais” e “se as intervenções realizadas entre a década de 30 e a de 80 foram pontuais, e delas já poucas evidências existem, entre 1982 e 1995 o edifício foi ampliado e profundamente transformado nos seus espaços interiores”. Modificações determinadas por necessidades funcionais, mas que “prejudicaram a leitura da qualidade arquitectónica original do edifício, que é hoje praticamente imperceptível no seu interior”. “A importância histórica e arquitectónica do edifício justifica a sua valorização com uma futura intervenção de restauro que lhe devolva a qualidade dos espaços interiores, de forma coerente com a imponência dos alçados, assumindo por inteiro a sua dignidade institucional, representativa e cultural, enquanto edifício-sede dos Correios de Macau”, concluem os autores.

Ao livro, à venda por 450 patacas, foi ainda emprestado um valor filatélico, dado que foi nele incluído o bloco da emissão filatélica ilustrando o edifício-sede, em cuja impressão foi adoptada pela primeira vez a técnica ‘talhe-doce’, a fim de destacar as linhas do desenho arquitectónico e a imponência do edifício.

De modo a enquadrar o lançamento da publicação, e par com a emissão filatélica, os CTT inauguram uma pequena exposição fotográfica, com o objectivo de dar a conhecer a um público mais vasto como era a estação central no passado e a evolução que os serviços sofreram. A mostra vai estar patente até ao próximo dia 31.

 

 

4 Mar 2019

Entrevista | Joshua Ehrlich, académico da Universidade de Macau

A descoberta de três cartas num arquivo em Londres trouxe ao de cima a ligação umbilical entre a academia, as elites intelectuais e o poder político no contexto do império britânico na Índia. O achado foi feito por Joshua Ehrlich, professor assistente do Departamento de História da Universidade de Macau

[dropcap]O[/dropcap] que o levou a fazer esta investigação e como encontrou estas três cartas?

Foi algo que surgiu na sequência da apresentação da minha tese de doutoramento. No ano passado, quando estava a rever as notas, reparei numa referência meio escondida a estas cartas de alguém que era bastante conhecido por historiadores que se debruçam sobre o século XVIII. William Jones, uma figura de prestígio, é-lhe frequentemente atribuída a descoberta de ligações entre algumas línguas, como sânscrito e idiomas persas e línguas europeias que pareciam muito diferentes. Mas como ele era um linguista muito qualificado, apercebeu-se destas ligações. Portanto, é uma figura bastante estudada. Encontrei correspondência dele com alguém que não foi muito estudado por historiadores e que tem uma reputação muito diferente, alguém corrupto, que adaptava os resultados de estudos académicos aos seus objectivos que passavam por atingir riqueza e poder. Duas pessoas bem diferentes, no contexto do século XVIII, a usar o império britânico na Índia para fins diferentes. Um com objectivos académicos, de potenciar o conhecimento humano e mostrar como os povos estão ligados em sítios diferentes. O outro a tentar tirar partido da sua situação em termos políticos. Mas mantinham correspondência, eram amigos e colaboraram em muitos projectos políticos e intelectuais. Conhecia um pouco deste contexto. Há um historial de publicação das cartas de William Jones e algumas apareceram, entretanto. Como tal, peguei na oportunidade de publicar estas cartas que acho que podem contribuir para alterar um pouco a forma como se vê este período histórico.

Para além do trabalho académico, que feitos históricos destaca na figura de William Jones?

Ele viveu e trabalhou como juiz no Supremo Tribunal de Calcutá e expôs a Europa às civilizações antigas indianas. Ainda hoje é considerado como alguém muito tolerante e aberto para o seu tempo. O meu trabalho tenta mostrar como a Companhia das Índias, no geral, sempre arranjava formas de agradar a académicos. Esta gentileza também era uma manifestação política porque tentava melhorar a imagem, porque durante este período, a Companhia das Índias tinha a reputação manchada por violência, desvios de dinheiros e corrupção, entre outras coisas menos positivas.

Que conclusões retira destas três cartas sobre o estado do império britânico na Índia durante este período?

A conclusão mais óbvia é que o mundo académico e a política estavam bastante ligados nesta altura. Por exemplo, havia claros benefícios políticos, tanto em Inglaterra como na Índia, para as elites britânicas e indianas e as classes políticas em serem mecenas de académicos. O facto de o Governador poder usar as suas ligações para ajudar William Jones, um académico apostado no trabalho de investigação, dava uma boa imagem da sua administração e de ele próprio, num momento em que havia muitos distúrbios. Era algo positivo que podia destacar na sua administração. Isso é revelador. Uma citação numa carta de Jones para o Governador (John Macpherson) refere que este era um estadista académico. Macpherson e os seus aliados repetiram muitas vezes esta citação, inclusivamente ficou gravado na sua lápide. Além de ser importante para a concepção que tinha de si próprio, também mostrava que não era um político corrupto que as pessoas pensavam que era. Academia e política eram mundos interligados, havia uma política do conhecimento.

A ideia predominante era que estes dois vultos vinham de mundos distintos?

Acho que, hoje em dia, essa é a ideia geral. O facto de pensarmos destas duas pessoas de formas tão distintas, sem interacção ou objectivos e vidas diferentes. Mas, de facto, estavam em interacção constante. Isso é relevante. Estas ligações entre figuras europeias e intelectuais indianos são muito importantes. Mas também as conexões com asiáticos. Numa das cartas foi transcrito um poema a elogiar o Governador Macpherson, escrito por um poeta indiano em indo-persa. Jones enviou o poema ao Governador na esperança de que ele patrocinasse esse poeta.

A determinada altura, as semelhanças entre os dois salta à vista nos documentos que encontrou…

Diria que tinham alguns objectivos partilhados. Ambos eram homens do Iluminismo, partilhavam a ideia de que através do comércio, além da troca material, existe o comércio intelectual entre pessoas diferentes, e que isso levava à paz, prosperidade e ao progresso em partes diferentes do mundo. Era uma ideia muito utópica, mas tinha significado para quem era académico. É importante dizer que, apesar da reputação de corrupto, Macpherson veio de um dos centros do Iluminismo na Escócia. O seu tutor foi um dos filósofos mais ilustres do iluminismo escocês, Adam Ferguson. Ele conhecia esta gente toda e tinha amigos neste círculo, enquanto era estudante. Continuaram a trocar correspondência quando foi para a Índia. Este era um grupo que o Governador tentava impressionar, os intelectuais iluministas escoceses. Jones compreendia este tipo de pessoas e também se correspondia com elas. Portanto, partilhavam a visão de um mundo de comércio pacífico entre pessoas, levando à compreensão entre povos que viviam muito afastados um do outro. Era nisso que resultava o casamento entre academia e mecenato. Esse é o pano de fundo revelado pelas cartas, não só com impacto no lado académico, mas também no político. Nesta altura, a Companhia das Índias estava a mudar dramaticamente. Ao longo da história do império na Índia, deu-se a mudança no equilíbrio entre os papéis políticos e económicos, eventualmente o comércio reduz-se e torna-se num império territorial que já não se interessa tanto pela troca comercial. Mas, nesta altura, ainda havia equilíbrio. Estas duas figuras estavam do lado do comércio, mais que do lado expansionista que queria tornar a presença da Inglaterra na Índia num império territorial.

Qual a influência da relação entre estas duas personalidades e a estratégia que Londres tinha para a Índia?

Como as comunicações entre Londres e Calcutá eram muito lentas, podiam demorar um ano a enviar ordens e respostas, seis meses para cada lado, como se podem tomar decisões? Londres só podia dar orientações gerais, mudar algumas pessoas, mas muito tinha de ser feito em Calcutá. Nesta altura, Macpherson não tinha muito apoio em Londres. Não era a primeira escolha para ser Governador, estava simplesmente no conselho quando o anterior Governador se demitiu, portanto, assumiu o cargo temporariamente. Ele era o próximo na hierarquia. Foi um quadro temporário, só lá ficou um ano. Portanto, estava desesperado para tornar o cargo permanente. Queria mesmo mais apoio de Londres e estava a fazer tudo o que podia para o conseguir. Parte disso, foi o anúncio desta visão pacífica e filosófica da sua administração. Anunciar estes planos ambiciosos era também uma forma de ganhar nome. Não correu bem. Londres quis substitui-lo muito rapidamente. As pessoas que regressavam a Inglaterra com uma má impressão do Governador também não ajudavam, além das cartas escritas pelos seus rivais.

Durante este período, que outros exemplos de corrupção na Índia destaca?

Corrupção e a percepção da corrupção são elementos chave para a compreensão dos debates da política do império britânico. Parte disso é a distância entre Londres e os territórios e a falta de informação sobre o que se passava por lá. A ideia de enviar pessoas de grande reputação torna-se um imperativo, especialmente quando a opinião pública em Inglaterra desvia o interesse para o que se passa no império. O exemplo mais famoso no contexto indiano parte do Governador anterior a Macpherson, Warren Hastings, que esteve no poder 10 anos. É lembrado por ter aprendido línguas indianas, pelo brilhantismo administrativo. É visto, hoje em dia, como uma figura complexa e interessante. Quando regressou a Inglaterra foi julgado em tribunal e destituído pelo Parlamento. A corrupção na Índia ocupou o centro do mediatismo na política britânica durante 10 anos. Havia a preocupação sobre o retorno de corruptos que vinham da Índia, essa preocupação esfumou-se dez anos depois.

Regressando a William Jones, é entendido que estaria a passar conceitos diferentes da cultura ocidental à sociedade indiana.

Teve alguma interacção com académicos oriundos das elites indianas e estudou sânscrito tradicional, além disso estava também ligado às elites académicas islâmicas, através dos estudos persas. É verdade que através destas interacções, podemos adivinhar que ele estava a trazer para a sua órbita muitos intelectuais indianos e deve ter mudado a percepção dessas pessoas sobre os estrangeiros britânicos.

De onde veio o seu interesse para estudar a Índia no contexto do império britânico?

Enquanto, estudante estava muito interessado no Iluminismo e no Iluminismo escocês. Li muito sobre o assunto e encontrei pontes entre estas personagens e intelectuais britânicos e europeus e a ligação às expansões imperiais. Sempre me interessei pela junção destes dois mundos, academia e política imperial.

26 Fev 2019

Da eternidade em vida

[dropcap]S[/dropcap]omos fracos juízes do nosso tempo, sobretudo quando pretendemos adivinhar a eternidade no pedaço de história em que nos coube viver.

1.

Em 1884 o jornal “O Imparcial” de Coimbra organiza um inquérito entre os seus ilustres leitores para que escolhessem a grande figura literária do seu tempo. Em 1º lugar ficou o velho Camilo, em 2º Pinheiro Chagas e em 3º Latino Coelho.

Por estes dias já Camilo se arrastava meio cego no solar de Ceide, arrepiado pelos guinchos do seu louco filho Jorge. Foram só mais 4 anos disto até se suicidar, mas ainda deu para o escatológico “Vulcões de Lama”. O preito dado pelos leitores a Camilo seria assim aquele que se presta por mera reverência às individualidades histórias que calha ainda estarem vivas. Porque dos 3 nomeados o mais reputado nos círculos instruídos e decentes da capital, o que marcava o passo das letras coevas, era, sem dúvida, Pinheiro Chagas. Tudo que publicava fazia furor, “O Terramoto de Lisboa” e “A Mantilha da Beatriz” foram best sellers instantâneos e a crítica jurava pela perpetuidade literária destes romances. A sua escrita fresca e optimista sem prescindir de um módico de erudição, permitiu-lhe uma “História Alegre de Portugal”, acolhida como a prova evidente de que os grandes problemas e entendimentos do século podiam ser divulgadas com sucesso popular.

Contra Pinheiro Chagas, ou contra o seu patrono Castilho, ainda rabiou Antero na famigerada Questão Coimbrã, ao passo que Ramalho Ortigão e Camilo, nunca o desconsideraram. Eça, esse, invejava-lhe largamente o prestígio e ambos não se coibiram de trocar acrimónias.

Jornalista, deputado, ministro, tradutor de Verne, professor de Literatura Clássica na Universidade de Lisboa, Secretário-Geral da Academia das Ciências, fundador da Sociedade de Geografia, tudo isto além de escritor; quem poderia duvidar que Pinheiro Chagas seria laureado para todo o sempre como o maior vulto literário do final do século XIX?

2.

