Apocalipse

[dropcap]E[/dropcap]sperar. O dia frio, o atravessar do rio e subir a noite até onde a tarde chegar.

Recuperar. Tudo o que é frágil, cristais e longos braços, que o adeus é forte para quem já está no mar.

Silenciar. Pouco para dizer, para nascer, encrespadas as águas geram pragas, e nós não vamos nadar, vamos na viagem já sem poder andar.

Navegar. Nesse céu que é uma oblata sem a sua Via Láctea – que ela também nos banhara – assim, de um leite que predissera o mel das Abelhas, sem Terra Prometida nas nossas entranhas, humanas e velhas.

Seguir. Nos caudais pela costa rochosa, que tudo se evola, anzóis que suspensos ferem os lençóis molhados de vento.

Querer. Que as sortes se joguem e as fontes não jorrem, que se tudo em nós amanhecesse longe destes postigos, levaríamos ainda assim esses quilómetros de lamas dos locais perdidos.

Olhar. E ao redor só há muros que fazem escuro todo o respirar, reposteiros altos vendam a passagem, nada se deslinda e a vida vive ainda…

Soltar. As mãos laças, que por nós tudo passa, deixemos passar. Corre trágico o momento, das rugas da aurora cobrem-se os ventos, e de repente, um outro firmamento!

Querer. Olhar os que estão, mais os que se vão, não ter no tempo mais ida nem vinda. Mas na quimera, nessa onda prateada, quem nos segue, quem nos limita a entrada?

Caímos! O que os rins cingem e os rios seguem vai perdido e toda a natureza padece de sentido.

Partir. À tua frente marcham os tambores, parece a hora da dança, mas é na nossa esperança que na dança se dança a todo o vapor. Corrente maior! O som da chuva, o som do sol, e a subida demiurga do canto de rouxinol.
O rio é fronteira por belo que seja, e agora, são altas fogueiras que tangem, que tecem… Tejo tágico. Paredes de água são altas e esguias… guindastes vorazes. É para o alto que se vai. E saltarão os elementos de onde agora só saem sinais.

Padecer. Tamanho é o encontro, talvez encantado, que a vida no limite é sempre buscar o lenho e continuar sossegado. Se estamos altos, altos ficamos, se estamos em baixo, para o fundo nos vamos. No sopro do tempo que morre, há um Holocausto, há Fausto, (rede) morrido nesse tráfego.

Ninguém dará pela chegada, e já tarde, quando tudo tardar- o baloiço da Terra gira alto- como se fosse crescer…. a Vida, uma espuma vazia que a secura segura na trancada criatura.

No verso, na prosa, neste lençol de malvas e de tules, há ataúdes, singulares acordes de uma música esquecida plangente de olfactos, que a tempestade tem cheiro e se sente nos asfaltos.

Nós, que trabalhamos para o esquecimento e dele falamos como intento, lavaremos as mágoas.

Cobertos. Ora no rosto, ora na sombra, a Hora soma, cresce o dia mais banal que as vontades, e nesse instante guia por águas filtrado, repousa o céu de um ciclo que é findo e nunca nos foi dado. Toda a matéria escorrega na superfície do azul, e mortas sementes recorrerão ao estrume, que as novas transplantações dos órgãos desfeitos serão como peças para corpos mais perfeitos.

Enquanto a Bela dorme, gela o seu Pólo maior, coberto de silêncio como se não tivesse visto a dor.

Atravessar. Os astros que findos magos não percorrerão, nas noites azuladas, nos satélites que espreitam, que já há Luas sem descanso enquanto brilham nuas estrelas de antanho. São crepúsculos, fogos de Santelmo, a memória naufragada, que a nossa Barca ardeu, e Deus nos esqueceu.

Renascer. Da abóboda, glacial etapa como juramento aos frios. Dos Infernos, a lôbrega santidade toda de breu seguirá viagem sem saudar em nós esse irmão a quem não quis dizer adeus. Jurámos não esquecer o esquecimento votado, por isso- por causa disso- nunca seremos condenados.

Outro Céu e outra Terra, que esta se partiu, restou enfim, na escura gruta um homem só que ainda existe, sem saber quem dele fugiu. A memória vasta, as fontes intactas, caminham…! Ciber fronteira…

E apaga-se a Fogueira.

