Jana Dvorska, professora de Inglês

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stá em Macau há cinco anos. Foi o amor que a trouxe e foi o amor que quase a levou. Mas isso são outras histórias porque a realidade é que Jana gosta de estar por cá: “é um sítio maravilhoso”, diz. “Mal cheguei, senti-me imediatamente feliz”, explica.

E foi em Outubro que chegou. Pois é, porque o pior viria a seguir. Primeiro com o frio e depois com as humidades. Mas é o frio, especialmente o deste último Inverno, que a mói mais: “foi horrível, detesto frio”. Isto apesar de ter crescido em Calgary, no Canadá, “onde temos seis meses de Inverno” diz Jana e, talvez por isso, tem uma paixão assolapada pela praia: “Imagino-me a escrever poemas na praia e a viver assim”, confessa Jana, em inglês, a língua que considera a sua principal. É também a que ensina, mas não a única que domina. Italiano, Francês, Português e, claro, Checo – Jana é checa – fazem parte do seu repertório.

Foi para o Canadá com a família aos cinco anos e aos 21, depois de se formar em Francês e Sociologia, voltou para República Checa sozinha, “porque precisava de experienciar a cultura”, conta.

Nasceu em Ostrava mas foi para Praga, “a Paris do Leste”, apelida, uma cidade que adora, “especialmente aquelas ruas medievais, o castelo, a ponte Charles..”, exemplifica. Foi aí que tudo começou a mudar quando conheceu um português que trabalhava na mesma empresa.

Meia volta ao mundo

Apaixonaram-se e mudaram-se para Manchester onde desenvolveu uma atracção pelo futebol pois, explica, “tínhamos um amigo que trabalhava para o Cristiano Ronaldo e ele foi simpático, assinou-nos umas T-Shirts e deu-nos bilhetes para um par de jogos”. Dois anos e picos depois seguiram para Lisboa onde viriam a estar um ano mas o suficiente para Jana dizer que o seu clube é o Benfica e para confessar que “talvez queira para lá voltar um dia”.

Desporto é algo que faz parte da sua vida. “Fazia muito ski e patins em linha em Calgary mas agora faço yoga, medito todos os dias e gosto de correr nos trilhos da Taipa e de Coloane”.

Voltávamos a Macau e, por falar em trilhos, Jana espera que as ideias de urbanização em Coloane não vão avante “porque é o único espaço verde que anda temos desimpedido e precisamos dele”. A falta de jardins e espaços verdes é mesmo o que ela menos gosta em Macau. “Percebo que a cidade é pequena mas talvez se pudesse fazer um esforço para termos mais jardins e espaços para andar a pé e de bicicleta”, diz.

Gosto pelo ensino

Quando falamos de sonhos Jana diz que vive perto deles, pois faz o que mais gosta: ensinar. “Fiz outras coisas na vida mas ensinar é a minha profissão, é o que mais gosto.” É professora na Escola Secundária Hou Kong, onde adora estar, depois de passar pelo Instituto Politécnico, pela Universidade de São José, pela Universidade Cidade de Macau (UCM) e pela Escola das Nações, esta uma experiência menor para ela porque “os estudantes vêm de famílias ricas e por isso são muito pouco respeitadores”.

A permanência em Macau “tem sido óptima para a minha própria educação”, diz, pois aqui tirou um mestrado em Educação e um diploma de pós graduação na mesma especialidade.

Decorar muito e opinar pouco

“A dificuldade de ensinar chineses é terem pouca confiança e poucas oportunidades para falarem. Passam a vida a memorizar. Por isso estou sempre a dar-lhes oportunidades para falarem, para nos conhecermos mutuamente”, diz Jana, considerando ser essa a principal pecha no sistema educativo local. “Memorizar datas, nomes é ridículo na era do Google”, afirma ainda Jana, que considera que os alunos chineses “têm poucas oportunidades para formarem uma opinião sobre os factos” – o que a jovem tenta providenciar nas suas aulas, pois. “Na minha classe quero é que eles participem, que falem. Não há nada para memorizar”.

Para a jovem professora a relação que se desenvolve com os alunos é, por isso, essencial: “ponho-os à vontade para falarem, para perguntarem o que entenderem. Até perguntas pessoais”.

Esse à vontade levou-a a um episódio que não esquece quando, ainda na UCM, uma aluna veio confessar-lhe que era lésbica, como a pedir conselhos, pois tinha medo de o confessar aos pais. Jana tranquilizou-a e deu-lhe coragem. Foram apenas dois semestres e nunca mais a viu pessoalmente mas segue-a pelo Instagram onde percebeu que ela tem colocado imagens com uma namorada nova. “Fiquei feliz. Deve estar tudo a correr bem”, esclarece.

Um privilégio

E viver em Macau? “Macau é um paraíso para adultos”, diz, mas foi logo adiantando que também permite “qualidade de vida e é um sítio fácil para encontrar os amigos e é segura. Isso é muito importante”. Além disso, “acontece muita coisa como o Festival de Cinema que aí vem, o Festival Literário, há música, muitas bandas locais”, aclara.

Também considera que a cidade “dá muitas oportunidades, é óptima para trabalhar, proporciona bons salários e várias oportunidades de trabalho. Também é uma boa base para explorar a Ásia”, conta. Tudo somado, “é um sítio especial e sinto-me privilegiada por aqui viver”, confessa.

15 Abr 2016

A Europa em risco de desintegração

“The European Union, in turn, would be diminished by Britain’s departure. Britain would cease to play its historic role of maintaining a balance between hostile blocks on the continent. Its departure would powerfully reinforce a process of economic and political disintegration that is already under way.”
The Tragedy of the European Union: Disintegration or Revival?