Se calhar ainda hoje há quem se lembre de “A Ceia dos Cardeais”. Foi talvez o maior êxito teatral de um autor português.

Sobre ser um escritor de sucesso, Júlio Dantas foi uma figura pública sumamente respeitada. Duas vezes ministro: da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros; professor no Conservatório Nacional; Presidente da Academia das Ciências desde 1922; fundador da instituição percursora da actual Sociedade Portuguesa de Autores; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Brasil e depois pela de Coimbra, terminou a carreira em glória como embaixador de Portugal no Rio de Janeiro.

Júlio Dantas cortejou a monarquia, aclamou a República e foi deferente sem meias-tintas com o Estado Novo. Sendo insubstituível e incontornável não houve quem o tomasse como oportunista.

Contestou-o apenas uma pandilha de rapazes neuróticos, snobs e insolentes, infectados pela fugaz moda do modernismo da primeira década do século XX, que inspiraram a sua truculência em Marinetti ou Mayakovsky e se acoitaram atrás do insano Almada Negreiros. O indecoroso e tremendo ultraje mais confirmou, a quem estivesse em seu perfeito juízo, que a História guardaria Júlio Dantas como a quintessência da intelectualidade portuguesa do seu tempo.

3.

Fernando Namora enalteceu-se como figura de proa do neo-realismo, um movimento que pretendeu libertar as letras portuguesas da grandiloquente mas balofa retórica do Estado Novo, utilizando uma prosa simples e naturalista para não só denunciar a miséria em que Portugal vivia, como exibir a irreversível verdade histórica para que a humanidade caminhava.

Ao plinto de Namora apenas se avizinharam Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, uma tríade cuja sombra se projectou na literatura portuguesa durante os anos 50 e 60 e ainda um pouco na década de 70. Fora deles, dizia-se, havia pouco a considerar e quaisquer notas destoantes eram remetidas para um limbo.

Ainda hoje não deve ter havido escritor português mais traduzido do que Fernando Namora, pelo que, além de uma certeza científica, parecia uma evidência que lhe caberia ser consagrado à posteridade como o grande farol das décadas em que presidiu à literatura portuguesa, ofuscando quaisquer outras luzes.

4.

Hoje, o panorama literário de Portugal é dominado por duas figuras quase intangíveis, autênticos clássicos em vida. Manuel Alegre e António Lobo Antunes são as incontestadas eminências das nossas letras contemporâneas, os mais autopsiados pela academia, os mais consagrados pela crítica. Não se vê ninguém que lhes denigra o mérito nem alguém que lhes pise o manto da preponderância.

Será possível haver quem lhes negue assento entre imortais e memoriosos como Chagas, Dantas e Namora?

22 Fev 2019

Ay, Carmela! Ay, Carmela!

[dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que a experiência do mito é a experiência do indubitável. Não lhe atribuir sentido seria insensato e atribuir-lho – como se atribui geralmente às coisas simples – seria redundante. Digo isto porque o mito não é apenas a memória invisível das sociedades, é-o também das comunidades e existências mais insignificantes. Uma evocação familiar como a que se segue (e que teve a sua origem em relatos que me foram amiúde contados durante a infância) partilha o mesmo excesso de sentido que povoa o mito: cria também o seu firmamento próprio por cima do horizonte, deixando em frente um lugar de ouro para que o olhar o possa daí observar e nele infinitamente crer. Passemos então ao coração da história que teve lugar há um século:

Estou a vê-lo já cansado da poeira e do selim da bicicleta, pois há quase uma hora que segue de Évora na direcção da vila do Redondo, corre o ano de 1918 e o armistício de Compiègne que porá fim à Primeira Grande Guerra Mundial ainda está por vir. Traz consigo alguma bagagem e um remoinho de memórias difícil de contar e de conter. Ao fim e ao cabo, antes mesmo de chegar são e salvo a casa, já foi rezada missa pela sua alma e, apenas por sensatez, é que não terá levado a cabo o sonho de fazer uma grande surpresa e… aparecer, sem mais, perante os seus, quando estes já o consideravam a viver noutro mundo.

A aventura tinha começado meses antes, no próprio cais de embarque dessa Lisboa ainda a cheirar a Odes pessoanas e ao fado castiço dos Boqueirões. Por ordens superiores, afastara-se durante algum tempo da azáfama dos dois grandes navios, já de vapores ao rubro e com escadas quase içadas, para ir cambiar dinheiro. De regresso, verificou que apenas o barco reservado à cavalaria permanecia ainda encostado ao cais. O outro, onde devia viajar, deslocara-se, entretanto, na direcção da barra para evitar uma iminente revolta a bordo. Seguir-se-ia a travessia no barco errado, embora, segundo ditam as crónicas, tivesse sido calma e muito mais rápida do que o previsto.

No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que ia do sul de Lille, ocupada pelos alemães, até Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma irremediável.

Na galeria dos feridos, por artes de sortilégio, o destino troca o código das macas e ele acaba por seguir, na sua mudez involuntária, para o hospital dos ingleses. É muito bem tratado nesse território onde o ‘não dito’ supera tudo aquilo que se poderia augurar, ou tão-só dizer. E é apenas quando recupera a lucidez da voz que, finalmente esclarecido o novo sentido dos acasos, ele acaba por regressar aos cuidados, aliás escassos, do exército luso. Durante este tempo todo, em Portugal, é dado como desaparecido, mas, num fim-de-semana de sortilégios (que nunca me foram revelados totalmente), com a preciosa ajuda de um general, consegue finalmente obter a autorização de regresso a casa.

Anda pela Paris de Abel Gance e de Louis Delluc, galanteia uma loura de echarpes magrebinas no consulado português, provavelmente amiga de Colette, desce no Sud Express até à terra que Buñuel ainda não havia trocado pela França e, por fim, reentra no país pobre e sidonista que é o seu. Em Lisboa, decide enviar um telegrama para o Redondo a anunciar que está de volta (ou seja: da morte imaginária para a vida). E de vez. Parte do Terreiro do Paço para Évora e daí, numa bicicleta de que desconheço a origem, atinge, entre negrumes e solilóquios perdidos, a sua vila natal. O feitiço de pródigo andarilho levá-lo-á, não muito tempo depois, a Vila-Viçosa. E é aí que começa parte de uma outra história que é, hoje em dia, também a minha.

Diga-se que este foi – e é ainda – um dos mil enleios aventurosos do único avô que não cheguei a conhecer em vida, de seu nome José Carmelo, primo, entre outros, do tenor e também viajante Tomás Aquino Carmelo Alcaide que, três anos mais tarde, poria igualmente fim à vida militar para abraçar uma singular carreira no mundo da ópera.

21 Fev 2019

A ilusão e as asas da perdiz

[dropcap]A[/dropcap] brincadeira de excelência da minha gata tem o nome dos predadores: coloca as patas da frente em posição de recolher a presa e depois marca os dentes. Não magoa nada, mas passa o tempo nesta ribaldaria. Ela sabe quem é (e ao que vem) e raramente se ilude, mesmo quando anda atrás de um lápis e o coloca em imparável movimento sobre o soalho. Nós, humanos, somos diferentes. Gostamos mais daquilo que não somos e andamos uma vida inteira a tentar perceber quem somos. O desejo profundo de nos iludirmos, o afinco pelo ‘trompe l’oeil’, a entrega àquilo que não somos ficam-se sobretudo a dever ao facto de conhecermos a nossa condição de mortais, facto que inexoravelmente escapa à minha gatinha.

Da ilusão provém quase tudo o que carregamos no nosso marsúpio existencial: deus, cinema, net, televisão, futebol, literatura, games, fantasias, meta-ocorrências e, às vezes, até as amizades. Estas astúcias que adoram misturar ‘aquilo que é’ com ‘aquilo que não é’ fazem os embriões mais profundos da nossa espécie rejubilar. Nascemos convencidos de que uma árvore pode ser uma ideia e de que o bater de asas de uma perdiz pode ser um sinal.

Curiosamente, no mundo pré-moderno, as sociedades viam-se ao espelho através de uma única imagem. As palavras de ordem convergiam e o altar das nações providenciava deveres estritos e claros. A ilusão gravava o rosto do imperador, a crucificação de cristo ou uma imagem da “História” muito bem cimentada e o sentido das coisas ficava assim inscrito. Todos nós provimos deste tipo de mundos. As genealogias ficam registadas na pele. Em criança foi nestas atmosferas que vivi e não foi assim há tanto tempo. Por lá habitava quase tudo o que hoje condenamos e consideramos desprezível, enquanto comunidade.

Nas sociedades abertas da actualidade não há mais espaço para diagnósticos únicos. A visão que uma sociedade tem de si baseia-se em inúmeras imagens não sobreponíveis, por vezes incongruentes, e não numa uniformidade ideal. O que resultará desta liberdade é fabuloso, mas o que decorre da imprecisão remete, por vezes, para o teor da fábula (entendendo-se por fábula uma história possível que apenas existe na minha cabeça em estado volátil, contrapondo-se à ideia de uma narrativa bem definida que poderíamos designar por enredo).

Nesta transição de mundos, a idealidade foi perdendo espaço, mas o mundo da fábula e da errância ganhou terreno (os meus alunos, em fim de licenciatura bolonhesa, mal sabem distinguir a primeira da segunda grande guerra mundial). Em alternativa, também se poderá dizer que a idealidade foi adquirindo novas formas, transpondo-se da imagem única que antes era dada a partir do vértice (damos como exemplo a exposição do mundo português de 1940) para uma espécie de ziguezague, ou de zapping, que tenta preencher os muitos vazios deixados pelo caminho. É por isso que, nas últimas três décadas, surgiram formas de agir totalmente novas que passaram a integrar o mundo quase como uma norma (ou seja; surgiram e trouxeram consigo uma adenda de ‘dever ser’): o mundo dos ginásios, os corpos perfeitos, as utopias ecologistas, os hábitos alimentares, o culto do património, as correcções do género e dos costumes, a perdição da instantaneidade, o mito da interacção, o consumo pelo consumo, os caprichos do chamado “tempo real”, etc., etc.

Neste volte-face em que se perderam referências (os media passaram a reduzir as escalas de tempo à medida dos acontecimentos frugais) e formas de dever rigorosas, ganhou-se em pluralidade e em individualidade, mas nem sempre em subjectividade, pois a formatação e o fluxo permaneceram enquanto medida. Se lermos os romances que integram a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, escritos entre o início dos anos sessenta e o início dos anos oitenta (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), percebemos como os grandes acontecimentos nunca saíam de cena (eram realmente referências), apesar de serem sempre desafiados pelos pequenos acontecimentos do dia-a-dia. Esta tensão, no nosso tempo, quase se eclipsou, apesar de o acesso (aparente) aos acontecimentos que escapam à nossa experiência pessoal ter aumentado imenso no último século. Em contrapartida, a natureza dos acontecimentos pouco variou em proporção.

Ainda que, felizmente, as nossas sociedades tenham desistido de caminhar no sentido de um clímax ou de um ponto ómega da “História”, o desejo profundo de nos iludirmos terá praticamente atingido o seu auge. A nossa condição de mortais, a tal condição que escapará à minha gatinha, parece hoje viver apenas na net e na televisão, lá onde têm lugar as guerras, seja noutras áreas reais do planeta real, seja sobretudo nas séries ficcionais mais aplaudidas. Como se tudo fosse feito da mesma massa. A felicidade é, muitas vezes, uma ilusão generosa que é vivida até aos limites sem que estes se dêem claramente a ver. Antes isso, pois a felicidade absoluta, tal como os gatos com asas de perdiz, é coisa que não existe. Nem nunca existirá.

