História | Jornalista João Botas descobre diário inédito com cerca de 200 anos

O jornalista João Botas, autor de diversas obras sobre a história de Macau, diz ter descoberto um diário de uma norte-americana, esposa de um comerciante que vinha a Macau e à China com frequência. O acesso a uma versão dactilografada, com muitos anos, permite descobrir relatos de uma época em que o comércio fervilhava no sul da China

 

Chamava-se Sarah, acompanhou o marido, comerciante, nas inúmeras viagens que realizou para fazer negócios em Cantão e deixou um diário que hoje tem cerca de 200 anos. O jornalista João Botas, autor de diversos livros sobre a história de Macau, diz ter descoberto uma versão muito antiga, dactilografada, do documento, graças às constantes pesquisas que realiza para o blogue Macau Antigo. Trata-se, no relato que fez ao HM, de “um diário inédito”, sendo que, até à data, “se desconhece o paradeiro do documento original”.

“Depois de múltiplas verificações posso garantir que se trata de um relato verídico”, conta João Botas, que chegou ao contacto com descendentes de Sarah e do marido que não querem dar o nome. O jornalista espera vir a poder publicar este diário que se revela muito semelhante a tantos outros escritos deixados por estrangeiros, incluindo esposas de comerciantes franceses, ingleses ou americanos que passaram por Macau, graças ao comércio que se praticava na altura com a China.

João Botas diz mesmo que o diário de Sarah se revela semelhante aos escritos já divulgados e estudados de Rebecca Kinsman e Harriet Low, datados das primeiras décadas do século XIX, “mas com informação mais rica a vários níveis”.

Segundo o autor do blogue, este diário “foi escrito com o objectivo de ocupar os tempos livres”, pois o marido de Sarah “passava muito tempo em Cantão”. “Esta não era a primeira vez que viajava até Macau, mas foi a primeira vez que decidiu escrever um diário. Ao todo a viagem, ida e volta, durou 317 dias! Quase um ano. Só em navegação passaram cerca de 200 dias, ida e volta.”

“A estadia em Macau é de cerca de um mês, período em que, além dos passeios diários, eram frequentes as visitas às residências de outros estrangeiros, para beber chá, conversar, ouvir alguém tocar piano ou para participar em jantares mais formais.”

Sarah gostava ainda de ler, referindo, nas páginas do diário, “inúmeros livros, obras históricas de referência sobre a Ásia, o Japão ou a Índia”.

Negócios florescentes

A época a que se remete o diário passa pelos anos em que a Companhia Britânica das Índias Orientais deixou de ter o exclusivo do comércio com a China e outras nações começaram a ter negócios no país, usando Macau como ponto de ligação. Era também a época dos cules, trabalhadores pouco qualificados da China que eram transportados quase como escravos para trabalhar na agricultura em diversos pontos do globo.

“A linguagem utilizada [no diário] é simples, mas o elevado número de pessoas mencionado obriga a muita pesquisa de contextualização, nomeadamente, sobre quem eram e o que faziam naquela época. É o que estou a fazer nesta altura, e está quase pronto”, relata João Botas, que diz estar em conversações com entidades públicas de Macau para a edição do livro.

Os escritos de Sarah permitem-nos “viajar até à Macau de meados do século XIX, com muitas descrições de espaços, ruas e edifícios, permitindo fazer o retrato da comunidade de estrangeiros ocidentais que viviam no território, que eram poucas dezenas” numa população que, à data, não tinha mais do que 35 mil pessoas, a maioria chineses, e com apenas 4.500 portugueses e macaenses.

“Como os estrangeiros ocidentais não podiam comprar propriedades no território, arrendavam casas aos portugueses e macaenses mais abastados. Esta era uma importante fonte de rendimentos numa altura em que já se fazia sentir algum declínio na actividade comercial fruto do surgimento de Hong Kong em 1842”, explica o jornalista.

Passear na rua

Sarah escreveu sobre os passeios que realizou em Macau, um deles bem perto da fortaleza do Bom Parto, no sopé da Colina da Penha. “Desde que aqui cheguei tenho-me divertido muito. Todos os dias, às cinco e meia, saímos para passear. (…). À tarde fomos todos para a baía do Bispo*, um lugar lindo, com praia para caminhar e muitas conchas. (…) No domingo fui com eles à igreja. Confundimos a hora e só chegamos lá mais de meia hora depois do início do culto. O regresso da igreja para casa foi encantador já passava um pouco das seis da tarde. Esta cidade de Macau é um local encantador, repleto de cenários pitorescos. (…)”, lê-se, segundo tradução feita pelo próprio João Botas de um excerto do diário.
Sarah descreve ainda um outro passeio, feito numa segunda-feira, quando jantaram e tomaram chá “na casa da Sra. Nye”.

“(…) Levei a minha cadeira até à Praia porque as ruas são estreitas demais para uma carruagem. Fizemos um passeio bastante longo e agradável, conhecemos vários grupos que andavam a cavalo e duas ou três outras carruagens. (…)”, escreveu ainda a americana.

Não falta ainda um relato da Casa Garden, onde hoje funciona a sede da Fundação Oriente (FO), e a Gruta de Camões. “À tarde visitamos a Casa Garden. É de facto um local encantador – abundância de belas árvores que sombreiam os belos passeios sinuosos e é constante o encontro com imensas rochas, por vezes isoladas, outras vezes empilhadas umas sobre as outras. A gruta de Camões, poeta português, é um local de grande atracção. É um sítio curioso, composto por três rochas imensas – duas em pé, a vários metros de distância uma da outra, a terceira repousando imediatamente sobre a abertura, formando uma divisão fresca e protegida, aberta em cada extremidade. (…)” À data, a Casa Garden pertencia ao comendador Lourenço Marques que a arrendava aos comerciantes estrangeiros.

A americana descreve ainda no diário o ambiente de Cantão, cidade do sul da China. “Chegamos a Cantão por volta das cinco da manhã. (…) Depressa desembarcamos e fomos até à residência dos Parker. (…) Passamos três dias e três noites muito agradáveis na casa do médico. Saí para fazer compras em Cantão, mas apenas uma vez e fui com a Sra. Parker. Estas compras perderam para mim muito da novidade. Este ano foi muito desagradável por causa das multidões nas ruas que se preparavam para duas das suas festas religiosas – o ‘Festival das Lanternas’ e uma outra, de que não me lembro o nome, embora a tenha testemunhado no ano passado, quando estive em Cantão. (…)”

Segundo João Botas, a referência feita a Parker remete para Peter Parker, nascido em 1804 e falecido em 1888, médico e missionário dos EUA. Este chegou à China em 1834 onde deu a conhecer pela primeira vez as técnicas da medicina ocidental, incluindo a anestesia. Em 1838 criou um hospital ligado à oftamologia em Macau, onde viveu durante algum tempo.

Por sua vez, Harriet Colby Webster Parker era esposa de Peter Parker, tendo sido a primeira mulher ocidental a viver na China.

4 Jan 2024

A ofensiva holandesa a Macau e ao Arquipélago dos Pescadores: Realidade e “história contra factual”

I – Macau 1622

O ano de 1622 foi uma data histórica para Macau, de grande importância para o Estado da Índia. Marcou a tentativa holandesa de conquista da cidade, motivada pela sede expansionista de Jan Peterszoon Coen (1587–1629), ambicioso Governador-Geral da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais (Vereenigde Oostindische Compagnie). Os mercadores que então residiam em Macau dedicavam-se à venda de seda da China para diferentes locais, especialmente para o Japão, onde obtinham enormes quantidades de prata para os seus clientes chineses de Guangzhou. Este negócio gerava imensos lucros, parte dos quais eram reinvestidos em Macau.

Consequentemente, ao longo dos anos Macau tornou-se um porto próspero, despertando por este motivo a inveja dos holandeses.

A inveja foi alimentada por outro factor: A Companhia Neerlandesa das Índias Orientais, com sede em Batávia (actual Jakarta) não tinha conseguido penetrar no mercado chinês. Os funcionários da Dinastia Ming e os mercadores tomaram conhecimento que os holandeses eram perigosos e agressivos, por isso, Guangdong e Fujian mantinham os portões fechados e não os deixavam entrar.

A Companhia Neerlandesa reagiu capturando barcos chineses e barcos ibéricos e bloqueando sistematicamente os portos mais importantes. Contudo, estes actos de pirataria não satisfaziam a ambição de Coen. Em 1622, enviou uma frota para Macau, com ordens para conquistar o entreposto português.

Mas o seu projecto não se concretizou: Quando os holandeses desembarcaram na península, encontraram uma forte resistência e tiveram de se retirar, deixando para trás muitos mortos e algum equipamento militar. Os portugueses saíram vencedores do maior episódio da História do Estado da Índia.

Estranhamente, os britânicos apoiaram a Companhia Neerlandesa através do fornecimento de navios. Embora não se tenham envolvido na batalha, violaram o antigo Tratado Anglo-Português de 1373, como na realidade voltaram a fazer, por diversas vezes, depois de 1622. Potenciar os lucros foi sempre mais importante para os britânicos do que respeitar o ideal de “perpétua amizade”. Infelizmente, nunca compensaram Macau pelo sofrimento que causaram aos portugueses.

Não há notícia de no passado, os holandeses ou britânicos alguma vez terem respeitado os chineses ou os ibéricos. Hugo Grotius (1583–1645), nascido numa família calvinista, disse aos seus correligionários “reformistas” que na Holanda as pessoas tinham o direito ao comércio. Se alguém impedisse a sua actividade comercial, era legítimo usar a força.

Seguindo estes rigorosos princípios, o Governador holandês em Batávia não teve quaisquer escrúpulos quando ordenou o ataque a barcos chineses, espanhóis e portugueses, nem quando enviou tropas da Companhia Neerlandesa invadir território estrangeiro. Os britânicos, nem é preciso acrescentar, agiam de forma semelhante.

Naturalmente, o ataque de Coen a Macau implicou um ataque dos holandeses à China do Imperador Ming, porque a batalha teve lugar em solo chinês. Desta forma, os acontecimentos de 1622 marcaram a primeira grande batalha entre potências europeias na zona costeira da China. Tanto os holandeses como os britânicos, movidos por ambições materiais, causaram desnecessariamente tumulto às portas de Guangzhou o que alarmou as autoridades chinesas. Ou por outras palavras, a imagem que os “bárbaros de barba ruiva” deixaram na China a partir dessa altura, só foi de mal a pior.

II – O Arquipélago dos Pescadores 1622–1624

Mas a história não se ficou por aqui. Coen era uma personagem implacável e tinha dado instruções para pôr em acção um “plano B” caso o ataque a Macau falhasse. O plano alternativo era muito simples: As forças holandesas sobreviventes deveriam ocupar o Arquipélago dos Pescadores, ou Penghu qundao 澎湖群島, no Estreito de Taiwan.

Estas ilhas tinham uma posição estratégica. Os barcos que navegavam entre Macau e o Japão e entre Fujian e Manila tinham de passar por lá. Ou seja, a partir do Arquipélago dos Pescadores é possível controlar uma parte substancial do comércio e do tráfego feito no Estreito de Taiwan. Assim, Coen teria todo o interesse que a Companhia holandesa, que não se tinha conseguido estabelecer nas proximidades da China, tomasse as Ilhas dos Pescadores, uma base convenientemente localizada a meio caminho entre Batávia e o Japão.

Registos escritos das Dinastias Song e Yuan demonstram-nos que a China começou a administrar o Arquipélago dos Pescadores muito antes da chegada dos holandeses ao Sudeste Asiático. A arqueologia fornece ainda outras provas da presença de colonos chineses nestas ilhas. Ao que tudo indica, muitos deles viviam da pesca. Isso também explica o topónimo português “Pescadores”.