George Soros and Gregor Schmitz

O sistema de controlo de fronteiras europeu teve fortes probabilidades de se estalar em pedaços, após a reunião a 7 de Março de 2016, entre a União Europeia (UE) e a Turquia. Estava em causa o problema dos imigrantes, pois mais de cinquenta mil refugiados da Síria e do Iraque inquietam a Grécia, que não sabe o destino a dar-lhes, enquanto os países próximos, liderados pela Áustria, constroem barreiras físicas e impõem rígidos controlos. O primeiro-ministro inglês e o presidente francês, entretanto, reuniram-se na França, por causa das comemorações relativas ao centenário aniversário da batalha do Somme, a mais sangrenta da I Guerra Mundial.
A ansiedade do primeiro-ministro inglês reside no próximo referendo britânico que decidirá se existirá “Brexit”, ou seja, se a “Ilha” abandona ou não a UE. O presidente francês, não consegue entender esta frivolidade inglesa, quando a Europa faz face ao enorme problema dos refugiados, apelidada de nova invasão dos bárbaros e a uma grave crise económico. A chanceler alemã jogava o seu futuro político, pois necessitava de convencer a Turquia, a assumir o papel da Grécia e conter as centenas de milhares de refugiados no seu território, em troca de importantes ajudas económicas, que seriam de três mil milhões de Euros iniciais e a promessa de retirar do congelador a integração da Turquia na UE.
A Turquia não é fácil de ser convencida, mais quando, está envolvida no conflito militar generalizado da Síria, e na sua eterna luta contra os curdos. Os Estados membros da UE, pela primeira vez, não demonstram vontade de assumir posições colectivas e preferem a situação oposta, privilegiando soluções nacionais, como é evidente nos casos da Hungria, Áustria, Eslovénia e da Macedónia (Estado candidato à integração desde 2004). Esta sintonia pode ser nefasta, agravada em caso da saída britânica, conjuntamente, com um agravamento da crise de refugiados, a UE não ficaria destruída, mas irremediavelmente prejudicada e com menor relevo global.
A UE com quinhentos milhões de habitantes pode absorver um milhão de refugiados por ano, devidamente repartidos entre os seus Estados membros, após resolução das crises económicas e financeiras de alguns países e do desemprego. A Alemanha não tem capacidade para resolver por si só, o grave problema que atormenta a Europa. Existe o risco de várias divisões. A primeira é Norte-Sul, onde o esquema de Schengen, constituído pelo grupo de países que aceitam estrangeiros em um dos países membros, sendo suficiente para que se desloquem pelos demais, pode ser anulado. A segunda, também Norte-Sul, é o futuro do Euro. A moeda comum tem fortes condicionantes em países como a Grécia, mas também, em Itália, Espanha e Portugal. A terceira, é uma nova divisão Este-oeste, onde os governos democráticos ocidentais começam a sentir dificuldades, com regimes com tendências autocríticas como nos Balcãs, todos herdeiros de anos de dominação do modelo soviético.
O “Brexit”, o novo fantasma que agoira a Europa, e que ninguém parece animado a prever o resultado do referendo inglês, é incómodo, pois o resultado pode ser “SIM” e o Reino Unido sai da EU, e poderá acontecer que a Suécia e a Dinamarca sigam o desastroso exemplo. Após um lento processo evolutivo de integração de sessenta anos, emerge a possibilidade do retrocesso. A UE iniciou negociações com a Turquia a 28 de Fevereiro de 2016, para tomar medidas para cortar o fluxo de imigrantes que entram na Europa, e em troca, receberá ajuda financeira e apoio à sua pretensão de entrada no bloco dos vinte e oito Estados membros. Assim, o governo turco foi pressionado pela UE e pela Alemanha para rejeitar sistematicamente imigrantes não sírios, e a tomar medidas para combater o contrabando, tendo chegado a uma plataforma de entendimento.
A sua implementação, apesar das contrapartidas tentadoras irá ser muito difícil, pois o seu conteúdo, tem por objectivo terminar com a crise de imigração que assoma a Europa. As estratégias implementadas para reduzir a quantidade de pessoas que fogem para a Europa fracassaram. A Turquia concorda em aceitar todos os imigrantes resgatados, em águas internacionais pela missão da NATO. O presidente do Conselho Europeu, advertiu que as portas da Europa se encerravam para todos os que não estavam a ser perseguidos, e assim, em conformidade com tal aviso, a Europa implementará o seu sistema de devolver os imigrantes sem condições de poderem obter o estatuto de refugiado. É de notar que cerca de duas mil pessoas chegam diariamente, às ilhas gregas, sendo metade de não sírios, e em 2016, chegaram por mar aos países europeus, um milhão e duzentos mil imigrantes.
O acordo com a UE é muito sedutor, pois a Turquia recebe o equivalente a seis mil e seiscentos milhões de dólares para deter os refugiados; visto para os seus cidadãos poderem entrar nos Estados membros e negociações para integrar a UE. A Turquia para controlar as entradas dos imigrantes, como contrapartida, recebe muito mais do que lhe foi oferecido há seis meses. A questão dos refugiados ameaça a unidade europeia, e provoca uma enorme e não prevista crise. O acordado menciona que cada refugiado que a Turquia leve para o seu território da Grécia, a UE aceitará um refugiado sírio, tendo começado a produzir efeitos, desde 17 de Março de 2016, e não para momento posterior a ser negociado, como se tem vindo a afirmar.
O acordado só não estaria em vigor nessa data, se a Turquia por razões fortemente fundamentadas e reais, apresentasse novas exigências. É uma aposta colossal que veio comprometer o futuro político do chanceler alemã, como era de prever. O estreitar de relações com a Turquia, trouxe um profundo descontentamento a diversos Estados membros, pois o seu governo, diariamente, torna-se mais autoritário, e no momento das negociações, privou do exercício de actividade um jornal opositor. O acordo significa um retorno em massa de refugiados que enchem os alojamentos provisórios de toda a Grécia, e obrigam a implementar medidas de segurança excepcionais nos Balcãs, Hungria, Eslováquia e Áustria, permitindo que a UE se concentre nos seus problemas económicos, em especial na falta de crescimento e recessão.
A maioria dos Estados membros da UE estão incomodados por um acordo cozinhado exclusivamente entre a Alemanha e a Turquia, à margem das instituições da UE, que previam estar a trabalhar no acordo. A Alemanha teve eleições regionais a 13 de Março de 2016, tendo a extrema-direita populista ganho à direita, e o líder conservador da “União Social – Cristã da Baviera (CSU, na sigla em língua alemã) ” e primeiro-ministro do estado da Baviera, ter renovado os seus ataques à chanceler alemã, aquando do seu triunfo nas eleições. A CSU é meio-irmão da “União Democrata – Cristã (CDU, na sigla em língua alemã) ” da chanceler alemã, prometendo retomar a sua luta contra a política de refugiados do governo federal, após o enorme avanço do partido anti-imigração “Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em língua alemã) ”, com três anos de existência, ter obtido resultados inéditos nas eleições, sendo no estado federado da Saxónia – Anhalt de 22,8 por cento dos votos.
O que aconteceu nas eleições regionais não pode ser ignorado, pois tratou-se de um movimento tectónico na paisagem política alemã, tendo aumentado as pressões sobre Angela Merkel, que tudo fez para conseguir apoio à sua política de portas abertas aos refugiados, antes de começar o Conselho Europeu de 17 e 18 de Março de 2016, que iria aprovar os resultados da “Cimeira da União Europeia e Turquia”, realizada a 7 de Março de 2016, e o subsequente acordo, resultado de intensas e difíceis negociações continuadas após a Cimeira. A Alemanha promotora do acordo com a Turquia provocou não apenas uma desusada tensão política interna, mas também dentro da UE. O acordo estabelece que a Turquia aceita que a UE lhe devolva todos os imigrantes que cheguem de forma ilegal, com as contrapartidas anteriormente discutidas e aceites.
A chanceler alemã fiel à sua ideia, respondeu a todos os ataques, prometendo manter a sua posição, e sem contar, sofre uma importante derrota frente ao partido anti-imigração. Tal resultado afirma claramente que o discurso populista encontra uma terra de cultivo ideal para os alemães expressarem o seu descontentamento com a entrada de um milhão de refugiados, atribuindo-lhes todas as dificuldades porque passa a Alemanha e toda a UE. A Alemanha perdeu apoio e controlo na Europa. O gatilho para fazer explodir a bomba foi a invasão de imigrantes. A política de portas abertas para os refugiados ressoa por todo o mundo. O pré-candidato republicano Donald Trump, considerado como um dos perigos globais, afirmou que a Alemanha era um desastre e muitos líderes europeus, especialmente da Europa de Leste, partilham a mesma opinião, e por tal razão, a extrema-direita ganhou as eleições regionais.
É estranho que a reacção não se tenha produzido antes, se pensarmos que a Alemanha recebeu mais de um milhão de refugiados, em menos de um ano. Além do assunto dos refugiados, é evidente que a posição de Angela Merkel, cada dia se debilita mais no cenário mundial. O ano passado, por contraste, encontrava-se no apogeu do seu poder, e quinze dias antes, negociou um rápido, desesperado e instável acordo com a Turquia para travar a entrada de refugiados na Alemanha, e como resultado perdeu as eleições. A perda de autoridade sofrida, quer na Alemanha, como na Europa, alimentam-se mutuamente, porque a incapacidade de deter a entrada de refugiados na Europa, desgastou o apoio que tinha no seu país, e os eleitores começaram a virar-lhe as costas.
A ideia de que os turcos possam entrar sem visto na Europa, desagrada fortemente o presidente francês, e as críticas intensificaram-se até à realização do Conselho Europeu. Todavia, muitas da críticas são profundamente injustas, pois a Alemanha não é responsável pela guerra civil na Síria, nem pela existência do Estado Islâmico e ressurgimento dos talibãs no Afeganistão. Os resultados das eleições regionais na Alemanha são uma clara penalização para os dois grandes partidos que dominam a vida política alemã há setenta anos, a CDU de Angela Merkel e o “Partido Social-Democrata Alemão (SPD, na sigla em língua alemã) ” devido às suas políticas de abertura aos refugiados, mas também para a UE.

24 Mar 2016

Estado Islâmico ataca em Beirute, Bagdade e Paris. “É só o início da tempestade”

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uinta-feira, Beirute, no Líbano, mais de 200 feridos, alguns deles graves, e 43 pessoas mortas. Sexta-feira, manhã: Bagdade acorda com a morte de pelo menos 18 pessoas e com outras 41 feridas. O dia 13 à noite, em Paris, fica marcado pela morte de 129 pessoas e mais de 300 feridos, uma centena em estado grave. São os números dos mais recentes ataques do auto-proclamado Estado Islâmico (EI), que conduziu dezenas de ataques terroristas em diferentes locais do globo no fim da semana.

O Líbano ainda chorava as vítimas – depois de dois ataques separados numa mesquita e numa padaria no bairro de Burj al Barajneh, em Beirute, onde dois bombistas suicidas foram os perpetradores do mais violento atentado no país desde 1990 -, quando Bagdade acordou com um militante do EI a fazer-se explodir num funeral de um voluntário das forças militares que combatem o grupo.

À noite, o terror espalhava-se em Paris: pelo menos 129 mortos, entre os quais um português de 63 anos e uma luso-descendente com 34, 352 feridos, 99 em estado grave. Oito terroristas, sete deles suicidas, usaram cintos com explosivos para levar a cabo os atentados, depois de terem disparado aleatoriamente contra pessoas em bares e restaurantes com armas automáticas. Morreram, segundo fontes policiais francesas, mas não sem antes provocarem o caos em seis locais diferentes da cidade, como a sala de espectáculos Bataclan e o Estádio de França.

Um dos bombistas tinha nacionalidade francesa, sendo que o pai e o irmão estão detidos e buscas decorrem nas suas casa.

“O promotor de Paris, François Molins, disse que um dos terroristas do Bataclan foi identificado através de impressão digital como um francês de 29 anos, nascido em Courcouronnes, a sul de Paris, que estava identificado por delitos menores e que era seguido desde 2010 por ligações com jihadistas radicais”, pode ler-se na imprensa.

Pelo menos 20 estrangeiros estão identificados como tendo morrido durante os ataques. A França decretou o estado de emergência e restabeleceu o controlo de fronteiras na sequência daquilo que o Presidente François Hollande classificou como “ataques terroristas sem precedentes no país”. Hollande prometeu guerra contra o EI, de forma “implacável”.

“O início da tempestade”

Ataque do EI em Bagdade
Ataque do EI em Bagdade
Os ataques à volta do mundo têm todos a mesma justificação: além de serem “em nome de Alá”, servem para “vingar” o profeta e aquilo que o EI considera ser um insulto à sua fé. Num comunicado, traduzido na íntegra pelo jornal i, os militantes dizem que isto é apenas o início de uma maior tempestade que aí vem e, nas redes sociais, admitem que Washington, Londres e Roma são os próximos alvos a atacar.

“(…) Num ataque abençoado por Alá, que facilita as suas causas, um grupo de soldados crentes no califado, a quem Alá deu poder e vitória, teve como alvo a capital da abominação e da perversão, aquela que carrega a bandeira da cruz na Europa, Paris. Um grupo que se divorciou da vida avançou contra o inimigo, buscando morte no caminho de Alá, resgatando a religião, o Profeta e os seus aliados e humilhando seus inimigos”, pode ler-se no comunicado, que acrescenta que o Bataclan foi atacado devido à “festa de perversidade” que lá acontecia – era um concerto da banda de metal Eagles of Death Metal – que o Estádio de França foi um alvo por “o imbecil do Hollande” participar no evento.

O EI fala em “louvor e mérito de Alá” pelos ataques e deixa um aviso: “França e aqueles que seguem este caminho têm de saber que continuam a ser os principais alvos do Estado Islâmico e que continuarão a sentir o odor da morte por terem tomado a frente da cruzada, por terem insultado o nosso profeta, por se terem gabado de combater o Islão em França e por atacarem os muçulmanos no califado com os seus aviões (…). Este ataque é apenas o começo de uma tempestade e um aviso para aqueles de vós que querem aprender a lição.”

França, recorde-se, foi um dos países que avançou com bombardeamentos na Síria.