31 Jan 2019

Rogério Miguel Puga estudou as referências culturais nos livros de Deolinda da Conceição e Henrique de Senna Fernandes

Na colectânea de contos “A Cabaia”, de Deolinda da Conceição, Rogério Miguel Puga encontrou a descrição da condição feminina da mulher chinesa. No romance “Amor e Dedinhos de Pé”, de Henrique de Senna Fernandes, descobriu uma caricatura da comunidade macaense. O académico da Universidade Nova de Lisboa apresentou ontem um estudo na Universidade de Macau sobre as referências culturais destas obras “intemporais” e defende que a literatura macaense deve ser mais estudada

[dropcap]D[/dropcap]esenvolveu o estudo sobre a “Identidade, Género e Auto-estereótipos: Temas da Literatura Macaense na Obra de Deolinda da Conceição e Henrique de Senna Fernandes”. Porquê estes dois autores?
A única razão de ter estudado estes e não outros autores é por considerar que a literatura macaense é produzida por autores macaenses. No caso da Deolinda, temos esta antologia de contos em que ela fala, sobretudo, sobre a mulher chinesa e a sua condição. “A Cabaia” é uma metáfora para a condição feminina chinesa. Henrique de Senna Fernandes fala sobretudo da comunidade macaense, das questões de identidade, de religião. São dois autores macaenses a escrever sobre Macau e a comunidade macaense. Não é um português que chega a Macau e escreve sobre o macaense, são dois macaenses a escreverem sobre si próprios. É curioso ver que estereótipos os próprios macaenses utilizam para se definir, como a Igreja Católica ou as afirmações que eles próprios fazem sobre os chineses, às vezes negativas. É, sobretudo, esse interesse: o de uma visão interna da comunidade macaense que se representa textualmente a si própria, de uma forma realista.

O estudo que elaborou procurou detalhes culturais nas obras dos dois autores. Quais são as grandes referências culturais que pode apontar?
Na obra de Deolinda da Conceição é sobretudo a condição feminina. Ela foi uma mulher macaense com uma biografia muito interessante, pois ousou viver numa comunidade muito tradicional. Os romances de Senna Fernandes representam-na assim, como sendo uma sociedade muito conservadora. A protagonista de “Amor e Dedinhos de Pé” sofre esse peso da sociedade conservadora e, ao mesmo tempo, o livro carnavaliza essa sociedade, critica, para que o “vira pau osso”, a personagem, possa vencer no final. Ela vai contra essa sociedade. Aos olhos da sociedade macaense, altamente conservadora e religiosa, onde as mulheres são muito frustradas e castradas, é ela que, no fundo, vai dar a mão ao estroina que cai em miséria e que é renegado para as sombras do bairro chinês. Tudo isso se passa numa sociedade de bons costumes, e é este desnudar de uma sociedade de fachada e hipocrisia que acho muito interessante, e é algo que o Henrique de Senna Fernandes faz com muita subtileza. Os romances e os contos são também interesses como memória. No caso da Deolinda da Conceição, são contos que falam da condição feminina e do seu fardo.

FOTO: HM

É um pouco a condição dela, foi uma mulher que ousou ser jornalista e ter uma vida pessoal.
Ousou amar. Isso faz de Deolinda da Conceição uma figura ímpar na comunidade macaense e até no universo cultural macaense. Sobretudo numa altura em que era difícil fazê-lo, hoje é mais fácil. Só por isso é uma figura por quem eu tive sempre um grande carinho e que gosto sempre de reler, porque há uma enorme sensibilidade pela vida humana e, sobretudo, pela condição feminina da mulher chinesa, que sofria, trabalhava, cuidava dos filhos e muitas vezes era obrigada a isso. Isso torna os contos da Deolinda muito interessantes. Há também os contos e poemas do Adé, ou da Maria Pacheco Borges, que tem uma colectânea de contos. Mas optei por estes autores porque os acho mais representativos e porque a qualidade literária é maior. São contos e romances com um cunho regional, no sentido em que descrevem o quotidiano de Macau no início do século XX. São também documentários, apesar de ficcionais. São narrativas literárias realistas, mas nunca os poderemos tomar como fontes primárias históricas. São repositórios de vivências. Macau, na altura, era um espaço de tolerância, sobretudo porque os portugueses não falavam chinês e a maioria dos chineses não falava português, havia a religião, várias barreiras. Prefiro olhar para Macau como um espaço de tolerância social e cultural.

O que o surpreendeu mais neste processo de estudar obras de macaenses que escrevem sobre si próprios?
É a construção e a desconstrução. No caso do Henrique de Senna Fernandes é algo inconsciente, pois há a construção de uma identidade local e depois há a desconstrução dessa identidade na mesma obra. É possível, sobretudo com a imagem do carnaval e o comportamento do Francisco, o protagonista. O facto de ele maldizer toda a gente, subverter a norma, há um processo de desconstrução dessa ordem que ele transforma em caos, e depois no fim a ordem é restabelecida fora do tecido urbano de Macau. Não é por acaso que [a personagem] se regenera fora da sociedade macaense cruel. Ele é o rei do carnaval que maltrata toda a gente e depois chega a páscoa, o tempo da mortificação, em que ele é destronado, e depois bate no fundo e tem de se reerguer. É um romance de formação também, pois acompanhamos a formação da personalidade de ambos os personagens, masculina e feminina.

Este estudo é o ponto de partida para um trabalho mais aprofundado sobre a literatura macaense?
Sim. Gostava de vir a estudar o corpus da literatura macaense, a forma e o conteúdo. Sobretudo em termos de estudos culturais, o que é que há na literatura macaense, o que ela tem de específico. Basta irmos ao índice de “A Cabaia” para vemos palavras como “calvário de ling fong”, “esmola”, “arroz e lágrimas”. Quer os substantivos, quer os adjectivos, são representativos de uma imagem da condição feminina que a Deolinda da Conceição também achou que representava a tal cabaia. Há termos simbólicos muito pesados, os diminutivos.

Apesar de serem obras escritas em português, não os podemos considerar literatura portuguesa?
Também são.

Podem enquadrar-se em algum movimento literário português?
Designaria ambas como obras de cariz realista. São contos e romances realistas que representam muito próximo da realidade o que era a condição feminina e o quotidiano de Macau no início do século XX. No caso da Deolinda da Conceição, são usados termos muito específicos que revelam um jogo de espelhos, da mulher macaense que escreve sobre a mulher chinesa, algo que acho muito interessante.

É um jogo de espelhos por considerar que a mulher macaense também tem um pouco de mulher chinesa?
Sim. O narrador desta obra tem um ponto de vista muito ocidental. Este livro é escrito por uma mulher macaense para ser lido por portugueses. Há uma preocupação com o futuro leitor, que está implícito na obra. Estes autores acabam também por funcionar como tradutores culturais e linguísticos quando utilizam palavras específicas, por exemplo do patuá. Há um glossário. Outro estudo interessante são os elementos paratextuais, as capas, as várias edições, o que muda, as introduções que são ensinadas pelos editores.

Há muitas obras dispersas que não estão contextualizadas em períodos históricos ou correntes literárias. Considera que faz falta um levantamento da literatura macaense?
Penso que não, porque a literatura macaense surge, sobretudo, no século XX e tem poucos autores, a Deolinda, o Henrique, Adé, Maria Pacheco Borges, e pouco mais. O que há são autores portugueses, chineses e ingleses a escrever sobre Macau. Falta, sobretudo, divulgar a literatura produzida por macaenses, e estudá-la. Inseri-la na literatura mundo, dar-lhe alguma visibilidade. Poder-se-á publicar muita coisa que está perdida na imprensa do século XX de Macau, contos literários, crónicas. Seria interessante formar uma equipa multidisciplinar e publicar tudo de novo em formato de antologia. Isso foi feito com os textos de Luís Gonzaga Gomes, mas há outros autores. Nessas crónicas descreviam a realidade e depois ficcionavam-na nos seus romances, e o que me interessa muito é esta dimensão antropológica da literatura, porque [os livros] não são só figuras de estilo. É preciso estudar e questionar esta dimensão. Há várias leituras que se podem fazer do livro “Amor e Dedinhos de Pé”. Pode ser vista como uma obra realista da realidade macaense, mas também pode ser um artificio irónico de desconstrução da comunidade, de análise.

O que é que este estudo e a leitura das obras lhe trouxe de novo?
Sobretudo o conhecimento da comunidade chinesa e macaense, os hábitos e costumes. Tive de ir pesquisar sobre determinados rituais e costumes especificamente chineses. E foi esta sensibilização para a condição feminina intemporal e para a condição humana no fundo. A condição humana não muda, os nossos fantasmas não mudam. Continua a ser a cabaia. As mulheres já não vestem cabaias, mas elas constituem uma metáfora, continuam a existir. “A Cabaia” recorda-nos que o feminismo continua a ser muito necessário. Livros como “A Cabaia” recorda-nos isso e que a condição feminina não é assim tão livre quanto isso. As obras do Henrique de Senna Fernandes ensinam-nos muito sobre a tolerância a partir da intolerância, e a sua importância, pois perdemos cada vez mais a empatia social. São obras intemporais.

24 Jan 2019

Novo livro revela que trabalho forçado nas colónias portuguesas estava disseminado até década de 1960

[dropcap]O[/dropcap]s registos históricos não permitem averiguar a escala, mas o trabalho forçado nas colónias portuguesas era uma realidade “bastante disseminada”, pelo menos até à década de 1960, segundo o historiador José Pedro Monteiro, num novo livro sobre o tema.

Depois de concluída a tese de doutoramento intitulada “A internacionalização das políticas laborais ‘indígenas’ no império colonial português (1944-1962)”, José Pedro Monteiro apresenta, em Lisboa, o livro daí resultante: “Portugal e a questão do trabalho forçado: Um império sob escrutínio” (Edições 70).

O trabalho analisa “o modo como as dinâmicas internacionais e transnacionais se relacionaram com o trajecto histórico do Império Português em matéria de relações laborais ‘indígenas’ (mais precisamente entre 1944 e 1962)”, tendo por base que “qualquer estudo sobre a evolução das políticas e práticas sociais no colonialismo tardio português que omita o impacto destas dinâmicas é forçosamente incompleto e, mais do que isso, marcadamente lacunar/impreciso”.

Questionado pela Lusa sobre a dimensão do trabalho forçado nas colónias portuguesas durante o período estudado, José Pedro Monteiro respondeu que o material disponível não permite chegar a números precisos: “É muito difícil conseguir-se ter uma ideia global à escala do império. Primeiro, há realidades geográficas muito distintas. Em Cabo Verde, Timor e, eventualmente, na Guiné a questão do trabalho forçado não se coloca da mesma maneira que se coloca em São Tomé, Angola e Moçambique”.

Por isso, “desconfiaria muito de alguém que desse um número redondo para os trabalhadores forçados”, salientou.

No livro, com base em documentação da viragem da década de 1950, José Pedro Monteiro constata que “o trabalho obrigatório não se limitava a fins públicos [como previsto no Código de Trabalho dos Indígenas (CTI)]; para fins públicos, era usado como regra e não como dando resposta às excepções previstas no CTI; o recrutamento era feito generalizadamente com intervenção das autoridades administrativas (tanto para fins privados como públicos); os compromissos de repatriamento não eram respeitados; as taxas de mortalidade eram extraordinariamente altas; e, por fim, os castigos corporais estavam longe de estar completamente erradicados, como a lei postulava”.

Por exemplo, em 1945, um relatório indicava a existência de trabalhadores presos com “grilhetas” ao pescoço em São Tomé, o que levava o Inspector Superior de Serviços Judiciais a argumentar contra tal imposição, “não por uma razão humanitária, [mas] antes diplomática”, depois de turistas estrangeiros terem fotografado pessoas a serem chicoteadas, o que podia levar a censura internacional.

Em 1951, um encarregado de serviços da Inspeção Superior dos Negócios Indígenas desfiava “um rol de iniquidades e abusos”: desde a elevada taxa de mortalidade no transporte de pessoas aos “acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como forma de desresponsabilização”, passando pelos “inválidos que eram obrigados a trabalhar em São Tomé”, então classificados como “verdadeiros farrapos humanos”, ou pelas violações sistemáticas de mulheres de trabalhadores, “enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram ‘monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas’ por terem abandonado o trabalho”.

Sobre a escala daquela realidade, José Pedro Monteiro esclareceu: “Muitas das vezes, o que para um é trabalho forçado para outro não é. O facto de a própria legislação ser ambígua e dizer que se deve encorajar o indígena a trabalhar, é muito difícil conseguir ter um registo de quais os números exactos. Há situações muito cinzentas. O que posso dizer é que se manteve como realidade bastante disseminada – com diferenças – até 1961/62. Mais não posso dizer porque a minha tese pára em 1962”.

O investigador de pós-doutoramento do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra salientou que “há diferenças entre as colónias”, até mesmo dentro das distintas colónias.

Apesar de o “reformismo português existir”, este tinha limites que eram, “em grande medida, resultado de uma equação utilitarista”: “Aqueles funcionários que se indignavam com o trabalho forçado e exigiam o cumprimento integral do CTI eram (…) provavelmente aqueles mais comprometidos com uma mudança”.