9 Nov 2020

Esperar

[dropcap]E[/dropcap]sperar” é uma relação intencional, admite um espectro de possibilidades de comportamentos relativamente a uma multiplicidade de objectos. Esperamos por A, B ou C, X, Y e Z. A relação que se estabelece entre nós e cada objecto implica estarmos depostos num futuro, mais ou menos imediato ou até tão remoto que nem parece estarmos à espera do que quer que seja. Há várias possibilidades de projectarmos futuro na espera. Há a espera accionada com a expectativa de qualquer coisa que está aí a rebentar, uma pessoa que, não tarda, chega, o início de um espectáculo, a vinda de um meio de transporte. O campo perceptivo não fica apagado, mas não está em sossego, não importa verdadeiramente na sua contemporaneidade, enquanto sincroniza sujeito de percepção, eu a ver, e objecto de percepção, a rua a ser vista. Quando esperamos por um meio de transporte, de chegada iminente, vemos a Av. de Lisboa, onde estamos, com os seus prédios de cada lado do passeio, carros que passam, nas duas direcções, se há ou não tráfego, os transeuntes, árvores, o céu que serve de plano de fundo. A espera não é, contudo, um aspecto assistencial da realidade. Não o é no seu sentido mais próprio. Se estamos à espera de um meio de transporte, se soubermos de onde se dá a sua aproximação espacial, olhamos nessa direcção. Não olhamos, portanto, com interesse ao que está a desenrolar. Tudo o que se está a desenrolar é um conteúdo sem o objecto da espera. Olhamos para tentar ver o que não pode ser visto nunca do ponto de vista da espera. Se estou à espera de um Uber olho para a aplicação, vejo a representação digital do carro no seu percurso, olho para a rua para ver se já está disponível na percepção. Enquanto não estiver estou “virado” para um espaço físico mas representado: as ruas pelas quais o carro passa, não está a ser efectivamente vistas por mim. Há bairros de prédios a esconder essas ruas, há a distância a que me encontro delas. Além disso, estou virado para o ponto que define a esquina que será dobrada pelo carro, depois de dobrada, sei que o carro se configurará em percepção. Se olho na Av. de Berna para o Campo Pequeno, é porque acho que sei que o carro aparecerá daí. Não olho para o lado da Gulbenkian, se estiver na NOVA FCSH. Se estiver do outro lado do passeio e quiser ir na direcção do Areeiro, então olho na direcção da Praça de Espanha. É daí que virá o meio de transporte. Tudo o mais perde a importância ou antes é compreendido como o plano atrás das minhas costas, na direcção do qual quero ir, que me orienta espacialmente a espera, mas não está a ser visto. Quando vejo o Uber aproximar-se, está já no campo perceptivo, mas está ao serviço do funcionamento da espera. O carro tem de se aproximar a tal ponto que eu consiga, ao esticar o braço, agarrar o trinco da porta, abrir, aproximar-me do carro para entrar, primeiro perna esquerda, depois direita, baixo-me, sento-me, espero pelo arranque, início da viagem, etc., etc.. Quando entramos para dentro de um carro a espera não se dissipa. Há uma fase da espera que fica preenchida. O carro demorou a chegar ou veio de rapidamente. Depois, é necessário fazer o caminho que leva até ao ponto de chegada. O ponto de chegada, uma vez lá, não é o preenchimento, a não ser de uma fase do que estamos a fazer, do que temos de fazer. Vamos a um sítio sempre para tratar de alguma coisa em agenda, para ir por ter de ir ou para ir para qualquer coisa específica. O que se passa para a espera por um meio de transporte, de forma evidente, passa-se para todos os objectos nos quais estamos depostos. Achamos que esses objectos de espera, os objectos por que esperamos, estão já disponíveis na nossa percepção momentânea em que presente e conteúdos apresentados parecem coincidir. Mas se parecem não são coincidentes. Se quero ir de uma divisão da casa para outra, a biblioteca não está na sala de jantar, eu sei que as duas divisões estão contíguas espacialmente, mas uma está à distância temporal do percurso que tem de, necessariamente, ser feito até lá chegar. As divisões de uma casa estão justapostas ou são contíguas espacialmente, mas estão descontinuadas temporalmente. Agora que me levanto do sofá da sala de jantar, a biblioteca onde está o livro encontra-se “depois”, “mais tarde”, mesmo que seja a instantes de uma qualidade tão breve que esse simples facto, de que há uma distância temporal entre as duas divisões, não é percebido cabalmente. Mas se estivermos numa mesma divisão, a espera está a constituir-se eficazmente relativamente a conteúdos que não se destacam nem perfilam na sua individualidade dinâmica. O meio de transporte por que esperamos ou a espera pelo meio de transporte é o sentido da situação em que nos encontramos. Não estamos à janela do mundo apenas para assistir como espectadores desinteressados ao que se está a passar. Todo o campo da percepção está situado pela espera. O livro que precisamos de consultar não está no campo de visão da sala de jantar, mas erige-se, sem uma apresentação visual forçosamente, pela ideia que tenho de que está na biblioteca. Eu vou até ele, passando pelo corredor, depois de ter saído da sala de jantar. Quando estamos a viver o campo perceptivo, quando aparentemente não se espera por nada de concreto que se destaque ou perfile de todos os objectos que aí se encontram, há ainda assim, espera. Achamos que, por defeito, nos encontramos num campo perceptivo, sem estarmos à espera de nenhum objecto, pessoa ou coisa, concretos. Mas é inversamente o caso.