Macau “indignado”

Em França choram-se mais de uma centena de mortos
Em França choram-se mais de uma centena de mortos
O Governo de Macau manifestou “indignação” pelos atentados de Paris e expressou solidariedade com as famílias das vítimas. “O Governo da RAEM está atento aos ataques terroristas ocorridos em Paris, na noite do dia 13 de novembro, manifestando surpresa e indignação em relação ao incidente e expressando solidariedade para os familiares das vítimas”, lê-se num comunicado.

O Executivo garante, ainda, que apesar de o território ser “uma região com baixo risco de ataques terroristas, os serviços de segurança têm aplicado as disposições e executado a lei de forma a enfrentar possíveis situações de risco”. Além disso, “as autoridades de Macau e das regiões vizinhas têm trocado informações, de forma estreita, sobre o trabalho contra o terrorismo” e “têm-se reunido, de forma regular, e realizado simulacros bilaterais, tomando medidas efectivas para prevenir todos os tipos de criminalidade terrorista”.

Ontem, até ao fecho desta edição, nenhum residente de Macau pediu ajuda ao Governo, sendo que “nenhum grupo de excursionistas foi afectado por qualquer ataque”. O Gabinete de Gestão de Crises do Turismo (GGCT) já emitiu um alerta de segurança de viagem a França e apela aos residentes de Macau que pretendem viajar até lá para reconsiderarem os planos de viagem. Aos eventuais residentes de Macau que estejam em França, o Governo pede que não deixem as suas casas.

China solidária com a França

Ataque do EI em Beirute, no Líbano
Ataque do EI em Beirute, no Líbano
O Governo Central afirmou que está “profundamente comovido” e “condena firmemente os ataques terroristas”. “O terrorismo é o inimigo de toda a humanidade e a China apoia firmemente a França nos seus esforços para combater o terrorismo”, disse Hong Lei, porta-voz do ministério das Relações Exteriores. A China transmite “profundos pêsames” a França, completou.

Eventos como os ataques em Paris tornaram crucial para as economias mais importantes do mundo ficarem fortes e aumentarem a sua solidariedade, afirmou no sábado o vice-ministro das Finanças da China, Zhu Guangyou.

“Embora reconheçamos os riscos colocados pelo terrorismo e o seu grande impacto negativo sobre o desenvolvimento económico, devemos dar a nossa devida resposta a isso”, disse Zhu. “Devemos trabalhar juntos, temos de melhorar a nossa solidariedade.”

Muçulmanos em todo o mundo criticam atentados

Muçulmanos em todo o mundo fizeram questão de invadir as redes sociais criticando os atentados levados a cabo pelo Estado Islâmico e ressalvando que estes não são feitos em nome de uma fé verdadeira. Além de comentários individuais, também a campanha “Not in My Name” tem merecido destaque. Esta engloba muçulmanos do Reino Unido, que se juntam para repudiar os ataques terroristas do EI. Também ontem, o imã da Mesquita Central de Lisboa, Sheik David Munir, condenou os ataques em Paris, enquanto cerca de 30 pessoas ligadas ao Partido Nacional Renovador (PNR) se manifestavam à porta daquele templo. “Ficámos chocados e tristes, como qualquer pessoa de bom senso. O mais chocante para um muçulmano é que quem fez aquilo seja também muçulmano, porque Islão significa Paz”, afirmou. “Não temos culpa do que se passou lá [em Paris], também estamos tristes e fizemos orações pelas vítimas”, disse.

Turquia | Mais um atentado do EI

Um militante do Estado Islâmico (EI) fez-se explodir durante uma operação da polícia turca, no sábado, na cidade de Gaziantep, na fronteira com da Turquia com a Síria, ferindo quatro polícias, um dos quais em estado grave. Durante o assalto realizado pela polícia anti-terrorista a um apartamento de um bairro da cidade, um bombista suicida accionou os explosivos atados ao corpo. A cimeira do G20, onde estão presentes alguns dos principais chefes de Estado mundiais, está a decorrer na Turquia. As autoridades turcas tinham morto quatro suspeitos de pertencerem ao Estado Islâmico dias antes do ataque.

França pede reunião dos ministros do Interior da UE

A França pediu ontem a realização em Bruxelas de uma reunião extraordinária dos ministros do Interior da União Europeia (UE) a 20 de novembro, próxima sexta-feira, para “reforçar” a luta anti-terrorista depois dos atentados de Paris. Em comunicado, o ministro francês responsável pela administração interna, Bernard Cazeneuve, deu conta do pedido de reunião considerando que o “combate” ao terrorismo “deve ser fortalecido a todos os níveis e particularmente ao nível europeu e internacional”.

Quatro feridos portugueses tiveram alta

O Secretário de Estado das Comunidades revelou ontem que quatro portugueses feridos nos atentados de sexta-feira em Paris “já tiveram alta” e um outro “permanece internado”, mas que o seu estado de saúde “não é grave”. Sábado, José Cesário confirmou a morte de dois portugueses. Quanto ao português que ainda se encontra internado num hospital parisiense, José Cesário adiantou que o mesmo, nascido a 5 de junho de 1980, será hoje visitado pelos responsáveis do Consulado de Portugal em Paris.

16 Nov 2015

Uma Europa que treme

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s atentados de sexta-feira, 13, em Paris, são um ataque aos valores que têm marcado a União Europeia. São um tiro brutal aos direitos humanos, à liberdade de movimentos, à democracia, à tolerância. Os ataques, alegadamente perpetrados por comandos do Estados Islâmico, poderiam ter como intenção punir os governantes franceses pelas intervenções militares na Síria e no Mali. Poderiam. Pelo menos essa foi a argumentação usada no comunicado dito oficial. Mas o pior dos efeitos vai sentir-se no interior da própria União Europeia. A reacção imediata dos novos governantes polacos, algumas horas depois dos atentados da noite de sexta-feira, afirmando que já não iriam aceitar as quotas europeias de refugiados, é apenas um sinal do que aí vem.

Receia-se o pior. O terror vai passar a fazer parte do dia-a-dia dos europeus. Isso é cada vez mais evidente. Aquela sensação única de liberdade, de segurança, de tolerância, a que nos habituamos nas últimas décadas, vai sofrer um revés profundo. O discurso pró-securitário, contro “o outro”, o “anormal”, vai ganhar terreno. Combater essa mensagem, fácil, de que “os outros” são os culpados de todos os males da nossa vida, requer persistência, requer visão de longo prazo. Os tempos de hoje, marcados pelo discurso de consumo imediato, tendente a reforçar pequenas vantagens competitivas que nos garantam um posto, uma eleição, não são os mais apropriados para uma cultura de esperança. Essa verve contra “o outro” já estava bem presente no discurso mediático desde que a Europa se tornou numa espécie de última tábua de salvação para quem foge da guerra no Médio Oriente, das perseguições étnicas ou da pobreza extrema em África.

A tentação é fácil. E vai dar os seus frutos. A extrema-direita – com a honrosa excepção portuguesa – tem estado a ganhar terreno nas últimas eleições no interior da Europa. Foi assim na Grécia e na Áustria. Nas recentes eleições legislativas na Polónia, por exemplo, a esquerda nem ao Parlamento chegou. Com a Frente Nacional em alta, liderada pela mais “domesticada” Marine Le Pen, as eleições regionais do próximo mês poderão significar, uma vez mais, o crescimento da intolerância. Contra “o outro”, o “estranho”, o “desconhecido”.

O mundo está mais perigoso. Segundo os dados estatísticos da Universidade do Maryland, o número de atentados terroristas desde o 11 de Setembro de 2001 aumentou exponencialmente. Nove vezes! A Global Terrorism Database revela que em 2001 houve 1882 atentados, quando em 2014 esse número chegou aos 16,818. Esta contabilidade ainda não inclui, naturalmente, os atentados contra o Charlie Hebdo ou os de sexta-feira passada. As intervenções no Iraque, na Líbia ou Síria terão seguramente contribuído para este fenómeno.

Embora em muitos casos, a Europa tenha apenas apoiado os Estados Unidos da América nesta senda de resolver os problemas lá fora, para que eles não nos cheguem cá dentro, o que é facto é que, depois de 14 anos de guerra contra o terrorismo, o terror está cada vez mais perto de nós, no centro da Europa.

As soluções não estão na ponta de uma qualquer varinha mágica. Aliás, a cada dia que passa, a cada nova tentativa de acolher o outro, de propiciar uma integração mais efectiva, sem guetos nem favores, vão se esgotando fórmulas. Neste mundo global, as comparações são fáceis. Essas, sim, estão na ponta de um qualquer clique de rato. E a internet está disponível em todo o mundo. A ideia que há um exército imenso de possíveis mártires dispostos a imolar-se por uma qualquer causa – jovens desempregados, sem perspectivas de futuro, sem educação formal, sem possibilidade de serem – torna o planeamento da luta contra os terrorismos uma tarefa quase impossível. A imprevisibilidade do próximo ataque, quando é de dentro da “fortaleza” europeia que vêm algumas das principais ameaças, vai levar ao reforço inexorável da componente securitária dos Estados europeus. E isso é uma fatalidade.

O medo não é bom conselheiro. Mas os próximos tempos, de impotência, contra o Estado Islâmico, de intolerância, contra “o outro”, poderão ditar o fim de uma certa era. Desde a sua criação, a Europa tem sido um espaço de tolerância, de estabilidade, de desenvolvimento. Os 70 anos de paz na Europa estão ameaçados como nunca estiveram. Se a Europa não for capaz de se unir – os líderes europeus têm-no mostrado nos últimos meses que de facto essa é uma tarefa muito complexa – a União, tal como a conhecemos, poderá ter os dias contados.

16 Nov 2015

Europa, uma utopia negativa?