Por outro lado, “nestas mesmas instâncias de inspecção encontram-se relatos bem mais complacentes com práticas de trabalho coercivo”, como é disso exemplo o escrito de um determinado funcionário: “Todo aquele que tem lidado com pretos sabe muito bem que o indígena nunca vai trabalhar para fora da sua terra, por um período superior a cinco ou seis meses, contratado de sua livre vontade. Pode ausentar-se por um período superior como voluntário. Como contratado só obrigado”.

10 Jan 2019

As gerações são um gelado ao sol

[dropcap]O[/dropcap] poder é como a polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma zoada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana, ou seja: eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que estão muito para além da galáxia política ou das (muitas) redomas dos costumes. Até esta crónica é um pequeno apêndice de poder. Até os periquitos do Jardim da Estrela são adições de poder (já me têm subjugado a meio dos meus passeios matinais).

Num tempo secular em que a rigidez dos costumes começou a pouco a pouco a fluir, o que aconteceu gradativamente depois da segunda grande guerra mundial, as gerações passaram a constituir-se, cada vez mais, como agentes de poder (de muitos poderes). Não é por acaso que, hoje em dia, a publicidade visa targets cada vez mais jovens: dos adolescentes aos pré-adolescentes, tal é o poder que estas franjas passaram a conquistar dentro do que ainda resta do conceito clássico de família.

Tão longe destas encenações próprias do nosso tempo, João de Salisbúria escrevia, há 859 anos, socorrendo-se de uma imagem semelhante à que acompanha este texto: “os modernos (neste caso, as pessoas do seu tempo) são como que anões aos ombros de gigantes que vêem mais e melhor do que os seus predecessores, não porque possuam uma visão mais apurada mas porque se encontram numa posição mais elevada, suportada pelos gigantes”. O adágio, atribuído a Bernardo de Chartres, dava a entender que o esclarecimento do mundo vinha sempre e inevitavelmente de trás; só a partir da ‘Querela dos Antigos e dos Modernos’, oito séculos depois, é que esta relação se começou a alterar. Desde então, e com acelerações brutais até aos nossos dias, foi emergindo a ‘consciência do nosso tempo’ e a ideia de que é no presente, e só no presente, que se encontram os gigantes, os génios, os chavalões e, figuradamente, ‘os imortais’.

Cada geração com que convivemos nos nossos dias imagina-se sempre no cume da história, numa espécie de clímax ou de vórtice mergulhado em chantili festivo. A desmobilização das ideologias que iluminavam o futuro e domesticavam o passado, a par dos poderes encantatórios da tecnologia que nos devolvem a instantaneidade do agora como único tempo possível e fruível, sublinham a patologia. Escrevi “patologia” pois nunca houve um tempo tão desligado da história, quer no sentido antigo (da pertença escatológica), quer no sentido dos modernos (que recriaram a escala do humano após o Iluminismo). As gerações são hoje a graça divina animada pela juventude eterna dos ginásios, pelos likes no FB enquanto inscrição existencial, pela aceleração e mediação das imagens, enfim, por uma espécie de autismo social de tipo ahistórico. Um papagaio de peito feito a quem os deuses deram vida perpétua.

O presente basta-se, desta forma, a si próprio nos nossos dias. É até possível que tal venha a configurar a primeira grande utopia que se realiza enquanto se vive (será esse o segredo conjugado do virtual, do hiperespaço e da telemática). De qualquer modo, só se entende bem o que é uma geração, quando se sai da vaga. Isto é: ao cruzarmos as primeiras cinco ou seis décadas de vida, o olhar retrospectivo permite ver e rever de fora a emergência de uma nova geração a ocupar os seus poderes, os mais diversos e em todas as esferas (mesmo nas que parecem mais inofensivas como a literária, por exemplo). Tudo o que ela afirma e inscreve funciona como se tudo estivesse a acontecer pela primeira vez. Já nem está em causa a amnésia ou a vaguez dos horizontes. O culto vira-se sobretudo para hiatos de linguagem (como “os novos”, “a neo-”, o “retro”, os “primeiros”) que são indícios, ainda que involuntários, de uma auto-celebração que se vai tornando pouco inclusiva. Sinal dos tempos.

Quando o que se celebrava era um feito luminoso do passado que ritualizava efectivamente o presente, os ‘culpados’ éramos todos nós. Razão tinha Barthes no seu diagnóstico dos poderes (os tais discursos que “engendravam a culpa”). Hoje em dia, celebramo-nos a nós próprios, ou, por outras palavras, cada geração celebra-se a si mesma, fazendo dessa ‘correcção’ um modo eficaz de nos desculpabilizarmos. Nunca os poderes foram, portanto, tão invisíveis e, ao mesmo tempo, tão actuantes e arredados do ‘dever ser’ tradicional. A ‘correcção’ e a sua colmeia onanista de ditames (amante de uma imagem turva da liberdade) é filha desta saga que gosta, ao espelho, de se confessar como sendo fracturante. Não haverá maior devaneio.

A consciência de se ser geração é uma coisa recente e corresponde a um modo de caracterizar mutações sobre as quais deixou de haver controlo. O que realmente fractura é a quase ausência de leme no fluxo de acontecimentos que fazem o mundo e não tanto o que possa decorrer desse agente fantasmático que, há poucas décadas, se passou a designar por geração.

10 Jan 2019

Dissimulada escravatura

[dropcap]A[/dropcap]s medidas até então tomadas sobre a emigração por Macau apenas se ocupavam da “fiscalização dos colonos enquanto se conservam nos estabelecimentos e na superintendência, mas não previnem ou castigam os abusos dos corretores no acto da aliciação no território chinês nem alteram as suas condições fundamentais nos contratos dos emigrantes. A administração buscava não perturbar um comércio que considerava como origem da prosperidade de Macau”, segundo Andrade Corvo.

“Em 1871, foram tomadas disposições contra os contratos entre agentes e cules. A partir daí, os cules eram registados e, depois da habitual inspecção a bordo, exigia-se uma declaração do capitão em como o barco não levava cules enganados, nem suspeitos de serem piratas”, segundo Montalto de Jesus (MJ).

Um novo regulamento foi promulgado em 1872 pelo Governador Januário Correia de Almeida (Visconde de S. Januário) e “englobavam todas as anteriores disposições cuja eficácia tinha sido posta à prova pela experiência”, MJ. A partir de meados desse ano, “as autoridades de Cantão começaram a actuar no sentido de impedir a emigração de cules por Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra, [Revista Cultura n.º 55 de 2017], que aditam, ter o vice-rei de Cantão, por ofício ao Zongli Yamen de 15 da 5.ª lua do 12.º ano do reinado de Tongzhi (1873), informado “quão difícil era vigiar e impedir o tráfico de cules em Macau. Por um lado, os portugueses em Macau não tinham outro comércio lucrativo senão o tráfico de cules. As receitas anuais do governo de Macau, resultantes do tráfico de cules, ascendiam a mais de 200 mil dólares de prata. Não só o governador de Macau, mas também o rei de Portugal, estavam relutantes em abolir a emigração por Macau.”

 

Ofício do cônsul em Havana

 

José Maria d’ Eça de Queiroz, nomeado pelo Rei D. Luís cônsul de 1.ª classe em 16 de Março de 1872, é colocado em Cuba nas Antilhas Espanholas onde chegou a 20 de Dezembro, segundo António Aresta [Revista Cultura n.º 52 de 2016], que refere, “A três dias do fim do ano [1872], com base nas informações que lhe terão sido fornecidas pelo anterior cônsul, Fernando de Gaver, [Eça] rapidamente envia um ofício ao ministro João Andrade Corvo”: <Existem, Ilmo. Sr., nesta ilha mais de cem mil asiáticos que o Regulamento de Emigração pelo porto de Macau põe hoje explicitamente sob a protecção do Consulado Português. (…) V. Exa. compreenderá a importância deste consulado que pode abrir a cem mil almas o registo de nacionalidade portuguesa: é portanto urgente que o Governo de S. M. atenda às condições em que vive aqui esta população colona>. (…) <A legislação cubana dividiu artificialmente a emigração asiática em duas espécies de colonos: os chegados a Cuba antes de 15 de Fevereiro de 1861, e os que vieram depois desta data arbitrária. Os primeiros tendo findado já o prazo de 8 anos – porque vêm contratados todos os colonos que saem de Macau – são livres no seu trabalho e podem requisitar deste consulado a cédula de estrangeiro; os outros – os que chegaram depois de 61 e estão chegando – são obrigados, findos os seus 8 anos de contrato, a sair da Ilha dentro de dois meses, ou a recontratar-se novamente>. Mas <a prática é extremamente diferente – e autoriza a opinião Europeia de que a emigração chinesa é a dissimulação traidora da escravatura. A lei permite aos asiáticos que chegarem antes de 61 que solicitem a sua cédula de estrangeiro – mas por todos os modos se impede que ele a obtenha: e o meio é explícito: formou-se na Havana, sem estatutos e sem autorização do Governo de Madrid, uma comissão arbitrária que se intitula Comissão Central de Colonização; esta comissão pretende ter o pleno domínio da emigração; formada dos proprietários mais ricos impôs-se, naturalmente às autoridades superiores da Ilha, e conseguiu que se determinasse – que nenhum asiático tire do Consulado a sua cédula de estrangeiro sem que a Comissão Central informe sobre ele e o autorize a requerê-la: ora sucede que a Comissão Central, para cada asiático, prolonga indefinidamente esta informação – e durante este tempo o colono está numa situação anormal e inclassificável – não é colono porque terminou o seu contrato – e não é livre porque não tem a sua cédula; esta situação faz a conveniência de todos – da polícia que à mais efémera infracção (encontrar, por ex. o china, fumando ópio) o sobrecarrega de multas enormes, do Governo, que o aproveita, sem salário, para as obras públicas, e dos fazendeiros que terminam por o recontratar>. Segundo A. Aresta, “O problema de base está na divisão artificial com que distinguiam os colonos.” E continuando com o que Eça de Queiroz escreve no Ofício de 29/12/1872: <Em quanto aos que vieram depois de 1861 – uma legislação opressiva obriga-os a saírem findo o seu contrato, da Ilha, em dois meses ou tornarem a contratar-se; e como naturalmente o colono não tem meios de regressar à China – a polícia recolhe-os nos depósitos – é obrigado a servir mais 8 anos>.

 

Cônsul no Peru

 

A galera peruana Fray-Bentos de 561 toneladas deixou Macau a 6 de Janeiro de 1871 e o Cônsul Geral de Portugal no Peru, Narciso Velarde certificou que esta fundeou neste porto de Callao no dia 12 de Abril, trazendo 369 passageiros chineses dos 375 que tinham embarcaram, havendo morrido durante a viagem ‘apenas’ 6. Das informações tomadas por este consulado resulta que os ditos passageiros foram bem tratados durante o transporte, em fé do qual se expede o presente certificado em Lima aos 17 dias do mês de Abril de 1871.

No ano seguinte a galera estava de novo em Macau pois em 1/8/1872 o tesoureiro da junta da fazenda, Carlos Vicente da Rocha informava ter recebido $366 patacas pelos emolumentos dos passaportes dos 366 colonos para o Perú nesse navio. A 7 de Agosto o capitão do porto de Macau, João Eduardo Scarnichia certificava a Fray-Bentos, cujo capitão era Ramon Mota, pois mediu 732 metros cúbicos de capacidade no alojamento destinado aos colonos. Sai do porto de Macau para o de Callao de Lima conduzindo 366 passageiros chineses contratados para servirem como colonos, e todos sabem o lugar do seu destino e vão por sua vontade do que me informei devidamente, bem como, que os contratos que levam foram registados na repartição competente. Certifico mais, que a dita galera se acha em estado de navegar na vistoria que lhe passei e leva a tripulação suficiente para a manobra, que tem os mantimentos e aguada determinada no regulamento da emigração, bem como há a bordo cirurgião, botica e intérprete chinês e que a embarcação tem acomodações para os passageiros que conduz, e os necessários meios de ventilação aprovados pelo facultativo do quadro de saúde que foi a bordo. Está conforme. Capitania do porto de Macau. E assim partiu nesse dia a galera Frey-Bentos para o Peru, onde a esperava um novo cônsul, Sant’anna Vasconcelos.