Além disso, a China tinha enviado para lá alguns militares, principalmente para controlar o contrabando e a pirataria costeira. Claro que Coen sabia muito bem que estas ilhas pertenciam ao Imperador Ming e que se as ocupasse iria enfrentar uma forte reacção. Podemos ainda acrescentar: Já em 1604, dois navios holandeses tinham aportado ao arquipélago.

Nessa altura, o comandante holandês Wijbrand van Waerwijck (cerca de 1566/70–1615), insistiu em iniciar relações comerciais, mas os chineses, bem informados sobre as atitudes agressivas destes hóspedes indesejados, obrigaram-nos a retirar-se.

É claro que, quando a frota enviada por Coen chegou ao Arquipélago dos Pescadores, ainda em 1622, a situação era um pouco diferente. Desta vez, os holandeses chegaram com sete navios de guerra totalmente equipados. Por este motivo, os chineses não conseguiram impedi-los de desembarcar. Além disso, após a tomada das Ilhas, a Companhia holandesa ordenou a construção de uma pequena fortaleza junto à entrada do porto de Magong 馬公, a principal baía do arquipélago.

Mas pior ainda, os holandeses obrigaram os ilhéus a trabalhar como escravos e muitos deles pereceram. Como se não fosse bastante, navios holandeses bloquearam uma força naval Ming perto da China continental. Desta forma, Fujian ficou incapaz de ajudar os ilhéus a combater os maus tratos dos invasores. Em suma, a invasão do Arquipélago dos Pescadores foi, até agora, o episódio mais desagradável da longa lista de confrontos sino-holandeses.

No entanto, o controlo holandês sobre o arquipélago durou pouco tempo. Em 1623/1624, Nan Juyi 南居益 (1565–1644), o Governador da Província (xunfu 巡撫) de Fujian, reuniu várias tropas e navios. Estas unidades de combate navegaram através do Estreito de Taiwan e tentaram expulsar os holandeses das ilhas. Foram travadas várias batalhas e no final os holandeses foram obrigados a partir. Este acontecimento marcou a primeira vitória do exército chinês sobre um poderoso inimigo europeu. Em comparação, o breve encontro entre os portugueses e uma força chinesa no início da década de 1520 – a chamada batalha de Xicaowan 西草灣 – foi um acontecimento pequeno e pouco significativo.

III – Taiwan: da presença holandesa à governação Qing

Embora os holandeses tivessem sofrido pesadas baixas, continuaram a ser uma ameaça constante. Em vez de se retirarem para Batávia, seguiram para Taiwan onde se estabeleceram na região da actual cidade de Tainan 臺南. Esta base foi sendo gradualmente cercada por uma fortaleza, considerada resistente para os padrões da altura, e acabou por receber o nome de Forte Zelândia. Era o principal reduto holandês das ilhas. As outras instalações eram mini-dependências com pouca importância militar. Além disso, os holandeses nunca conseguiram controlar as densas florestas e regiões montanhosas do interior de Taiwan.

A presença da Companhia Neerlandesa nas ilhas é um assunto sobejamente estudado, mas devemos ter cuidado com os livros e os artigos ingleses e holandeses, porque muitas vezes apresentam os acontecimentos de um ponto de vista que diverge da visão chinesa. Aqui pode ser suficiente dizer que os holandeses exploraram alguns dos recursos naturais de Taiwan.

Um desses produtos, principalmente adquirido pelo mercado japonês, era a pele de veado. A caça ao veado quase levou à extinção desta espécie na ilha. A relação dos holandeses com os grupos autóctones e com os colonos chineses constituía outra dificuldade. A maior parte dos colonos era proveniente de Fujian. Alguns destes migrantes cooperavam com a Companhia Neerlandesa, mas também houve períodos de dissidência de ambos os lados. Na década de 50 do séc. XVII, as tensões levaram a um grande massacre: os holandeses mataram milhares de chineses. Este foi o primeiro crime do género cometido por uma potência colonial em solo chinês.

A deplorável actuação dos holandeses foi um factor importante que motivou os chineses, liderados por Zheng Chenggong 鄭成功 (1624–1662), a atacar o Forte Zelândia. Em 1661, este homem, que controlava diversos pontos ao longo da cintura costeira da China continental, enviou uma grande frota para a zona do Forte. Após um prolongado cerco, as suas tropas desembarcaram, forçando os holandeses a entregar a fortaleza. Este acontecimento teve lugar em 1662. Assim, a presença da Companhia Neerlandesa em Taiwan chegou ao fim em menos de quarenta anos. As forças de Zheng tinham ganhado uma vitória decisiva e rapidamente transformaram Taiwan num estado marítimo quase independente com uma ampla rede comercial, que se estendia do Japão a certas zonas do Sudeste Asiático.

No início da década de 80 do séc. XVII, quando a China era governada pelo Imperador Kangxi 康熙 – tropas da Dinastia Qing conquistaram Taiwan. Daí em diante, Taiwan ficou sob a administração de Fujian (como já tinha acontecido por diversas vezes anteriormente). Foi o início de um longo período caracterizado pela estabilidade regional: a China tinha retomado o controlo sobre o Estreito de Taiwan; o poder colonial europeu estava activo no Sudeste Asiático, ao passo que o Mar da China Oriental lhes permanecia inacessível. Na verdade, Taiwan serviu como uma espécie de barreira contra a expansão a Norte do colonialismo europeu. Esta situação só começou a mudar no final do século XIX, mas isso é outra história.

IV – As possíveis consequências de uma vitória holandesa em Macau

Voltemos agora aos acontecimentos ocorridos no início da década de 20 do séc. XVII: ao ataque dos holandeses a Macau, à sua breve ocupação do Arquipélago dos Pescadores e à sua ida para Taiwan. Tudo isto aconteceu num curto período de dois a três anos, há cerca de quatro séculos. Conhecemos os factos, mas, paradoxalmente, raramente consideramos a sua importância num contexto mais alargado, possivelmente porque o número de homens e navios envolvidos nestes confrontos eram irrisórios quando comparados com os grandes exércitos usados em guerras de larga escala.

Seja como for, às vezes, os pequenos eventos podem mudar o curso da história. Uma forma de perceber a sua importância, é colocar uma questão simples: O que teria acontecido, se estes acontecimentos tivessem tido um desenvolvimento diferente, conduzindo a resultados diametralmente opostos? No contexto do presente artigo: Quais teriam sido as possíveis consequências de um controlo holandês permanente sobre Macau e sobre o Arquipélago dos Pescadores?

Os historiadores raramente colocam questões tão hipotéticas. Consideram que se trata, segundo a sua designação, de “história contra factual” (do latim: contra facta), inútil e unilateral. No entanto, em certa medida, a escrita da História é sempre unilateral. O modelo conceptual que aplicamos ao passado depende da formatação do nosso pensamento. O nosso entendimento da realidade forma-se a partir dos conceitos a que estamos acostumados e envolvem as determinantes culturais que marcaram o nosso crescimento. Por isso, talvez colocarmos as questões “e se”, “o que podia ter sido, se outra coisa tivesse acontecido” – não seja de todo despiciente.

Olhemos primeiro para Macau. Suponhamos que a Companhia Neerlandesa tinha expulsado os portugueses do sul da península. Teria a China reagido e enviado tropas para os escorraçar? As relações entre o Império Ming e Macau beneficiavam de confiança mútua e de proventos materiais. Os Jesuítas na China também eram uma grande ajuda.

Teriam estes factores contribuído para um contra-ataque chinês? Provavelmente a resposta será “sim”. A China tinha tido más experiências com a Companhia Neerlandesa, cujos navios circulavam no Estreito de Taiwan, assaltando inúmeros barcos chineses. Além disso, os Jesuítas e os portugueses em Macau certamente teriam avisado os seus amigos chineses, explicando-lhes a ideia que os Calvinistas tinham de “comércio livre”. Mas teria a China vencido efectivamente a Companhia Neerlandesa? Talvez não de imediato. Um ou dois anos mais tarde a vitória de Zheng Chenggong no Forte Zelândia sugere que uma campanha chinesa em larga escala teria sido bem-sucedida.

Como é que os espanhóis teriam lidado com um “Macau holandês”? Teriam unido forças com os chineses contra a Companhia Neerlandesa? Nessa época, portugueses e espanhóis estavam unidos sob a mesma Coroa, e embora os entrepostos e possessões coloniais continuassem na sua maioria separados, Manila e Macau estavam obrigados a ajudarem-se entre si em caso de ataques externos. Teria isso importância? Ou devemos pensar num cenário alternativo? Ter-se-ia Espanha entendido com os holandeses e aproveitado a oportunidade para aumentar a sua influência sobre as missões Católicas da China continental?

Do ponto de vista puramente comercial, até 1622 encontramos dois importantes corredores comerciais sino-ibéricos, muito bem definidos pelo câmbio “seda por prata”: (1) a ligação Goa-Melaka-Macau/Guangzhou-Japão e (2) a ligação México-Manila-Fujian. Teriam estes circuitos mudado para uma nova constelação: (1) Batávia-Macau/Guangzhou-Japão e (2) México-Manila-Fujian?

Em termos logísticos, os Jesuítas em Pequim, ou em qualquer outra parte da China, dependiam de Macau. É evidente que uma conquista holandesa de Macau teria interrompido este eixo. Por isso, se supusermos que tivesse havido um acordo entre Manila e a Companhia Neerlandesa, é possível que daí tivesse surgido uma nova linha de comunicação: Pequim-Fujian-Manila, um eixo com consequências a longo prazo para a estrutura do Padroado e para os missionários em serviço na China. Podemos ainda argumentar que se as missões sediadas na China não se poderiam ter deslocado numa direcção diferente: nesse caso, os Jesuítas e os seus ideais poderiam não ter sido tão significativos.

Claro que podemos modificar este cenário. Suponhamos que os holandeses tinham alcançado os seus objetivos – mais ainda, suponhamos, que depois da conquista de Macau se tinham entendido com as autoridades de Guangzhou e, depois, ou simultaneamente, tinham impedido o intercâmbio comercial e cultural entre Manila e a China do Sul, principalmente ao tentarem expandir a sua influência sobre os portos de Fujian. Num tal cenário, os missionários católicos na China teriam ficado isolados da Europa. Teria sido difícil ou impossível desenvolverem ligações alternativas via Yunnan e a região do actual Myanmar para Goa, ou através da Ásia Central e da Europa de Leste directamente para Roma. Finalmente, isoladas, as missões católicas teriam provavelmente desaparecido após alguns anos.

Todos sabemos que os Jesuítas, produziram muitos textos eruditos em chinês, que circularam amplamente, mesmo até à Coreia. Tudo isso teria acontecido? Teria a Igreja Ortodoxa, na sequência da lenta expansão da Rússia para o Pacífico, assumido a liderança do empreendimento europeu de cristianização da China? Ou teriam os intelectuais chineses aceitado a cooperação com os ideólogos Protestantes e Calvinistas? A última possibilidade parece ser muito improvável, se considerarmos o facto de que grande parte da doutrina protestante não estar de acordo com a ideologia Confucionista. Portanto, a ideia de que a elite chinesa, ou mesmo a corte de Pequim, teria aprendido com os holandeses, ou os teria admirado, parece muito rebuscada. É verdade que os holandeses levaram para o Japão conhecimentos científicos, mas os intelectuais japoneses eram diferentes dos seus pares chineses.

