Um fósforo e era fogo

Era uma vez uma senhora que escrevia cartas de amor. Sobretudo. Por ofício. Por encomenda e por medida, como um bom alfaiate. Uma história que começou na infância. E lá, aonde eu vou, quando se definia brincar a algo, combinava-se as personagens previamente. Agora eu era e tu eras. Nunca pensei, então, porque o dizíamos assim.

No pretérito imperfeito porque era um mundo perfeito em que habitava aquela fantasia e em que o único defeito era o de não existir. Imperfeito, mas pouco. De era uma vez. E algo nos suspendia inocentes nesse presente do passado, que não existindo nem tendo existido, ainda assim era como se fosse uma história antiga a encenar. Porque nem havia como demonstrar não ter existido, já que se inventava com efeitos para trás, um presente contemporâneo desse passado. Que não queríamos ver concluído, passado e perfeito.

Mesmo as histórias de embalar começavam com este pretérito tão imperfeito como tantos passados. E nele se mantinham todos os verbos. O que era e não era. Talvez porque nunca nada se concluiu, foi também onde começou aquele fenómeno estranho e que assim ficou para sempre no presente do presente. Abeirar-se do telefone, ou de um olhar, como quem se colocava à beira do abismo. Um espelho de água, uma poça de água da chuva, afinal sem demais profundidade. Em tudo do quotidiano parecia dizer-se que “a ordem visível das esferas mais altas virá mirar-se na profundeza mais sombria da terra”. Era o que parecia. Hesitar abismada no medo. Por isso as cartas de amor, por ofício. Por encomenda. Tecia ou talvez bordasse, como sabia ou tentando melhor, com tudo o que a vida lhe punha ante os olhos, fios de luar ou feromonas.

Era uma vez. Um tempo. Eu era a senhora que escrevia cartas de amor, sobretudo. Comecei na infância com coisas cerimoniosas em postais de cartolina branca com o cavalinho em sangue de boi dos correios portugueses. Eu tinha duas avós e a ambas cortei o cabelo, na idade avançada, mas somente a uma escrevia cartas. Por ela, que as não sabia mas ditava. Até um certo ponto e depois eu tinha que inventar e esticar o assunto para encher o exíguo espaço dos postais porque tinha letra pequena e porque o ditado ainda era mais curto do que o espaço em branco. Para a avó chegava, mas para mim era uma questão de brio. Pelo menos encher o espaço. Minhas queridas irmãs, dizia ela.

Uma minha querida a cada uma das duas e em cada postal, porque quando escrevia a uma escrevia a outra. Deus queira que ao receberes este meu postal. Sempre assim do mesmo modo e com as mesmas palavras. E por ali fora, sempre igual porque estava bem. Outras vezes de pêsames naqueles envelopes pequeninos contornados a negro como aquela fita que se colocava nas mangas e se chamava fumo. O do luto a ensombrar a fronte. Mas nem chegavam a ser tristes naquela formalidade longínqua aos sentimentos.

Ensaio e pergunto ruborizada se está bem se é assim o sentir: Estou a perder-me sem ti. Sinto-me uma não habitação neste espaço só de te retirar. Perco-me sem fito sem sentido sem fim quero acabar em ti deixar-te tudo e para mim ter-te se é demais se devo ser mais sóbria mais contida menos emoção ou mais romantismo mais mistério ou mais exotismo. Pergunto, sentada, a roer o lápis de nervosismo, como o que sempre o amor provoca. Mesmo o de quem está na minha frente e explicou e encomendou. Escrevem-se cartas de amor. Diz o anúncio que aqui traz estas pessoas que me dão o nome o amor e o nome do seu amor. Para que o escreva numa carta em papel como antigamente. Selada e fechada em envelope de papel bom. Imito a caligrafia sem grande preocupação mas para ser uma espécie de verdade. Querem-nas bonitas e eu quero-as verdadeiras e quero-as profundas. Puxo por um fiozinho com jeito, a espreitar interiores. Que se prendam às palavras que virão depois. É o que desejo. Que seja tudo verdade. Mesmo a voz. Tento retê-la com atenção. Tem que se colar à folha e aos intervalos de silêncio. Aos espaços entrelinhas. Tenho este anseio. De escrever o que não escrevi. De me empenhar e ruborizar em todas as palavras difíceis. De me encarniçar – o vermelho é uma cor de guerra às palavras difíceis de dizer – do rosto à alma.