O regulamento da emigração chinesa publicado a 28 de Maio de 1872, no artigo 67.º referia ser necessário 2 m³ para cada colono transportado.

 

4 Jan 2019

Esperança e memória

[dropcap]É[/dropcap] difícil evitar esta onda de optimismo sazonal que nos invade no início de cada ano. O clima é tão forte e a pressão social tão intensa que mesmo velhos pessimistas antropológicos como este vosso escravo são compelidos a sorrir e a acreditar que o que aí vem será melhor. Não faz mal: é uma ilusão doce e inofensiva que, se formos a ver, até sabe bem. E há sempre a risível probabilidade de ser verdade, pelo menos durante algum tempo. É bom pensar que por algum misterioso motivo tudo se regenera para melhor a partir do primeiro dia do calendário gregoriano, como se os factos mais desagradáveis da vida ficassem suspensos por um instante num território remoto e inacessível. Para quem duvida mas despreza determinismos, como é o meu caso, é uma oportunidade perfeita para utilizar a nossa palavra preferida: “talvez”.

Mesmo assim sentimo-nos desconfortáveis neste universo paralelo momentâneo. Não queremos ser desmancha-prazeres mas também não conseguimos embarcar de boa vontade nas promessas e esperanças desmedidas que muitas vezes apenas reflectem os falhanços passados que gostaríamos de mudar. Mas há muito que é assim e, suspeito, assim será durante os próximos tempos – quanto mais não seja porque disso precisamos.

Tive a oportunidade recente de voltar a confrontar toda essa desmesurada e maravilhosa carga de esperança e confiança no futuro ao assistir a um extraordinário milagre documental: chama-se They Shall Not Grow Old e é realizado por Peter Jackson (sim, o mesmo da trilogia de O Senhor dos Anéis). A partir de filme e depoimentos de época, Jackson mostra-nos o que foi ser um soldado britânico a combater nas trincheiras da I Guerra Mundial. O impacto é imenso, tanto em termos de narrativa como na parte visual. O trabalho do realizador neo-zelandês – com a essencial cumplicidade do Imperial War Museum, que colocou à disposição todos os seus arquivos – foi seleccionar, restaurar, colorir e sonorizar filmagens de época. Para isso, para além da tecnologia que domina como ninguém, Jackson contou com a colaboração de leitores labiais para recriarem o que era dito nesses filmes para depois o entregar a actores que se encarregaram de dar voz ao que vemos. Além disso alterou a velocidade dos filmes de então para os familiares 24 fotogramas por segundo, evitando assim a pátina do tempo que passou e consequentemente envolvendo o espectador de hoje numa narrativa contemporânea.

Mas apesar de todos estes prodígios o que de facto faz a força deste documentário são os depoimentos não identificados de cerca de 120 veteranos que viveram e sobreviveram ao conflito. Ouvimo-los em off, sobre as imagens; percebemos quem são os oficiais e os soldados. Acompanhamo-los desde o entusiasmo patriótico do pré-guerra até ao final, onde apenas sobrevive uma profunda indiferença sobre o desfecho dos combates. Existe um cansaço nos dois lados beligerantes e acreditamos que o primeiro a ceder será o derrotado. São homens perdidos, abandonados numa guerra que não compreendem. Apenas conhecem o que vêem e sentem: devastação, paisagens lunares cheias de morte, condições de sobrevivência infra-humanas. Mesmo quando chegou às trincheiras o boato – e é disso que falam, do “Mr. Rumour” – de que a guerra iria acabar não houve festejos – só apatia e desconfiança. Mais do que a luta contra um inimigo, o que a I Guerra Mundial trouxe aos que nela participaram foi um combate constante e duro contra a sua desumanização. E muitos perderam.

É muito o que nos dá este They Shall Never Grow Old. Mais do que honrar a memória, faz-nos vivê-la através dos olhos e das vozes de quem lá esteve. Para nós, portugueses, não nos deve ser indiferente: foi o único conflito global em que participámos, mal armados, mal preparados e não desejados, arrastados apenas por uma criminosa vontade de um regime que almejava ser legitimado internacionalmente.

E depois, depois de tudo acabado, a esperança. Que a humanidade nunca mais iria ver semelhante carnificina; de que a Europa iria enfim ficar em paz. Como se de repente fosse Ano Novo para o planeta. Mas o diktat do Tratado de Versalhes, com as terríveis condições que impôs à Alemanha, fazia temer o pior. Churchill alertou; o marechal Foch, herói francês, foi mais longe e acertou em cheio ao dizer: «Isto não é um Armistício – é um cessar-fogo com a duração de vinte anos».

Em 1933 um antigo combatente da I Guerra, forte opositor do Tratado de Versalhes, foi eleito Chanceler da Alemanha. O que se seguiu já o sabemos.

Que a esperança não morra mas que a memória nunca a deixe sozinha.

4 Jan 2019

Exposição com peças que testemunham Rota Marítima da Seda é inaugurada hoje em Lisboa

[dropcap]U[/dropcap]ma exposição com peças que representam a Rota Marítima da Seda, com porcelana, relógios e instrumentos científicos, entre outras, é inaugurada hoje no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa.

Intitulada “A Rota Marítima da Seda – Museu da Cidade Proibida”, a exposição apresenta uma imagem do que foi a interacção e comunicação das cortes Ming e Qing, na China, com o mundo exterior, de acordo com a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), responsável pela organização.

Para a exposição, segundo a DGPC, foram selecionados, de uma colecção composta por mais de 1,8 milhões de peças, artefactos que incluem porcelana, peças de jade, utensílios de vidro, utensílios de esmalte, relógios e instrumentos científicos.

As peças “apresentam uma imagem da interacção e comunicação das cortes Ming e Qing com o mundo exterior, demonstrando que essa “estrada” não era apenas uma florescente rota comercial, mas também o vínculo entre a China imperial e a civilização mundial”, explica a nota.

O Palácio-Museu, construído no local do palácio imperial da dinastia Ming e Qing, é o maior museu generalista da China, refere a organização. O seu enorme acervo – de onde provêm as peças para a exposição – é oriundo principalmente das colecções das cortes imperiais.

Esses itens incluíam presentes tributários de emissários da corte imperial e dos estados com os quais possuía relações tributárias, presentes de missionários estrangeiros, tributos pagos por súbditos do império, itens adquiridos ou encomendados pela corte e produtos de oficinas imperiais ou locais, inspirados ou imitando produtos estrangeiros.

A exposição mostra como esta rota marítima abriu a China imperial ao mundo exterior e especialidades como a porcelana, o chá e a seda que foram enviadas dos portos do leste e do sul do império para todo o mundo, fortalecendo as trocas do país com o leste, sudeste e oeste da Ásia e norte da África.

3 Dez 2018

Eu também

[dropcap]“N[/dropcap]o outro dia chamaram-me bitch e eu sorri.” De cada vez que uma mulher nos conta algo assim existe, certamente e no mínimo, uma história semelhante que devemos partilhar. A geografia pode muito pouco contra o que vai no íntimo das gentes, e fronteiras, muros, géneros e espaços pessoais é fácil e conveniente, tantas vezes, ultrapassar.

Muitas vezes não me lembro do que aconteceu. Quer dizer, não penso no que aconteceu, não me surge de repente ao cair a chuva ou ao ouvir uma canção. Sempre tive uma memória demasiado boa até para o meu próprio bem. Não do género fotográfico, pelo menos não completamente, não só: a memória das emoções, da roupa que trazia vestida, de uma ou outra frase que seria insignificante para a maioria das pessoas, mas que se cravou no meu inconsciente talvez para o resto da vida (as frases sim, essas surgem sempre que lhes apetece, não tenho qualquer controlo sobre elas). Isto é diferente, talvez seja o meu próprio corpo a repelir essa memória com todas as suas forças. Porém, ela nunca mais poderá ser completamente apagada, e de vez em quando abre-se essa gaveta do meu cérebro (nunca poderia guardar essa memória no coração, já teria morrido por esta altura) ou talvez não, porque se seguiram outras tão más ou piores.

“Are you interested in writing a book?”, foi uma das muitas perguntas feitas por um grupo de senadores homens, brancos, a Anita Hill, professora universitária e activista negra, em 1991, aquando do processo que abriu contra o candidato nomeado para o Supremo Tribunal Clarence Thomas, que viria a ser confirmado juiz, o segundo negro a ocupar um dos cargos mais importantes do país. Negro e negra em lados opostos da justiça, ambos a fazerem história em simultâneo. Este nunca foi o plano. Estamos quase no final de 2018, e continuamos de costas voltadas em relação a isto.

Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Estava na escola primária e já fazia o percurso entre casa e escola sozinha, embora acompanhada por colegas de turma a maior parte do caminho. Mas eu estava a falar de quando andava na terceira classe. Costumava ir a casa de uma familiar que ficava num bairro a uns quinze ou vinte minutos a pé de nossa casa, brincar com as filhas dela. Elas eram mais velhas do que eu, e na verdade uma delas não era mesmo filha, mas era tratada como tal. Ela tinha, ainda, dois filhos. Todos eram mais velhos do que eu uns bons anos. Era sobretudo para não ficar sozinha em casa, para me livrar de sarilhos e do aborrecimento.

“Estou bem triste.” Assim começa uma mensagem de voz tremida. Pouco importa se vem de uma rapariga bonita. “Eu vinha do trabalho hoje, às sete da manhã e três homens começaram a dizer-me coisas, a chamarem-me de puta, vadia, a fazer gestos obscenos. Deviam estar bêbados. Entrei em pânico e comecei a gritar com eles também. Fiquei muito agoniada e comecei a chorar. Eu estava tão feliz, o trabalho tinha corrido bem, apesar de cansativo. Agora vou ficar com medo, agora vou ficar a olhar para todo o lado para ver se vem alguém.”

Ele devia ter uns quinze anos. Raramente penso nisto. É só mais uma das coisas que não posso alterar. A maior parte das vezes nem me lembro que aconteceu. Chamava-me ao quarto dele, conversava comigo e dizia que gostava de mim. Fazia-me deitar no chão e deitava-se em cima de mim. Tocava-me, fazia pressão sobre mim e tentava, constantemente, chegar mais longe, e como não conseguia, ficava zangado. Lembro-me muito bem de ter-se rido de mim quando, uma vez, fui até à janela e comecei a recitar os nomes dos meus colegas de turma. Uma das irmãs dele, uma vez, espreitou pelo buraco da fechadura, e disse que sabia o que estávamos a fazer, e que ia contar, mas não o fez. Eu mesma nem sei porque não o fiz. Por medo, talvez. Medo do que todos iriam dizer e pensar. Eu não percebia bem o que se passava, acho que parte de mim via aquilo como uma forma de afecto.

É o homem alto e forte com equipamento de ténis completo à porta do campo que fica ao lado de um supermercado onde vais tantas vezes após a escola, e que faz esperas e tenta falar contigo. É o funcionário da junta que varre as ruas e vai deixando pequenos bilhetes caídos no chão, pequenas cartas que entenderá certamente serem de amor para a tua amiga com doze anos, como tu; mais tarde é a história da tua prima aos catorze, e um vizinho e amigo da família. É a tua colega de faculdade num parque de estacionamento, e a amiga dela também, e contar-te isto na esplanada num dia de sol e alguma coisa gelar-te por dentro e te privar de empatia para com ela, como quem diz, faz parte, calha a todas, quem nunca. É aquela rapariga de há muito tempo, e o irmão e o segredo partilhado e calado por todas as irmãs. É a pessoa que admiras e respeitas e te diz todas as coisas que sempre quiseste ouvir sobre o teu trabalho, mas que momentos depois tenta beijar-te. É a pessoa que te procura para uma colaboração mas após uma série de observações intrusivas se propõe ir contigo para casa ao fim de um jantar que, para ti, era apenas de trabalho; é ainda aquela pessoa que justifica, “Se calhar ele estava só muito apaixonado”. E chegas a casa e rebentas num pranto e não consegues dormir, e a vida do outro segue como se nada fosse. É a actriz que se defende não se afastando, chocando e tentando reverter o nojo. É o actor que fala de aguentar o assédio porque são apenas três dias de filmagens, e lutou muito por aquilo, e tem de pagar as contas, e terá o trabalho para mostrar e para se consolar. É quem te julga e recorda que ninguém te apontou uma arma à cabeça, e que és uma desilusão. É quem fala mal de ti e acha que não tens direito a uma voz porque mandaste nudes a este e àquele e ao outro, ou porque és gay, ou porque és latina, ou asiática, ou trabalhadora do sexo, ou todas as anteriores. É a mulher de Thomas, deixando uma mensagem de voz a Hill em 2010 a exigir um pedido de desculpas. Ou o senador Alan Thompson a perguntar, ainda em 1991, “Why in God’s name would you ever speak to a man like that the rest of your life?”