Outra questão que se apresenta clara leva-nos de volta ao campo político. A hipotética conquista de Macau pelos holandeses teria tornado desnecessária a ocupação do Arquipélago dos Pescadores. Da mesma forma, teria sido muito pouco provável que a Companhia Neerlandesa se tivesse instalado em Taiwan, o que por sua vez, poderia ter tido algumas implicações para os espanhóis. Manila sentiu-se obrigada a estabelecer pequenas dependências no norte de Taiwan, porque acreditava que serviriam para equilibrar a presença holandesa noutras partes da ilha. Se a história tivesse sido outra, provavelmente nada disso teria sido necessário. Finalmente, neste cenário alterado, a emigração chinesa para Taiwan teria seguido outro rumo, e alguns dos episódios associados ao Império não teriam tido lugar. Em suma: Foi principalmente através das potências europeias que Taiwan foi agredida devido a um processo de globalização precoce. Na eventualidade da vitória holandesa em Macau, provavelmente Taiwan não teria passado por este período de instabilidade.

V – As possíveis consequências de uma vitória holandesa nos Pescadores

A China pressionou os holandeses para saírem do Arquipélago dos Pescadores. Suponhamos que a Companhia Neerlandesa, embora enfraquecida pela batalha de Macau, teria conseguido manter a sua posição nestas ilhas. Como já foi dito, nesse caso, a ida para Taiwan e a construção do Forte Zelândia não teria sido necessário. Mesmo assim, parece improvável que a China tivesse aceitado uma presença holandesa permanente perto do porto de Magong.

Além disso, com toda a probabilidade, a Espanha teria reagido de forma semelhante. O motivo é simples: o Arquipélago dos Pescadores situa-se na rota entre Manila e Zhangzhou 漳州 ou Xiamen 廈門, no Sul de Fujian (ao passo que Taiwan está a alguma distância deste corredor). Portanto, podemos imaginar uma série de ataques conjuntos à Companhia Neerlandesa nos Pescadores, comandados pelas forças de Fujian e pelas forças espanholas. Contudo, teria Portugal ajudado Espanha? Ou teria Macau preferido ficar de fora deste conflito e, em vez disso, concentrar-se na manutenção do seu comércio com o Japão?

Uma guerra prolongada entre a Companhia Neerlandesa e a aliança Sino-Espanhola teria enfraquecido o papel dos holandeses no Japão? No início da década de 20 do séc. XVII, mercadores chineses, espanhóis e portugueses estavam presentes em Nagasaki; poderemos afirmar que um cerco prolongado dos Pescadores teria obrigado os holandeses a enviar mais tropas para as ilhas levando ao inevitável enfraquecimento da sua presença no Norte do Mar Oriental da China? Claro que se trata de pura especulação e não há respostas para esta pergunta.

Apesar de tudo, um outro aspecto parece ser certo. Uma presença permanente dos holandeses nos Pescadores não teria perturbado a logística dos Jesuítas na China, a sua “descida” para Macau e, a partir daí, para Goa e para Roma.

No pior dos casos, teria perturbado a actividade dos missionários enviados de Manila para Fujian. Mas talvez possamos levar as coisas um pouco mais longe. Havia alguma rivalidade entre os grupos Católicos presentes no Extremo Oriente. Os exaltados espanhóis estavam descontentes com o Tratado de Saragoça (1529). Alguns representantes do clero e a “comunidade” mundial tinham apoiado o sonho da expansão da influência espanhola a muitos pontos da Ásia insular. Teriam estes sonhos sido postos de lado, de uma vez por todas? Ou teriam ressurgido e alimentado uma forte reacção espanhola contra a presença holandesa às portas de Fujian? Além disso, com os holandeses a tentar cimentar as suas possessões nos Pescadores, teria Espanha seguido a mesma política em relação a Taiwan, que efectivamente adoptou após a construção do Forte Zelândia? Ou seja – teria Manila estabelecido algumas bases em Taiwan? Da mesma forma, teria uma ocupação holandesa dos Pescadores conduzido a um padrão diferente da migração chinesa de Fujian para Taiwan? E a uma diferente distribuição regional destes grupos na ilha?

Mais uma vez, é impossível encontrar respostas apropriadas a todas estas questões, mas pelo menos parece útil colocá-las, porque sugerem que muitos acontecimentos potenciais podem ser ligados à cadeia de eventos que ocorreram no início do século XVII.

VI – Rumo a uma perspetiva mais alargada

A fim de rematar o panorama acima descrito, podemos adicionar algumas notas para uma perspectiva geo-política mais ampla. A perda de Macau para os holandeses em 1622 teria sido um golpe terrível para o Estado da Índia. Nessa altura, Macau era um dos portos mais prósperos do Estado da Índia. Provavelmente, depois de uma ocupação holandesa, alguns residentes portugueses teriam emigrado para Manila, exortando a Espanha a organizar uma campanha em larga escala contra a Companhia Neerlandesa. No entanto, é igualmente possível que Goa tivesse abandonado as suas actividades no Extremo Oriente.

O comércio continuo entre Melaka e o Japão teria sido arriscado e pouco lucrativo. Além disso, uma queda de Macau em mãos holandesas teria tido implicações negativas para a presença portuguesa na região de Timor. O comércio florescente de sândalo de Timor, via Macassar (no sul de Sulawesi), para Macau, ou de Timor directamente para Macau, e daí para Guangzhou – em meados do séc. XVII – especialmente após o confinamento do Japão em 1639/40 – não teria acontecido, ou teria tido um formato diferente.

Salientemos ainda outro aspecto: Ainda no séc. XVI, foi proposto que Portugal se deveria focar no Brasil em vez de se tentar expandir através da vasta rede asiática. Existia uma constante falta de fundos, de navios e de mão-de-obra, o que tornava difícil a manutenção dessa rede. Assim sendo, uma possível queda de Macau para os holandeses poderia ter revitalizado esses debates e conduzido a uma “divisão do trabalho” geográfica na Ásia insular, com Portugal a limitar o seu comércio às zonas ocidentais do Oceano Índico e do Sri Lanka, e os holandeses a concentrarem as suas actividades no universo malaio, nas zonas costeiras da China e no Japão, e assim, tirando enormes lucros do câmbio “da seda por prata”.

Finalmente, dependendo da situação no Estreito de Taiwan e do comportamento dos holandeses, a Espanha provavelmente teria decidido enviar mais homens e equipamentos do México para Luzon e para outros locais próximos, com o propósito de estabilizar as suas posições no Sudeste Asiático. É óbvio, que tais actividades teriam implicado uma intensificação do comércio e do tráfego através do Oceano Pacífico. Aqui podemos pensar nos mercadores de Fujian e do Japão, nos funcionários, e noutras pessoas que viajavam a bordo dos navios espanhóis para o Novo Mundo. De uma forma mais geral, provavelmente a “globalização” teria progredido mais rapidamente se tivesse havido uma participação indirecta (ou directa) mais forte de certas regiões asiáticas nesse processo.

As sugestões acima apresentadas dizem principalmente respeito ao século XVII. As consequências a longo prazo de uma presença holandesa em Macau ou no Arquipélago dos Pescadores, para lá do séc. XVII, são uma questão de ordem diferente. Como foi mencionado, provavelmente teria havido vários confrontos militares entre a Companhia Neerlandesa e a China. O século XIX proporciona um cenário comparável: Nessa altura, os britânicos tentaram forçar as portas da China.

A primeira fase foi marcada por uma diplomacia arrogante, depois Londres usou a força bruta para alcançar os seus objectivos. O mais interessante é que, durante estes anos, a Grã-Bretanha também tentou engolir Macau, mas o Império Qing ficou firmemente ao lado dos portugueses. Na maior parte do tempo, as relações Sino-Lusitanas eram cordiais e o passado ensinou à China que era impossível estar de boas relações com os grupos “reformistas” do Nordoeste Europeu, portanto, a China apoiou Macau. Ou seja, a relação indefinida entre a China e Portugal proporcionou mais estabilidade do que o Tratado Anglo-Português de 1373.

Regressemos agora à Companhia Neerlandesa. Como já foi dito, é extremamente improvável que se tivesse desenvolvido uma relação cordial entre Pequim e Batávia, nem no séc. XVII nem posteriormente. Na melhor das hipóteses, podemos simplesmente imaginar a existência de um grande complexo urbano nos Pescadores – do género de Hong Kong – com mão de obra chinesa barata, ferozmente explorada pela elite colonial. Um local principalmente ou exclusivamente interessado no lucro, sem uma estrutura intelectual de apoio no continente comparável à dos primeiros Jesuítas.

Admito que esta visão é unilateral. A “História contra factual” funciona assim. Não pode considerar todas as possibilidades. Por exemplo, podemos argumentar, os primeiros britânicos não receberam atenção suficiente neste artigo. No entanto, o que foi dito anteriormente mostra que podemos atribuir bastante peso aos acontecimentos do início do séc. XVII, há quatrocentos anos. De uma forma mais geral, as guerras geralmente mudam os mapas e a rede de relações internacionais. Uma longa ou permanente ocupação holandesa de Macau e/ou do Arquipélago dos Pescadores teria alterado o curso da História de forma significativa, possivelmente com resultados duradouros.

Somos ainda tentados a prolongar esse pensamento até aos nossos dias e a discutir o caso de Taiwan, agora exposto a um novo poder, que se expande gradualmente através do Pacífico, impulsionado pela ganância e pela crença na sua própria superioridade, não muito diferente dos holandeses e dos britânicos dos primeiros tempos – mas claro que isso é um assunto diferente.

7 Fev 2023

Tereza Sena, historiadora: “Estamos aqui de pleno direito”

Passaram mais de 30 anos desde que chegou a Macau. Agora está na hora de partir. Aos portugueses que ficam, Tereza Sena lembra que “estamos aqui de pleno direito”, enquanto intervenientes seculares das relações da China com o resto do mundo. Mas sublinha: “com respeito ao que está em jogo e à soberania”

 

Quando chegou pela primeira vez a Macau?

Vim a primeira vez em 1986. O meu marido tinha vindo em Outubro e eu vim com a miúda passar o Natal. Estive cá até Fevereiro — estava a acabar a minha tese nessa altura. Vim definitivamente no ano seguinte, em finais de 1987.

Era uma Macau muito diferente do que é hoje?

Completamente diferente. Não só em termos de estrutura da cidade, obviamente que com uma vivência completamente diferente, mas inseridos num meio profissional e um âmbito cultural. Tínhamos uma grande actividade e um grande sentido de construção e de divulgar Macau. A noção de um tempo perdido, de muita coisa que não tinha sido feita. A Administração estava empenhada nisso e havia meios humanos e financeiros.

Muito mais do que em Portugal?

Sim. Era bom trabalhar em Macau nessa altura. Tinhas ideias e podíamos fazê-las, as equipas eram relativamente novas. Tive a sorte de entrar num sítio que não tinha apenas portugueses. Era o Instituto Cultural, em que havia equipas mistas, com chineses. Todos tinham um sentido de conhecimento e de fixação da memória de Macau e da sua internacionalização.

Trabalho esse que estava ainda muito por fazer.

Sim. O Arquivo Histórico tinha acabado de abrir nessa altura, estava em organização, ainda não havia a informatização das bibliotecas. Houve todo um processo de digitalização de documentos e de bibliografia.

Em termos sociais como via na altura a comunidade portuguesa e as suas relações com a comunidade chinesa?

Tirando esse microcosmo onde eu trabalhava, que era um bocadinho diferente de outros [locais], pelas temáticas e áreas em que intervínhamos, havia muitas Macau, havia os gabinetes, várias camadas, muitos universos. Sempre tivemos uma postura, eu e o meu marido, de não nos envolvermos muito nesse tipo de ambiente. Nunca quisemos viver num gueto e tentámos compreender o sítio onde estávamos e tentar intervir. Nunca nos sentimos descriminados.