Ferozmente encontrar o termo exacto. E esconder os olhos na textura grossa do papel fresco. E na tinta permanente em azul, da caneta em repouso para depois do lápis, que serve para as primeiras impressões. E apetece-me dizer entrelinhas, para o caso de surgir uma dúvida uma hesitação ou desconfiança: esta é a voz que te ama. Se não a caligrafia, a voz. Que tento adivinhar no rosto á minha frente.

Sento-me no banco do jardim e olho aquele rosto de óculos, por detrás do fumo e penso no que será capaz, ao ler-me no rosto pensamentos resistentes. Ela que as escreve. Aquelas difíceis e doces, que começam como as histórias de embalar, num pretérito imperfeito: eu gostava de te dizer. E depois, o resto. Que as mulheres mais velhas da família lhe ensinaram a não dizer, de sentimentos, mas a sentir com pudor e a esconder sentir. Tudo. Procurava nas palavras difíceis que são as do amor. Ensaios sem fim à vista. Quando tudo se resume á palavra que são duas pessoas. Com hífen. Sem mais. Sem saber a dor no impacto. E a dor do ressalto, como o da coronha de uma arma.

Quero-te, desaconselha. Porque intimidante. O lugar da emoção é o mais difícil de dizer. Fica a ouvir todas as palavras de cada um, antes da síntese ideal.

Era uma senhora que escrevia cartas. De amor. Prometeu que a encontrava no Jardim Botânico e por ali vagueio até descobri-la. Sentava-se num banco, para além de intrincados atalhos, como para se perder de ser encontrada sob a cumplicidade discreta e murmurejante das árvores. Pensa ou penso adivinhar o que diz quando perguntam: As pessoas que me tocaram, as que me marcaram, as que rasgaram cicatrizes e escaras. A história nunca está acabada na escrita que lhes faço. Talvez por isso.

Depois, á minha frente, o rosto redesenhado de linhas a mais, as pálpebras, os contornos a descair amolecidos pela vida e as asas despidas como de folha caduca ou radiografia em demasiado inverno para voar e sinto afeição por essa senhora e é com ela que me apetece escrever. Cartas de amor. A lembrar Machado de Assis: “Depois…depois (…), queimaremos o mundo”, (…) “e eu vivo e morro por ti”. E é nestes verbos que sobrevivo. Acrescento.
E, era ilusão minha, ou ela sorria.

26 Jan 2021

Homem pega fogo a lanterna nas Portas do Cerco

[dropcap]U[/dropcap]m homem do Continente foi detido na sexta-feira passada, no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, por alegadamente ter incendiado lanternas comemorativas do Instituto para os Assuntos Municipais (IAM), devido à frustração de ter perdido dinheiro nos casinos.

Uma das lanternas foi queimada a 30 de Setembro do ano passado, tinha a forma de um coelho e comemorava o Festival do Bolo Lunar. Segundo o Governo, o fogo causou um prejuízo de 56,8 mil patacas devido ao material da lanterna. Após o caso, em 2018, a Polícia Judiciária iniciou a investigação e identificou um homem com um isqueiro a pegar fogo várias vezes ao “coelho”.

Porém, antes de ser detido, o homem, com 37 anos, passou a fronteira. No sábado voltou a Macau pelas Portas do Cerco e foi detido. Segundo a PJ, o homem é desempregado e vai ser acusado por cometer casos de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas. O suspeito arrisca-se a uma pena até 10 anos de prisão.

3 Jul 2019

Centro Católico esteve ontem em chamas. Autoridades suspeitam de fogo posto

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]edifício do Centro Católico, na Avenida da Praia Grande, esteve ontem à tarde em chamas durante vários minutos, tendo sido extinguido por civis. A Polícia Judiciária (PJ) suspeita que se tratou de um caso de fogo posto, devido à existência de beatas de cigarros no local.

“Às 14h50, um cidadão viu fumo a sair do local e ligou às autoridades a alertar para a situação. Esse cidadão ligou às autoridade, mas quando os bombeiros chegaram ao local, o fogo já tinha sido apagado pelas pessoas”, de acordo com informação divulgada pela PJ, através de comunicado.

“As autoridades consideram que a causa do incêndio não é normal”, foi vincado no comunicado. A PJ vai assim abrir uma investigação ao episódio, também pelo facto de terem sido encontradas beatas no local e não haver objectos eléctricos ligados à corrente na área onde deflagraram as chamas. Segundo o canal chinês da Rádio Macau, a área ardida foi de 30 centímetros quadrados.