“As the global recession began in 2008, the Greek economy featured high levels of public debt, a large trade deficit, undiversified industries, an overextended public sector, militant trade unions, widespread corruption, uneven payment of taxes, an overvalued currency, consumers expecting rising living standards and euro membership based on inaccurate data. Greek politicians, Greek society, trade unions, leaders of the European Union, the IMF, the world’s investment banks – each and every one has scarcely put a foot right in a collective display of hubris, miscalculation, over ambition, deception, mis-selling, folly and, in some cases, sheer greed in a saga that has continued for decades.”
“Greece’s ‘Odious’ Debt: The Looting of the Hellenic Republic by the Euro, the Political Elite and the Investment Community” – Jason Manolopoulos

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]aumento do medo e ressentimento que trouxe a crise na Europa, fez que as pessoas vivam há anos em estado de ansiedade e incerteza. O grande pavor regressa face a ameaças indeterminadas, como podem ser a perda de emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes naturais e a insegurança generalizada. Este processo é um desafio para as democracias, porque esse terror difuso transforma-se por vezes em ódio e repúdio.

O ódio, em vários países europeus, dirige-se contra o estrangeiro, o imigrante, o diferente, os outros, como os muçulmanos, ciganos, subsaarianos e ilegais, e nessa incerteza e caos vão crescendo os partidos xenófobos, racistas e de extrema-direita.

O crescente sentimento eurocéptico ficou confirmado na Alemanha, por importantes e diversas sondagens realizadas em 2013, revelando que 37 por cento dos cidadãos acredita que o país não tem necessidade do euro, e 38 por cento considera positiva a representação no Parlamento Europeu de uma formação que se oponha à moeda única.

A criação de partidos como a “Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em língua alemã) ”, em Fevereiro de 2013, que tem como programa o protesto pelo envolvimento do país no auxílio à “Zona euro” são a expressão de uma classe média conservadora, que recolhe a herança dos “Livres Eleitores”, um movimento eurocéptico muito enraizado, sobretudo, na Baviera, e dirigido pelo ex-presidente da Federação das Indústrias Alemãs, Hans Olaf Henkel.

A expectativa estava centrada nas eleições de Setembro de 2013 na Alemanha, acreditando que o sucesso de movimentos populistas de direita e as expressões de uma classe média conservadora impediriam uma revisão das políticas europeias para as economias mais débeis. No Reino Unido surgiu uma corrente antieuropeia com componentes reaccionárias, empurrada pelo ascendente “Partido de Independência do Reino Unido (Ukip, na sigla na língua inglesa) ”, fundado em 1993, por Alan Sked, professor da London School of Economics e outros membros da antiga “Liga Antifederalista” e da tendência eurocéptica do “Partido Conservador”, contrários ao “Tratado de Maastricht” e à adopção do euro.

O Ukip põe o acento tónico na preferência de seguir o caminho da Noruega ou da Suíça, que têm excelentes acordos comerciais com Europa, mas não necessitam de serem Estados-membros da União Europeia (UE). A UE custa muitos milhões ao Reino Unido, permite a entrada de mais imigrantes e faz que o país vá perdendo a sua independência a favor dos burocratas da Comissão Europeia.

O governo inglês recolheu essa ideia e preparou a minuta de uma lei que abre o caminho a um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE a realizar-se, em 2017, ou quiçá antes como revelou o Primeiro-ministro, David Cameron, líder do Partido Conservador, após ter ganho as eleições gerais de 7 de Maio de 2015. Os seus ministros da Educação e da Defesa asseguraram que votariam a favor de uma saída da UE.

O eurocepticismo revela-se com diferente transparência nos países debilitados do sul, na esquerda tradicional, como a “Coligação da Esquerda Radical (SYRIZA na sigla em língua grega)” na Grécia, ou na anti-política, como o “MoVimento 5 Estrelas (M5E na sigla em língua italiana)’, em Itália. O M5E foi criado em 2009, pelo cómico Beppe Grillo, com a pretensão de colocar cidadãos no poder e criar uma democracia directa por meio do uso da Internet.

É de realçar que nas eleições de 2013 para o Parlamento Italiano, obteve 25,5 por cento de votos para a Câmara de Deputados e 23,7 por cento para o Senado, tendo o seu líder após as eleições afirmado que era um defensor da Europa e a favor de um referendo online sobre o euro, e considerou que o principal problema seja a moeda única, mas a forma como a política europeia é feita, ignorando os interesses dos cidadãos. O M5E nas eleições para o Parlamento Europeu obteve 21,2 por cento dos votos e elegeu dezassete eurodeputados.

A 25 de Janeiro 2015, foram realizadas eleições legislativas na Grécia, tendo o SYRIZA vencido as eleições com 36,34 por cento dos votos. As prioridades do programa político do SYRIZA, são a renegociação dos interesses da dívida pública, suspensão do pagamento das obrigações até que a economia se recupere, exigir à UE que altere o papel do Banco Central Europeu para financiar directamente os Estados, realizar referendos vinculatórios para todos os tratados e acordos comunitários relevantes, encerrar as bases militares gregas e sair da NATO, entre outras medidas.

O partido antieuropeu italiano começou com um discurso contra os privilegiados, mas recusou, igualmente, as políticas de ajuste impostas pela UE. O M5E parecia um fenómeno passageiro, mas cresceu ao ritmo da raiva e impotência que geram as medidas de ajuste e incerteza face aos altos níveis de desemprego. O M5E propõe dar um subsídio por desemprego e um rendimento mínimo de cidadania, sendo contra a concessão da nacionalidade aos filhos de estrangeiros que nasçam em território italiano.

A Espanha vive envergonhada a experiência do “Partido Popular (PP na sigla em língua espanhola) ”, ainda que restabelecida do espanto, quando em Maio de 2011, de forma repentina e sem qualquer aviso ou explicação, o ex-presidente do governo espanhol e ex-líder do “Partido Socialista Operário Espanhol, (PSOE na sigla em língua espanhola)” decidiu aplicar um brutal plano de ajuste ultraliberal que era o oposto do ADN do socialismo.

A bandeira antieuropeia é levada pelo “Partido dos Verdadeiros Finlandeses”, nacionalista e eurocéptico fundado em 1995. O “Partido dos Verdadeiros Finlandeses” é a terceira força política da Finlândia, fazendo parte conjuntamente com o “Partido do Centro” e “Partido da Coligação Nacional” da coligação governativa. O “Movimento por uma Hungria Melhor (Jobbik na sigla em língua húngara)”, é um partido político nacionalista e de ultra direita, criado em 2003. É a terceira força política da Hungria. Foi o único partido político a opor-se abertamente à entrada na EU, expressando-se sob o lema de “Hungria: Possível, Orgulhosa, Independente”.

O “Partido para a Liberdade (PVV na sigla em língua holandesa), na Holanda, criado em 2006, tem como programa político a limitação da imigração e a proibição de usar a burca, entre outras medidas. Em 2010 tornou-se na terceira força política do país, apoiando uma coligação com o “Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD na sigla em língua holandesa) ”.

O PVV, retirou o apoio à coligação governamental, em 2012 e, nas eleições antecipadas de Setembro desse ano perdeu muitos votos. A possibilidade de sair da “Zona euro” é um dos pontos cardiais do programa político da “Frente Nacional”, em França, e da sua líder Marine Le Pen, que é a terceira força política do país, enquanto a “Frente de Esquerda” defende a reforma dos tratados e reclama medidas para o crescimento e o fim da receita de só rigor.

É de notar que desde que explodiu a actual crise financeira e económica na Europa, em 2008, estamos a assistir a uma multiplicação dos movimentos de protesto dos cidadãos. Os cidadãos dos países mais afectados, como a Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha civicamente decidiram por apoiar, pela concessão dos seus votos, a oposição, pensando que esta contribuiria para uma mudança de política que onde existisse menos austeridade e menos ajustes.

Quando todos estes países mudaram de Governo, passando da esquerda ou centro-esquerda para a direita ou centro-direita, a estupefacção foi completa, dado que os novos Governos conservadores radicalizaram, ainda mais, as políticas restritivas e exigiram mais sacrifícios, mais sangue e mais lágrimas aos cidadãos. Foi quando começaram os protestos, sobretudo, porque os cidadãos têm diante dos seus olhos, os exemplos de dois protestos com sucesso, a do povo unido na Islândia e a dos contestatários que derrubaram as ditaduras na Tunísia e no Egipto.

As redes sociais estão a facilitar formas de organização espontânea das massas sem necessidade de líder, organização política, nem de programa. A realidade e as circunstâncias permitiam que em Maio de 2011, os espanhóis indignados, servissem de exemplo a ser imitado de uma forma ou outra por toda a Europa do Sul. Os diversos meios que classificam e analisam os partidos políticos de esquerda têm a ideia de que esses movimentos e as maiorias exasperadas, muito pouco têm de esquerda. Não se pode esquecer, que estes partidos estão comprometidos com a mesma política conservadora, tendo sido os primeiros a aplicar, sem anestesia.

A indignação social não pode ser comparada à de Maio de 1968, pois nesse momento existia uma crise que sabemos ter sido menos política que cultural, contra um país em expansão (nascimento da sociedade de consumo, crescimento elevado, pleno emprego), que continuava a ser profundamente conservador e até arcaico em matéria de costumes, como o ‘’Movimento 15M, Indignados”, que é o reflexo da queda geral de todas as instituições (Coroa, justiça, Governo, oposição, Igreja, autonomias). As repercussões sociais do cataclismo económico europeu são de uma brutalidade inédita, com vinte e três milhões e trezentos e quarenta e oito mil desempregados em 30 de Junho de 2015 e cento e trinta e três milhões de pobres.

Os jovens são as principais vítimas, e de Madrid a Londres e Atenas, de Nicósia a Roma, uma onda de indignação alça à juventude. Adicione-se, ademais, que as classes médias também estão assustadas, porque o modelo neoliberal de crescimento as está a abandonar a meio do caminho, e fala-se cada vez mais, em voz alta, de desglobalização e de decrescimento. O pêndulo tinha ido demasiado longe na direcção neoliberal e presentemente poderá ir na direcção contrária. Parece ter chegado o momento de reinventar a política e o mundo.

As sociedades dos países da Europa do Sul inclinaram-se para um sentimento anti-alemão, uma vez que a Alemanha, sem que ninguém lhe tivesse dado esse direito, autoproclamou-se líder da EU, elaborando um programa de sadismo económico. A Europa é para milhões de cidadãos, sinónimo de castigo e sofrimento, ou seja, uma utopia negativa. O fracasso da social-democracia explica-se pela sua participação na liquidação do Estado de bem-estar, que era a sua principal conquista e o seu grande sinal de identidade.

