João Luz EventosArtes gráficas | Estúdio de Xangai ilustra erradicação da pobreza Com inspirações milenares e bênção política, o estúdio Fusion Era, sediado em Xangai, apresenta um projecto de dimensões continentais. “Out of Poverty: Not One Less” é um conjunto de vibrantes de ilustrações que retrata paisagens das várias províncias chinesas e grupos étnicos. A vasta colecção de trabalhos tem sido promovida extensivamente na internet como uma pérola patriótica e um exemplo da vivacidade artística da Geração Z Do velho se faz o novo, a fórmula que não tem prazo de caducidade transmite a ideia por detrás de uma onda artística que bebe inspiração no passado pictórico e no presente político. Com raízes plantadas na clássica pintura chinesa do século XII da Dinastia Song, o colectivo de Xangai Fusion Era lançou-se numa odisseia gráfica: retratar os 56 grupos étnicos chineses e 34 províncias. Pegando na subtil evocação do clássico “Ao longo do rio durante o Festival Qingming”, as animações digitais do estúdio Fusion Era atribuem uma forma moderna à representação dos povos e paisagens chinesas, enaltecendo a erradicação da pobreza no país e os magníficos feitos do Partido Comunista da China (PCC). Aliando a linguagem digital das novas gerações à mensagem oficial e à promoção do patriotismo, as animações digitais têm sido amplamente partilhadas na internet desde o início das celebrações do centenário do PCC. Os novos meios de expressão artística, com prevalência para formatos digitais, deram voz a uma geração de novos criadores chineses, que não precisam de incentivo extra para integrar mensagens patrióticas nas suas obras. Um bom exemplo disso é Li Tianzhi, um dos ilustradores que criou a série “Out of Poverty: Not One Less”. Um dos pontos fulcrais do portfolio do ilustrador de 26 anos até este projecto era trabalhos focados na estética e preservação de monumentos e edifícios antigos chineses. Em declarações ao portal Sixth Tone, Li explica que desde a infância é “fascinando pela diversidade geográfica, paisagística e étnica da China”. Foi, portanto, um processo natural que o conduziu à representação do sucesso da campanha de erradicação da pobreza na China, através das montanhas e rios do país. Além disso, o jovem destaca a inspiração retirada da teoria das “duas montanhas”, de Xi Jinping, que realça o reflexo positivo que as políticas ambientais têm na economia. O capítulo dedicado à província de Yunnan é para Hu Muyang, um dos fundadores da Fusion Era, motivo de orgulho do mega projecto de grafismo digital. A região, situada na região montanhosa do sudoeste da China, é, desde há muito, uma das mais pobres do país. A estrela da ilustração que representa Yunnan é Zhang Guimei, uma proeminente pedagoga que fundou a primeira escola grátis para raparigas oriundas de famílias desfavorecidas. “Ela é uma figura sensacional, sofreu muitas angústias e dificuldades, a história da sua vida emociona qualquer um”, contou o artista às Sixth Tone. Porém, em vez se focar no passado trágico de Zhang, que ficou órfã quando era criança e viúva ainda nova, o trabalho do grupo de Xangai retrata-a como um ser maior que a vida, a pairar entre as nuvens, olhando com um sorriso vitorioso e benevolente a paisagem idílica de Yunnan. Aos quatro ventos Criado em 2019, às portas da pandemia, o estúdio Fusion Era colaborou com empresas de audiovisual da Europa e dos Estados Unidos e museus chineses. No entanto, o coronavírus obrigou a equipa a trabalhar a partir de casa e a partir para uma abordagem mais direccionada para uma mensagem pública. Em declarações ao Shanghai Daily, Hu Muyang admitiu que acolheu também a missão de contrariar rumores e narrativas, vindas do ocidente, sobre a China. “Queríamos que o mundo ouvisse vozes realmente chinesas e insistimos em mostrar a cultura e sociedade chinesa vistas pelos olhos dos jovens chineses da Geração Z”, conta. O lançamento de “Out of Poverty: Not One Less” foi amplamente divulgado e disseminado por tudo o que é rede social, em especial na China, incluindo através de uma campanha de vários influencers, onde também se contaram estrangeiros. Além disso, a epopeia digital foi acompanhada por um jogo de “caça ao tesouro” e por um longo tema de hip-hop elogiando a nova e crescente força da China, intitulado “100%”, lançado com pompa e circunstância na plataforma de transmissão de música NetEase Cloud Music. O jovem ilustrador conta que foram tidos em conta inúmeros exemplos de “estudantes que finalmente conseguiam sair das suas cidades natal, em zonas remotas e desfavorecidas, movidos puramente por vontade, para fazerem exames de acesso ao ensino superior”. “Agora que eliminarmos a pobreza, quero transmitir a alegria e orgulho daqueles que regressam às suas terras de origem sem receio de regressarem à pobreza. É a isso que chamamos revitalização rural”, afirmou Hu ao Shine, publicação em inglês do Shanghai Daily.
