Hoje Macau EventosAcadémica diz que eventuais compensações impedem pedido de desculpa pela escravatura O professor de História Mundial Manuel Barcia, especializado em escravidão no Atlântico, defendeu, em declarações à Lusa, que o receio de se pagarem eventuais compensações tem impedido Portugal e outros Estados de pedirem desculpa pela escravatura. No 25 de Abril, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu que Portugal deve um pedido de desculpa, mas acima de tudo deve assumir plenamente a responsabilidade pela exploração e pela escravatura no período colonial. “O problema é que, se [Portugal] pedir desculpas, está a colocar-se numa posição, do ponto de vista legal, em que pode ter que pagar” compensações, sublinhou na quarta-feira Manuel Barcia, após uma palestra realizada em Macau. “Os políticos em todas as partes estão muito assustados com isso”, disse o professor na Universidade de Leeds, no Reino Unido, apontando o caso do primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, que na semana passada se recusou a pedir desculpa pelo papel que o país teve no comércio de escravos. Um pedido formal de desculpas por parte do Estado português seria “uma coisa mínima depois de tudo o que aconteceu”, defendeu Manuel Barcia. “Mas a resposta tem de ser dada pela gente que descende dos escravos. São eles que têm de dizer se precisam” de um pedido de desculpa, acrescentou o académico cubano. A posição de Marcelo Rebelo de Sousa foi assumida no discurso na sessão solene comemorativa do 49.º aniversário do 25 de Abril na Assembleia da República, a propósito da sessão de boas-vindas ao Presidente brasileiro, Lula da Silva. “Também isso nos serve para nós olharmos para trás, a propósito do Brasil. Mas seria também possível a propósito de toda a colonização e toda a descolonização, e assumirmos plenamente a responsabilidade por aquilo que fizemos”, considerou. “Não é apenas pedir desculpa – devida, sem dúvida – por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado”, defendeu. Marcelo Rebelo de Sousa lembrou que a colonização do Brasil teve “de mau, a exploração dos povos originários, denunciada por António Vieira, a escravatura, o sacrifício do interesse do Brasil e dos brasileiros”. “Um pior da nossa presença que temos de assumir tal como assumimos o melhor dessa presença. E o mesmo se diga do melhor e do pior, do pior e do melhor da nossa presença no império ao longo de toda a colonização”, acrescentou. Manuel Barcia defendeu que foi só devido à pressão do Reino Unido que Portugal aboliu por completo a escravatura, em 1869. Apesar de Portugal ter sido o primeiro país europeu a abolir a importação de escravos, em 1761, a medida só abrangia as colónias na Índia e a metrópole, onde havia “muito pouco” sentimento antiesclavagista, disse o académico. Barcia lembrou ainda que, apesar da abolição, Portugal continuou a permitir, a partir de Macau, o comércio de chineses, em condições de escravatura por dívidas, para o continente americano, incluindo para Cuba.
André Namora Ai Portugal VozesA escravatura voltou Índia, Bangladesh, Nepal, Marrocos, Malásia, Afeganistão, Tailândia, Paquistão, China, Moldávia são alguns dos países onde existem máfias organizadas para o tráfico de mulheres e homens para trabalharem na agricultura em Portugal. Há muitos anos que assistimos á vergonhosa situação proporcionada pelas redes ilegais internacionais que trazem para Portugal milhares de pessoas que têm sido escravizadas e exploradas nos salários. No Alentejo vivem mais de vinte mil imigrantes em condições deploráveis. Alguns, em autênticas barracas ou tendas. Outros, são instalados pelos intermediários em casas sem condições nenhumas, como a inexistência de água canalizada. Há quartos que albergam seis seres humanos. Há garagens onde dormem em beliches doze imigrantes que vêm para a apanha da azeitona e amêndoa, nesta época. A situação varia com as estações do ano e aos escravos podem ser postos a trabalhar na colheita de uvas ou de tomates. As condições indignas em que vivem os imigrantes são uma vergonha para Portugal. Falámos com um grupo de