Já era adulta quando falei nisso a alguém pela primeira vez. A vida por vezes é muito cruel. Foi um alívio quando a família toda se mudou para Inglaterra. Nunca mais os vi, e ainda bem. Mas nada tira o amargo de maçã podre. Temos tendência para relevar a fruta quando ela está tocada, cortamos e deitamos fora o que estiver manchado, ou oxidado, ou podre. Não queremos, não gostamos de desperdiçar nada, mas naquele caso eu não podia ficar com uma parte e esperar que o todo não estivesse envenenado. Era uma situação da qual só poderiam resultar mais vítimas, e assim deixei-me ser a única. Porque a vergonha e a culpa nos fazem sentir que estamos sós, que ninguém quer saber ou acreditar, que somos, realmente putas, desmerecedoras de compaixão e merecedoras de todas as coisas más, sortudas por haver quem nos queira, mesmo se pela força, mesmo se desta forma, porque nós começámos tudo isto apenas por existirmos.

Há pessoas que pedem desculpa e há pessoas que não. Há pessoas que se fecham para o mundo e para os outros e passam a viver como se fossem de cristal. Pessoas que se calam e pessoas que não o fazem. Há pessoas que se magoam mais e se desassociam de si, e entram num pesadelo de miséria e promiscuidade, em detrimento da sua já frágil condição. Que deixam de acreditar em si para acreditar no gaslighting do outro. Para alguns é compulsão e doença, para outros um momento menos brilhante, toldado pelo ego e por algum álcool à mistura. Concluo que será sempre demasiado cedo para poder chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que continuamos sem saber como lidar, como conviver uns com os outros, como amar, como respeitar, como entender.

“And I can’t explain; it takes an expert in psychology to explain how that can happen, but it can happen, because it happened to me”, disse ela, ainda em 1991. E os Sonic Youth responderam “I believe Anita Hill.” Eu também, eu também.

29 Nov 2018

Ordenhar com amor uma vaca da Frísia

[dropcap]E[/dropcap]xistem coisas terríveis no planeta azul, é verdade. A amostra e o armazém confundem-se: jaíres que amam a estabilidade das ditaduras, sanguinários sauditas à solta e, virando a página, milhões e milhões de refugiados a errarem na parte sul do Sudão, nas Américas ou no Mediterrâneo. E dias há em que a televisão nos dá a ver inundações e tsunamis, mas há sempre vozes ventríloquas a papagaiar que tudo se passa lá muito ao longe.

As coisas terríveis têm a mania de acontecer na outra margem. Como se existisse um rio entre nós e a realidade, interrompido apenas quando sobre a nossa cabeça se abate uma gigantesca bigorna de aço. Se acordássemos do choque, essas vozes persistiriam. Cair uma bigorna na cabeça de alguém é sempre um pára-arranca a deambular lá muito ao longe. Nem seria preciso citar Napoleão a acossar pirâmides do Egipto, para concluir que os humanos gostam de imaginar os longes (‘longes bem longínquos’ onde tudo arde), adoram lucubrar sobre episódios terríveis e até se deram ao trabalho de inventar o teatro e a própria palavra “catarse”.

Colocando de lado por instantes o ‘coiso’ do Brasil, os tsunamis e os ventríloquos, é coisa corrente no dia-a-dia que as grandes e pequenas monstruosidades andam geralmente camufladas. Atravessamos a rua no fim da tarde de uma sexta-feira amena e temos aquela sensação na boca de estar a solfejar “Amor, I love you” de Marisa Monte, ou então vemo-nos a apanhar da calçada uma folha de plátano com toda a ternura, antes de teclar um coração no iphone. Depois, encaramos as nuvens paradas e concluímos que a vida é bela, cheia daquela harmonia dos verões da infância, lânguida de ardores (dos que antecedem os arsénicos de Emma Bovary). Poderemos até abraçar um peru ainda vivo ou ordenhar com amor uma vaca da Frísia e dizer que o natal é quando a alma de Mahatma Gandhi quiser.

Então porquê as monstruosidades camufladas? Não, não é por paixão carnavalesca. Talvez seja, na mesma ordem de ideias que levou Polonius a questionar Hamlet – “Will you walk out of the air, my lord?”, por causa daquele grau de suspeita que permite deduzir que ‘eles andam aí’. Por vezes nem precisam do ar que respiram. Sobrevivem ao jeito da melanina que protege do sol os mais apetecidos recessos cutâneos. ‘Eles andam aí’, pequenos e grandes, e comportam-se com tique de máscara mal colocada, fazendo lembrar osgas, louva-a-deus, cavalos-marinhos, sapos, lagartas, girafas, aranhas e corujas que sabem confundir-se com o pano de fundo da natureza onde se acoitam, sejam florestas, desertos ou corais. Só que, de um momento para o outro, aparece quase sempre quem os detecte. Coisa de sortudo e não de pobre diabo.

Pobre diabo é uma designação feliz, sim. Dizem que os pobres diabos são tão leves que sobem ao reino dos céus como sumaúma. E podem inesperadamente ser muitos, muitos milhões. Por exemplo: já experimentou, caro leitor, telefonar para Meo a perguntar por que razão a factura mensal aumentou de repente (e sem qualquer razão)? A voz gravada há-de desafiar a sua paciência celestial durante 40 minutos e depois você desiste por ter compromissos marcados. Já experimentou, caro leitor, ir às finanças anular um pagamento que teve como base o lapso de um funcionário? Há-de conseguir a validação dos dados, sim, mas, logo a seguir, terá que subir à secção das dívidas e vão dizer-lhe, a esfregar as mãos feitas de sumaúma: “a intervenção humana está feita, mas o sistema tem os seus timings próprios e, por isso, vai ter que pagar (e com juros), caso contrário haverá penhora das contas bancárias”. De um momento para o outro, os predadores confundem-se com as osgas, as louva-a-deus, os cavalos-marinhos, as aranhas, etc, etc, e não com o pobre diabo que se lembrou de ir resolver umas coisinhas correntes, no fim de uma amena tarde de sexta-feira, quando na esplanada do bairro toda a gente cantava em uníssono “Amor, I love you”. Há alegorias que valem mais pela amostra do que pelo armazém.

Seja qual for a escala do desvelo, caro leitor, confesso que não há gramática que resista a uma bela bigorna a perfurar o tálamo ou às pirâmides de gizé a mangarem com a estatura de Napoleão, pois tudo se passará inevitavelmente do outro lado, na outra margem, no silêncio de Polonius. O pessoal vê sites e notícias sobre os jaíres pistoleiros e as novas “invasões bárbaras”, o pessoal vê crianças mortas nas praias e ouve a nova geração de políticos da Hungria, da Polónia ou de Itália e, a caminho do ginásio ou de regresso das finanças, vai pondo uns likes na atmosfera. E com os phones cada vez mais enterrados nos ouvidos, a maior parte do pessoal continuará a ouvir sem parar os anjinhos ventríloquos e natalícios a fazerem de coro grego: ‘Let it be’, ‘No pasa nada’, ‘Baby It’ll be alright’ e outros hits tipo rap evangélico. Tal como Camus escreveu no romance A Peste: “…o flagelo reunia todas as suas forças para as lançar sobre a cidade e se apoderar dela definitivamente” (1). Já faltou mais.


(1) Camus, A. A Peste, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p.156.

8 Nov 2018

“A Memória da Cidade II” – José Silveira Machado (1918/2018)

“A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem te salva a tempo.
E, entretanto, durei.”

Vitorino Nemésio

[dropcap]F[/dropcap]ilho das dificuldades, onde os dias nasciam carregados de deveres, José Silveira Machado veio ao mundo a 24 de Outubro de 1918, em Velas, S. Jorge, Açores, a freguesia das freguesias de sentido único, a partida. Direcção, Oriente, destino, Macau.

Foi este o «caminho» de José Silveira Machado o «Professor». Aportou a Macau numa época difícil de transição e contradição – 1933 -, para estudar, “indisciplinado aluno” (?), no Seminário de S. José – «um exílio é um refúgio com uma biblioteca», na opinião de Zia Haider Rahmam -, entre a idílica adolescência e a indesejada vida adulta.

A realização pessoal exige escolhas, sensibilidade e bom senso Concluído o curso do Seminário – um período de possibilidades ilimitadas -, optou pela vida civil , onde acontece viver -, em detrimento da vida eclesiástica.

“Cresceu sem ver o Mundo mas com os olhos postos na vida.”

Homem de pensamento rigoroso, honesto, dinâmico e crítico, criador e bondoso, olhar suave, rosto comprido e magro, boca tensa, era um romântico. Tinha sempre mais dúvidas que certezas, percebia a diferença entre a realidade dos factos e os factos alternativos.

As suas palavras tinham polivalência, ganhavam autonomia, tinha o hábito de apelar em vez de exigir, explicar em vez de ditar.

Não se fechava ao Mundo. Abria-se ao conhecimento. Era uma pessoa capaz de admirar a vanguarda, sem nunca esquecer as tradições. Era uma alma desocupada que não precisava de alinhar em conspirações de ordem estética – era consequente, corajoso -, não como o Dâmaso Salcede d´ “Os Maias”, «balofo e vazio que segue a maioria…, da mais recente tendência».

Tinha um modo próprio de andar – calcorreava a «Cidade» de lés a lés, de maneira a fugir de fantasmas e a perseguir sombras.

Fazia parte da sua geografia sentimental. A alegria de viver estava em descobrir, receber, transmitir, dar – ser autor e actor – e, espectador lúcido e atento.

A sua mundividência «crescia» de um aspecto crucial – pouco ou nada valorizado nos dias de hoje -, o diálogo, aberto, franco, sincero. Os Livros, a Amizade – «é um dos mistérios da vida», e a «Cidade» eram sempre tema para dois dedos de conversa.

Na conjugação do exercício das palavras «mais os conceitos», na boémia nocturna das ideias, jorravam discussões, sempre retrabalhadas pela memória. Lutava ansiosamente contra o pessimismo colectivo, conjugado sempre com um optimismo subjectivo, apesar de alguns dissabores. A fragmentação da identidade de Macau, a perda do ideário da língua e cultura portuguesa e, no abandono que é dado aos seus cidadãos, aos pobres, fracos, exaustos e aos desprotegidos – uma sociedade que apesar de rica se torna pobre (de espírito).

Poesia, prosa e crónica, são marcos na obra de Silveira Machado. Há dois importantes livros – na opinião de simples leitor -, que são uma referência obrigatória na bibliografia macaense. São os casos de «Macau, Mitos & Lendas» (1998) e «O Outro lado da Vida» (2005). Na opinião de Luís Sá Cunha “Na sua obra, ele fez a síntese de dois universos, de duas vivências, das duas metades de Macau”.

São livros em que encontramos experiências vividas, “soprava nele um irresistível vento de poesia”.

«Macau, Mitos & Lendas», são as notas ao programa do Prelúdio da sua Oratória «Amor a Macau» -, para quando a reedição (?). O livro está esgotado há anos e faz falta nos escaparates das livrarias – e, «O Outro Lado da Vida», é o poslúdio da sua obra – é o olhar crítico, contestatário de Silveira Machado, sobre a sociedade de consumo, de extravagâncias, de mercado de dissimulação, “aos que vivem do lado positivo da vida, os abastados, os ricos, os poderosos”. O autor mostra o seu lado generoso, tolerante, humanista, idealista, pensa que “a sua leitura seja motivo para o rebate de consciências e mudança de mentalidade e leve muitos ricos e poderosos a praticar a verdadeira e necessária solidariedade (…) para que, num futuro breve, não sejam tantas as crianças e jovens, tantos os homens e mulheres, a viver do «outro lado da vida» -, a pobreza e a marginalização como o maior défice social da sociedade”.

Foi co-fundador e jornalista do semanário católico «O Clarim». Colaborou ainda na «Voz de Macau», na «Comunidade» – onde assinou vários artigos de grande valor, sobre as indústrias de Macau – e, no «Renascimento» (jornal e revista). Foi correspondente do «Diário da Manhã» e da revista de cinema «Plateia», outra grande paixão. Paixão que se viria a traduzir no guião que escreveu para o 1º filme realizado em Macau – «Caminhos Longos» (1956).