Apesar do aparato no local, não se registaram vítimas. Contudo, o edifício sofreu danos de pequena dimensão.

Em vias de demolição

O Centro Católico está há vários anos para ser renovado. Este propósito levou mesmo o Bispo de Macau, D. Stephen Lee, a criar um gabinete para o efeito, no final do ano passado.

As obras de demolição do edifício deverão acontecer em Julho de 2019, de acordo com um artigo do jornal O’Clarim, tendo a Planta de Condições Urbanísticas (PCU) para a nova obra sido aprovada pelo Conselho do Planeamento Urbanístico, a 9 de Maio deste ano.

A reconstrução do Centro Diocesano prevê mesmo a criação de um hotel de duas estrelas, para acomodar peregrinos e visitantes, de acordo com o plano traçado por Stephen Lee. Além disso, as futuras salas multiusos serão reservadas para formação de fé, ao mesmo tempo que a sala de exposições irá mostrar ao público a história da Igreja Católica em Macau.

12 Set 2018

Um dia, dia um

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap] por aí adiante. Em novo crescendo. E assim segue depois a vida, a partir de uma fronteira tão nítida, passada lentamente para que todo o imenso poder da transposição se encarne, incorpore e entranhe, sentido real e irreversível. Um dia, que podia ser um daqueles dias de fim de ano, em que resolvo fervorosa, misticamente, supersticiosamente, ou enganando-me facilmente como a uma criança, focar nessa transição para o mesmo, o mesmo começar de novo, mas nunca o mesmo atrás, nessa correria sem retorno do tempo. Sem retorno de nada. Podia ser mas nunca é. Senão uma vaga euforia de luzes, em fogo de artifício, e que é isso mesmo. Ilusões de recomeçar. Nunca do zero, diga-se.

Num tabuleiro de jogo, num momento qualquer, acabar, recomeçar. Voltar a lançar os dados, voltar à casa da partida. E também aí nunca se muda estruturalmente, nada. Mas neste jogo, os dados estão lançados. Como disse Sartre. E já não há a casa da partida. Partiu.

Essa mudança, estudada e planeada aos mínimos detalhes, subliminar a ganhar espaço, talvez seja uma raridade que facilmente se deixa escapar desse cadinho de hipóteses, da vida. Uma raridade que, com sorte, acontece uma vez na vida. Como um grande amor. Alguém disse. Com muita sorte, duas. Às vezes, nenhuma ou muitas. Como a marcação de uma viagem destas que disse. Um dia, a grande mudança. Um dia, o dia um. Com sorte. Mapas. Planos de viagem e uma agenda ordenada e limpa. A casa. O relógio um pouco adiantado. A querer mergulhar em cada migalha de momento. Com uma respiração profunda que acalme a ansiedade toda, a insegurança toda, ou a pressa. É assim que deveria ser. Sem o atropelo de todos os tempos verbais, a alucinar em cada forma simples do presente do conjuntivo, ou do presente puro presente. O de indicativo. Talvez da consciência de ser. O presente, o dos verbos, do verbo, do olhar firme e do tacto para dar o tempo até ao final da respiração. Não antes. Nem depois. Aí, às vezes, também já é tarde demais. Esta precisão de relógio afinado pelas mais finas tecnologias, é tão fácil de falhar. A pontualidade da vida, talvez. Ou a pontuação certa de uma frase. Um olhar tubular sobre o momento, o fenómeno, o acontecimento.

Ou, ainda dos verbos, uma ânsia do infinitivo.

Depois há uma questão que paira um pouco turva acima e a sombrear toda a resolução. Esta preocupação de monitorizar a vida, calendarizar os grandes fenómenos que se apresentam, delimitar recordações e sistemas de ambições. Controlar algo de definitivamente intratável neste contexto, inclui quase tudo o que é sentir. Mas há um sentido possível a imbuir cada face deste prisma, uma localização confortável, um ponto de vista sobre esse patamar ou balaustrada em que debruçamos cada aspecto, cada parte, cada uma das ramificações. Querer dominar, só o dominável. De preferência e só da pele para dentro. E acrescentar encantamento formal ao possível. Fugir de roupas em série. Somente por medida e emendadas por mãos profissionais. A alta costura do sentir com um sentido de continuidade. Afinado. Como em escultura no mais puro e cristalino mármore de Carrara.