imigrantes que nos transmitiu que os seus elementos recebem 400 euros por mês, pagam 150 para a renda da cama, gastam 100 euros em comida e o restante é para enviar para a família nos seus países. Na semana passada rebentou a vergonha porque foi descoberta em Odemira uma situação abaixo de todos os limites. Os imigrantes, especialmente as mulheres testaram positivo da covid-19 e residiam dentro de contentores onde fizeram um buraco para o ar poder entrar. E o mais vergonhoso é que se deslocou ao local o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e teve o desplante de anunciar que em primeiro lugar está a saúde pública e não a dos imigrantes, como se os imigrantes não fizessem parte da saúde pública nacional. Houve um advogado que incrivelmente foi proibido de entrar em Odemira por querer defender os direitos dos imigrantes. Do momento, o governo arranjou uma solução bem demonstrativa de que foi pior a emenda que o soneto. Então, há anos que ninguém se preocupou em construir habitações dignas para os contratados imigrantes e de repente decidiu-se alojar o grande número de imigrantes de Odemira num complexo turístico naturalmente contra a vontade dos proprietários que tinham gasto uma fortuna em preparar tudo para a próxima época de veraneio. Não, assim não se pode compreender como se governa este país. Os imigrantes são enganados no salário que lhes prometem e mais: nos seus países, antes de saírem, têm de pagar entre 10 e 20 mil euros. Uma loucura para gente tão pobre. Começa logo aí a exploração. Chegam a Portugal depois de lhes dizerem que irão ganhar entre 600 e 1000 euros, quando não lhes pagam mais de 400. As autoridades municipais, policiais e governamentais sabem desta situação há anos quando no Alentejo o lago Alqueva começou com o regadio de grandes propriedades. Os empresários destes imigrantes não estão isentos de culpas, eles é que pagam o salário miserável para um trabalho de sol a sol, eles é que têm os contactos com os intermediários mafiosos que transportam os imigrantes, eles é que sabem que nem água existe nas casas de banho das residências onde instalam os trabalhadores estrangeiros. Isto, é revoltante e terá de ter uma solução. Sabemos que a nossa agricultura necessita de mão-de-obra, mas que se contratem os imigrantes e que se lhes deem as mínimas condições de dignidade humana. Se eu estivesse a ocupar o cargo de ministro da agricultura tinha-me demitido de imediato assim que as televisões chegaram a Odemira e mostraram aquela miséria sob humana. Uma parte de país, mais no litoral, ficou atónita, não queria acreditar que num quarto dormissem seis pessoas, que nem água tivessem para se lavar ou cozinhar. Os debates televisivos sucederam-se ao longo da semana passada e até ao momento que vos escrevo esta crónica ainda não foi anunciada uma decisão oficial concreta que mude radicalmente a situação dos trabalhadores imigrantes. Portugal tem milhões de emigrantes espalhados pelos cinco continentes. Já imaginaram o que seria se um português chegasse ao Dubai e fosse metido num barracão de madeira sem água e com mais cinco companheiros? Já imaginaram o crédito negativo que era espalhado pelo mundo contra os árabes? E quem diz no Dubai podemos salientar outra qualquer cidade para onde vão portugueses trabalhar. Até em França já não existe o triste “bidonville”. O que é mais triste é que assistimos a toda e qualquer manifestação por isto e por aquilo. É o direito ao casamento do mesmo sexo, é a eutanásia, é o não uso de máscara higiénica, mas não vimos nenhuma manifestação ou protesto de um qualquer movimento ou associação dos direitos humanos a deslocarem-se para Odemira e fazerem ouvir a sua voz em defesa daqueles que realizam o trabalho que os portugueses não querem fazer… *Texto escrito com a antiga grafia