Assim se compreende o desapego de muitos cidadãos que esquecem a política abstendo-se, limitando-se a protestar ou a votar em pessoas como o líder do M5E (que é uma maneira de preferir um palhaço autêntico em lugar das suas hipócritas cópias). Decidiram votar na extrema-direita, que sobe espectacularmente em muitos países, ou em menor grau, optar pela extrema-esquerda, que encarna o único discurso progressista audível.

Assim, estavam também na América do Sul há pouco mais de uma década, quando os protestos derrubavam governos democraticamente eleitos na Argentina, Bolívia, Equador e Peru, que aplicavam com fúria as erradas políticas ditadas pelo FMI, até que os movimentos sociais de protesto convergiram numa geração de novos líderes políticos, que mesmo não sendo flores de agradável aroma, conseguiram canalizar a poderosa energia transformadora e a conduziram para fazer os cidadãos votarem em programas de refundação política (constituinte), de reconquista económica (nacionalizações, keynesianismo) e de regeneração social.

Observa-se, nesse sentido, como a uma Europa desorientada e grogue, a América do Sul indica-lhe o caminho. Adentro das entranhas do euro, há quem proclame terminar com esta moeda catastrófica, face a uma situação económica que piora mês após mês e a um nível de desemprego que põe a juízo as estruturas democráticas. Alexis Tsipras, em Dezembro de 2012, jovem político líder da esquerda em campanha presidencial, visitou o Brasil e a Argentina e afirmou na altura que a Grécia não podia deixar de percorrer o mesmo caminho que a Argentina.

A menos de setenta e duas horas passadas de expirar o prazo para chegar a um acordo com seus credores, a ténue possibilidade que ainda existia caiu com a notícia de um surpreso referendo convocado pelo Parlamento para que o povo expresse sua opinião. As imagens que se viram a 27 de Junho de 2015 frente à sucursal fechada do Piraeus Bank, em Atenas, mostram um acontecimento parecido com o que ocorreu na Argentina em 2001, ou seja, uma longa fila de gente à espera da abertura do banco para retirar os seus depósitos. Mas o banco não abriu.

O resgate da UE expirou a 30 de Junho de 2015 e o país ficou sem dinheiro para fazer face ao vencimento de uma quota da sua dívida, de 1.500 milhões de euros para com o FMI. O país entrou em “default” e não tem dinheiro para pagar salários e estão suspensos os empréstimos de emergência do Banco Central Europeu que mantiveram vivo o sistema bancário do país. Muitos bancos entrarão em falência. As pessoas têm conhecimento da situação e apressam-se a recuperar o que depositaram nesses bancos.

A Argentina encontrou a solução desvalorizando a sua moeda e terminou com a conversibilidade de um peso ser igual a um dólar. Depois ofereceu aos credores uma redução de 70 por cento da dívida contraída. Muitos aceitaram, e um pequeno grupo não o fez. É o famoso grupo denominado de “holdouts”. A Grécia não pode usar essa estratégia, dado pertencer à “Zona euro”, que significa que essa moeda tem o mesmo valor em todos os países que a integram.

A desvalorização é impossível neste caso. Se os credores não aceitarem o acordo, a Grécia, tem de baixar o salário aos aposentados, uma fasquia que não se atreverá a ultrapassar. A questão é outra. Que irá fazer a Grécia, pois a decisão não se encontra mais nas mãos do governo? É o povo que vai decidir, mediante referendo suportado pelo Parlamento, se aceita ou não as medidas de austeridade impostas pelos credores europeus.

O resultado pode ser uma surpresa para muitos, especialmente para o combativo SYRIZA. Quiçá, chegada a hora da verdade, os gregos prefiram não abandonar a UE nem o euro. À última hora de 28 de Junho de 2015, a Grécia decidiu fechar os seus bancos e impor controlos ao capital para impedir o caos financeiro quando se tornou evidente a ruptura definitiva das negociações com os seus credores internacionais. A drástica medida tomou o governo, quando a Grécia se foi aproximando cada vez mais da sua saída do sistema de moeda única europeia, e que porá a “Zona euro” face a uma ruptura nunca ensaiada e prevista, desde a sua criação em 1999, se tal vier a acontecer, e que em nada beneficiará a Grécia e a UE de momento, pese os conselhos do outro lado do Atlântico formulados por Paul Krugman e Joseph Stiglitz.

Se a Grécia sair, e acreditamos no bom senso dos políticos e num acordo “in extremis”, será o fracasso da UE. A teoria afirma que a UE conformaria um corpo que deixaria atrás as tragédias das guerras e do fascismo. Os países uniram-se para reforçar a democracia, o império da lei e o repúdio aos nacionalismos. Quando em 1974 caiu a junta militar na Grécia, esse pequeno país converteu-se numa espécie de pioneiro de um novo modelo para Europa, e simultaneamente solicitou a sua inclusão na UE.

O modelo grego de consolidação democrática expandiu-se pelo continente e arrastou consigo outros países à união, reforçando a integração. A Grécia foi, para a Europa, uma ferramenta de difusão da estabilidade e democracia pelo continente. A UE não pode permitir que a Grécia se converta no emblema da sua desintegração. A actual crise pode levar que o país abandone o euro e, depois talvez, também a mesma UE. Isso debilitaria a proposta fundamental da UE, o da união ao clube europeu ser a garantia de prosperidade, estabilidade e coesão.

6 Jul 2015

Grécia: o fracasso europeu

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]epois de semanas de intensas negociações o diálogo Grécia-Eurogrupo à volta da dívida grega fracassou. De várias proveniências choveram acusações de responsabilidade pelo insucesso. Formaram-se, entretanto, dois blocos distintos que cavaram trincheiras e preparam-se paras novas ondas de assalto como se a discussão à volta do incumprimento de uma dívida de um estado soberano fosse uma guerra, com munições, salvas de artilharia, ataques aéreos e congeminações com aliados de ocasião. Quer uns quer outros estão errados pois a crise grega não está delimitada. Sobre ela assenta a saúde do sistema financeiro europeu, a credibilidade da Europa como identidade, a sorte do Eurogrupo e a possibilidade, nas próximas décadas, de um alargamento a sudeste ao espaço da antiga Jugoslávia e à Turquia. É isto que os governos do centro-direita e os seus aliados socialistas não compreenderam.

Vamos por partes. Comecemos pelo bloco anti-Syrisa que condena, em uníssono, a posição da Grécia e a decisão aprovada pelo parlamento de convocação do referendo para dia 5 de Julho. Cruzam-se no arsenal de críticas a Atenas argumentos económicos, políticos e tiros no escuro. Comecemos pelos primeiros. A dívida foi contraída por vários governos gregos e tem de ser liquidada, pois a Grécia assumiu por escrito a responsabilidade de a liquidar, em determinadas tranches e datas. O país depende do financiamento do sistema bancário e este alimenta-se do refinanciamento da banca internacional e em certas condições do Banco Central Europeu. A Grécia – se quiser sobreviver – tem de aceitar a oferta dos credores: o problema grego é económico e nada tem de político. Depois os argumentos políticos. A negociação do Syrisa foi irresponsável, Tsipras é um socialista radical que quer o fim do Eurogrupo e, a prazo, da União Europeia. O referendo grego é inútil. Finalmente, os argumentos de ‘wishful thinking’: a Grécia vai ser forçada a sair do Eurogrupo. A Grécia não tem mais trunfos, vai ajoelhar.

Passemos ao bloco pró-Syrisa que apoia, com algumas nuances, a posição e estratégia de Tsipras. Os argumentos económicos, a começar: a proposta grega foi legítima e razoável; representa uma evolução séria desde o começo das negociações. Não é sustentável uma política de austeridade que penalize os estratos mais débeis da população como a evolução do caso grego demonstra. Depois os políticos: um país não pode ser obrigado a pagar uma dívida em condições que não pode suportar. A negociação foi conduzida de forma construtiva e Tsipras negociou com pragmatismo. A Europa é que perde com a saída da Grécia do Eurogrupo. Finalmente os argumentos de ‘wishful thinking’: a Grécia não está nas mãos dos credores e há fontes de financiamento alternativas (China, Rússia, no limite os Estados Unidos, parceiro na NATO). A Grécia pode encarar a saída do Eurogrupo sem problemas de maior desde que tenha a confiança do povo grego. O referendo de domingo irá reforçar a legitimidade do Syrisa.

A política europeia, como a política internacional, não é um jogo de soma nula, em que uns ganham e outros perdem. É normalmente um jogo em que alguns perdem alguma coisa e outros ganham alguma coisa. Tem sido, assim, desde a criação das Comunidades Europeias, passando pela fundação da União, os sucessivos alargamentos e a Convenção sobre o Futuro da Europa. Por uma razão intuitiva, embora esquecida muitas vezes: a União Europeia é uma construção de interesses contraditórios mas não é uma inevitabilidade, uma realidade sine qua non. Quer dizer, no momento em que os países que formaram a União não a quiserem, os estados-membros regressam ao estado anterior à confederação. Com custos significativos mas não constituindo uma impossibilidade. Apenas não aconteceu até agora.

[quote_box_left]A Europa não precisa de arautos da desgraça. Precisa de líderes realistas que ajudem a construir uma solução plausível que compatibilize as obrigações financeiras tomadas pelas Estados e a salvaguarda da sua dignidade e condições de sobrevivência[/quote_box_left]

A dívida grega é de 315 mil milhões de euros, o que corresponde a 176% do PIB, o que quer dizer que a dívida é uma vez e meia o que o país produz num ano e esse valor tende a agravar-se com os encargos da dívida (4.3% do PIB). A situação é insustentável no médio prazo – nenhum país conseguiu estar muito tempo numa situação de endividamento crónico, porque o funcionamento da economia exige financiamento e este advém dos bancos, refinanciados pelo sistema bancário internacional. Ninguém empresta dinheiro se não tiver uma probabilidade razoável de o reaver, num curto espaço de tempo. A Grécia não é contudo o único país devedor da coalizão Comissão Europeia-FMI- Banco Central Europeu. Portugal tem uma dívida de 215 mil milhões de euros, o que equivale a 131.4% do PIB. A Itália tem uma dívida correspondente a 132%. Também a França com 93.6% e a Alemanha com 74% dos respectivos PIB têm dívidas nacionais significativas.

