Manuais de História | Beatriz Basto da Silva critica “descontextualização inoportuna”

Beatriz Basto da Silva considera “descontextualizadas” e “inoportunas” as referências a actos de corrupção durante a fixação dos portugueses no sul da China nos novos manuais escolares. A historiadora lamenta o desconhecimento sobre os primórdios de Macau

 

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi sobretudo o termo “corrupção” que desassossegou Beatriz Basto da Silva quando, a Coimbra, lhe chegaram as notícias sobre a forma como aparecem descritos os portugueses durante o período de fixação no sul da China nos novos manuais escolares. Apesar do anúncio de que as referências negativas vão ser eliminadas dos livros a introduzir, a partir do próximo ano lectivo, nas escolas secundárias, a historiadora critica a abordagem leviana que, a seu ver, reflecte o desconhecimento sobre os primórdios de Macau de quem tem responsabilidade na matéria.

“Corrupção é uma palavra com uma conotação lexical actual muito negativa, ligada ao crime, à pulhice, que naquele tempo não existia. É um termo descontextualizado para a época porque estamos a falar de oportunidades fáceis para trocas comerciais não legalizadas”, afirma Beatriz Basto da Silva. Segundo a autora da “Cronologia da História de Macau”, o que havia era uma “busca pelo negócio possível em águas que não pagavam tributo ao imperador da China”. “Nós não tínhamos licença para penetrar num comércio mais fixo, pelo que as trocas eram combinadas, na chamada ilha do encontro, de um ano para o outro, pelos interessados em comprar e em vender, pelo que o comércio era naturalmente tão clandestino da nossa parte como da parte dos chineses do sul. Éramos ambos meridionais e por isso entendíamo-nos muito bem”, sublinha. “Acha que naqueles tempos do século XVI alguém saía prejudicado daquele pequeno comércio?”, questiona.

Em paralelo, “o próprio imperador da China estava interessadíssimo em que os portugueses permanecessem nessa clandestinidade para que lhe levássemos o ambicionado âmbar cinzento, como refere o historiador Wu Zhiliang no livro ‘Segredos da Sobrevivência’”, complementa. À semelhança de Tereza Sena, reconhece actividade ilícitas mas, ao contrário da também historiadora que, aos microfones da Rádio Macau, desvalorizou o termo corrupção, Beatriz Basto da Silva fala de uma certa “perversidade” na utilização da palavra, até porque os manuais têm com destinatários jovens em idade escolar.

“Não estou a dizer que não houve, mas não seria corrupção como hoje a designamos”, pelo que “ensinar às crianças que fomos corruptos é de uma agressividade e de uma falta de senso enorme. Vão crescer a pensar coisas terríveis e cada vez mais distantes da verdade”, argumenta.

Neste sentido, a também ex-directora do Arquivo Histórico defende que se mostre aos estudantes a herança do contacto. Assim, sugere designadamente visitas ao Museu de Macau, em cuja feitura esteve envolvida, por ser fruto da preocupação de deixar “uma memória colectiva de encontro e não de confronto”.

“Há muitas pessoas que se auto-denominam de chineses de Macau, porque é um sítio diferente, com as suas características. Macau não é só China – é China mais qualquer coisa. Um qualquer coisa que interessou preservar desde o século XVI até hoje”, apesar das “cotoveladas comuns entre irmãos”, ocorridas em determinadas épocas da história comum.

“A nossa relação começou bem e tanto assim foi que progrediu e chegou aos dias de hoje. Os chineses não gostaram de nós em vários sítios. Em Lampacau, por exemplo, mandaram-nos dar uma curva, mas em Macau consentiram, permitiram e depois foram tirando partido”, contextualiza.

“A nossa presença em Macau interessou não só a Macau, mas à China toda”, enfatiza Beatriz Basto da Silva, para quem “dá a impressão de que há autoridades com vontade de fazer uma lavagem cerebral aos jovens que serão o futuro de Macau”.

“Parece que estamos a encontrar uma terminologia inoportuna propositadamente para criar conflitos”, sustenta a historiadora, deixando um conselho: “Se querem realmente fazer qualquer coisa leiam e estudem primeiro”.

Questão de perspectiva

Os manuais de História da China, elaborados pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) em colaboração com a editora People’s Education Press, que funciona sob a tutela directa do Ministério da Educação chinês, geraram controvérsia por alegadamente darem uma visão parcial e tendenciosa no que concerne à História de Macau, incluindo passagens com referências negativas aos portugueses.

Segundo o Jornal Tribuna de Macau (JTM), os livros escolares, que vão integrar os currículos do 7.º ao 12.º ano, vão ser adoptados por mais de metade das escolas secundárias a partir do próximo ano lectivo.

Segundo o JTM, os manuais associam os primeiros portugueses que chegaram à China a actividades de contrabando e de pirataria, bem como a crimes de corrupção. A título de exemplo, o manual do 10.º ano diz que os portugueses obtiveram autorização para usar os portos de Cantão e praticar actividades comerciais no âmbito de um esquema de corrupção que envolveu oficiais de Guangdong e que permitiu a vinda gradual de portugueses, segundo o mesmo jornal. Ora, na perspectiva de Beatriz Basto da Silva, esse “esquema de corrupção” não era mais do que “conveniência mútua”.

Após a celeuma, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, anunciou que essas passagens negativas relativamente aos portugueses, em concreto a associação a actividades de contrabando e corrupção, vão ser eliminadas da versão final dos manuais escolares.

A produção de manuais de História com conteúdos uniformizados com os da China foi anunciada em Novembro de 2016 pelo Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On.

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