São João Baptista

“Depois desta batalha, os vitoriosos portugueses foram dar graças à Sé Catedral, prometendo o Senado e o povo idêntica comemoração na véspera da festa de S. João Baptista…” Instituído desde 1622 (até 1999), o dia 24 de Junho, data do nascimento de São João Baptista e data que celebra o milagre da vitória sobre os “Calvinistas da Holanda”, passa a ser comemorado como o “Dia da Cidade do Nome de Deus na China”.

Vitória que obrigou o Senado “por voto, a celebrar todos os anos a sua festa, segundo se lia numa antiga tabuleta que se encontrava na Câmara” – escreve Monsenhor Manuel Teixeira, referindo-se à sede do actual Instituto para os Assuntos Municipais, antigo Leal Senado, ainda apoltronado no emblemático edifício classificado património mundial.

A denominação de Macau como “Cidade”, em vez de “povoação”, é-lhe atribuída a partir de 1583. Acontecimento confirmado a 10 de Junho de 1586, por intermédio de D. Duarte de Meneses, Vice-rei da Índia e rectificado por D. João IV em 1643.

Com Portugal subjugado ao poder da Dinastia Filipina (1580 – 1640), Macau sofreu um rude golpe, não só com os vexames castelhanos de Manila – apesar de a bandeira dos leões de Castela nunca ter chegado a ser içada em Macau (Não Houve Outra Mais Leal), mas também, com as repetidas tentativas dos holandeses de se apoderarem da Cidade. Estes, inimigos de Castela e invejosos do nosso florescente comércio com a China e com o Japão, tentam, através da Companhia Holandesa das Índias Orientais, interceptar as redes comerciais portuguesas asiáticas e o seu porto de abrigo – Macau.

A frente da Guerra Luso- Holandesa (1595 – 1663), não vivia só de confrontos na Ásia (Índia, Malaca, Bornéu, Ceilão, Batávia…) com a Companhia Holandesa das índias Orientais, mas também com as Companhias Ocidentais, por causa dos escravos de África e sobretuto do açúcar do Brasil.

Macau à época, nas palavras de Jaime Cortesão, era, na sua origem, uma cidade de “fundação urbana puramente democrática, o que aproxima Macau sob este aspecto dos grandes burgos medievais (…). A cidade … deveu a sua rápida prosperidade à posição magnífica que ocupava cerca de Cantão, e a meio caminho entre o arquipélago malaio e japonês. Fundada por mercadores portuguêses, práticos já no comércio da China (…). Uniu-os desde o princípio a comunidade dos interesses comerciais; e a mesma avançada civilização do país, onde a cidade encravara, os auxiliou a manter no burgo uma tonalidade mais elevada que nas restantes cidades portuguesas da Ásia”.

Cidade burguesa, livre, cosmopolita – terra de comércio -, segundo Charles Boxer, “havia então uma bateria no ponto onde hoje existe o forte de Santiago da Barra, outra em S. Francisco e uma terceira em Bomparto. A cidadela de São Paulo do Monte, principiada em 1616, ainda não estava concluída de todo, embora devesse estar bastante adiantada; a ermida de Nossa Senhora da Guia estava ainda por fortificar, e não havia quaisquer outras obras de defesa”.

O primeiro sinal de um eminente ataque é dado quando “Chegaram a esta barra de Macao quando menos se esperava, a vinte e nove de Maio, quatro naos, duas Olandesas e duas inglesas”.

Uma ideia já antiga. A primeira tentativa remonta a 1601, a 3 de Outubro, quando os navios holandeses, o Amsterdam e o Gouda, sob o comando do almirante J. van Neck, tinham surgido à vista de Macau. Facilmente dominados, alguns homens viriam a ser presos e executados. Não contentes com o seu destino, os holandeses repetiram a sua sorte em 1607 e 1621.

Pouco fortalecida e nada fortificada, a Cidade, na opinião do governador geral das Índias Orientais, Jean Pieterzoom Coen – numa carta mandada aos seus superiores, diz que “Macau foi sempre uma praça aberta sem guarnição que, embora dispondo de algumas munições e de ligeiros entrincheiramentos, facilmente poderia ser tomada por uma força de 1000 a 1500 homens e convertida numa praça que poderíamos defender contra o mundo inteiro”.