Portanto o dia primeiro de um reencontro. O maior de todos – que me desculpe algum amor de imensidão. A vida conduz. Sub-repticiamente mascarada de decisões sobre decisões. Mas algo se afasta, quase perde, perde, até que um dia, com muito tempo de intervalo entre uma véspera qualquer, e um dia, se designa e sente a aproximação do dia. Esse outro dia. Desse reencontro enorme e o maior de todos porque, disse-se, daqueles que ocorrem uma vez na vida. Com sorte. Com muita sorte: duas. Como um grande amor. Como nascer. Morrer.

De passagem, penso que ali estará o meu monstro com toda a sua pelagem e ferocidade e doçura e timidez. Pontual. Não pode faltar, nem este grande encontro seria o mesmo sem ele. Que enorme parte faltaria, como a figura da sombra presente.

Às vezes, pensar que se chegou, como uma multidão que fossemos, e por inúmeros caminhos que simultaneamente convergiram vindos das suas diferentes viagens de caminhos, a um mesmo lugar de paragem e de balanço completo. Um barco que amarou, baloiçou, encalhou. Em terra firme, no entanto. Ou atracou serenamente e sem tempo determinado num porto qualquer. A aguardar caminho. E que daí desse porto, como em cidade de rio, divergem como é da natureza múltipla dos caminhos, diferentes resoluções. E sabendo que o momento é de uma luz desigual e rara, e que os caminhos foram difíceis, e foram o que foram, quase todos eles. E que os viajantes, unos afinal, se encontram ali feridos, alguns de morte, e que ali se encontram todos porque o encontro tinha que ser entre todos. Não é necessariamente mau, é difícil. Mas é talvez um instante único. Talvez aconteça uma vez na vida, se acontecer. Não mais. Como um grande amor. Talvez, com sorte, aconteça uma vez na vida. Só porque tem que ser.

Às vezes avanço por esses corredores e é uma espécie estranha de alegria que me conduz como se de fora. E é nessa alegria que reconheço o meu monstro hirsuto, e nela que descanso a certeza pacífica de que é animal de mim para sempre. Animal feroz e perigoso que me acompanha e não posso abandonar por nenhum dos dois. E nesses dias em que o vejo seguro em mim, ali, é afinal o limite do corredor que me pára e estanca o futuro. E mesmo assim, como se para lá do espelho que tudo duplica mesmo em espaço e em luz, avanço para uma outra terceira dimensão e dela nasce a outra que sempre alimenta a respiração diária deste mesmo ar, deste mesmo mundo e desta mesma magia. Pensar o outro, naquela dimensão de si que nasce em nós e é dar-lhe uma vida. Não sei já nunca os limites da virtualidade. Pensar o outro em mim, o outro de mim. Em mim como outra. O olhar dos outros, o nosso olhar sobre o imaginado olhar dos outros, o nosso olhar ao espelho esquecendo os outros e tudo da mesma matéria fátua e de contornos difusos demais para ser fronteira.

Eu tacteio pé ante pé a vida. Que mais posso fazer nesta absurda sensação de que todo o ínfimo sopro irreprimido que se produz mesmo só no esforço de respiração necessário, perturba na pequenez devida, às vezes com escala inesperada, um algures momento de um qualquer lugar de uma qualquer criatura nesse vasto cadinho de redes interligadas em inadvertidas malhas. Qualquer marulhar de vida, por indecisa que seja, dá encontrões de indefinida tonalidade nas gotas ao lado. Em nós. Mesmo esquecendo os pesos pesados que indistintamente calcam por querer.

Depois do dia destes dias, ainda a minha alma anda por aí a silenciar luzes e estrelas várias que sente queriam vidrar a noite antes do tempo. Anda é dia e já a minha alma vagueia sem eira no entretanto indefinido do a vir. Ainda não chegou a treva que verá sentido nos astros luminosos do céu e já anseia neles serenar. Sorrisos remotos e ténues é o que há na noite, mas nela invisíveis. Eu. Talvez reconhecê-los e entre eles um será meu. Neste intervalo. Tendo os dias atingido forte, o que resta da noite e de algum sonho oriundo dos restos do resto? Alguma coisa de mim, alguém. Tudo, contudo. Os dias atingiram a linha traçada a vermelho e finalmente cumpriram. Os dias desta tempestade subterrânea de anos a germinar. De anos ou décadas. Germinou, floriu. Apanhou-me e atingiu. O fim. Agora resta o início. Nada como dantes, só eu igual. Mas sem pais. Sem chão em torno, como pequena ilha rochosa.