Salomé Fernandes VozesEscravatura moderna [dropcap]P[/dropcap]arece que em Macau não se vive apenas com base no distanciamento social. Vai ao extremo de haver distanciamento humanitário. Há quem viva numa bolha que não rebenta, independentemente de o outro estar à sua frente ou não. O que acontece por cá com empregadas domésticas é, muitas vezes, escravatura moderna. Que outro nome se pode dar à autorização de contratação de pessoas por salários inferiores ao definido como de risco social? Nunca será fácil a quem depende de um visto de trabalho impor-se e tornar-se vocal quanto às injustiças que enfrenta. Desafio quem ainda não o fez a trocar uma noite de Netflix pela leitura da Lei da contratação de trabalhadores não residentes para perceber as dificuldades enfrentadas. Não é preciso pagar a uma pessoa de acordo com o estilo de vida que cada um leva, mas também não se deve poder levar um estilo de vida melhor pelo facto de se pagar a um trabalhador aquém do necessário para este conseguir arrendar um quarto individual em Macau. Há quem tenha tido o azar de se deparar com falta de oportunidades no país onde nasceu e possa enfrentar outro tipo de dificuldades na emigração para regiões ou países alternativos. Este contexto não deve servir como desculpa para as pessoas serem tratadas com desumanidade. Para se ser bom, a comparação não pode ser feita em relação aos piores cenários, mas antes tentar reduzir a distância face a sistemas melhores.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDissimulada escravatura [dropcap]A[/dropcap]s medidas até então tomadas sobre a emigração por Macau apenas se ocupavam da “fiscalização dos colonos enquanto se conservam nos estabelecimentos e na superintendência, mas não previnem ou castigam os abusos dos corretores no acto da aliciação no território chinês nem alteram as suas condições fundamentais nos contratos dos emigrantes. A administração buscava não perturbar um comércio que considerava como origem da prosperidade de Macau”, segundo Andrade Corvo. “Em 1871, foram tomadas disposições contra os contratos entre agentes e cules. A partir daí, os cules eram registados e, depois da habitual inspecção a bordo, exigia-se uma declaração do capitão em como o barco não levava cules enganados, nem suspeitos de serem piratas”, segundo Montalto de Jesus (MJ). Um novo regulamento foi promulgado em 1872 pelo Governador Januário Correia de Almeida (Visconde de S. Januário) e “englobavam todas as anteriores disposições cuja eficácia tinha sido posta à prova pela experiência”, MJ. A partir de meados desse ano, “as autoridades de Cantão começaram a actuar no sentido de impedir a emigração de cules por Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra, [Revista Cultura n.º 55 de 2017], que aditam, ter o vice-rei de Cantão, por ofício ao Zongli Yamen de 15 da 5.ª lua do 12.º ano do reinado de Tongzhi (1873), informado “quão difícil era vigiar e impedir o tráfico de cules em Macau. Por um lado, os portugueses em Macau não tinham outro comércio lucrativo senão o tráfico de cules. As receitas anuais do governo de Macau, resultantes do tráfico de cules, ascendiam a mais de 200 mil dólares de prata. Não só o governador de Macau, mas também o rei de Portugal, estavam relutantes em abolir a emigração por Macau.” Ofício do cônsul em Havana José Maria d’ Eça de Queiroz, nomeado pelo Rei D. Luís cônsul de 1.ª classe em 16 de Março de 1872, é colocado em Cuba nas Antilhas Espanholas onde chegou a 20 de Dezembro, segundo António Aresta [Revista Cultura n.º 52 de 2016], que refere, “A três dias do fim do ano [1872], com base nas informações que lhe terão sido fornecidas pelo anterior cônsul, Fernando de Gaver, [Eça] rapidamente envia um ofício ao ministro João Andrade Corvo”: <Existem, Ilmo. Sr., nesta ilha mais de cem mil asiáticos que o Regulamento de Emigração pelo porto de Macau põe hoje explicitamente sob a protecção do Consulado Português. (…) V. Exa. compreenderá a importância deste consulado que pode abrir a cem mil almas o registo de nacionalidade portuguesa: é portanto urgente que o Governo de S. M. atenda às condições em que vive aqui esta população colona>. (…) <A legislação cubana dividiu artificialmente a emigração asiática em duas espécies de colonos: os chegados a Cuba antes de 15 de Fevereiro de 1861, e os que vieram depois desta data arbitrária. Os primeiros tendo findado já o prazo de 8 anos – porque vêm