É aqui que entra no palco das operações um nome que convém desde logo fixar, Lopo Sarmento de Carvalho. Foi ele que, desde logo, pressentiu, talvez devido ao seu ofício de Capitão, que algo de anormal, de estranho, se passava e que tomou, quanto antes, as devidas precauções na defesa da Cidade – “não dormia, como prudente, e entendendo os enganos de inimigo, ajuntou toda a gente que na terra havia, ordenando-a em companhias, fortificou os logares que lhe pareceram mais fracos, por onde poderiam os inimigos entrar, pondo capitães, e dividindo a gente o melhor que pode”. Previu que “Cacilhas que era uma praiazinha distante da cidade um quarto de legoa, que ficava detras de dois montes, poderia servir de facil entrada aos inimigos, que ganhando a praia e os montes, ficariam fazendo damno á cidade, pretendeu cercala com uma tranqueira forte mas, pela contradição que houve da parte da cidade …” – , o que se veio a verificar.

Apesar de ser época de tufões (Junho), a maioria da população portuguesa andava no mar alto, o ofício de comerciante assim o exigia. Era o período do ano das compras da seda crua em Cantão e da grande viagem anual ao Japão. A cidade estava desprotegida, restavam poucos ou nenhuns para combater, mas por poucos que fossem, eram contudo “homens briosos e aptos para a guerra”. Na missiva acima citada, de Jean Coen, este refere que “Ao presente há em Macau uns 700 a 800 portugueses e mestiços e cerca de 10.000 chineses”.

A vitória, conforme afirmou Manuel Teixeira, deveu-se à “coesão dos seus habitantes, cujos interesses particulares eram os interesses da cidade. Quem tocasse nesta terra, tocava neles próprios; quem a atacasse, feria-os na própria carne, no sangue e na vida”.

Montalto de Jesus, no seu “Macau Histórico”, diz que havia apenas 80 europeus capazes de pegar em armas, o que é manifestamente pouco!

A esquadra holandesa que veio atacar Macau – 24 de Junho de 1622 – sob o comando do almirante Cornelius Reijersen, compunha-se de 15 navios – 13 holandeses e 2 ingleses (os números aqui divergem muito, estes parecem ser os mais fidedignos) – Zierikzee, Groeningen, Delft, Gallias, Engelsche Beer, Enchuysen, Pallicatta, Haan, Tiger, Victoria, Santa Cruz, Troom e Hoop (holandeses) e Palsgrave e Bull (ingleses). As forças de desembarque contavam com 600 homens europeus e outros 200 homens entre índios, malaios e japoneses (Charles Boxer fala em 1024 homens). Os ingleses recusaram-se a combater. A vitória dos holandeses parecia assegurada, tal era a despropoção de forças em combate. Os holandeses não estavam com pretensões de dividir o saque.

Para desviar as atenções, já a 23 de Junho três navios holandeses – Groeningen, Gallias e Engelsche Beer, bombardeiam o Forte de S. Francisco – “desde as duas athe ás seis horas da noite”, que se lhes respondeu no mesmo tom – “Eram os estrondos tão grandes, que pareciam medonhos trovões, e os pelouros vinham tão furiosos, que pareciam ligeiros coriscos, e em tanta quantidade que parecia um grande e grosso chuveiro”.

Na manhã do dia 24, os dois primeiros navios continuavam a bombardear. Gallias é fortemente atingido, vindo a afundar a 1 de Agosto.

O desembarque dá-se na praia de Cacilhas – duas horas depois do nascer do Sol.

Foram “os corações resolutos e braços esforçados dos seus moradores”, sobre o comando de António Rodrigues Cavalinho, que entricheirados num banco de areia da praia, receberam a tiro de mosquete o exército holandês. Apesar de entre os feridos do inimigo se contar o próprio almirante Reijersen, estes não cedem, tendo os portugueses dificuldade em conter a fúria holandesa. Em inferioridade numérica, a ordem é de retirada – “pela campina que corre ao pé da serra da Nossa Senhora da Guia”, sempre que possível ripostando.

É o Pe. Jerónimo Rho – italiano e grande matemático da congregação dos padres Jesuítas da Fortaleza de S. Paulo, que das três bombardas daí lançadas, (teria sido a sua, segundo reza a história), acerta num barril de pólvora mesmo no meio do exército holandês, o que terá desorientado e amedrontado as hostes inimigas.

Entram em pânico. Atemorizados, hesitantes – estavam estacioados na Fontinha – , planeavam alcançar pelo lado oriental o cimo do monte do “Charil”, (Monte da Guia). Lopo de Sarmento, ajudado pelo capitão João Soares Vivas, apercebeu-se das intenções dos holandeses e então, juntos, tomaram a dianteira pelo lado ocidental, incentivaram os seus homens, “com tão grande alarido e gritos de valorosos Portuguezes que foram bastantes intocentos mosqueteiros para os deterem”.