Sara F. Costa Expectoração h | Artes, Letras e IdeiasFaça dinheiro a partir de casa Já escrevi sobre a geracão Z num artigo anterior. Isto de voltar a um tópico sobre “os jovens” e “os dias de hoje” pode perfeitamente parecer um conflito geracional mal resolvido – um daqueles que prometi que nunca iria ter. Vou antes encarar este interesse como uma forma de estar atenta à mudança e ser capaz de antecipar cenários (económicos, sociais e políticos). O meu sobrinho um dia destes perguntou-me se eu queria fazer parte de uma equipa de “mineração de bitcoin”. Aparentemente, só tinha que lhe emprestar a potência do meu computador para o deixar ligado a “minerar” a moeda digital. A mineração é, basicamente, a resolução de um problema matemático. Quanto mais pessoas existirem numa rede com computadores ligados a tentarem resolver uma equação, como por exemplo x – 2 = 0. O primeiro a chegar à solução “x = 2” recebe a recompensa pelo trabalho. Não é fácil o meu sobrinho convencer os avós sobre isto de tentar ficar rico já aos treze anos usando apenas um computador. Nunca existiu uma época como esta. Uma série de miúdos com acesso a comunidades e fóruns online como o discord, passam informação e conhecimento sobre procedimentos vários que lhes permitem começar a trabalhar quando quiserem, em casa, em frente ao – sim, adivinharam- computador. Mas se a existência digital é nova, o ditado é antigo “dinheiro gera dinheiro”. Aquele que conseguir convencer elementos da geração que o precede em relação à sua visão de negócio digital, pode mesmo vir a ter capital para investir. A partir daí, tudo vai depender de quantos vídeos viu no YouTube sobre como investir em criptomoedas, liderar esquemas de pirâmide, fazer marketing social ou aprender a vender coisas que não lhe pertencem. Perguntam-me os leitores muitíssimo interessados neste texto: como assim, vender coisas que não lhes pertencem? O termo é “dropshipping”. Numa forma de comércio tradicional, um vendedor vai fazer compras ao retalho e revender com a sua margem de lucro. Nesta fórmula, os produtos são também exibidos num website criado pelo jovem que entende de internet. Nesse site, ele coloca fotos e informações do produto e torna-o disponível para compra. Só que não o tem! As fotos e as informações foram retiradas de plataformas de e-commerce chinesas como o aliexpress ou o Alibaba e quando um pedido cai no website do revendedor, ele encomenda nesses sites e entrega ao consumidor final. O segredo do sucesso deste modelo passa pela observação minuciosa do comportamento das pessoas online. Existem sites que revelam exatamente toda a informação que o Facebook, o Instagram e o Tiktok têm sobre quantas pessoas reagiram a uma publicação para um produto específico (produtos de nicho). Ao analisar a tendência de interesse, o revendedor vai investir com pagamento de publicidades, criação de websites, lojas online, etc. Há tempos, estavam em voga uns calções de banho que mudavam de cor quando uma pessoa entrava na água. Afinal, é possível montar um negócio lucrativo sem acabar o secundário? De facto, para se ser rico, não é preciso saber-se muito mais sobre o mundo do que aprender a reproduzir lógicas de acumulação de capital e exploração de mão de obra. É desta forma que se alcança o sonho capitalista, desvalorizando qualquer tipo de experiência que não conduza a uma produtividade material. Resta-nos desejar que as artes, humanidades e ciências sociais (menos “produtivas”), permitam aos jovens serem jovens e que este continuem, como é seu papel, a sonhar em mudar o mundo e não a deixá-lo como está em nome do benefício próprio.