Medo grande, de sempre, instalou-se. Neste ano. Bastava isso, mas o mais se conjugou num verbo destruir em todos os tempos. Talvez em todos os tempos. Um hiato. Ou apenas uma mudança do tempo. O que fica, do que parte, o que parte e que parte de mim partiu, partiu para a frente da que parou. Ou está a partir. Mas ainda a parte do meio a alongar-se. Ás vezes, os silêncios desencontram-se no tempo. As pessoas, no espaço. E a vida, é. Nos dois sentidos, como um caminho. E em nós, o que nos desencontra do que somos, quando e onde? Remadores, de costas para o destino.

Por isso, um dia. Um dia destes. Pressinto-lhe a chegada, mas nem é um pressentimento. É mais uma decisão imprecisa. Longamente sentida a devorar caminho desde uma profundeza de difícil acesso. A criar uma precisão de difícil agendamento no calendário de um tempo tão difícil. A chegar. Um dia destes e quando chegar vou saber que chegou. E um dia difícil como os outros, mas principesco de pequeno almoço nocturno a esperar a madrugada. De ovos mexidos e fruta fresca e qualquer coisa de um colorido diferente para temperar a ainda noite. E pão quente. E só por isso será tudo diferente. Magia boa, ou pintura de guerra. A desenhar-se.

E o dia, esse dia será um dia um. Como os outros, mas em tudo diferente. Antes que chegue um dia menos um. Depois de um dia zero. E até ao crescendo menos infinito, da infinita inexistência do esquecimento. Que também virá, que fazer? Mas antes, antes virá o dia quase marcado na fronteira de um agora. E esse dia, dia um.

6 Nov 2017

Ensaio sobre o lugar

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste seria o momento em que, à luz daquela estética dos salões do século dezanove, os cavalheiros se retiravam com os seus conhaques e os seus whiskies, para falar dos assuntos sérios da cousa pública, deixando as senhoras libertas, para repôr um pouco de pó de arroz no rosto, e partilhar a dimensão do comezinho da via privada. Os desconfortos dos dias difíceis do mês ou os mistérios da mudança de idade. Receitas da vida e também da dos outros. Os assuntos domésticos e os do amor. Tudo muito filtrado, muito metafórico, muito cheio de alusões e reticências, e muito púdico, a fazer medrar nas mais jovens neste ambiente de gineceu, aquela curiosa qualidade mítica para muitos, atávica, senão mesmo estruturalmente ancorada no código genético, que é a intuição. Feminina. Mas este seria um outro tópico de conversa.

Do amor, poderia dizer que é como um hotel de cinco estrelas. É preciso um bom lugar, mas também bons costumers. Como juntar matérias inflamáveis e uma boa dose de piromania. E pega fogo em combustão espontânea. Mas, diria antes: é como um hotel de charme. Actores, cenários e palco, produção atenta, uma realização sensível. Para além de uma espécie de moral estética que induziria no erro de se esperar a teatralização do sentir, há o fascínio real do estar. Gostar de estar, indissociável do gostar de se ver estar. Não, no meu ponto de vista como atitude narcísica, mas como reflexo de estar no lugar certo do mundo. No amor há o fenómeno do espelho. Há a necessidade de identificação com o caracter desenhado no olhar do outro. Com o lugar. Os actores gostam de se ver no papel, ou não. Um bom amante seria então simultaneamente um bom lugar e um bom hóspede.

Descer a rua. Uma rua das muitas que levam ao rio. Lugar, antigamente de chegadas e partidas. De marinheiros. Ao lado direito, antes de desembocar na margem, e um pouco desnivelado aquele toldo com nuvens a sombrear o pavimento em mosaicos de arabescos azuis, evocativos de um médio oriente onde a sabedoria ainda protege do calor tórrido sem recursos contra a natureza das estações. Um desvão, pequeno e sombrio relativamente à rua, tanto quanto o sol ainda a escaldar, faz desejar um abrigo. Mesas redondas num amarelado de fórmica debruada a latão, e cadeiras que arredondam nas costas, convidativas ao repouso de toda a coluna em paz. O entrançado numa matéria colorida e variados matizes, como se nelas, entretecidos nas cores, se misturassem tempos, memórias e paradigmas apetecidos. Tudo de um outro tempo, de facto. E é aí que quero estar. Mas primeiro à beira- rio, amigos esperam-me num lugar mais juvenil, impessoal, amplo. Deixei para trás aquele vislumbre de interiores voluptuosos e entorpecentes, para além das janelas de guilhotina, mistura de cores aveludadas e tactilmente apetecíveis, veludos azuis ou tintos como o vinho, sedas ocre dourado, um barroco aconchegante, em contrastes semi-exóticos. Objectos confortáveis do passado, sofás e poltronas macias, quebra-luzes époque, imagens e esculturas românticas. Pensei. Tenho um encontro para mais tarde. Marquei-o ali mesmo. Por agora, esperam-me mais abaixo.