Estamos continuamente e sempre à espera de poder continuar a estar na Av. de Berna, ir ao Campo Pequeno, à Gulbenkian, à Pr. de Espanha. Estamos continuamente à espera de poder continuar sentados na sala de jantar ou a ler um livro na biblioteca. Por defeito, encontramo-nos na espera de continuar no horizonte de percepção que é tão pouco só a sintonia entre ver e visto, a sincronização presente, num instante ou numa duração considerável, de agentes de percepção e objectos de percepção, que a possibilidade de não continuar, de a percepção se desfazer, constitui problema. Não nos apercebemos, a não ser quando estamos “acesos” por um conteúdo específico de espera, que estamos sempre depostos num horizonte de espera que dá identidade de sentido e permite o reconhecimento da mudança no imutável, da sucessão na permanência. O que nada muda tem também o seu apelo.

4 Out 2019

Saberei esperar?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

 

[dropcap]E[/dropcap]scavações arqueológicas nos arredores de Londres extraíram-nos do passado. Com cerca de 132 mm e datado de 70 A.C., o “stylus”, já por si raro, torna-se extraordinário por conter inscrição bem-humorada, que liga Londres a Roma, a Cidade. Na tradução do especialista, Roger Tomlin: «Vim da Cidade. Trago-te um presente de boas-vindas com uma ponta afiada na esperança de que te lembres de mim. Pergunto, assim me permita o destino, se posso (dar) de forma tão generosa como longo é o caminho e os meus bolsos vazios». Uma recordação, portanto, que, apesar de pobre, atravessou os séculos e os destinos para dizer que os bolsos vazios não travam caminho. Deve ser mania, mas leio nestes vestígios a vocação do editor. A ruína, nos seus vários sentidos, estendem-se enquanto horizonte. Que marca e que pele sobrará?

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Nem foram os primeiros élepês do Zeca que tive, mas aqueles últimos ficaram-me gravados. Aliás, comecei por beber canções, servidas pela irmandade que me governou («Venham Mais Cinco», lembras-te Paulo [Caldinho Gomes]?). Tocando as correntes subterrâneas, dou comigo a tentar perceber quês e porquês, a pretexto de aniversário. A luxúria das paisagens sonoras, por exemplo. São bastante distintos, mas estes «Como Se Fora Seu Filho» e «Galinhas do Mato» andam de par nos confins do recordativo. Nada se perde do Zeca anterior, com o constante mergulho nas raízes, qualquer que fosse a terra, de aquém ou além-mar, de litoral ou interior. Mas acontecem curto-circuitos com outros géneros, do jazz a tropicalismos de vários tons. Também na lírica se manteve a leitura da história e a sabedoria panteísta, a ironia cortante e a aspiração política. Ou dançando tudo, como quando, em «Papuça», o verso «a revolução é para já» solta os ritmos da dança. «Utopia» tornou-se um clássico instantâneo, de simplicidade e pureza. O que então me espantou foi a pujança do surrealismo, os nexos poéticos estabelecido pelo absurdo, rasgando fendas no quotidiplano. «Era Um Redondo Vocábulo», uma das minhas eleitas, comprova que esse modo de ler mundos era omnipresente, mas brilhou por aqui e para mim com outras intensidades. Apesar de episódico fulgor, andamos pela obscuridade, lugar de conforto por estes dias feitos noite. Por isso se vai chegando a mim, que nem companheira-gerúndio, esta «Canção da Paciência»: «Muitos sóis e luas irão nascer/ Mais ondas na praia rebentar/ Já não tem sentido ter ou não ter/ Vivo com o meu ódio a mendigar// Tenho muitos anos para sofrer/ Mais do que uma vida para andar/ Beba o fel amargo até morrer/ Já não tenho pena sei esperar // (…) As águas do rio são de correr/ Cada vez mais perto sem parar/ Sou como o morcego vejo sem ver/ Sou como o sossego sei esperar». Saberei?