Isso antes da transferência de soberania.

Sim. Tivemos sempre um bom relacionamento com a comunidade macaense e com a comunidade chinesa que é mais difícil de privar ou de entrar em grande intimidade. Isso nunca aconteceu muito, tirando um ou outro caso. Mas tenho amigos chineses que frequentavam a minha casa.

A Graciete Batalha, num artigo que publicou na Revista de Cultura, fala de um sentimento que haveria em Macau nessa altura, e que se reflectia na poesia e na literatura, a que chamou “a angústia do fim”. Sentiu isso?

Quando vim essa primeira vez passar o Natal, colaborava também com os jornais, incluindo o Diário de Notícias. Fiz uma grande entrevista ao [Henrique] Senna Fernandes. Foi publicada no DN e agora foi republicada num volume sobre os macaenses feito pelo professor Roberto Carneiro. E o título da entrevista “Macau, a saudade antecipada”, e fez-me lembrar isso. Havia sim [esse sentimento]. Cheguei na altura da Declaração Conjunta e havia esse sentimento, a questão da perda, o que iria ser o futuro. O Senna Fernandes dizia que não podia pensar, de maneira nenhuma, não viver aqui. Disse-me que iria ter muitas saudades, mas sabemos que ele se adaptou. Era o sentimento dominante na altura, porque era uma grande incógnita. E também essa preocupação com a fixação da memória que nunca tinha sido feita, ou contribuir para uma história mais actualizada, tem tudo a ver com isso. Uma tentativa de deixar uma memória.

Mas houve uma diferença em 1991/1992, com a chegada de Rocha Vieira e da sua equipa.

Sim. As coisas aí mudaram um pouco. Houve altos e baixos. Mas um pouco esse espírito do final dos anos 80 perdeu-se um pouco, porque a Administração burocratizou-se demasiado. Aquela facilidade e sentido de construção dos projectos, o saltar todas as barreiras, houve uma série de entraves colocados. Lembro-me que, na altura, no IC, estava a gerir a parte da investigação, quando se estabeleceram critérios e pareceres científicos, começaram a colocar-se, na explicação destes trabalhos, a teoria da consulta pública, o que não fazia sentido. Se estávamos no meio académico e é apresentado um projecto sobre Macau que tem consistência e que é importante ser concretizado, não se pode abrir uma consulta pública para ver a quem se pode adjudicar o projecto.

Alguma dose de desconfiança?

Houve uma certa desconfiança, mas mais para a frente as coisas acalmaram.

Até que chegamos à transferência de soberania. A Tereza ficou cá, como sentiu esse processo e os tempos posteriores?

Em termos profissionais estive bem, e houve continuidade nos primeiros anos, até 2001. Houve mudanças no IC e o projecto e a noção que havia das coisas alterou-se um pouco. Achei que aquela contribuição que poderia dar não seria a mesma, os critérios de cientificidade também, e fui para Portugal durante dois anos, até 2003. O Instituto Ricci convidou-me depois e vim. Mas isso é uma conjuntura profissional.

Foi o que sentimos até 2003, uma reacção quase natural.

Eu diria mais pelo perfil das pessoas que estavam à frente destas áreas, teriam outras prioridades que não se coadunavam com aquelas que eu achava que seria as importantes. Quando achei que o projecto poderia voltar a ser interessante, voltei. Mas em termos pessoais não tenho nada a dizer, as relações que tinha continuaram na mesma. Começaram todos a tentar falar português, o que antes não acontecia, porque como era a língua do poder tinham medo. Quando esta terra já era a deles queriam mostrar que nós éramos bem recebidos, então esforçavam-se imenso por falar português, mesmo nas lojas. Depois da cerimónia da transferência de soberania, eu vinha emocionada e houve um senhor chinês que reparou nisso e agarrou-se a mim, abraçou-se a mim e disse: “Amiga, não vá embora, nós precisamos de si”. No ano 2000 os meus colegas chineses tomavam conta de mim, diziam o que eu precisava de fazer.

Mas em termos políticos houve uma mudança com o Fórum Macau.

Lá está, não vivi isso. Houve uma travessia no deserto e não se sabia qual era o sentido de Macau nem dos portugueses que cá estavam.

Quando voltou continuou na mesma linha de investigação?

Da parte do Instituto era gestora cultural, embora fosse fazendo sempre alguma investigação. Tinha muito trabalho. O meu trabalho não era exactamente desenvolver a investigação, mas pontualmente fui fazendo isso. Só quando fui para o Instituto Ricci é que passei a investigadora a tempo inteiro, mas não só. Havia as sessões culturais, os congressos, já numa perspectiva de relacionamento com a China e de história contemporânea. Aí tive de entrar mais pelo campo dos jesuítas. No IC houve outra coisa muito importante que foi a internacionalização. Havia muito interesse em Macau a nível internacional e também por parte da academia.

Isto antes de 1999.

Sim. Todos os dias tinha correspondência e recebia um investigador estrangeiro.

Como vê a história de Macau do ponto de vista do seu desenvolvimento e da quantidade de trabalhos produzidos?

Houve uma linha de continuidade em alguns casos, com o mesmo entusiasmo, com menos financiamento, mas foram-se fazendo algumas coisas.

Podemos considerar que, de alguma maneira, existem duas histórias de Macau?

Há muitas.

Temos aquela que é feita a partir dos documentos chineses e a outra, a partir dos documentos portugueses. Até que ponto é que estas histórias diferem?

No final dos anos 90 uma das coisas que se conseguiu fazer… até aí os encontros que se faziam havia as histórias nacionais que marcavam as abordagens. Às vezes era difícil entendermo-nos porque os pressupostos de onde partiam eram diferentes. E mesmo a própria adjectivação e catalogação da história assim existia. Depois de muitas conversas conseguimos entrar num acordo em termos conceptuais, num célebre encontro sobre a história de Macau que aconteceu na Fundação Oriente. Vieram investigadores chineses e ocidentais e foi decidido que se ia por de lado esse tipo de classificação e começar a trabalhar aspectos da história de Macau. Toda aquela geração, a linha de Camões Tam… a Revista de Cultura publicou muita coisa sobre isso e passamos a olhar para a história de Macau como várias histórias. E penso que nunca haverá uma história de Macau, porque é impossível. Se formos a ver, do ponto de vista americano, ou do comércio internacional das comunidades que por aqui passaram, eles têm uma outra história de Macau. Nós temos uma, e os chineses têm outra. Quando chegamos ao consenso de que tinha sido um território de administração partilhada, que teremos sempre de ir sempre por essa perspectiva.

Foi essa a conclusão a que chegaram, que foi sempre um território de administração partilhada?

Sim. Havia visões de um lado e do outro, e nenhuma se poderia sobrepor à outra. Pensamos que cada um iria trabalhar os seus documentos, discutir aspectos.

Olhando só para os documentos, é talvez difícil… há muita coisa que fica de fora, porque muita da história de Macau não foi feita em documentos. Será assim?

Exactamente. Nomeadamente essa partilha, que não foi feita em documentos. Por isso é que comecei depois a estudar a história da tradução, embora não haja muitas fontes nem documentos. Consegue-se detectar, nas entrelinhas e nos conflitos, ou nas cartas do Senado, ou nas chapas sínicas, o papel do mediador. Percebe-se que houve tensões que foram sendo resolvidas que não vêem nos documentos.

Queria falar agora de dois momentos de tensão na história de Macau. Ferreira do Amaral e a expulsão das alfândegas chinesas e mais recentemente o 1,2,3. Parece que, tendo havido a inclinação do bambu para um lado, depois o bambu volta ao mesmo sítio.

Há ainda um momento de tensão anterior, grande. Porque a história de Macau é isso. Quando falo da história de Macau falo da cidade portuária, que não é uma cidade portuguesa. Foi, em 1887, reconhecida a soberania portuguesa com o tratado, mas com limitações. Mas vamos mais para trás.

Isso é o que está escrito no tratado, mas na prática…

Mas isso já existia desde finais do século XVI, quando em 1582 ou 1583 o procurador do Senado passa a ter o título de mandarim em segundo grau, para dialogar com as autoridades chinesas, está implicitamente reconhecida a dupla soberania em Macau. Ele é o elemento de ligação entre o Senado, o núcleo da cidade cristã, dos portugueses e macaenses, escravos, chineses aculturados, e os outros que estavam no outro lado. Quando havia algum conflito, ou abastecimento de mercadorias, havia sempre diálogo. Daí a importância das chapas sínicas para a compreensão de Macau. A partir de certo momento debate-se na China o que se há-de fazer com aqueles bárbaros, que eram úteis por causa do comércio, mas não podiam extravasar muito do sítio onde estavam. Então construíram as Portas do Cerco. Quando as coisas corriam mal fechavam a porta, não vinham alimentos e então começava-se a negociar. Isto foi assim ao longo dos séculos.

Depois vem Ferreira do Amaral.

Ele vem dar execução a um projecto que era anterior, de 1783, as providências do Martim de Melo e Castro. É o primeiro plano que existe para um controlo da coroa portuguesa sobre Macau. Era o tal documento de tensão, o chamado Código de Qianlong. Esse é que é o grande momento, de ruptura, deste equilíbrio.

Já tinha havido o Código de Quangli, mas a coisa resolveu-se. Eram as regras de não poder construir nas muralhas ou edificar mais casas, ou de que os japoneses não podiam estar em Macau. Isto para controlar. O Código de Qianlong diz o mesmo mas põe na mesa uma coisa fundamental: a proibição do catolicismo. É a única diferença, gigantesca para a coroa portuguesa, que não podia admitir uma coisa daquelas. Nesse momento de grande tensão, a coroa portuguesa faz um documento para a regulamentação de Macau. Mas aqui já estamos em contexto de comércio internacional, já outras potências estão a querer dominar. Daí todas as críticas estrangeiras em relação a Macau, de que nós não dominávamos nada. O tal projecto de Melo e Castro, com a criação da alfândega, começa a haver uma tentativa de imposição de uma lei portuguesa em Macau. Gera-se um período de conflito e o Ferreira do Amaral foi o executor desse projecto.

Então não foi ele que o concebeu.

Não. Foi o que se viu, mas perante aquela reacção, houve logo uma reconciliação. Começou a centrar-se novamente na negociação. Acabada a Guerra do Ópio e a cedência de Hong Kong e os tratados, aí Portugal começou a querer desesperadamente um tratado. Estávamos aqui há 200 anos e os ingleses já tinham [um acordo]! São 48 anos para se tentar conseguir um tratado, que é inteligentíssimo, por parte da China. Eles reconhecem realmente a soberania portuguesa, mas com duas reservas: uma é não permitir a alienação do território e não haver a delimitação das águas territoriais, como ainda hoje não há. Sem delimitação não se sabe que território se domina.

Com o 1,2,3 também se tenta atingir um equilíbrio?

Foi a mesma coisa, quando é reconhecido o papel de mediação que Macau sempre teve ao longo da história. Uma das minhas teorias, ou sínteses, é a mediação com o Japão, depois com o comércio internacional, e depois há uma fase, aquando do fecho da China, com o ouro. A China não tinha representação na ONU nem a nível do comércio internacional. Depois de 2003, a ligação com os países de língua portuguesa. A lógica é sempre a mesma.

Tem esperança que a comunidade lusófona possa ainda ter um papel a partir desta época em que vivemos?

Sim, a comunidade lusófona. Mas acho que neste momento cada vez será menos precisa a presença de portugueses para desempenhar esse papel de ponte. Porque com o investimento e o conhecimento do português… estamos no domínio da língua neste momento. O relacionamento será muito mais a esse nível, penso eu.