contratados todos os colonos que saem de Macau – são livres no seu trabalho e podem requisitar deste consulado a cédula de estrangeiro; os outros – os que chegaram depois de 61 e estão chegando – são obrigados, findos os seus 8 anos de contrato, a sair da Ilha dentro de dois meses, ou a recontratar-se novamente>. Mas <a prática é extremamente diferente – e autoriza a opinião Europeia de que a emigração chinesa é a dissimulação traidora da escravatura. A lei permite aos asiáticos que chegarem antes de 61 que solicitem a sua cédula de estrangeiro – mas por todos os modos se impede que ele a obtenha: e o meio é explícito: formou-se na Havana, sem estatutos e sem autorização do Governo de Madrid, uma comissão arbitrária que se intitula Comissão Central de Colonização; esta comissão pretende ter o pleno domínio da emigração; formada dos proprietários mais ricos impôs-se, naturalmente às autoridades superiores da Ilha, e conseguiu que se determinasse – que nenhum asiático tire do Consulado a sua cédula de estrangeiro sem que a Comissão Central informe sobre ele e o autorize a requerê-la: ora sucede que a Comissão Central, para cada asiático, prolonga indefinidamente esta informação – e durante este tempo o colono está numa situação anormal e inclassificável – não é colono porque terminou o seu contrato – e não é livre porque não tem a sua cédula; esta situação faz a conveniência de todos – da polícia que à mais efémera infracção (encontrar, por ex. o china, fumando ópio) o sobrecarrega de multas enormes, do Governo, que o aproveita, sem salário, para as obras públicas, e dos fazendeiros que terminam por o recontratar>. Segundo A. Aresta, “O problema de base está na divisão artificial com que distinguiam os colonos.” E continuando com o que Eça de Queiroz escreve no Ofício de 29/12/1872: <Em quanto aos que vieram depois de 1861 – uma legislação opressiva obriga-os a saírem findo o seu contrato, da Ilha, em dois meses ou tornarem a contratar-se; e como naturalmente o colono não tem meios de regressar à China – a polícia recolhe-os nos depósitos – é obrigado a servir mais 8 anos>. Cônsul no Peru A galera peruana Fray-Bentos de 561 toneladas deixou Macau a 6 de Janeiro de 1871 e o Cônsul Geral de Portugal no Peru, Narciso Velarde certificou que esta fundeou neste porto de Callao no dia 12 de Abril, trazendo 369 passageiros chineses dos 375 que tinham embarcaram, havendo morrido durante a viagem ‘apenas’ 6. Das informações tomadas por este consulado resulta que os ditos passageiros foram bem tratados durante o transporte, em fé do qual se expede o presente certificado em Lima aos 17 dias do mês de Abril de 1871. No ano seguinte a galera estava de novo em Macau pois em 1/8/1872 o tesoureiro da junta da fazenda, Carlos Vicente da Rocha informava ter recebido $366 patacas pelos emolumentos dos passaportes dos 366 colonos para o Perú nesse navio. A 7 de Agosto o capitão do porto de Macau, João Eduardo Scarnichia certificava a Fray-Bentos, cujo capitão era Ramon Mota, pois mediu 732 metros cúbicos de capacidade no alojamento destinado aos colonos. Sai do porto de Macau para o de Callao de Lima conduzindo 366 passageiros chineses contratados para servirem como colonos, e todos sabem o lugar do seu destino e vão por sua vontade do que me informei devidamente, bem como, que os contratos que levam foram registados na repartição competente. Certifico mais, que a dita galera se acha em estado de navegar na vistoria que lhe passei e leva a tripulação suficiente para a manobra, que tem os mantimentos e aguada determinada no regulamento da emigração, bem como há a bordo cirurgião, botica e intérprete chinês e que a embarcação tem acomodações para os passageiros que conduz, e os necessários meios de ventilação aprovados pelo facultativo do quadro de saúde que foi a bordo. Está conforme. Capitania do porto de Macau. E assim partiu nesse dia a galera Frey-Bentos para o Peru, onde a esperava um novo cônsul, Sant’anna Vasconcelos. O regulamento da emigração chinesa publicado a 28 de Maio de 1872, no artigo 67.º referia ser necessário 2 m³ para cada colono transportado.