Quanto mais pobre teria sido a literatura macaense, e Macau mais triste e menos Macau, sem José Silveira Machado, um nome incontornável na história recente na «nossa» Cidade. A sua escrita celebra, relembra e revisita Macau «sonhos, desejos, êxitos». A maturidade ensina a aceitar a dor com menos sofrimento e a viver com mais tranquilidade.

Finou-se, como sempre viveu – discretamente -, recolheu-se ao fim da tarde do dia 18 de Novembro de 2007.

A melhor homenagem que se lhe poderia prestar – no meio de tantas outras que se prestaram, seria fastidioso estar a enumerar –, seria editar e reeditar, ler e reler, a sua obra (é preciso saber mostrar que sabemos preservar a memória e a identidade da «Cidade») –, o Homem parte a Obra fica…!


Bibliografia: «Macau, Sentinela do Passado» (1956); «Rio das Pérolas» (1993); «Macau, Mitos & Lendas» (1998); «Duas Instituições Macaenses (1998) – em co-autoria com João Guedes -; «Macau na Memória do Tempo» (2002); « O Outro Lado da Vida» (2005). Coordenou ainda no âmbito da Fundação Macau, a reedição (1996) da obra completa de José dos Santos Ferreira, o «nosso» Adé.

“Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos”

Luís de Camões
25 Out 2018

O diabo

[dropcap]C[/dropcap]om os anos devemos à memória mais, muito mais do que a toda a informação obtida, dado que a informação não cultiva, e a memória cultivada regista outros parâmetros onde aquela com sede de novidade já não pode inovar. O alarido “diabólico” das mentes ofegantes que geram no éter as nossas informações parece montagem de maus demos no exercício das suas funcionalidades. Barricamo-nos na deriva de tanta presunção diabólica, coisas que na memória, tal como disse, não parecem funcionar assim. Recuar até Giovanni Papini, converso cristão, que de forma ilusionista lhe vestiu o manto e quase se santificou até ao mais improvável alibi, ao seu «Diabo» que em nada se parece com esta dimensão desconcertada de um mal aleatório. Que grandes páginas a ele dedicadas o mundo não padece «O Dicionário Infernal» de Collin de Plancy, que veio a ser, e muito justamente, designado por «género frenético» até a «Hora do Diabo» de um Fernando Pessoa. Há matéria para tais deletérios e, pasme-se, que podem ser louvados enquanto exercício de uma esfera fecunda, que o é.

Mas qual o efeito deste Demo, senhor das coisas impensáveis, que cavalgou as nossas vidas antes da lava larval dos novos conteúdos? Nenhum. O Diabo, a haver, já se foi, da mesma forma que Deus morreu. Só nós, no centro do labirinto da teomania, nos avantajamos para mostrar obra feita que reponha tais princípios, podendo bem dar-se o caso de ser agora uma lenda bem menos amarga que as nossas tão humanas interpretações. — Que Pessoa afirmou na sua Hora que ele era um cavalheiro e que deveria, por isso, uma senhora mostrar-se confortável na sua presença — o que não deixa de ser uma grande reabilitação face ao homúnculo que por este mundo anda, até ao seu Beijo, com a carga que selou um improvável encontro. Foi Deus que desceu à condição e teve como resolução final a Paixão, ela, não se encontra pendurada sangrando de humana barbárie – não – a isso chama-se assassinato. Um beijo assim tem mistérios tais que milénios de cânones não conseguem descortinar. Afinal, não se deve tocar em ninguém e, sobretudo, como bem viu um jovem professor, obrigar crianças a beijar avós ou quem quer que seja contra as suas vontades. Tocar é um mistério, ser tocado, também.

A venda não tapa os olhos dos vendidos, vender é fazer negócio, e que se saiba ninguém negociou beijos ou vendeu a resgate o ponto imóvel de um deles, que desse origem a esta arrasadora frase de Papini: «que resta a fazer quando nada mais é possível? Volver-se pois contra si mesmo…abocanhar-se, fazer-se em pedaços…e um dia? Um dia, abrasar. Mas nos seus membros lassos por entre os coágulos acres de sangue, há um pouco de carne intacta, onde ele com Judas beijou», o que pode bem responder à questão do Evangelho segundo Mateus – Amigo, que vieste aqui fazer? Sem mácula, a carne beijada. Mantivemos a luxúria como um elo da malignidade e, de certa forma assim é, mas o Beijo não tem escala percorrida na antecâmara das profanações, nem estas carnes que se tocam são de natureza profana a produzir simples desejos. Estamos na intimidade de uma grandeza.

Há muitos sortilégios em forma de códigos morais nas ideias alternativas e nas mentalidades modeladoras. São bocados de encantamento que lutam contra o desgoverno mundial mas, mal feitas e dirigidas a não se sabe quem, coisas de arrepiar se multiplicam sem que tenhamos capacidade de as reconduzir a uma forma de combate leal. Atravessamos a loucura como um estado de coisas naturais, gostamos da bruxa má, do inferno porque é giro, da resiliência soez, e andando nisto até parece que Satã nos fica a matar. Não. Não está aqui. Nada disto tem sentido infernal nenhum. A vacuidade produziu uma estranha importância cuja cauda não chega à de um crocodilo e bizarramente altiva-se de perfeccionismo serôdio para alinhar no esconderijo do pormenor. Regra de Demo, sem que se lhes reconheça sagacidade para juntar todas as peças de um acorde: o que ele gosta de violino!!!

Cada época recorrerá, criará a sua noção de malignidade, mas não creio que se possa recorrer já em todas as culturas aos arquétipos: as advertências são grandes e o próprio mal uma consequência e, na medida em que nos falta elementos valorizadores da natureza humana para que as tabelas oníricas se mantenham como suportes, é mais fácil um desventrar sem causa do que uma perseguição por culpa. Quem não entendeu um Beijo não pode querer saber mais do muito que ainda tem para lhe acontecer – e aconteça o que acontecer – já não há beijos que nos ressuscitem ou nos condenem. As nossas bocas fazem dieta e o nosso corpo deseja-se magro. «Encontrei-os cegos – ensinei-lhes a ver. Agora não me reconhecem nem me vêem» Blake, este Lúcifer tem mais potência que toda a industria energética que não deve ser cortada por subalternos de um deus menor, uma fonte que por cá, não raro, até prodigaliza incêndios ficando a terra um inferno sem brilho.

O físico Stephen Hawking acaba de deixar estranhos prognósticos dizendo mesmo que nos podemos extinguir em face de uma espécie melhorada… mas o pior é darmos de caras com o Demónio do Apocalipse, aquele que virá para julgar os vivos e os mortos, sendo os vivos horrorosamente nós: «Nesses tempos os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá para longe deles» Não, não é contra a eutanásia. É a vingança do retorno do Diabo. As almas estarão num tubo de ensaio para não mais ser vendidas. E dos beijos que der, mais ninguém terá conhecimento.

23 Out 2018

Blogue Macau Antigo faz dez anos e oferece aos leitores 100 livros sobre o território

[dropcap]C[/dropcap]riado em 2008 pelo jornalista João Botas, o blogue Macau Antigo comemora este ano dez anos de existência. Para celebrar a efeméride, o também autor de vários livros sobre a história de Macau vai oferecer uma centena de livros sobre o território, em parceria com a Fundação Casa de Macau.

Para que os leitores possam participar nesta iniciativa, basta enviarem uma frase sobre o blogue, juntamente com o nome e morada, entre os dias 1 e 30 de Novembro, para o email do autor do blogue:macauantigo@gmail.com. Os primeiros 100 leitores a enviar uma frase vão receber um livro.

“Dez anos são iguais a 120 meses, qualquer coisa como 520 semanas ou 3650 dias… praticamente o mesmo número de posts publicados até agora (quase 4 mil), incluindo diverso material inédito, consolidando cada vez mais este projecto como o maior acervo documental online sobre a história de Macau, disponível 24 por dia em várias línguas e em todo o mundo”, defendeu João Botas.

Neste período de tempo o Macau Antigo teve cerca de milhão e meio de visitantes, “a maioria oriundos de Portugal, Macau, Estados Unidos, Brasil, Hong Kong, Canadá e Austrália”. Nas redes sociais, o blogue é seguido por mais de três mil pessoas.

19 Out 2018

Maria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda: “Não podemos estar com medo”

A iniciativa “uma faixa, uma rota” ainda é um mistério sem contornos de definidos. Algo que Maria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda, encara como uma oportunidade económica e cultural e uma visão alternativa à globalização. No final do mês, Maria Fernanda Ilhéu apresenta o livro “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial”

[dropcap]A[/dropcap] Associação Amigos da Nova Rota da Seda faz dois anos em Dezembro. Que balanço faz deste dois anos de actividade?
Temos dois objectivos essenciais, que são promover a iniciativa “uma faixa, uma rota” em Portugal e ao mesmo tempo encontrar projectos de cooperação entre Portugal e a China e entre Portugal a China e países terceiros, nomeadamente os de língua portuguesa. Começámos do início, através da promoção da iniciativa. Muita pouca gente em Portugal tem uma ideia do que se pretende com esta iniciativa, quer na vertente de desenvolvimento estratégico da China, quer na vertente do novo modelo de globalização que a China tem, a visão que propõe ao mundo. Esta fase ainda está em continuação, mas estamos também a identificar áreas de cooperação. Nessa fase de identificação de áreas de cooperação temos, por exemplo, a construção de infra-estruturas, quer em Portugal, quer nos países de língua portuguesa. Temos a parte de formação e educação em várias áreas de conhecimento, também ao nível linguístico, português e chinês, mas que são muito mais vastas que isso. Podem ser, na área tecnológica, nos negócios, ou na área cultural, ou da medicina. A medicina e o bem-estar é um grande campo de diálogo e de construção que podemos prever no encontro da medicina tradicional chinesa com a medicina ocidental. Em Portugal estamos avançadíssimos em algumas áreas da medicina. Um dos aspectos que vamos lançar, com o apoio da associação, é um curso de formação em várias áreas da medicina tradicional chinesa. Temos, obviamente, como objectivo o mercado português, mas também os mercados de língua portuguesa, como Moçambique, onde estamos já com uma prospecção avançada de como podemos colaborar com eles.

HM

O facto da Organização Mundial de Saúde ainda não ter reconhecido a medicina tradicional chinesa e de ter existido algum debate sobre isso não faz com que esta cooperação caia um pouco por terra?
As próprias entidades chinesas compreendem que existem obstáculos para a medicina tradicional chinesa. Portanto, também fazem um esforço de compreensão, de como é que essa medicina e a ocidental podem cooperar, porque há valências e avanços significativos em ambas que são complementares. Em termos de Europa, Portugal está na vanguarda desse reconhecimento, faseadamente, para algumas áreas. É isso que estamos a trabalhar em conjunto com a China, de forma a que a China se aproxime também dos nossos conceitos e perceba como é que algumas coisas devem ser feitas para irem de encontro aos padrões europeus. Estamos a preparar um curso com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, com o Instituto de Medicina Tradicional e com ISEG na parte do marketing, para conseguirmos uma aproximação a potenciais alunos que estejam interessados em saber como evoluir, como têm de se preparar para a Europa os reconhecer. Mas temos outras áreas.