Depois volto a subir a rua. Do outro lado da estrada, a memória de um enorme grafismo rigoroso, meses atrás, no prédio devoluto, que dizia: ± SILÊNCIO ±. Como se a cidade falasse comigo por enigmas. O céu de um azul prússia, intenso embora já a escurecer, naquele dilema entre uma luminosidade feérica e fortemente colorida, e a noite quase, quase a instalar-se de vez. Mas é, perto do rio, um momento que se prolonga num resplendor estóico, resistindo às luzes da cidade ainda, e competindo com elas. Espreito de novo aquele cenário em desvão, os mosaicos, as três mesas e as cadeiras coloridas e, surpreendentemente, uma única ocupada por um grupo. Desço, contente com o inesperado sossego em contraponto ao exterior, para o meu encontro e sento-me na mais distante. Um pouco mais tarde uma rapariga tão silenciosa como eu sentou-se na do meio. E, abalado o grupo conversador, um homem ocupou a primeira mesa. Ficou tudo certo, sereno e bem. Os três em linha, quietos, silenciosos e ensimesmados. A música, no volume certo, entre um estilo pop de fusão, aquelas coisas difíceis de situar, uns blues a ressoar talvez a Nova Orleães, e outras fusões um pouco lounge que não reconheço. Entendi contudo uma mão de mestre na articulação progressiva de sons, numa espécie de viajem nas horas…

A mesa para dois, livre. E pareceu-me perfeito. Sentei-me só, e pensei na importância daquela outra cadeira ali, precisamente para lembrar que não era uma cadeira com o vazio de alguém mas uma simples cadeira em si. Um lugar. Não o espaço preenchido de uma ausência. Uma espécie de nada por oposição ao vazio. Um lugar, é isso. E, como qualquer lugar, uma entidade suficiente em si. Sem a necessidade de ser validado como lugar de algo ou alguém. O lugar puro. E eu nunca trago para um encontro destes alguém à revelia da sua vontade ou consciência. Tento. Nem memórias nem sonhos. Sequer os meus anjos têm lugar nestes encontros. Comigo só, mas inteiramente só em mim e não, como relativamente à cadeira, só, pela ausência de alguém. Só pela natural solidão imanente da matéria. Só, naturalmente e sem a veemente ausência de outrem. Esta é uma disposição que me ajuda a situar, mesmo para me lembrar de que, tal como não sou uma daquelas pessoas que preferem os bichos às pessoas – eu que os adoro – não finjo que não gosto da sua presença. Ou prefiro, às vezes. Mas tento não transportar a sua falta. O problema das pessoas, é serem afectadas. Literalmente. Afectadas pela vida, as inseguranças, as megalomanias, as mágoas, as frustrações. E sobretudo os medos. E que se deixam envelhecer mais do que os bichos e sobretudo, que se deixam estragar mais do que eles. Transcendendo em muito os incontornáveis limites da biologia.

Nunca falho estes encontros. Já falhei outros, embora nunca pela acção voluntária da minha vontade, passe a redundância. Este é também um dos verdadeiros encontros a dois. O de uma pessoa, com a não ausência da outra. De uma certa forma, uma ausência a que se nega a imperatividade e a extensão. A que não se permite a presença. Sim. Há encontros perfeitos. Aqueles que preenchem de uma forma densa e sem margens ou folgas um pedaço, seja de que dimensão fôr, de existência. Não porque nos façam felizes, mas porque são absolutamente justos, verdadeiros e confortáveis. O que é bom. Verdadeiros mas talvez não reais. Vistos de outro ângulo.