Luís Carmelo PolíticaGeração Z: inocências e tentações [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras são nuvens que desarrumam o pano de fundo. Ao trabalhar com elas, talvez o mais importante seja a arte de saber mergulhar na própria desarrumação, do mesmo modo que, ao entrar na rebentação das ondas, há sempre um caudal que nos arrasta e um outro que nos faz seguir e olhar em frente. D. de Kerckhove escreveu há duas décadas uma frase lapidar sobre esta entrada no oceano: “Os gregos inventaram o teatro para recuperar a proximidade que tinha sido estilhaçada pelo alfabeto”*. Por outras palavras: as escritas clássicas, todas elas (incluindo as escritas do corpo), ensinaram-nos a separar as águas e a cativar, ao mesmo tempo, a distância e a solidão. Ao invés, as escritas digitais deixaram de desarrumar, pois elas são o próprio pano de fundo: céu táctil onde deslizam os dedos e a mente no seu todo sem grande preocupação de ‘inscrever’ e sobretudo de singularizar, mas antes de reduplicar formatos que são já tendencialmente dados em fluxo e/ou gerados pelos sistemas algorítmicos. Uma revolução neural que domestica (cada vez mais) os dispositivos na sua relação com o corpo, quase inviabilizando aquela ideia milenar de que os humanos, sendo sociais, sabem estar a sós consigo mesmos. Esta impossibilidade de se ser a sós no quotidiano do mundo digital (e de entrever uma distância, ainda que ilusória, entre si e o mundo – apanágio de ouro dos modernos) parece aflitiva. Seja como for, estou certo de que ela se irá tornar de tal modo corrente que a própria percepção da aflição (que hoje alimentamos) irá evoluir muito rapidamente para uma nova noção de normalidade. Questão de tempo. Em O Fantasma sai de cena (2007), P. Roth atirou o seu protagonista de maneira abrupta para as ruas de Nova Iorque, dando assim conta da estranheza (profunda) que era ver toda aquela gente agarrada ao novo suplemento da mente chamado “smartphone”. Ninguém era capaz de estar consigo mesmo: ou se projectavam nas imagens digitais, ou falavam com outrem. Fluxo puro. E isto aconteceu há apenas uma dúzia de anos. Era a fase do pasmo. Uma década depois, vemo-nos a cair (e com prazer, curiosamente) para dentro do aquário digital de tal modo que quase deixou de existir um espaço ‘de fora’ (que permitisse observar com distância, tal como acontecia no romance do Roth) e um espaço ‘de dentro’. Todo o mundo como que submergiu e se transformou na água do fantasmático agora-já-aqui, o novo deus sem forma e movido pelo espírito santo da IA. A geração pós-millenial – a geração Z – encarna como ninguém este aquário supremo e, para ela, a grande aflição seria poder imaginar um mundo sem os dispositivos que permitissem a alucinação, mas uma alucinação desprovida das peias, das vanguardas e das rockadas dos avós babyboomers. Estamos a viver uma (belíssima) transição meteórica de que conhecemos razoavelmente os pontos (plurais) de partida, mas de que temos particular dificuldade em perceber a natureza dos pontos de chegada. Tudo à nossa volta é um indefinido batimento de claras em castelo: uma progressão enigmática ‘in media res’. Dir-se-á que estaremos a viver um novo Iluminismo (no sentido de uma ponte inorgânica entre mundos muito distintos), mas com uma carga cinética, convulsiva e de velocidade tal que supera todas as capacidades de o poder imobilizar, para depois sobre ele reflectir. Não, não haverá mais Kants. Giambattista Vico em Scienza Nuova (1725) dividiu a humanidade em três grandes fases e na primeira os seres humanos eram vistos como meras “substâncias animadas por deuses”. Nos dias de hoje e nos tempos que se seguirão, estou em crer que este tipo de passividade animada (agora pelas divindades da virtualidade) se irá expandir cada vez mais. Novos tipos de patologias e novas formas de propriocepção estarão a caminho. Uma nova antropologia e uma nova cultura que abandonará as linguagens com que aprendemos a trocar o desconhecido pelo conhecido e a significar a experiência estarão a caminho. Este suave vórtice que se prenuncia tem um lado virtuoso que é o de perceber, até que ponto, tudo o que a espécie imaginou e desejou, ao longo de milénios (nos mitos, na literatura, no cinema, etc.), corresponderá a algo, ainda que em parte, concretizável. Os desejos potenciais do humano, pondo de lado a imortalidade (embora esteja hoje em voga o novo mito da juventude eterna; basta espreitar para dentro dos ginásios para o compreender), irão debater-se com novos e inovadores patamares de ‘realidade’. Veremos o que resultará desses novos interfaces. Provavelmente já não estaremos neste planeta para o aferir e verificar em pleno. Mas deverá ser um exercício fascinante. Assim será, pelo menos para quem, talvez de forma inocente, ainda cultiva alguns restos de optimismo. É o meu caso. *Kerckhove,D., A Expo e os princípios @ (Entrevista) Indy – O Independente, Lisboa,18-09-1998, pp. 13.17.