Pode exemplificar com outros domínios?
No sector cultural, por exemplo, temos um livro que vamos agora lançar em Macau, penso que será no dia 30, no Clube Militar ou no dia 29 no Instituto Internacional de Macau. “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial”. É um livro que coordeno, juntamente com a arquitecta Leonor Janeiro. Tem nove capítulos, escrito por 10 pessoas. Há um capítulo em co-autoria, o da música, mas os outros têm um autor por capítulo e várias áreas. Como é que as antigas rotas da seda contribuíram para o avanço civilizacional em várias áreas e para a ligação entre os povos. Como a nova rota da seda, que a China nos propõe, vai contribuir no futuro. No fundo, este grupo de trabalho na associação tem um foco muito grande na ligação entre os povos. Fizemos este livro e uma viagem antiga à rota da seda chinesa. Ao fim de dois anos, as várias áreas de trabalho vão produzindo os seus efeitos. Estamos muito atentos a tudo o que se faça na iniciativa “uma faixa, uma rota”, não só na China como em países europeus. No dia 12 de Novembro temos uma conferência, em Lisboa na Fundação Casa de Macau, sobre a relação da União Europeia com a China nesta iniciativa, e como é que outros países da Europa estão a progredir em termos de memorandos de entendimento. Na expectativa de, em breve, Portugal assinar um memorando de entendimento com a China sobre esta iniciativa. No fundo, estruturará e marcará algo que já é evidente, que é Portugal e China a colaborar nesta iniciativa. O Presidente da República já manifestou, por mais de uma vez, que é uma iniciativa que Portugal apoia e que tem muito interesse em integrar. O Primeiro-Ministro também, assim como o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Agora, esperamos que formalmente seja assinado um protocolo que definitivamente estruture essa colaboração. Mas a nossa associação tem tido um empenho muito grande em dar a conhecer na China aquilo que Portugal tem, o que vai fazer, e por outro lado dar a conhecer em Portugal o que esta iniciativa pode trazer em termos de cooperação com a China e com os países de língua portuguesa.

Considera que ainda existe falta de clarificação relativamente aos objectivos da iniciativa “uma faixa, uma rota”, apesar dos discursos oficiais?
Acho que há muita coisa a construir. A política de abertura da China, que se iniciou em 1979, foi toda ela feita passo a passo, sentindo as pedras debaixo dos pés. Vamos avançando, sabemos para onde queremos ir, mas devagar. Ainda não sabemos como vamos, então vamos experimentando. Se corre bem continuamos, se não corre bem damos um passo atrás e vamos por outro caminho para lá chegar. O que está a acontecer nesta iniciativa é precisamente isto. A China lançou a visão e perguntou quem estava interessado em colaborar. Não é um roteiro do que vai acontecer. Há uma decisão de querer fazer algo diferente, isto é muito importante porque é um modelo de globalização diferente. Queremos proporcionar a cooperação entre os países mais desenvolvidos para ajudar os países menos desenvolvidos. Portugal tem um papel muito importante neste projecto, que é colaborar com a China e com os países de língua portuguesa. Todos temos a ganhar com esta cooperação. Como vamos fazer? Vamos construindo. Não há uma direcção que diga “as políticas são estas”. À medida que vamos avançando, vemos o que é necessário, qual a fase seguinte e como nos vamos estruturar. Nós, à maneira ocidental, estamos à espera que haja uma política logo definida e não há. Há um conjunto de visões e vamos acertar como lá chegamos. Há muitas áreas mal definidas. Por exemplo, a governação destes projectos. São projectos que podem ser tripartidos, ou mais que isso.

Em termos de financiamento, como se podem desenvolver projectos com este nível de cooperação?
Fizemos em Março, em Lisboa, uma grande conferência sobre o financiamento da “faixa e rota”, com entidade chinesas mas também com o Banco Mundial e com instituições como, por exemplo, o Banco Europeu de Investimentos. Há uma linha, sabemos que tipo de problemas vamos encontrar. Temos de entender que não são “grants”, não são ofertas. O dinheiro tem de ser justificado. O dinheiro vai ser posto à disposição dos projectos, por financiamentos vários, mas tem de ter rentabilidade. Estes projectos têm de ser auto-sustentáveis e rentáveis, temos de justificar economicamente a sua existência. Tudo isto são aspectos muito profissionais, que levam tempo a analisar, a preparar e a colocar as pessoas de acordo, porque estamos a falar de um encontro de pessoas com culturas diferentes, que têm registos de trabalhos passados diferentes, temos experiências diferentes. Temos de nos acertar para em conjunto evoluir. Por exemplo, os ocidentais são “rule oriented”, são orientados por regras. Os chineses são orientados por projectos e estratégias. Estamos a falar de um projecto dos próximos 30 anos, estamos agora a começar. Esta nova visão pode ser, efectivamente, uma visão muito motivadora de novos encontros civilizacionais e de novas áreas de desenvolvimento do mundo, nomeadamente o centro europeu, África e América Latina.

Alguns analistas defendem que a política “uma faixa, uma rota” pode representar uma tentativa de domínio económico da China perante os outros países. Concorda com essa visão?
Acho que tudo pode acontecer, porque a geopolítica e a geoeconomia estão a mudar, é visível o que se está a passar na Europa neste momento, com o Brexit, o que se está a passar nos Estados Unidos com o proteccionismo. São ideias correntes que, para nós, há uns anos eram impensáveis. Há novas potências ascendentes. A China é uma delas, mas também vamos ter a Índia. Há países a crescerem muito, alguns pela sua dimensão poderão ter uma pujança económica que lhes permite posicionarem-se na liderança da economia mundial. A pergunta é se a China está a fazer isso deliberadamente. Eu penso que não. Penso que a China está a fazer isto porque tem problemas internos para resolver. Na vertente interna de “uma faixa, uma rota” vai trazer áreas de novo desenvolvimento dentro da própria China.

Como por exemplo…
Uma delas é toda a zona do oeste que está muito mais atrasada em relação a outras províncias da China. Estou a falar do corredor de Gansu e da província de Xinjiang, essa zona ligando-se ao centro eurasiático vai reconstruir uma zona de grande poder económico, que existiu há milhares de anos. Tem muitos recursos naturais e um enorme potencial de desenvolvimento. Por outro lado, a China tem de se equilibrar, tem de passar a chamada armadilha do rendimento médio. Tem de dar um salto qualitativo muito grande, nomeadamente na área da ciência e investigação. Tem um grande investimento e um plano para a educação. Se daí vai resultar, ou não, uma liderança óbvia da China no mundo económico, no mundo científico, não sabemos. Não me parece que a prioridade da China seja dominar toda a gente. A China nunca teve essa ideia. Quando no séc. XV, Zheng He fez uma expedição marítima e chegou à costa de Moçambique, o que fizeram? Trocaram tributos, deram ofertas, estabeleceram políticas de relacionamento, aumentaram o comércio. A China é já uma potência emergente que vai ter um papel enorme no mundo. Mas os Estados Unidos também existem, a Europa também. Como é que estas forças todas vão conjugar as vantagens competitivas? O que é que se vai passar? É futurologia. Não podemos estar com medo, com medo não nos levantamos todos os dias. Portanto, o melhor é continuar, caminhar e ter projectos de colaboração. Cada país tem de ver o que é que lhe interessa e como pode colaborar com esta iniciativa, se é que lhe interessa. Mas é um campo que está aberto.

19 Out 2018

Os fins últimos e a pasta medicinal Couto

[dropcap]N[/dropcap]os últimos anos do século XX, colaborei com uma universidade de Montréal num projecto sobre o ‘imaginário do fim’. Naquele ambiente de fim de século, emoldurado pelos ecos do ‘mundo pós’ e pelas predições (e perdições) do bug do milénio, aliás antecipadas com o crash da Nasdaq de Março de 2000, o tema era aliciante. Mas nunca desarmou, pois é coisa já com barbas.

Falar sobre o “fim” como uma coisa definitiva e absoluta é lembrar um antigo anúncio da pasta medicinal Couto. O homem mordia a cadeira e ela transladava sem parar. Aquilo nunca mais acabava: era pura arte cinética a puxar para o lado da gengiva pós-moderna, como quem diz: fim? Isso é vernáculo medieval. Talvez fosse e com raízes nos grandes desertos. De facto, em certas tribos da Arábia pré-islâmica havia a crença generalizada numa divindade de nome Dahr que fazia da morte a própria razão de ser do humano. Estávamos tramados. Qual elixir, qual Couto, qual quê!

Aliás, a revelação do Corão (não é por acaso que significa o “Recitado”) trouxe a estas pobres comunidades um compreensível sentido de libertação de tipo escatológico (afinal havia paraíso e tal e tal…) e combateu ferozmente esse passado. Leia-se, a título de exemplo, a surata XLV/22-23 que é dedicada aos “adoradores” do Dahr: “Eles dizem: Não há qualquer outra vida senão a vida actual”. Curiosamente, Dahr quer dizer, hoje em dia, em Árabe ‘Tempo’ e a forma substantivada da mesma raíz, ad-dahriyyah, quer dizer ‘Ateísmo’. As palavras fazem por vezes de pasta medicinal das culturas, já se vê. Nada mais esclarecedor do que a condenação perpetrada por uma língua natural à memória daquilo que, um dia, ousou ver-se ao espelho como uma espécie de fim consumado.

Pondo de lado os anúncios televisivos com meio século de idade e as mini-saias que deambulavam pelas passadeiras da Abbey Road, o facto é que o senhor fim prefere deixar de lado a sua casaca de tecido definido (e absoluto) e adora apresentar-se em palco sob a forma de um tornar-se em qualquer coisa. Adora metamorfoses, transformismos, transgenders, espelhos recurvados e o diabo. As últimas etapas das escatologias e das ideologias, relíquias em massa folhada de outros tempos, cantavam o fado da perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero do presente. Com um Gitanes a queimar-lhe a ponta dos dedos, Jean-Claude Carrière caracterizou a gravidade do fim dos tempos como “la fin de l´insupportable contradiction entre le temps divin (suprême, absolu) et le temps humain (limité, relatif)”[1].

Este esbater de persianas entre o que S. Eisenstadt designou por ordem “transcendente” e por ordem “mundana”[2], uma e outra fabricadas em série durante milénios pelas chamadas civilizações axiais, nunca foi suficiente para que a ideia de fim deixasse de ser representada como uma metamorfose. Algumas formas clássicas de compreender o tempo sempre apostaram nesta estratégia de manutenção do fim, sob a forma de algo, ao mesmo tempo, afastado, controlável e sobretudo durável. Como se a cintura de Kuiper, no extremo do sistema solar, fosse, por isso mesmo, uma coisa sexy: uma esplanada elegante (do género das de Carcavelos) muito lá ao longe, onde, com uma coca-cola light a descer pelo esófago, pudéssemos todos olhar para o cosmos sem que ninguém nos chateasse.

Esta congénita dificuldade em clarificar o fim (o fim dos fins… no fim dos tempos) é, porventura, mais um jogo do que uma tentação soft para gáudio do homem que mordia a cadeira com o objectivo de elucidar a eficácia da pasta medicinal Couto. Pessoas respeitáveis (apesar de tudo, caray!) como Heidegger e Borges responderam um ao outro, sentados na esplanada do mano Kuiper e exploraram o assunto laconicamente: o primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”[3]; o segundo, ao afirmar, de modo complementar, que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres” (…) “es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos”[4].

Conclusão? Bom, a coisa parece estar de feição: a eternidade – material inflamável tipo BD que o nosso cérebro, coitado, processa – não passa de uma espécie de negativo fotográfico à Talbot repleto de iodeto de prata, razão pela qual o senhor fim não pode nunca ser entendido como uma ruptura, uma falha ou um deslizar a pique na direcção da falésia, mas antes como um espaço onde se aprende a conter o tempo (não há nada que não se aprenda). Há, pois, meus amigos, que saber conter o mundo antes de nos virmos, antes de nos deslumbrarmos, antes de voltarmos a tomar o elixir azulinho.

Até porque o ‘depois do fim’ (essa fuga para a frente no pardieiro do ‘pós-qualquer coisa’) faz ainda parte daquela esplanada de onde se observa a continuação sine die do relato que está – e estará – sempre em vez do fim. A famosa “semiose ilimitada” proposta por C. Peirce – do que me fui eu lembrar agora! – corresponde a uma teoria em que os fins se convertem sempre noutros fins, prolongando-se indefinidamente na sua própria viagem, que é a viagem do sentido. Não tivesse sido o obscuro exemplo do Dahr pré-islâmico e a própria ideia de fim teria aparecido nesta doce crónica ao sabor de um autêntico “mise en abyme” cultivado pelos humanos, desde que o ‘cagar de pé’ fez a sua solene estreia no planeta Terra. Em última análise, teríamos sempre a pasta medicinal Couto para usar depois (de depois) dos finais do grande e derradeiro flirt.

[1] Les questions du sphinx em Entretiens sur la fin des temps, Fayard, Paris, 1998, p. 63.
[2] Fundamentalismo e modermidade, Celta, Oeiras, 1997, p. 183.
[3] Ser e tempo, Vozes, Petrópolis, 1997, Vol. II, p.125.
[4] Historia de la eternidad em Prosa completa, Bruguera, Buenos Aires, 1979, Vol.1, p. 223.

18 Out 2018