Mas, se calhar, a nossa comunidade não soube ou não pôde, nestas duas décadas, tornar-se num pilar dessa ponte.

Porque a nossa comunidade aqui… nem sei se é bem uma comunidade. Temos essa lógica do mercador, do comerciante, do intermediário, homem de acção, e temos ainda a herança da administração, da mentalidade do funcionário público. Houve uma renovação com alguns jovens que vieram para Macau. Começou a existir em Macau negócio português, que era coisa que não existia. Mas é muito virado para Macau, para dentro. Essa perspectiva de fazer pontes, não vejo muito.

Para estabelecer relações com os países lusófonos, seria importante desenvolver esse lado cultural?

É fundamental. Houve algumas iniciativas nesse sentido, mas acho que as instituições culturais estão muito viradas para o interior da China.

Talvez o facto de Macau ser vista como uma cidade internacional faça com que os chineses de Macau devam algo ao interior, no sentido de serem mais chinesas. Reforçar a sua identidade chinesa.

Nestes momentos há sempre essa tendência. Daí que os estudos de Macau sejam interessantes do ponto de vista para marcar a diferença, [ter] uma identidade construída. Houve muita coisa desenvolvida para o conhecimento de Macau este ano. Penso é que as próprias pessoas poderão balancear um pouco, ter receio de se quererem autonomizar demais. Talvez elas se queiram encostar um pouco ao novo poder. As gerações também mudaram. Talvez estejam a pensar no seu futuro e não podemos pensar mal disso.

Mas será que a nossa comunidade ainda pode ser útil, aqui, para a China?

Penso que sim. Pelo menos para fazer isto, este tipo de postura. Não podemos estar aqui como se nos dessem licença para cá estar. Estamos aqui de pleno direito, enquanto intervenientes neste processo de comunicação. Mas com respeito ao que está em jogo e à soberania. Macau teve um papel fundamental ao longo da história para a própria história da China, e a China serviu-se de Macau, tal como Portugal o fez, criou-se aqui uma cultura, criaram-se gentes.

Nas últimas três décadas a China mudou muito. Isso teve um efeito importante sobre Macau, mas diminui o seu papel de mediador.

Exactamente. Estamos a hegemonizar uma China que tem a sua missão e direito de a ter, e que faz o seu percurso. Mas era bom que esse percurso não fosse feito com branqueamentos nem com a imposição do que abolimos em 1990, uma visão ideológica da história.

É altura de se ir embora, porquê?

São questões pessoais, familiares. Fiz quase toda a minha vida profissional aqui e fi-lo com alguma seriedade e empenho, e dedicação a Macau.

O balanço é satisfatório?

É. Não estou arrependia, senti-me muito bem em Macau, desviei completamente a minha investigação para outra área. Não sabia nada da história de Macau quando cheguei e foi um desafio constante. Na faculdade, em Portugal, não se falava de Macau.

Como vê agora a posição da nossa comunidade?

Essa é uma pergunta muito difícil. Neste momento, é uma comunidade muito dividida. Antes também era em termos de não haver partilha de interesses ou de haver vários grupos. Mas havia um sentido de conjunto, pontos de encontro, e neste momento não há. Esse centro, de falar na rua, o nervo da cidade, a comunicação entre as pessoas, perdeu-se. Bastava pegar num telefone, porque a cidade estava lubrificada. Hoje em dia a comunidade está dispersa, encontramos pessoas e perguntamos: “estás cá?”. A cidade cresceu e as condições de vida alteraram-se. Essa polarização cultural deixou de funcionar.

Que mensagem nos deixaria no momento da partida?

Sejam felizes… Se sentem que estão a fazer alguma coisa por Macau, que vos dá satisfação em termos pessoais e profissionais, se há um projecto, um sentido de construção. Se têm necessidade em termos económicos, é admissível…, mas neste momento é difícil estar em Macau pois estamos fechados. Podemos ser elementos construtores de diálogo com a comunidade e com a própria China. Se pudermos demonstrar que somos importantes nesse projecto de diálogo que a China tem com o mundo, e se estiver dentro dos nossos parâmetros e valores, cumprimos o que sempre foi Macau.

30 Nov 2021

São João Baptista

“Depois desta batalha, os vitoriosos portugueses foram dar graças à Sé Catedral, prometendo o Senado e o povo idêntica comemoração na véspera da festa de S. João Baptista…” Instituído desde 1622 (até 1999), o dia 24 de Junho, data do nascimento de São João Baptista e data que celebra o milagre da vitória sobre os “Calvinistas da Holanda”, passa a ser comemorado como o “Dia da Cidade do Nome de Deus na China”.

Vitória que obrigou o Senado “por voto, a celebrar todos os anos a sua festa, segundo se lia numa antiga tabuleta que se encontrava na Câmara” – escreve Monsenhor Manuel Teixeira, referindo-se à sede do actual Instituto para os Assuntos Municipais, antigo Leal Senado, ainda apoltronado no emblemático edifício classificado património mundial.

A denominação de Macau como “Cidade”, em vez de “povoação”, é-lhe atribuída a partir de 1583. Acontecimento confirmado a 10 de Junho de 1586, por intermédio de D. Duarte de Meneses, Vice-rei da Índia e rectificado por D. João IV em 1643.

Com Portugal subjugado ao poder da Dinastia Filipina (1580 – 1640), Macau sofreu um rude golpe, não só com os vexames castelhanos de Manila – apesar de a bandeira dos leões de Castela nunca ter chegado a ser içada em Macau (Não Houve Outra Mais Leal), mas também, com as repetidas tentativas dos holandeses de se apoderarem da Cidade. Estes, inimigos de Castela e invejosos do nosso florescente comércio com a China e com o Japão, tentam, através da Companhia Holandesa das Índias Orientais, interceptar as redes comerciais portuguesas asiáticas e o seu porto de abrigo – Macau.

A frente da Guerra Luso- Holandesa (1595 – 1663), não vivia só de confrontos na Ásia (Índia, Malaca, Bornéu, Ceilão, Batávia…) com a Companhia Holandesa das índias Orientais, mas também com as Companhias Ocidentais, por causa dos escravos de África e sobretuto do açúcar do Brasil.

Macau à época, nas palavras de Jaime Cortesão, era, na sua origem, uma cidade de “fundação urbana puramente democrática, o que aproxima Macau sob este aspecto dos grandes burgos medievais (…). A cidade … deveu a sua rápida prosperidade à posição magnífica que ocupava cerca de Cantão, e a meio caminho entre o arquipélago malaio e japonês. Fundada por mercadores portuguêses, práticos já no comércio da China (…). Uniu-os desde o princípio a comunidade dos interesses comerciais; e a mesma avançada civilização do país, onde a cidade encravara, os auxiliou a manter no burgo uma tonalidade mais elevada que nas restantes cidades portuguesas da Ásia”.

Cidade burguesa, livre, cosmopolita – terra de comércio -, segundo Charles Boxer, “havia então uma bateria no ponto onde hoje existe o forte de Santiago da Barra, outra em S. Francisco e uma terceira em Bomparto. A cidadela de São Paulo do Monte, principiada em 1616, ainda não estava concluída de todo, embora devesse estar bastante adiantada; a ermida de Nossa Senhora da Guia estava ainda por fortificar, e não havia quaisquer outras obras de defesa”.

O primeiro sinal de um eminente ataque é dado quando “Chegaram a esta barra de Macao quando menos se esperava, a vinte e nove de Maio, quatro naos, duas Olandesas e duas inglesas”.

Uma ideia já antiga. A primeira tentativa remonta a 1601, a 3 de Outubro, quando os navios holandeses, o Amsterdam e o Gouda, sob o comando do almirante J. van Neck, tinham surgido à vista de Macau. Facilmente dominados, alguns homens viriam a ser presos e executados. Não contentes com o seu destino, os holandeses repetiram a sua sorte em 1607 e 1621.

Pouco fortalecida e nada fortificada, a Cidade, na opinião do governador geral das Índias Orientais, Jean Pieterzoom Coen – numa carta mandada aos seus superiores, diz que “Macau foi sempre uma praça aberta sem guarnição que, embora dispondo de algumas munições e de ligeiros entrincheiramentos, facilmente poderia ser tomada por uma força de 1000 a 1500 homens e convertida numa praça que poderíamos defender contra o mundo inteiro”.

É aqui que entra no palco das operações um nome que convém desde logo fixar, Lopo Sarmento de Carvalho. Foi ele que, desde logo, pressentiu, talvez devido ao seu ofício de Capitão, que algo de anormal, de estranho, se passava e que tomou, quanto antes, as devidas precauções na defesa da Cidade – “não dormia, como prudente, e entendendo os enganos de inimigo, ajuntou toda a gente que na terra havia, ordenando-a em companhias, fortificou os logares que lhe pareceram mais fracos, por onde poderiam os inimigos entrar, pondo capitães, e dividindo a gente o melhor que pode”. Previu que “Cacilhas que era uma praiazinha distante da cidade um quarto de legoa, que ficava detras de dois montes, poderia servir de facil entrada aos inimigos, que ganhando a praia e os montes, ficariam fazendo damno á cidade, pretendeu cercala com uma tranqueira forte mas, pela contradição que houve da parte da cidade …” – , o que se veio a verificar.

Apesar de ser época de tufões (Junho), a maioria da população portuguesa andava no mar alto, o ofício de comerciante assim o exigia. Era o período do ano das compras da seda crua em Cantão e da grande viagem anual ao Japão. A cidade estava desprotegida, restavam poucos ou nenhuns para combater, mas por poucos que fossem, eram contudo “homens briosos e aptos para a guerra”. Na missiva acima citada, de Jean Coen, este refere que “Ao presente há em Macau uns 700 a 800 portugueses e mestiços e cerca de 10.000 chineses”.

A vitória, conforme afirmou Manuel Teixeira, deveu-se à “coesão dos seus habitantes, cujos interesses particulares eram os interesses da cidade. Quem tocasse nesta terra, tocava neles próprios; quem a atacasse, feria-os na própria carne, no sangue e na vida”.

Montalto de Jesus, no seu “Macau Histórico”, diz que havia apenas 80 europeus capazes de pegar em armas, o que é manifestamente pouco!

A esquadra holandesa que veio atacar Macau – 24 de Junho de 1622 – sob o comando do almirante Cornelius Reijersen, compunha-se de 15 navios – 13 holandeses e 2 ingleses (os números aqui divergem muito, estes parecem ser os mais fidedignos) – Zierikzee, Groeningen, Delft, Gallias, Engelsche Beer, Enchuysen, Pallicatta, Haan, Tiger, Victoria, Santa Cruz, Troom e Hoop (holandeses) e Palsgrave e Bull (ingleses). As forças de desembarque contavam com 600 homens europeus e outros 200 homens entre índios, malaios e japoneses (Charles Boxer fala em 1024 homens). Os ingleses recusaram-se a combater. A vitória dos holandeses parecia assegurada, tal era a despropoção de forças em combate. Os holandeses não estavam com pretensões de dividir o saque.

Para desviar as atenções, já a 23 de Junho três navios holandeses – Groeningen, Gallias e Engelsche Beer, bombardeiam o Forte de S. Francisco – “desde as duas athe ás seis horas da noite”, que se lhes respondeu no mesmo tom – “Eram os estrondos tão grandes, que pareciam medonhos trovões, e os pelouros vinham tão furiosos, que pareciam ligeiros coriscos, e em tanta quantidade que parecia um grande e grosso chuveiro”.