Há outros encontros, esses realmente perfeitos. Com o outro, que não eu. Mas tão raros. Pode-se passar uma vida ao lado da possibilidade de um. Por falta de jeito, de charme, de segurança, de vista. E esperar. Que as probabilidades, no seu cálculo imperscrutável, não forjem o encontro no dia seguinte àquele em que já lá não estaríamos.

Encontros daqueles a que não se vê o fim. E o homem é raro na perfeição, por isso deve estar sempre em guarda. Circunscritos num pedaço de eternidade. Mesmo quando esta se desfaz logo a seguir. E a que não se admite a presença de terceiros. E, de entre os mais temíveis intrusos, o tempo, a distância, o esquecimento, ou o desencontro, é o medo aquele cuja manifestação se revela verdadeiramente terrível. E quando isso acontece, quase impossível de erradicar.

Suponho que é a esta hecatombe, que Alain Badiou se refere com o seu conceito de “encontro”, como uma grandiosa descoberta do outro e de si: “For it to be a genuine encounter, we must always be able to assume that it is the beginning of a possible adventure. You cannot demand an insurance contract with whomever it is that you have encountered. Since the encounter is incalculable, if you try to reduce this insecurity then you destroy the encounter itself, that is to say, accepting someone entering into your life as a complete person.”

Mergulhar nas revelações sem lei. A nudez das palavras à mistura com os beijos. Que são um extraordinário lugar físico para as palavras. O tempo anacrónico. E nunca o medo.

Mas é tão perigoso isso. Tive uma amizade durante dezassete anos, pessoa singularmente amoral, ou até imoral, com quem tinha uma média de largas horas semanais ao telefone. Em que trocámos bárbaras confidências. Um dia. Uma única palavra. E acabou subitamente. Ela ofendida com um disparate que transcendeu, ocultou ou ofuscou os milhares de outras palavras usadas durante todo aquele tempo. Sim. Falar é uma coisa perigosa. Mas gosto desse desafio. Despojar a alma de qualquer artifício – o limite é a dor, ou ir além do Bojador – sem ter que ver no outro uma flor frágil. E de ver a totalidade possível do outro. Guardar alguns segredos também, evitar alguns espinhos. Sem falsidade.

Eu tenho uma inconsolável nostalgia de ambientes do passado. Tão mais confortáveis e envolventes, quão desaparecidos ou em vias de extinção. Sem sequer serem substituídos por ambientes contemporâneos que consigam magicamente ter essa qualidade numa outra linguagem. Talvez afinal os objectos tenham uma alma que acumula referências e humanidade de momentos passados, de sentimentos que lhes transmitem algum calor, um acalento que a modernidade não consegue alcançar. Talvez precisem de amadurecer. Sempre gostei de ambientes vividos, objectos manuseados, marcas de vida. Das atmosferas pesadas de um luxo sensorial e decadente dos velhos cabarets. Os lugares dos espectáculos de burlesco, e dos episódios burlescos da vida. Nas zonas portuárias, com maior fascínio porque muitos estão de passagem. Vindos de longe e com destino incerto. Também eu encontrei um dia um marinheiro de águas profundas num cabaret decadente. Mas em outras longitudes. Curiosamente a primeira coisa que lhe vi foram os pés. Só depois dei com o rosto no topo de um corpo aprumado e uns ombros firmes. Um grande encontro face a tudo o que depois não teve sentido nenhum. Numa outra vida. Enfim.

Pensão Amor. O lugar de que falava. Não pensão, já. É um pastiche de outros tempos, mas feito com carinho. Lugar de imitação de outros imaginários que não de hoje, mas terno e generoso para acalento de nostalgias. Um nome que se não fosse absolutamente real seria poesia pura. Há um lugar. Natural, produzido ou forjado na fantasia. Poderia ter este nome, mas seria plágio. E não precisa dele. Basta a designação plena de lugar. Como na arte, um site-specific. Lugar natural de algo. Ou desencantado da miríade de todos os outros para envolver a estrutura, a forma a instalar. Mesmo pré-existente, conceptualmente escolhido e quase produzido em função de…De liberdade. Da superação do medo. Do encontro com um eu depurado, reflectido em olhar alheio. Intemporal, eterno, indelével. Mesmo que no momento seguinte todo o referencial pudesse mudar. Mas nesse lugar tão específico, as coisas formuladas e sentidas têm alguma escala. E são eternas enquanto duram. Só depois se lhes vê o fim. Mas essa é já uma outra história. Um outro lugar. Vago. Ou não. Simplesmente lugar.

14 Ago 2015