Dia 30 de Junho venceu-se o programa de assistência de emergência já que a Grécia deveria ter entregue 1600 milhões de euros ao FMI, entrando, assim, em ‘default’, isto é, em mora de cumprimento. Nessa data venceu-se, também, o resgate da União Europeia quanto ao empréstimo concedido. A única possibilidade de ser desbloqueada uma nova injecção de 7200 milhões de euros, indispensável à economia grega, era ter sido aceite a proposta final do Eurogrupo que exige compromissos no corte das pensões, o congelamento do salário mínimo, a subida do IVA, a eliminação da sobretaxa sobre as empresas (e grandes fortunas) proposta pelo governo grego, o corte das despesas militares. Com a suspensão das negociações com o Eurogrupo e os países (credores individuais) a situação ficou num ‘stand still’, num impasse. Na verdade, o sistema financeiro não tem mecanismo para executar um país por dívidas acumuladas – não existe a hipoteca de países. Mas tem uma arma letal importante: o torniquete do financiamento. Naturalmente, num dado tempo os países nessa situação podem emitir moeda para financiar a sua economia. Mas no sistema monetário europeu esse poder está atribuído, em exclusividade ao Banco Central Europeu, que já disse que não coopera.

O que coloca a Grécia numa encruzilha de três caminhos. Primeiro caminho: regressar à mesa de negociações se o povo grego por exemplo disser ‘não’ à posição do governo do Syrisa de recusar o acordo proposto pelo Eurogrupo. Segundo caminho: obter financiamento de urgência por parte de terceiros, se o referendo lhe for favorável. É o caso da China que já se ofereceu para ajudar o país mas não disse ‘quanto’ e em que condições. Ocupando já uma posição proeminente no porto do Pireu por via da COSCO, a empresa estatal, a China pode subir a parada, disponibilizando o referido valor de 7200 milhões de euros em troca do reforço da posição accionista no porto. O porto dar-lhe-ia o acesso ao norte do Mediterrâneo e ao estratégico canal do Suez; a partir daí ‘atacaria’ o mercado europeu. Terceiro caminho: sair do Eurogrupo, voltar a cunhar dracmas e condicionar todas as decisões europeias que a nível do Conselho Europeu exijam a unanimidade dos 28 estados-membros (e que são o essencial de política externa e da governabilidade económica da União). Esta é uma verdadeira bomba atómica, pois paralisaria o funcionamento da União Europeia e empurraria a Grécia para fora da NATO. Mas essa saída nunca será permitida pelos Estados Unidos para quem a Grécia é indispensável na insegura fronteira do sudeste da Aliança Atlântica perante a ameaça da Rússia e a irresolução estratégica da Turquia. Ficam assim as duas primeiras opções.

Quer dizer de repente uma questão económica transformou-se num resfriado estratégico para o Ocidente e a aliança Estados Unidos-Europa. As próximas semanas serão decisivas para a Grécia mas também para a União Económica e Monetária. A Europa não precisa de arautos da desgraça. Precisa de líderes realistas que ajudem a construir uma solução plausível que compatibilize as obrigações financeiras tomadas pelas Estados e a salvaguarda da sua dignidade e condições de sobrevivência. Talvez seja esse o papel reservado à Alemanha.

30 Jun 2015

A vergonha acabou

bancos[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão aceitar que a dívida soberana dos Estado é, antes de mais, uma dívida dos bancos privados, que esses mesmos estados tiveram de resgatar, é querer tapar o sol com a peneira. E, de facto, é isso mesmo que a propaganda oficial europeia anda a fazer há muito tempo, estribada na imprensa neo-liberal, ela própria nas mãos de interesses financeiros: tentar atribuir as culpas da crise às pessoas, ao facto de terem gasto acima das suas possibilidades, quando é o sistema financeiro o principal responsável pelo estado atroz do sítio.

As falácias são muitas. O desejo dos senhores do Eurogrupo e do FMI seria manter alguns povos europeus na situação de eternos devedores, ou seja, fazer de tal modo que as crianças nascidas em 2050 ainda estariam vinculadas a pagar esta dívida que é, nas condições exigidas pelas troikas, impagável. Quem pode aceitar este tipo de situação, para além dos nossos Passos Coelhos e Marias Luís? Quem pode vender o país aos pedaços, prescindir das pescas, da agricultura, da indústria e, sobretudo, de empresas públicas lucrativas? Ninguém com espinha vertebral e o mínimo de amor ao seu povo e aos seu país.

A questão hoje coloca-se, afinal, em saber quem manda na Europa: a economia ou a política? Manter a Grécia no Euro e na UE seria claramente uma decisão política, que faria com que os gregos não necessitassem de aproximações demasiado perigosas à Rússia de Putin ou mesmo à China. Levar a Grécia até à porta e aos repelões só pode ser uma decisão que não tem em conta os interesses geo-estratégicos, portanto derivada de quem unicamente equaciona o lucro como valor. O preço poderá ser no futuro muito mais alto.

Mas, quando olhamos para as notícias, é-nos realmente difícil vislumbrar políticos, homens de causas, de paixões, de ideais. Vemos uns serventes do sistema financeiro, encolhidos nos seus fatos, a seguir atentivamente as boutades da senhora Lagarde ou do senhor Schaulbe. Não surge ninguém com a autoridade e a força moral capazes de libertar a Europa do espartilho bancário, desta sangria de gente, desta desonra inaceitável.

Sem política, a Europa torna-se num mero mecanismo de favorecimentos financeiros, como o Tratado de Lisboa (artigo 123) plenamente demonstra. O que mais me admira é os seus mentores darem palmadas nas costas uns dos outros, como Sócrates e Barroso, sem nunca demonstrarem um pingo de vergonha. Esta, ao que parece, acabou.

29 Jun 2015

A gendarmerie de África

[dropcap]E[/dropcap]nquanto os Estados Unidos da América (EUA) têm desempenhado, nalguns casos com particular desvelo, o papel de polícia do mundo, a França, por seu lado, tem-se mostrado muito confortável no fato de gendarme do continente africano. Os casos de intervenção das forças armadas francesas sucederam-se durante o século XX. Este novo milénio tem mostrado a mesma tendência. Embora com o Presidente Jacques Chirac, na sequência do papel desastroso desempenhado pela França no Ruanda,  tenha parecido que os franceses se estavam a afastar de África, as recentes intervenções autorizadas por Hollande, na República Centro-Africana e no Mali, reforçaram esse papel de polícia do continente africano.

Ao contrário de Portugal, que fez a descolonização pela batuta do processo revolucionário em curso, com um resultado final que pode ser resumido pela ideia de uma debandada institucional generalizada – afinal, Portugal combatia os movimentos de libertação nacional em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e estava à beira de uma guerra civil –, as circunstâncias da continuidade da ligação militar de Paris com as suas antigas colónias são diferentes. Acima de tudo – e esta é a principal diferença – a França procurou continuar a ligação orgânica com as colónias e tratou de garantir que os novos regimes africanos a aceitavam como o mais relevante parceiro – senão o único – no sector estratégico da cooperação e assistência  técnica militares. Em troca, Paris requeria apoio nas votações nas Nações Unidas. Simples, bonito e eficaz

Na verdade, essa proximidade não foi muito difícil de estabelecer. Como no caso das antigas colónias portuguesas, a maioria dos líderes políticos que saíram dos processos de independência tinham grandes proximidades com o antigo poder colonial – ou haviam estudado na “metrópole” ou tinham até tido papéis de destaque no aparelho colonial. Criaram-se pois redes de contactos mais ou menos informais que tiveram em Jacques Foccart, assessor do Presidente Charles de Gaulle e responsável pela célula africana dos serviços secretos, o principal impulsionador desta relação privilegiada. Esta relação de proximidade adquiriu um nome próprio: “Françafrique”, que chegou aos dias de hoje e que expressa uma certa intimidade entre as elites africanas e o poder em França traduzida, na prática, pela manutenção de generosos orçamentos da Europa para o continente africano. Quem o inventou foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny, logo em 1973.

Passados mais de 40 anos, a relação de proximidade com a África sub-sahariana mantém-se. Num recente artigo para a Political Science Quarterly, a revista académica publicada pela Academia de Ciência Política de Nova Iorque, o investigador francês Victor-Manuel Vallin faz o balanço desta relação especial. A França mantém acordos de cooperação militar com oito países africanos, alguns da sua esfera de influência tradicional (como são os casos do Senegal, Costa do Marfim, Benim, Camarões, Gabão, Republica Centro-Africana, Comoros) e outros mais recentes, mas com uma importância geo-estratégica capital (como é o caso do Djibuti, país onde a França instalou uma das suas maiores bases militares em África e onde, além dos EUA, está presente o Japão que, em 2011, estabeleceu ali a sua primeira base militar no estrangeiro desde o final da II Guerra Mundial).

Estes acordos de defesa implicam nalguns casos a manutenção de uma presença militar no país. A França tem bases no Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Costa do Marfim, Níger, Chade, Gabão, Republica Centro-Africana e Djibuti. Estas têm como principal objectivo contribuir para a manutenção da ordem pública – leia-se o status quo, que a alteração de regime pode sempre pôr em risco os interesses nacionais. Mas Paris mantém também nestes países um número considerável de assessores (e não apenas nos Ministérios da Defesa), que aconselham as autoridades na definição das diferentes políticas. Durante a minha estada na República Centro-Africana, por exemplo, conheci vários destes assessores que tinham acesso privilegiado ao ouvido dos respectivos ministros. Estes assessores constituem uma fonte considerável de informação sobre a situação do país, o que dá à França a upper hand em termos de conhecimento rigoroso do que se passa de um ponto de vista politico e militar, que faz dela um caso único, por exemplo na África Central. Esta proximidade levou ao estabelecimento de academias militares, em 17(!) países, com as quais a França gasta 10 milhões de euros por ano e nas quais os militares franceses dão formação à futura elite castrense.