Na manhã do dia 24, os dois primeiros navios continuavam a bombardear. Gallias é fortemente atingido, vindo a afundar a 1 de Agosto.

O desembarque dá-se na praia de Cacilhas – duas horas depois do nascer do Sol.

Foram “os corações resolutos e braços esforçados dos seus moradores”, sobre o comando de António Rodrigues Cavalinho, que entricheirados num banco de areia da praia, receberam a tiro de mosquete o exército holandês. Apesar de entre os feridos do inimigo se contar o próprio almirante Reijersen, estes não cedem, tendo os portugueses dificuldade em conter a fúria holandesa. Em inferioridade numérica, a ordem é de retirada – “pela campina que corre ao pé da serra da Nossa Senhora da Guia”, sempre que possível ripostando.

É o Pe. Jerónimo Rho – italiano e grande matemático da congregação dos padres Jesuítas da Fortaleza de S. Paulo, que das três bombardas daí lançadas, (teria sido a sua, segundo reza a história), acerta num barril de pólvora mesmo no meio do exército holandês, o que terá desorientado e amedrontado as hostes inimigas.

Entram em pânico. Atemorizados, hesitantes – estavam estacioados na Fontinha – , planeavam alcançar pelo lado oriental o cimo do monte do “Charil”, (Monte da Guia). Lopo de Sarmento, ajudado pelo capitão João Soares Vivas, apercebeu-se das intenções dos holandeses e então, juntos, tomaram a dianteira pelo lado ocidental, incentivaram os seus homens, “com tão grande alarido e gritos de valorosos Portuguezes que foram bastantes intocentos mosqueteiros para os deterem”.

A coragem, ousadia e valor de uns – “união de almas e de corações, … coesão de espíritos” – , a mágoa, desolação e vergonha de outros – a batalha perdida, a humilhação, a fuga.

Os chineses alegraram-se com a vitória – “As autoridades de Cantão mandaram como presente de parábens uma grande provisão de arroz à cidade. Com sua licença, foi Macau bem fortificada”.

O verdadeiro herói do milagre da vitória sobre os holandeses – no dia de S. João Baptista de 1622 – foi, além da sua população, naturalmente, o Capitão-mor das viagens do Japão, o transmontano Lopo Sarmento de Carvalho – pelo seu conhecimento, visão estratégia e destemida bravura.

Com a reaquisição da independência nacional, em 1640, pondo fim aos 60 anos da Dinastia Filipina, com a aclamação de D. João IV como rei de Portugal, Lopo Sarmento de Carvalho pediu licença para regressar ao reino, “alegando os seus serviços nas partes da Índia por mais de trinta e seis anos”.

O pedido foi analisado em Janeiro de 1641, aludindo os conselheiros do rei os seus “grandes e assinalados serviços prestados em ocasiões de mayor importancia”. O despacho só viria a verificar-se em 1644. Reza assim:

“Por rezolução de S. Mg. de 14 de dez. De 1643
El Rey nosso Sr. hauendo respeito ao que se lhe reprezentou por parte de Lopo Sarmento de Carvalho fidalgo de Macao do nome de Ds da china e os seus bons serviços que naquellas p.tes lhe feito, por espasso de mais de trinta e seis annos; Ha por bem de lhe fazer merce de lhe conceder licença que se possa vir para este Reino com a sua caza e familia, E que possa trazer consigo seu sogro, E que vindo pella via de Goa, lhe de o Vizo Rey o fauor e ajuda q lhe pedir para a comodidade e passagem de sua pessoa e familia, E que se lhe passem p. isso os despachos necess.s. Lx a 4 de Jan. de 1644”.

O Boletim Oficial de Macau n.º 30, de 27 – VI – 1863 – sensivelmente duzentos anos após a mais gloriosa vitória contra os holandeses, descrevia assim a festa desse ano: “Na tarde pelo Senado a Procissão de voto popular, do milagroso S. João Baptista, testemunho dado a Deus, pelo milagre deste dia há dois séculos a esta parte, na vitória brilhante, heroísmo de armas e dedicação ao rei de Portugal que esta Cidade soube ganhar e, que é uma das mais ricas páginas da sua história”.

Temos um Santo Padroeiro – é outra especificidade da – , mas não existe um lugar de culto que lhe tenha sido especialmente erigido. Apesar de ser uma data já raramente difundida, o que a torna pouco ou nada conhecida, é uma efeméride que a todos pertence.

Na segunda metade dos anos oitenta, o arraial em honra de S. João Baptista realizava-se na recentemente já meio ‘assassinada’ mata de casuarinas (não fossem elas chamadas ‘árvores da tristeza’…) de Hác Sá, em Coloane. Era uma festa organizada pela Associação dos Aposentados e Reformados da Polícia de Segurança Pública, sob as ordens do Comante Dias. Uma festa do povo e para o povo – vadia, de rua. O tempo nem sempre ajudou, mas a essência e o conteúdo marcavam sempre presença. Alegria, boa disposição, animação, comes e bebes à farta – penso que foi aqui que Madeira de Carvalho bebeu um pouco de inspiração para a realização da Festa da Lusofonia.

Nos anos 90 – com a chegada do último governador de Macau -, institucionalizaram-se, nas arcadas do Fórum, as festas em honra dos Santos Populares. Da virtude passou-se ao pecado. Os arraiais eram abertos, mas o lustro, o pó de arroz, o rímel, o batom e a música – nem sempre eram adequados à efeméride. Sérgio Godinho, Janita Salomé, entre outros -, passaram por lá, animados, claro, por essa feira das vaidades. Foi perdendo adeptos, desapareceu.

Houve uns anos de recolhimento, talvez devido ao politicamente correcto.
Nos últimos anos, as associações de matriz portuguesa têm realizado, com esforço e dedicação, no Bairro de S. Lázaro, a romaria para celebrar e relembrar S. João, o Santo Padroeiro e protector da Cidade de Macau. Este ano, como estamos a viver uma situação atípica, o arraial não se realiza.

24 Jun 2020

Imagens que narram um século da história de Macau em exposição na Casa Garden

[dropcap]M[/dropcap]acau acolhe, na próxima quarta-feira, uma exposição com mais de 150 imagens que ilustram um século da história do antigo enclave português, entre 1844 e a década de 1940.

Depois de passar pelo Museu do Oriente, em Lisboa, a exposição “Macau: 100 Anos de Fotografia” chega à Casa Garden para abordar a história social e política daquele território que esteve sob administração portuguesa durante 450 anos.

“Trata-se de uma mostra documental sobre a evolução da cidade, os seus costumes e tradições, a vivência das comunidades e alguns acontecimentos marcantes na história de Macau”, refere a Fundação Oriente, em comunicado.

Comissariada por Rogério Beltrão Coelho, jornalista que trabalhou em Macau, a exposição reúne imagens do acervo do Museu do Oriente, mas conta com contributos do Museu Francês de Fotografia, do Museu Militar do Porto e de particulares.

A exposição recorda, neste século de imagens, acontecimentos como as celebrações do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia (1898), as primeiras travessias aéreas de Lisboa a Macau – 1924 e 1931 -, os efeitos dos tufões (com destaque para o de 1874) e diversas manifestações artísticas e desportivas.

Além das imagens colhidas pelo fotógrafo amador francês Jules Itier em 1844 – que são as mais antigas conhecidas imagens da região – a mostra presta homenagem a Man Fok, “que pode ser considerado, em Macau, o maior fotógrafo chinês do final do século XIX”, indicou a organização.

Outra figura em destaque é José Neves Catela (1902-1951), que foi, durante 25 anos, a partir de 1925, ano em que chegou ao território, “o fotógrafo português de Macau”, segundo a Fundação Oriente.

Neste sentido, estarão em destaque alguns dos “mais importantes fotógrafos chineses, portugueses e de outras nacionalidades” que, ao longo daquele período, “fizeram de Macau tema das suas fotografias, incluindo profissionais sedeados em Hong Kong”.

“Macau: 100 Anos de Fotografia” inaugura na quarta-feira, às 18:30, e estará patente até 21 de Setembro.

19 Jul 2019

Manuais de História | Beatriz Basto da Silva critica “descontextualização inoportuna”

Beatriz Basto da Silva considera “descontextualizadas” e “inoportunas” as referências a actos de corrupção durante a fixação dos portugueses no sul da China nos novos manuais escolares. A historiadora lamenta o desconhecimento sobre os primórdios de Macau

 

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi sobretudo o termo “corrupção” que desassossegou Beatriz Basto da Silva quando, a Coimbra, lhe chegaram as notícias sobre a forma como aparecem descritos os portugueses durante o período de fixação no sul da China nos novos manuais escolares. Apesar do anúncio de que as referências negativas vão ser eliminadas dos livros a introduzir, a partir do próximo ano lectivo, nas escolas secundárias, a historiadora critica a abordagem leviana que, a seu ver, reflecte o desconhecimento sobre os primórdios de Macau de quem tem responsabilidade na matéria.

“Corrupção é uma palavra com uma conotação lexical actual muito negativa, ligada ao crime, à pulhice, que naquele tempo não existia. É um termo descontextualizado para a época porque estamos a falar de oportunidades fáceis para trocas comerciais não legalizadas”, afirma Beatriz Basto da Silva. Segundo a autora da “Cronologia da História de Macau”, o que havia era uma “busca pelo negócio possível em águas que não pagavam tributo ao imperador da China”. “Nós não tínhamos licença para penetrar num comércio mais fixo, pelo que as trocas eram combinadas, na chamada ilha do encontro, de um ano para o outro, pelos interessados em comprar e em vender, pelo que o comércio era naturalmente tão clandestino da nossa parte como da parte dos chineses do sul. Éramos ambos meridionais e por isso entendíamo-nos muito bem”, sublinha. “Acha que naqueles tempos do século XVI alguém saía prejudicado daquele pequeno comércio?”, questiona.

Em paralelo, “o próprio imperador da China estava interessadíssimo em que os portugueses permanecessem nessa clandestinidade para que lhe levássemos o ambicionado âmbar cinzento, como refere o historiador Wu Zhiliang no livro ‘Segredos da Sobrevivência’”, complementa. À semelhança de Tereza Sena, reconhece actividade ilícitas mas, ao contrário da também historiadora que, aos microfones da Rádio Macau, desvalorizou o termo corrupção, Beatriz Basto da Silva fala de uma certa “perversidade” na utilização da palavra, até porque os manuais têm com destinatários jovens em idade escolar.

“Não estou a dizer que não houve, mas não seria corrupção como hoje a designamos”, pelo que “ensinar às crianças que fomos corruptos é de uma agressividade e de uma falta de senso enorme. Vão crescer a pensar coisas terríveis e cada vez mais distantes da verdade”, argumenta.

Neste sentido, a também ex-directora do Arquivo Histórico defende que se mostre aos estudantes a herança do contacto. Assim, sugere designadamente visitas ao Museu de Macau, em cuja feitura esteve envolvida, por ser fruto da preocupação de deixar “uma memória colectiva de encontro e não de confronto”.

“Há muitas pessoas que se auto-denominam de chineses de Macau, porque é um sítio diferente, com as suas características. Macau não é só China – é China mais qualquer coisa. Um qualquer coisa que interessou preservar desde o século XVI até hoje”, apesar das “cotoveladas comuns entre irmãos”, ocorridas em determinadas épocas da história comum.

“A nossa relação começou bem e tanto assim foi que progrediu e chegou aos dias de hoje. Os chineses não gostaram de nós em vários sítios. Em Lampacau, por exemplo, mandaram-nos dar uma curva, mas em Macau consentiram, permitiram e depois foram tirando partido”, contextualiza.