A coragem, ousadia e valor de uns – “união de almas e de corações, … coesão de espíritos” – , a mágoa, desolação e vergonha de outros – a batalha perdida, a humilhação, a fuga.

Os chineses alegraram-se com a vitória – “As autoridades de Cantão mandaram como presente de parábens uma grande provisão de arroz à cidade. Com sua licença, foi Macau bem fortificada”.

O verdadeiro herói do milagre da vitória sobre os holandeses – no dia de S. João Baptista de 1622 – foi, além da sua população, naturalmente, o Capitão-mor das viagens do Japão, o transmontano Lopo Sarmento de Carvalho – pelo seu conhecimento, visão estratégia e destemida bravura.

Com a reaquisição da independência nacional, em 1640, pondo fim aos 60 anos da Dinastia Filipina, com a aclamação de D. João IV como rei de Portugal, Lopo Sarmento de Carvalho pediu licença para regressar ao reino, “alegando os seus serviços nas partes da Índia por mais de trinta e seis anos”.

O pedido foi analisado em Janeiro de 1641, aludindo os conselheiros do rei os seus “grandes e assinalados serviços prestados em ocasiões de mayor importancia”. O despacho só viria a verificar-se em 1644. Reza assim:

“Por rezolução de S. Mg. de 14 de dez. De 1643
El Rey nosso Sr. hauendo respeito ao que se lhe reprezentou por parte de Lopo Sarmento de Carvalho fidalgo de Macao do nome de Ds da china e os seus bons serviços que naquellas p.tes lhe feito, por espasso de mais de trinta e seis annos; Ha por bem de lhe fazer merce de lhe conceder licença que se possa vir para este Reino com a sua caza e familia, E que possa trazer consigo seu sogro, E que vindo pella via de Goa, lhe de o Vizo Rey o fauor e ajuda q lhe pedir para a comodidade e passagem de sua pessoa e familia, E que se lhe passem p. isso os despachos necess.s. Lx a 4 de Jan. de 1644”.

O Boletim Oficial de Macau n.º 30, de 27 – VI – 1863 – sensivelmente duzentos anos após a mais gloriosa vitória contra os holandeses, descrevia assim a festa desse ano: “Na tarde pelo Senado a Procissão de voto popular, do milagroso S. João Baptista, testemunho dado a Deus, pelo milagre deste dia há dois séculos a esta parte, na vitória brilhante, heroísmo de armas e dedicação ao rei de Portugal que esta Cidade soube ganhar e, que é uma das mais ricas páginas da sua história”.

Temos um Santo Padroeiro – é outra especificidade da – , mas não existe um lugar de culto que lhe tenha sido especialmente erigido. Apesar de ser uma data já raramente difundida, o que a torna pouco ou nada conhecida, é uma efeméride que a todos pertence.

Na segunda metade dos anos oitenta, o arraial em honra de S. João Baptista realizava-se na recentemente já meio ‘assassinada’ mata de casuarinas (não fossem elas chamadas ‘árvores da tristeza’…) de Hác Sá, em Coloane. Era uma festa organizada pela Associação dos Aposentados e Reformados da Polícia de Segurança Pública, sob as ordens do Comante Dias. Uma festa do povo e para o povo – vadia, de rua. O tempo nem sempre ajudou, mas a essência e o conteúdo marcavam sempre presença. Alegria, boa disposição, animação, comes e bebes à farta – penso que foi aqui que Madeira de Carvalho bebeu um pouco de inspiração para a realização da Festa da Lusofonia.

Nos anos 90 – com a chegada do último governador de Macau -, institucionalizaram-se, nas arcadas do Fórum, as festas em honra dos Santos Populares. Da virtude passou-se ao pecado. Os arraiais eram abertos, mas o lustro, o pó de arroz, o rímel, o batom e a música – nem sempre eram adequados à efeméride. Sérgio Godinho, Janita Salomé, entre outros -, passaram por lá, animados, claro, por essa feira das vaidades. Foi perdendo adeptos, desapareceu.

Houve uns anos de recolhimento, talvez devido ao politicamente correcto.
Nos últimos anos, as associações de matriz portuguesa têm realizado, com esforço e dedicação, no Bairro de S. Lázaro, a romaria para celebrar e relembrar S. João, o Santo Padroeiro e protector da Cidade de Macau. Este ano, como estamos a viver uma situação atípica, o arraial não se realiza.

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