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Que raio! Cinco anos depois, as perguntas continuam a nascer em jardim, mais ou menos cultivado, com o lado agreste das daninhas também a merecer o (celebrado) cuidado da desatenção. Dóris, queria dar-te uma satisfação, mas a intenção não se aplica e explicação já cabe no saco das respostas. Bem sei que tenho que editar o teu volume de contos, ao menos isso, a que deste o belo título de «As Perguntas». Cinco anos depois, tudo se meteu à frente, pudores e desatinos com dinheiro, a orgânica desorganização, a tusa pelo novo, a crença no impossível. Dóris, venho apenas dizer-te que não desisti. Não leves a mal as gralhas que deixámos escapar, também esse projecto de casar atenções e leituras ficou adiado. Somos óptimos a procrastinar, bem sabes. Não deixámos, garanto, de semear perguntas, um pouco por todo lado, mesmo onde não é suposto crescerem. Fui reler o teu prólogo, e encontrei lascas de pensamento que me apeteceu discutir. Posso adiar a conversa por instantes, tu interpelaste de tão estranho modo com esse teu gesto? Dizes tu: «insistimos, e esta nossa insistência conduz-nos para longe de nós. Existimos aqui, mas sempre em fuga, como se não quiséramos ser na aleatoriedade de ter nascido. Sempre a perguntar, sempre a ousar responder, entretendo, assim, o medo de existir. Porque existir é ser entre um ponto e outro ponto, linha do horizonte sem lado de lá para onde deixar de ser visto e lado de cá que nos possa ver. Somos, para nós, um horizonte invisível, segmento de recta cuja medida desconhecemos. Temos medo de existir pela consciência da morte que há em nós. Só conhecemos o finito e tememos, não por ele, mas dele. A nossa condição não opera o incomensurável, não se sintoniza com o infinito, mesmo que o saibamos. O universo contém mas não é contido. Estamos fracos perante o insondável, alienados que somos pela matéria. Mais ainda quando dizemos deus. Por isso perguntamos. Solicitamos respostas para o que sabemos ser apenas um entretenimento do pensamento. Ocupamo-lo. Por vezes, inconsequentes, damos respostas. É apenas um jogo de alternâncias: respondemos para a seguir poder perguntar de novo, mais. Julgamos interrogar tudo. Mas o tudo não está ao nosso alcance.»

Horta Seca, Lisboa, 14 Agosto

O humano escolheu para principal actividade a construção de ideias feitas. Ou melhor, com extremo detalhe confunde casa e lugar-comum, mas disperso logo a abrir. Queria apenas dizer que géneros literários como a banda desenhada, a novela ou o romance gráfico são oceanos de enorme biodiversidade. Max, autor atípico e de grande valor, produziu «Vapor» (folha de rosto algures na página, ed. Levoir), perdoe-se a rima, e que só agora me foi dado ler, não por caso. Nicodemos, figura mística, muda-se para o deserto para fugir das distracções e procurar em si o que pudesse conter de humano. Preto e branco, massa e traço, sombra e corpo, humor e delírio, pensamento e desenho, perguntas e interrogações. Eis a matéria para que o nosso mundo se deixe pensar, se deixe representar. O diálogo de Nicodemos com a sua sombra merecia constar de antologia acerca do nosso lugar no mundo, de cada um em si. O mesmo esforço foi feito, óbvio, em cinema e teatro e romance e poesia, mas consegue aqui algo distinto, muito distinto, de tão profundamente simples: traço sobre a página, dedo na areia, olho no céu.

Costa da Caparica, Almada, 15 Agosto

Uma das mais novas lá da rua Castelo fez cinquenta. Ia escrever que fui ao passado, mas não voltamos nunca ao que não existe. Recriamos, mapas, por exemplo. Trocámos memórias, mas somos pequenos na maior parte delas. Encolhemos, tal o velho quarto. São de somenos, detalhes de distúrbio e desafio. Toque e fuga de campainhas. Soltou-se que nem perfume leve reflexões acerca de tais encontros, o percurso feito, o lugar onde chegámos, apenas patamar.
Para o Pedro [Brito] realizar, orquestrado pelo Humberto [Santana], e muito musicado pelo João [Lucas], compus um «Fado do Homem Crescido», no qual o António Zambujo cantou, a propósito: «Soube logo pela manhã que seria tal e qual/ Mas acreditei porque fomos um bando./ Devia estar de costas, não vi chegar o mal/ Parecia navalha a rasgar, era só tempo passando.»
O sol lá se repetiu pondo laranja no oceano enquanto velho pai exalava orgulho, distribuía afectos e dava a mão de modo só seu.

21 Ago 2019