“A nossa presença em Macau interessou não só a Macau, mas à China toda”, enfatiza Beatriz Basto da Silva, para quem “dá a impressão de que há autoridades com vontade de fazer uma lavagem cerebral aos jovens que serão o futuro de Macau”.

“Parece que estamos a encontrar uma terminologia inoportuna propositadamente para criar conflitos”, sustenta a historiadora, deixando um conselho: “Se querem realmente fazer qualquer coisa leiam e estudem primeiro”.

Questão de perspectiva

Os manuais de História da China, elaborados pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) em colaboração com a editora People’s Education Press, que funciona sob a tutela directa do Ministério da Educação chinês, geraram controvérsia por alegadamente darem uma visão parcial e tendenciosa no que concerne à História de Macau, incluindo passagens com referências negativas aos portugueses.

Segundo o Jornal Tribuna de Macau (JTM), os livros escolares, que vão integrar os currículos do 7.º ao 12.º ano, vão ser adoptados por mais de metade das escolas secundárias a partir do próximo ano lectivo.

Segundo o JTM, os manuais associam os primeiros portugueses que chegaram à China a actividades de contrabando e de pirataria, bem como a crimes de corrupção. A título de exemplo, o manual do 10.º ano diz que os portugueses obtiveram autorização para usar os portos de Cantão e praticar actividades comerciais no âmbito de um esquema de corrupção que envolveu oficiais de Guangdong e que permitiu a vinda gradual de portugueses, segundo o mesmo jornal. Ora, na perspectiva de Beatriz Basto da Silva, esse “esquema de corrupção” não era mais do que “conveniência mútua”.

Após a celeuma, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, anunciou que essas passagens negativas relativamente aos portugueses, em concreto a associação a actividades de contrabando e corrupção, vão ser eliminadas da versão final dos manuais escolares.

A produção de manuais de História com conteúdos uniformizados com os da China foi anunciada em Novembro de 2016 pelo Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On.

19 Jun 2018

Alexis Tam | Secretário pretende retirar “contrabando” e “corrupção” do manual de história

O gabinete do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura afirmou que os conteúdos sobre a presença dos portugueses em Macau e a sua relação com os mandarins de Cantão no manual de História da China vão ser revistos

 

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, revelou ontem que os conteúdos que transmitiam uma imagem negativa da presença dos portugueses e dos chineses de Guangdong no território vão ser excluídos de um manual de história do 10º ano. “Após contactos com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude e com a editora responsável pelo conteúdo dos manuais, a associação dos portugueses a actividades de contrabando e corrupção, não será incluída na versão final dos mesmos”, refere o comunicado enviado ontem pelo gabinete do secretário ao HM.

De acordo com o mesmo comunicado, a decisão acontece “no seguimento de várias notícias veiculadas na imprensa local, relativamente ao conteúdo de manuais de história que incluem referências negativas sobre a passagem dos portugueses pelo território”.

Em declarações aos jornalistas, à margem da cerimónia de aniversário do Clube Militar, Alexis Tam garantiu a retirada dos conteúdos em causa, salientando que o livro ainda não estava na sua versão final. “Ainda está na fase de consulta, sendo que está decidido que os comentários referentes às actividades de contrabando e de corrupção dos portugueses vai ser totalmente retirada”, apontou.

Para Tam, é necessário ter em conta “as emoções dos portugueses dos que estão a viver aqui em Macau e penso que não é preciso ter esta parte do manual e considerar a amizade entre Portugal e Macau, pelo que é necessário ponderar muito bem o ensino que vamos dar à próxima geração”, acrescentou o secretário que considera também que “a história contemporânea é muito complicada e é um assunto que tem que ser analisado pelos historiadores e especialistas na matéria”.

Verdade do passado

Ao canal de Rádio da TDM, a historiadora Tereza Sena considerou que não via qualquer problema na existência destes conteúdos no manual escolar. “O que era comércio considerado autorizado era o comércio tributário e tudo o que fosse de fora desses esquema poderia ser apelidado como corrupção”, afirmou.

À mesma fonte, a historiadora sublinha que se está a falar de acontecimentos que remontam ao Séc. XVI e não da actualidade “em que estas noções são completamente diferentes”.

“Temos de olhar para o processo de instalação dos portugueses nas costas do sul da China não como um processo nacional. Não foi a coroa portuguesa que chega aqui e que se instala. Estamos a falar de comerciantes privados, de mercadores que vão aproveitando diversos tipos de oportunidades e se inserem nas redes mercantis existentes na Ásia. É um negócio e são negócios que permitem este tipo de abordagens”, explicou.

Para Tereza Sena é ainda normal que a parte do manual que se refere a Macau não ocupe uma parte muito importante num livro que trata da história da China .

Na semana passada, o deputado suspenso Sulu Sou alertou acerca do manual de história da China que tinha três capítulos sobre Macau, e que considerava os conteúdos incompletos. Em causa estava a referência à presença dos portugueses no território. De acordo com o Tribuna de Macau, o manual “salienta que os portugueses obtiveram autorização para usar os portos de Cantão e praticar actividades comerciais no âmbito de um esquema de corrupção que envolveu oficiais de Guangdong, e que permitiu a vinda gradual dos portugueses”.

14 Jun 2018

João Botas, autor de biografia sobre Silva Mendes: “Deixou um legado de um valor inestimável”

“Biografia de Manuel da Silva Mendes 1867 – 1931” é o mais recente livro de João Botas. A obra foi apresentada ao público na mais recente edição da Feira do Livro de Lisboa. O autor considera que Silva Mendes é uma personagem ímpar da história do território

[dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de Manuel da Silva Mendes?
Por vários motivos. Primeiro, porque foi num texto dele que me inspirei para dar nome ao blogue onde tenho vindo a divulgar a história de Macau desde 2008, o “Macau Antigo”, e que já ultrapassou um milhão de visitantes. Depois, porque Silva Mendes foi professor no Liceu de Macau, onde completei o ensino secundário. Acresce que há uns anos fui contactado por familiares de Silva Mendes que diziam querer saber mais sobre a sua vida. Encarei a abordagem como um desafio e, desde logo, pensei em escrever sobre a história da vida e legado de um homem que foi uma figura marcante da história de Macau na primeira metade do século XX e, inexplicavelmente, ainda nada de substancial tinha sido feito.

No decorrer das pesquisas, que factos mais o surpreenderam neste homem?
A multiplicidade de actividades a que se dedicou, um ou outro detalhe de âmbito mais pessoal que, julgo, ninguém até hoje conhecia, a dimensão e qualidade da sua colecção de obras de arte, um legado que em parte ainda hoje pode ser apreciado no Museu de Arte de Macau. Outro facto surpreendente foi a rapidez com que Silva Mendes construiu a sua casa, hoje a United Nations University International Institute for Software Technology. Ele chegou ao território em 1901 e, por volta de 1908, já a mansão estava pronta.

De professor a sinólogo. Qual o legado que deixou a Macau?
Manuel da Silva Mendes deixou um legado de um valor inestimável. Logo após a sua morte, Governo e sociedade civil de Macau, portugueses, macaenses e chineses, tiveram a noção clara da sua importância, a ponto de terem adquirido muitas das peças da sua colecção. As obras de cerâmica de Sek Wan ainda hoje constituem uma das mais valiosas colecções do género ao nível mundial. Não é de somenos importância as centenas de artigos publicados na imprensa local ao longo de quase 30 anos, bem como os livros que publicou, não só sobre Macau do seu tempo, como também sobre a cultura chinesa. 

Como está a ser recebido este livro?
A apresentação ao público na Feira do Livro de Lisboa, bem como as sessões de autógrafos que se seguiram, decorreram muito bem. Houve muitas pessoas a assistir e a participar de forma activa, e isso deixa-me satisfeito, é claro. Até ao momento, as reacções que tenho recebido têm sido muito positivas. Já recebi alguns convites para fazer palestras sobre o livro em Portugal e espero que, em Outubro, (mês em que se assinalam os 150 anos do nascimento de Manuel da Silva Mendes), possa regressar a Macau para a apresentação pública do livro através do Instituto Cultural, co-editor da obra. Por essa altura, o livro já vai estar à venda em várias livrarias do território. Em Portugal, está disponível na Livraria do Turismo de Macau, em Lisboa, e já recebi alguns contactos de outras livrarias que estão interessadas.

A seguir, o que pensa fazer? Que vida vai pesquisar?
Esta foi a minha estreia no mundo das biografias e, confesso, fiquei entusiasmado com o género. Tenho mais dois ou três nomes em carteira de personalidades ‘macaenses’ que gostaria de biografar, mas não depende apenas de mim a sua concretização. Tenho também outros projectos relacionados com a história do jogo e do turismo bastante aliciantes. Faço-o com muito prazer, mas apenas nos tempos livres; além de tempo, são precisos apoios, nomeadamente financeiros. Já escrevi quatro livros (e outro em co-autoria) sobre a história de Macau, mas parece que como cartão-de-visita ainda não chegam para conseguir financiamentos. Para esta biografia, por exemplo, a Fundação Macau concedeu-me cinco mil patacas. Obviamente, recusei.

Porquê o interesse pelos homens de Macau?
O meu interesse pela história de Macau é o mais abrangente possível. Há quase duas décadas que venho coleccionando objectos – e já tenho uns cinco mil – sobre Macau (postais, fotografias, moedas, notas, livros, carteiras e caixas de fósforos, lai sis, jornais, revistas, calendários, bilhetes de cinema e de transportes, folhetos turísticos, etc.) num projecto que intitulei de “Macau Memorabilia” e que, um dia, tenciono transformar numa exposição iconográfica sobre a história de território, no século XX. Tenho uma colecção de cerca de 50 mapas/plantas de Macau que um dia também tenciono mostrar publicamente. Outro projecto antigo que tenho vindo a equacionar é passar para livro muitas das histórias que tenho vindo a publicar no blogue Macau Antigo. 

Acha que o território e a sua história precisam de ser mais conhecidos em Portugal?
Costumo dizer que, nestas coisas, mais nunca é de mais. Na medida das minhas possibilidades estarei, como sempre estive, disposto a dar o meu contributo. Talvez no domínio dos projectos audiovisuais possa haver novidades em breve. Recentemente recebi dois convites, mas para já é prematuro avançar com detalhes.

O que pode ser feito nesse sentido?
Tanta coisa. Mas muito tem sido feito. Quem está minimamente atento não pode deixar de reconhecer a profusão de eventos que se vão realizando em Portugal relacionados com Macau, nomeadamente pela Delegação do Turismo de Macau em Portugal.

5 Jul 2017

Riquexós, meio de transporte de Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s jinrichshas surgiram em Macau na primeira metade do ano de 1883 (informação proveniente do jornal O Macaense de 12 de Julho) e dez anos mais tarde, em 1893 o assunto dos Jinrickshas estava na ordem do dia, pois o Leal Senado preparava-se para entregar a um monopólio os cerca de 280 carros de vinte proprietários então existentes. Puxado em cadenciada corrida por cules, vencida a conquista do cliente, o resto do dia era trabalhar para refeição e jogo. Envergando uma cabaia gasta, qual solas dos pés de calcarruar/percorrer travessas estreitas e íngremes ruas, faz o cule o transporte de pessoas e bens, agora ajudado por duas rodas.