Este é um papel decisivo para a afirmação internacional da França. É no continente africano, por exemplo, que a língua francesa tem capacidade de crescimento. Não é em França, na Bélgica ou na Suíça, ou mesmo no Canadá, que o francês pode sonhar de novo em desempenhar um papel de destaque na política internacional, como tinha no início do Século XX, em que era, ainda, a língua da diplomacia internacional, um papel que desempenhou em regime de monopólio praticamente desde o Século XVII. São agora longínquos os tempos em que os diplomatas britânicos e americanos usavam o francês para vincular a posição dos seus Estados.

Mas França já não está só neste papel de polícia voluntário do continente africano. Há outros actores no continente a ganhar destaque. Desde logo, os EUA. No âmbito da luta contra o terrorismo, Washington aumentou consideravelmente a presença em África, onde criou, em 2007, o Africom, um comando militar dedicado para o continente. Essa vontade de contribuir para a solução dos problemas africanos foi visível, por exemplo, recentemente, quando Obama enviou contingentes militares para a África Ocidental, para ajudar na contenção do vírus do ébola e, anteriormente, havia despachado assessores militares para darem formação, no âmbito da luta contra Joseph Kony e o seu Exército da Libertação do Senhor. Embora os EUA – e a China,  que entretanto também reforçou o seu envolvimento com o continente,  tendo já assinado acordos de cooperação militar com 15 Estados africanos – sejam os “new comers”, a França mantém-se, hoje em dia, como um parceiro quase único do chamado “mundo ocidental” contra as consequências do extremismo em África. Os números actuais da presença francesa em África não são conhecidos. Mas quando o primeiro-ministro Lionel Jospin, em 2002, deixou o poder após cinco anos de contínua diminuição da presença militar no estrangeiro, continuavam pela África sub-sahariana 5300 operacionais franceses. Este número cresceu, indesmentivelmente, nos últimos anos após as operações na República Centro-Africana e no Mali. E assim se deverá manter nos próximos anos. Como também a tentação de, por vezes, interferir directamente no desenrolar dos acontecimentos nos países onde os interesses e a presença francesa são muito grandes.

23 Jun 2015

Viriato Soromenho Marques: “A nossa política doméstica é hoje política europeia”

Viriato Soromenho Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, tem um extenso currículo, não apenas académico. Esteve em Macau para promover o seu novo livro intitulado “Portugal e a Queda da Europa”, no qual defende a abolição do Tratado Orçamental da UE e que o federalismo europeu não seja apenas penitência mas também salvação.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] pontou diversos erros na construção da União Europeia, fazendo um diagnóstico não muito favorável. Por outro lado, apontou um outro caminho que seria mais federalismo. Isso faz-me lembrar o que Nietzsche diz de Kant: a raposa que destrói a sua jaula para a seguir construir outra e se meter nela…
(Risos) Refere-se à passagem da Crítica da Razão Pura para a Crítica da Razão Prática, não é?

Sim. Da crítica “radical” da possibilidade de conhecer à emergência do “radical”, “terrorista” imperativo categórico (risos).
De facto, penso que há uma consistência na minha afirmação, isto é, a construção europeia foi efectuada através de uma metodologia que, desde o início e para os observadores mais atentos, estava “impregnada” de deficiências de design, ou seja, de construção. Temos vários marcos das críticas que foram feitas. As críticas foram feitas em diferentes períodos: um deles que foi na década de 70, porque a ideia de uma união monetária – que é hoje a zona Euro – já vem bastante de trás. Praticamente, desde que a comunidade europeia se constituiu, em 1958, com um dos Tratados de Roma, que temos várias tentativas de a construir. A primeira – e a mais consistente – é de 1970 e tem o nome do Primeiro-Ministro do Luxemburgo [Pierre Werner], que ficou encarregue de fazer o esboço e é o Plano Werner, que consiste em fazer uma união monetária de 70 a 80, ou seja, em dez anos. Este é muito parecido com aquele que está actualmente em vigor. Tendo sido objecto de críticas válidas, se o plano actual é muito semelhante, as críticas são igualmente válidas. As deficiências que hoje vemos claramente são fruto do choque daquela estrutura com a realidade. A primeira crítica é a seguinte: uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…

Pode dar um exemplo, para entendermos melhor o que é realmente para si essa necessidade…, digamos, federal.
O exemplo mais puro é o do Federalismo Americano. Temos a Constituição Federal de 1787, aprovada e em vigor em 88, mas não temos o dólar nem nenhum banco central. No entanto, tinham já uma Constituição comum dizia as competências do Governo comum. Só timidamente, à medida que a realidade ia evoluindo, é que eles começaram a introduzir o dólar – em 1792 – e houve várias tentativas falhadas de fazer um banco central.

[quote_box_left]“Uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…”[/quote_box_left]

Está então a dizer que existem erros estruturais, conjunturais e também eventos dramáticos…
Um outro caso, a que eu chamo de império federal, foi o II Reich, de Bismarck. A Alemanha tinha 30 e tal unidades políticas e a Prússia liderava a unificação depois da vitória sob a França. Só em 1876 é que foi possível unificar todos os bancos centrais que existiam nos estados alemães e que na altura se chamava Reich Bank. Em 1871 fizeram a Constituição. Digo que [isto] era Imperialismo Federal na medida em que os estados continuavam a estar representados parlamentarmente; a única questão é que o imperador era sempre da Prússia. O Império Austro-Húngaro – que também tem traços democráticos – tinha uma união monetária que passava pelo crivo do Parlamento. Como era um império constituído por dois reinos, de dez em dez anos havia uma sessão especial do Parlamento que se debruçava sobre a renovação da união monetária… Nós nunca tivemos nada disto na zona Euro.

Sem união política, considera então impossível a união monetária?
Que funcione, sim. A união política permite criar uma esfera de Governo comum e a Comissão Europeia não é um governo comum, até porque precisam de ter um orçamento comum que permita fazer investimentos, políticas contra-cíclicas quando os Estados estão com dificuldades. Num governo federal, quando há uma expansão económica, o governo tende a contrair.

Quando fala de federalismo, está a falar de política, mas a verdade é que o Tratado Orçamental, que impõe a intromissão na definição dos orçamentos nacionais, não é só um instrumento económico mas, sobretudo, de economia política. No fundo, já existe federalismo através deste tratado…
Existe uma caricatura, na medida em que só existe o federalismo como penitência e não como salvação. Uma questão central tem que ver com o orçamento comum e a capacidade de políticas de coordenação económicas, que são duas coisas que efectivamente ainda não existem na Europa. O orçamento comunitário da UE corresponde a 1% do PIB e, quando o [Jean-Claude] Juncker e o [Durão] Barroso se sentavam com os chefes de Estados dos Governo, tínhamos 1% do PIB europeu sentado à mesa de 45% do PIB europeu, que é sensivelmente aquilo que os orçamentos dos governos representam. Temos uma desproporção absolutamente brutal. Para podermos falar de federalismo económico de um governo que tivesse capacidade de fazer as tais medidas, precisaríamos de ter um orçamento europeu, no mínimo, de 4% a 5%. Isto para um federalismo “low-cost”…

[quote_box_right]“Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…”[/quote_box_right]

Isso significaria mais impostos para os povos europeus?
Neste momento temos 1% e não dá. Como é que vamos arranjar os tais 5%? Através da superação de uma outra desvantagem que a actual situação traz: não só não temos política de coordenação económica, como temos uma competição fiscal – no sentido português da palavra – terrível. Isto provoca situações como as empresas do nosso PSI 20 pagarem impostos na Holanda. A vantagem da coordenação económica é que obriga a algum federalismo fiscal. Isto significa simplesmente que o orçamento comum é baseado nos impostos e toda a gente percebe. Se perguntar como é que funciona o orçamento europeu, só um técnico é que sabe responder. Mas esta baseia-se no princípio de garantir que algumas economias são contribuintes líquidas e outras beneficiárias: é de paternalismo fiscal. A ideia é manter sempre sete ou oito países à frente.

É essa Europa que quer federalizar ainda mais, dando mais poder a estes países? Se já temos um federalismo na prática…
O que temos é uma “consolidação de Estado”, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos. O BCE é que tem salvo a Europa de uma desagregação que teria acontecido em 2010 ou 2011. A grande reforma que precisamos não são na Grécia ou Portugal, mas sim da zona Euro e a prova disso é o BCE. O próprio resgate da Grécia e Portugal era proibido pelo artigo 125 [Tratado de Lisboa] e é muito interessante, porque o mecanismo que foi encontrado é o da ambiguidade e falta de coragem de se dirigir ao cidadão. O artigo 125 é uma espécie de cadáver que está no Tratado… E o artigo 123, que proíbe o financiamento monetário. Ou seja, enquanto os bancos centrais de outros países compram as suas obrigações do tesouro no mercado primário e consegue fazer um financiamento político, o BCE compra a dívida que está sobretudo na posse dos bancos, no mercado secundário.

Então, pelos vistos, interpretando esse artigo do Tratado de Lisboa, conclui-se que os políticos europeus estão nas mãos desses bancos, fazem-lhes as vontades. Vamos federalizar mais para lhes dar ainda mais poder, para expandir e dar uma dimensão final às doutrinas neo-liberais?
Não. A proposta que defendo é a explicitação do federalismo e isso implica ser capaz de voltar ao princípio, à ideia de um tratado constitucional, definindo claramente as competências da esfera europeia, fazer uma reforma fiscal que permita habilitar esse governo a ser eleito pelos cidadãos com os recursos orçamentais necessários e impedir esta situação em que temos o Conselho Europeu a controlar o processo. A Comissão Europeia está neste momento na posição de “serva” do Conselho Europeu e não tem tido capacidade de iniciativa. Os tratados recomendam que todo o processo legislativo começa na Comissão e agora é ao contrário: todo ele começa nas reuniões do Conselho Europeu, por sua vez dominado pela Alemanha, às vezes com o apoio da França. Temos que fazer esse caminho – claro que a política é a procura da liberdade possível – mas também procurar evitar a “física política” – que é quando se faz a única coisa que se pode fazer. Estamos a ver que a política na Europa está a estreitar-se tanto que qualquer dia já só temos física, sendo só administrada a desordem.