Quando Adolfo Loureiro chegou a Macau a 15 de Setembro de 1883, já existiam, como se pode constatar, os riquexós, os carros japoneses ou jinrickshas. No entanto, durante a sua estadia de seis meses na cidade não os menciona no seu diário, que veio a dar o livro No Oriente – De Nápoles à China. Refere sim: “Ninguém em Macau anda a pé. Há as cadeirinhas de praça, com tarifas aprovadas pela Câmara, que em Macau se apelida de Leal Senado. Uma pessoa que se preze tem, porém a sua cadeirinha, com os seus dois cules uniformizados. A minha devia ser esplêndida, com vidraças e stores, e os meus culis teriam cabaias e calções brancos, orlados de azul e branco, com os seus grandes chapéus de palha de bambu também pintados de azul e branco”. (…) “Este serviço custar-me-ia: a boa cadeirinha 10 patacas; o fardamento dos dois culis, outras 10; e o salário destes dois homens não passaria também de 10 patacas por mês, e a seco!…”

No Projecto de postura municipal aprovado pelo Conselho de Província ao consultar o Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 42 de 20 de Outubro de 1883 demos conta terem os condutores de jin rik sha, ou riquexó, da praça de tirar uma licença no Senado para os conduzir, custando essa uma pataca. Tinham também de ter a tabela de preços em português e chinês e o número atribuído pela secretaria do Leal Senado afixado ou pintado num lugar visível. Na licença que se passar a cada jin rik sha será designado o local em que deverá estacionar, e a onde deverá estar colocado por modo que não cause embaraço ao trânsito público, alertando para as ruas que tenham menos de cinco metros de largura, nenhum jin rik sha, embora alugado, poderá estar postado à espera de alugado. Transitando dois em sentidos opostos, cada um dá a sua direita, mas de modo que se não toquem. Têm de se apresentar devidamente asseados, e todo o jin rik shas estando na estação, ou sendo encontrado na via pública desocupado, é obrigado a receber e transportar qualquer pessoa, que se apresentar para esse fim, a qualquer hora do dia ou da noite, pelo preço marcado na tabela, devendo circular à noite com uma lanterna acesa. O cule pode recusar transportar pessoas alcoolizadas.

No Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 2 de 12 de Janeiro de 1888 refere-se às alterações do regulamento de 1883, entre elas o aumento da licença para 5 patacas e terem os jin rik shas os números escritos tanto na forma portuguesa, como em chinês. Foi neste B. Oficial que ficou proibido os jinrikshas de subirem ou descerem ladeiras ou calçadas íngremes, a não ser se forem conduzidos por dois condutores e estes devem ser homens robustos, que se devem apresentar decentemente trajados. Já quanto à tabela de preços a praticar é a mesma de 1883, isto é, pela primeira hora $0,05 e por cada meia hora mais, $0,05, mas se o percurso de uma hora for para fora da cidade o preço é de $0,10. A única diferença que existe após cinco anos é no transporte de duas pessoas, que em 1883 era aberto mediante o entendimento entre as partes e em 1888, o preço para dois condutores é o dobro.

Para o Projecto do Liceu

Se a palavra jinricksha não chamou a nossa atenção ao passarmos uma vista de olhos por alto aos dez anos de jornais desse período, a partir de meados de 1893 ela tornou-se uma constante, continuando pelo ano seguinte os artigos sobre esse assunto. Aqui deixamos escrito o que neles recolhemos.

O semanário Luso-Chinês Echo Macaense, cujo proprietário e responsável era Francisco H. Fernandes, no dia 1 de Agosto de 1893 publica um artigo com o título Uma Explicação onde refere, “Apresentamos primeiro os motivos que levaram o Leal Senado a dar o passo que deu em monopolizar as licenças para este ramo de indústria que dá uma avultada verba para o orçamento municipal. Há também uns 4 meses o vereador Victorino propôs à câmara o monopolizar essa indústria, se assim se pode chamar, fundando-se nas seguintes razões: 1.º Os carros actuais já estão bem estragados, e a maior parte deles já deviam há muito ter sido condenados. 2.º Estando essa indústria à responsabilidade de um só indivíduo, o serviço de polícia seria mais bem feito. 3.º Os lucros serão o duplo do que actualmente.

Essa moção do ilustre senhor foi posta à discussão, e, sujeita à votação, foi julgada ainda inoportuna alegando o presidente que não via grande necessidade de aumentar os impostos, e por conseguinte que ficava essa moção para ser renovada quando fosse necessário. [O Leal Senado rejeitou a proposta para a concessão do exclusivo das licenças de jinrickshas, mas autorizou a elevação da taxa das mesmas, que passou a ser de $15 anuais, o que resultava o aumento da receita que o LS tinha em vista; era Presidente o secretário-geral Alfredo Lello, sendo o Delegado interino do procurador da Coroa e Fazenda Câncio Jorge, o secretário do Conselho Francisco Filipe Leitão e faziam parte também Domingos Clemente Pacheco e Pedro Nolasco da Silva.]

Passado tempo, apareceu o projecto do Liceu, a câmara foi convidada a dar um subsídio, e o Leal Senado deliberou dar 5000 patacas; foi então que o ilustre presidente o Sr. Comendador Basto, disse numa das sessões que chegou a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre os jinrickshas, e assim se fez. Nessa ocasião se espalhou por fora que o Leal Senado ia avançar as licenças dos carros jinrickshas e logo apresentou-se um requerimento pedindo a avença das referidas licenças oferecendo à câmara a quantia de $6000 por ano, por tempo de cinco anos, sob as condições que o Leal Senado apresentasse. O Leal Senado demorou ainda o despacho desse requerimento dando assim tempo para que se fizesse um estudo mais profundo sobre o pedido. Uma semana depois apresentou-se um outro requerimento dos actuais proprietários dos carros que são uns 20 indivíduos, alegando que lhes constava que a câmara ia monopolizar os carros jinrickshas e pedia que assim não fizesse, porque isso ia prejudicar os seus interesses, e alegou mais, que muitos para adquirir esses carros venderam e empenharam os seus filhos (chamo para esse período a atenção do delegado da coroa) e que conservassem os carros no statu quo; esse requerimento não chegou a ser apresentado por lhe constar que um dos vereadores sabendo desse requerimento tinha dito que o único despacho sério era mandar com visto ao ministério público.

16 Jun 2017

Fundação Rui Cunha | Os serões que dão a conhecer as ruas de Macau

A rubrica nasceu da vontade de reunir pessoas ao fim do dia e conversar sobre o passado de Macau. O objectivo é a partilha de informações sobre a cultura local para que a memória não se perca

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] proposta de passar o final do dia a contar as histórias antigas de Macau é da Associação dos Antigos Alunos da Escola Comercial Pedro Nolasco. O evento acontece na Fundação Rui Cunha e conta, esta quarta-feira, com a terceira edição, a cargo de Jorge Cavalheiro com o tema “Conhecer a História de Macau, percorrendo as suas ruas”.

“A sessão será sobre os primeiros tempos dos portugueses em Macau”, referiu José Basto da Silva, presidente da associação, ao HM. “Na altura existia um muro que separava a parte portuguesa da parte chinesa e vamos abordar o que se passava com essa divisão e nas ruelas que circundavam o muro”, explicou.

Depois da palestra, a associação já tem pensado um segundo momento: “A ideia é convidar os interessados visitar a esse recantos que vão ser abordados no dia 12”.

Juntos à conversa

A criação de encontros para partilhar acontecimentos de outros tempos nasceu da vontade de reunir pessoas a conversar sobre o que é a cultura local. “Queríamos juntar um grupo de amigos no final do dia para recuperar histórias antigas do território ao mesmo tempo que, à volta delas, as pessoas teriam um pretexto para estarem juntas e passarem um final de tarde diferente, depois de um dia de trabalho”, disse José Basto da Silva.

De acordo com o responsável, a importância destes pequenos encontros está ainda na surpresa que acarretam. Apesar de o público ser, na sua maioria, residente, muitas vezes não sabe pequenos detalhes sobre o que o rodeia e que acabam por dar outro valor à realidade.

O objectivo, disse, é evitar que o conhecimento que, muitas vezes passa de boca em boca, se perca. “A informação dilui-se de geração para geração e este é um espaço para que possa ser partilhada e evitar que as memórias se percam com o tempo”.

11 Abr 2017

Historiadora diz que Macau não desperta interesse aos portugueses

Macau não desperta interesse aos portugueses. A ideia foi passada pela historiadora Beatriz Basto da Silva que afirma ainda que os estrangeiros têm mais curiosidade pelo território do que aqueles que por cá viveram cerca de 400 anos, e que ainda vivem

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] historiadora especialista em Macau, Beatriz Basto da Silva, considerou que os portugueses dedicam pouca atenção à situação cultural e mesmo económica daquele território, acrescentando que são os estrangeiros a procurar mais as bibliotecas e os arquivos macaenses.

“Acho muito feio que as pessoas se alheiem da situação de Macau, tanto cultural como económica. Porque Macau merecia muito mais atenção. Para se gostar de Macau é preciso conhecê-lo. Eu escrevi uma Cronologia da História de Macau porque não conseguiria numa vida escrever uma história de Macau se não fosse por números, de tão rica que é”, considerou a historiadora à agência Lusa durante a abertura da Feira do Livro de Macau em Lisboa, a primeira iniciativa do primeiro Fórum do Livro de Macau na capital portuguesa, que se prolonga até 3 de Novembro.

“Não há, neste momento, interesse pela história de Macau, aqui. Na RAEM aparecerem muitos estrangeiros a perguntar pela nossa história, porque a história de Macau envolve muitas ligações com países de Europa. E são ligações tão grandes, tão importantes que não se pode contar a história de nenhum país europeu que não tenha qualquer coisa a ver com Macau”, salientou a especialista.

Dos portugueses e chineses que vivem em Macau, Beatriz Basto da Silva faz um retrato pouco animador. “A civilização que hoje existe em Macau é consumista”, pelo que “não há grande interesse em saber o porquê e ver o que se passou para trás”.

O fascínio do oriente

Presente na feira, o advogado José António Barreiros, antigo secretário da Administração e da Justiça em Macau em finais dos anos 80, considerou, por outro lado, que há “um interesse cíclico que não se perde” dos portugueses por Macau.

“O fascínio do Oriente acompanha sempre o português. E sobretudo em tempos de crise o português acaba por ter sempre o fascínio do longínquo Oriente, do enigmático Oriente. É um interesse cíclico que não se perde e que se vê pela vitalidade do que tem vindo a ser publicado”, disse o advogado, que é responsável pela editora Labirinto de Letras.

A Labirinto de Letras editou dois livros de Eduardo Ribeiro, sobre a presença de Camões em Macau, e recentemente uma biografia de Ouvidor Arriaga, de António Alves-Caetano.

“Não é um sucesso editorial, porque há pouca gente a ler, mas é seguramente algo de sério e de importante e que tem de ter o seu espaço”, completou.

Sobre o Fórum, o presidente da Associação Amigos do Livro de Macau, que organiza a iniciativa, explicou que a intenção “é dar a conhecer em Portugal o que se faz na literatura portuguesa em Macau e também dar a conhecer um pouco do que se faz em literatura chinesa” na agora Região Administrativa Especial chinesa.

“Teremos sessões, conferências, debates, lançamentos de livros, poesia. Não há propriamente pontos altos”, disse Rogério Beltrão Coelho.

“No Centro Científico e Cultural de Macau teremos duas conferências: uma sobre o livro antigo de Macau e outra sobre o livro actual. Na Universidade Católica haverá uma sessão sobre os livros de Direito. No Clube Militar Naval vai falar-se dos marinheiros que escreveram sobre Macau. O Fórum terminará na Biblioteca Nacional, onde se evocará uma grande escritora ligada a Macau, a Ondina Braga”, acrescentou.

No dia 29, o ministro da Cultura de Portugal estará numa sessão de poesia ligada a Macau na Fundação Casa de Macau em Lisboa.

26 Out 2016