[quote_box_left]“O que temos é uma ‘consolidação de Estado’, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos”.[/quote_box_left]

Neste enquadramento, também deu a ideia de que prefere uma solução que passe pelos partidos políticos tradicionais do que pela emergência de novas forças políticas ou novos conceitos, que acontecem em países como a Grécia, a Espanha ou a França. Em que sentido prefere os tradicionais?
O que prefiro é que exista uma consciência colectiva dos europeus no sentido de não voltarem as costas à Europa, porque é a casa que nós temos e, se ela se fragmentar, as ruínas caem-nos em cima. Julgo que tudo é possível porque entramos numa zona – com a Grécia – em que as regras já não se aplicam e é uma situação nova, porque é a primeira vez que um país da OCDE não cumpre os planos do pagamento do FMI e é, de facto, grave. É, sobretudo, feito num contexto em que não sabemos se vai haver acordo, pelo que se não houver, a Grécia terá que criar uma nova moeda. No entanto, isto vai ser uma confusão muito dolorosa para a Grécia e para o resto da Europa, porque não é só a questão dos credores oficiais, mas também da inserção deste país no mercado europeu, na medida em que os importadores e exportadores vão, certamente, ficar numa situação em que deixarão de estar interessados em vender produtos à Grécia, país com nova moeda e que vai ter que renegociar tudo com toda a gente.

Mas a dívida infinita também não é uma opção viável…
Não. Temos que ser rigorosos. Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…

Não existe um regime de federalismo político assumido: com eleições, governo, presidente da Europa, nada… Mas há uma dúzia de bancários e políticos de determinados países que jogam no mercado financeiro e impõem aos países determinadas medidas.
Não lhe parece que podíamos aproveitar a Grécia para, pacífica e politicamente, começarmos a mudar as coisas? Era interessante. Essa racionalidade fazia sentido e julgo que os países que deviam ter logo aproveitado com a questão grega eram Portugal, Espanha e a Itália. O que eu acho inadmissível – e que os eleitores vão ter que punir estes governos nas próximas eleições – é que os governos de Portugal e Espanha não tivessem aproveitado, até porque sabemos que os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais. Pensaram no seguinte: se conseguirmos ganhos por causa da Grécia, significa que toda a oposição que temos à nossa esquerda, vai ganhar as eleições porque vão perguntar porque não fizemos o que a Grécia fez. – É preciso que corra mal na Grécia para que nos corra bem a nós – é precisamente o discurso de Passos Coelho.

[quote_box_right]“Os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais”[/quote_box_right]

Mas estes partidos do arco da governação são aqueles que defende…
Não exactamente. A reforma do sistema partidário pode assumir várias dimensões. Falamos dos casos grego e espanhol, onde está a ver-se uma reforma ao lado dos partidos tradicionais. Todavia, julgo que também é possível vislumbrar uma reforma da parte dos partidos tradicionais. Podemos conceber um processo misto, com o aparecimento de partidos convencionais que sejam capaz de dar a volta e ajustar contas com o seu passado, renovando-se, com novos partidos. No caso português, temos no espaço da direita uma certa renovação, com uma coligação que vai aguentar até ao fim e que vai partir outra vez para as eleições. A direita foi capaz de fazer uma coisa que a esquerda tem muita dificuldade em fazer, que foi unir-se, sempre com a perspectiva da manutenção do poder. Em relação à esquerda, vejo dois partidos mais pequenos – o PCP, que é um partido clássico que mantém basicamente as mesmas posições e o BE, que está numa posição de grande incerteza em relação ao futuro –, o aparecimento de uma força que vai disputar votos à esquerda, à direita e ao centro – que é Marinho Pinto – e a questão do PS, que é um grande enigma. Aparentemente, teria condições para se renovar e até produziu, com a equipa de Seguro, as primárias – que era um desígnio já muito antigo –, mas está a ser perturbado por uma grande dificuldade em não apenas calibrar o seu discurso programático mas também da narrativa do seu passado. A situação de ter um ex-primeiro-ministro preso não facilita a situação. Um dos grandes problemas do PS vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.

As Legislativas 2015 estão à porta e há a possibilidade do Governo mudar. Em que medida é que uma possível alteração de partido poderia influenciar a forma como Portugal se posiciona na Europa?
Julgo que a verdadeira escolha está, essencialmente, na compreensão de que a nossa política doméstica é hoje política europeia, tal como para Espanha, Grécia ou Itália. Qualquer possibilidade de contrariarmos a austeridade, que tem feito cair o investimento público a níveis tão baixos que só têm paralelismos históricos se recuarmos décadas, de ter capacidade para lutar contra a fragmentação financeira da UE, que faz com as nossas empresas tenham condições competitivas piores do que empresas da Europa Central… Tudo isto só será possível mudando as regras do jogo europeu. A melhor política que um novo governo pode fazer, pelo bem do nosso país, será a de dialogar extensivamente com forças de outros países. Temos algum tempo, mas não temos todo o tempo do mundo, partindo do princípio que a situação da Grécia não vai escalar muito mais. Aquilo que temos mesmo discutir é a questão do tratado orçamental e a minha posição é radical: este devia ser abolido, porque é um instrumento que não serve à UE. Se tivermos que encontrar uma posição intermédia, teremos que rever aquelas metas absolutamente irrealistas do défice e da dívida pública que nos condenariam a uma austeridade por, pelo menos, mais 20 anos.

[quote_box_left]“Um dos grandes problemas [do PS] vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.”.[/quote_box_left]

Disse que Portugal não tem uma lógica de projecto colectivo. Em que medida seria possível contornar esta sua ideia?
Maurice Duverger dizia uma coisa muito interessante quando aderimos à UE: ao entrarem na comunidade europeia, vocês, portugueses, parecem estar a reformar-se da História. Isto significa que Portugal não amadureceu suficientemente o seu desígnio estratégico, depois de termos rompido com uma tradição secular. A maioria dos portugueses e políticos não se apercebeu da mudança sísmica da revolução de 74: é que, nesta altura, não nos limitámos a substituir uma ditadura por um regime de democracia representativa. Já a tínhamos tido na Primeira República e na Monarquia. Em 74 interrompemos um ciclo em que a nossa identidade estratégica dependia de um apoio externo, que era o imperial. Em 74 estava em causa precisamente esta questão: onde é que vamos buscar este apoio externo? O país continuou a precisar disso… Adriano Moreira diz isso e eu apoio. Julgo que a Europa foi isso mesmo, mas não fomos capazes de perceber que a Europa era um espaço de luta e não de repouso. Devíamos ter negociado os termos de amarração na Europa.

Uma espécie de projecto nacional, como houve com os Descobrimentos… Resumimo-nos agora à selecção nacional de futebol e, esporadicamente, tivemos Timor, que foi um caso de sucesso.
Exacto. O falhanço nacional principal foi o Tratado de Maastricht. Em 1986 a negociação e as condições de entrada foram bem conseguidas. O que a democracia conseguiu não é nada que o Estado Novo não tivesse já pensado, até porque o primeiro pedido de adesão à comunidade europeia foi feito em 66, e não foi com Marcelo Caetano mas sim com Salazar, que pediu a adesão discretamente. Foi De Gaulle que se opôs porque tinha acabado de criar a sua política agrícola comum. Olhou para Portugal e pensou que era um país pequeno mas demasiado parecido com França: tinha muito agricultores. A vocação europeia não é nenhuma descoberta democrática, mas sim lógica.

Haveria outras alternativas?
De entre várias outras, há um projecto mais audaz, que seria o de uma união lusófona, que faria de Portugal um país descentrado da Europa, com uma base europeia, mas fundamentalmente centrado em África, que era o projecto de Norton de Matos. Nova Lisboa era o embrião de uma capital em África, o que seria uma experiência absolutamente extraordinária. O que falhou? O que falha actualmente: não se pode fazer isto nem um regime federalista sem democracia plena. Julgo que a actual crise que estamos a viver é também um momento para um despertar da nossa consciência nacional, de não estamos condenados à fatalidade, de pensar o país como um processo de venda a saldo do capital construído, dos bens imóveis, até que não exista mais nada. Este governo tem vendido tudo aquilo que constituía um suporte da nossa capacidade de autonomia em caso de sermos obrigados a seguir o nosso destino. No fundo, o nosso país está a ficar um país de assalariados.

[quote_box_right]“Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.”[/quote_box_right]

O investimento chinês tem estado particularmente presente na área de investimento português. Como vê a influência da China em Portugal e que futuro augura?
A China é claramente uma potência que tem uma visão estratégica mundial, já não é só asiática, e também não tem estados de espíritos: partidos republicanos e democráticos, políticas conjunturais, nem presidentes burros ou inteligentes… Tem um projecto estratégico de décadas. Outro aspecto: a China não faz caridade e está a investir em Portugal porque neste momento é um bom negócio com empresas bastante válidas e estruturas lucrativas. Parece-me também que na perspectiva de projecção de poder no mundo, a China prefere a aliança e a parceria ao confronto e à dominação. Estando nós numa situação tão incerta e insegura em que a nossa permanência na zona Euro pode estar em perigo, é conveniente termos outras amarrações geopolíticas e geoestratégicas do ponto de vista económico com outras zonas do mundo. Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.

Como aos olhos da China…
Faz todo o sentido fazermos parcerias com a China em vários sectores e talvez se tenha exagerado um pouco na percentagem de capital de cada sector que foi negociado e a culpa foi do nosso Governo. A Índia é também muito importante, mas os EUA também não devem ser esquecidos, tal como outros países. Diria que, à semelhança do que a região de Macau representa, também no que diz respeito ao investimento chinês em Portugal, o governo que vem a seguir deverá manter uma boa cooperação com a China.

com Leonor Sá Machado
leonor.machado@hojemacau.com.mo

12 Jun 2015