A centésima vem-se como a primeira

[dropcap]E[/dropcap]screvo hoje a centésima crónica no ‘Hoje Macau’ e podia ser a primeira. Todos os faunos têm cem anos. Para comemorar, recorro à grande literatura, mais concretamente, a Lawrence Durrell e ao seu ‘Quarteto de Alexandria’. Espero poder dedicar a crónica nº 200 ao ‘Quinteto de Avignon’, mas só no caso – fica desde já o repto – de algum editor atacar a tarefa de, até lá, o verter em língua portuguesa.

A abrir o capítulo III do quarto volume da tetralogia (‘Clea’), uma poderosa reflexão surge a interromper a história, ou melhor, o caudal turbulento das muitas – e inevitavelmente inacabadas – histórias que unem ‘Justine’ a ‘Balthazar’ e este segundo tomo, depois, a ‘Mountolive’ e a ‘Clea’.

Trata-se de um capítulo em que se dão a ler trechos salteados de um caderno que o escritor Pursewaarden, personagem amiúde ausente mas exaustivamente citado e referido em todos os volumes do quarteto, foi redigindo à margem das suas obras. Começa assim o capítulo: “Volto – como a ponta da língua a um dente esburacado – ao velho tema da arte de escrever! Será que os escritores não sabem falar de mais nada? Não.”

À doce ironia, segue-se o cortejo com meia dúzia de figurantes que passo – com muito prazer – a apresentar nesta festa da centésima crónica.

Primeiro figurante, ou aquele que procura na profundidade (e não nas achas imediatas do quotidiano) um reflexo que permita desencantar a música de fundo dos dias e nela entrever o mistério que afinal nos anima, ainda que barricado, é claro, pela impaciência que é a primeira morada da finitude e, claro, da nossa própria morte ainda em vida:

“Keats que se embebedava com palavras, procurava nos sons vocálicos as ressonâncias do seu ser íntimo. Batia na tumba vazia da sua morte precoce com um dedo impaciente, escutando os pálidos ecos da sua imortalidade”

Segundo figurante, ou aquele que entende piamente que somos falados através da linguagem e não o contrário, apesar de nela se poder intervir sem as ilusões próprias daqueles que Ortega Y Gasset designou por “señoritos satisfechos” ou “hombres-masa”. A arte da escrita pressupõe, de facto, a existência de um mago que o próprio não vislumbra e que os “señoritos” vêem por todo o lado, como se fossem excertos de videoclipes, de podcasts, de palestras via zoom e de tudo o mais que do fluxo da moda – e da necessidade – se faz agora produto (“produto” que, na alta voragem, desaparece minutos depois de se ter enunciado):

“Byron era hábil com o inglês tratando-o de senhor para servo; mas como a linguagem não é um lacaio, as palavras cresciam como lianas tropicais entre as fendas dos seus versos, quase estrangulando o homem” (…) “sob a ficção do seu eu passional existia um mago, embora ele próprio não tivesse consciência do facto”.
Terceiro figurante, ou aquele que sabe que a verdade é o espaldar do absoluto. Já se sabe que nos nossos dias o que se procura é apenas a oscilante fibra do sentido. No entanto, a verdade, subtraída à dioptria platónica, podia confundir-se com uma espécie de invisível rasgo que, por vezes, empurra o texto para onde menos se espera. Há autores que têm empatia com estes solavancos ‘iluminados’ e até os dominam ao jeito dos praticantes de aikido que sabem converter a energia de quem ataca na energia de quem se defende. No caso de John Donne é a imagem do “coice” que assiste ao grande momento do “nervo”, ou seja, ao instante em que a linguagem e a sua sombra se vêm ao mesmo tempo por puro sortilégio:

“Donne parava quando alcançava o nervo, fazendo ranger todo o crânio. A verdade devia fazer-nos escoucinhar, pensava ele”

Quarto figurante, ou aquele que advoga que existe quem fique acocorado e tremendo diante da sua escrita (lembro-me muito de José Régio, neste caso) e acabe depois por compensar esse facto e essa inércia (da criação) ao jeito de um Bernardim Ribeiro: frases de muito fôlego, longas e aprazíveis na sua geometria de modo a que quem delas se aproprie (o leitor) possa ter a ilusão de que a patinagem artística é um modo de leitura que se confunde com um poço da morte recheado de vaselina; já o vaticinava Pope:

“Alexander Pope, numa angústia de método, como um menino com prisão de ventre, lima as suas superfícies para torná-las escorregadias aos nossos pés”

Quinto figurante, ou aquele que sabiamente reconhece que, na grande literatura e na grande poesia, o que se narra também se apaga. Mais do que os enredos, há fantasmas que ficam no ar, nuvens circulares que levitam dentro do esófago ou silhuetas imaginativas que nada devem a quem quer literal e mecanicamente entender o mundo. O mal reside nesse instinto de saber subir nas alturas com muita leveza, sorrindo para a imensidão e para a pequenez que nela (tantas vezes involuntariamente) reina. Na há, pois, grande literatura e grande poesia sem mal:

“Os grandes estilistas são os que menos têm a certeza dos seus efeitos. Ignoram que o seu mal é nada terem para dizer”

Sexto figurante, ou aquele senhor chamado James Joyce que, talvez por puro modismo, é quase sempre um caso à parte. Sabe-se que tinha que dar aulas para ganhar a vida “à razão de um xelim e seis dinheiros por hora”. Por isso, sobre a rabugice que se lhe conhecia, acrescenta ainda o nosso Pursewaarden: “devia ter-lhe sido facultada protecção contra os inefáveis da sua espécie que julgam estar a arte ao alcance de qualquer parlapatão; que a considerem um elemento do dote de prendas sociais, uma aptidão de classe, como as aguarelas para as damas vitorianas”.

Este naco de prosa sobre Joyce é particularmente sensível, pois, embora as aptidões de hoje sejam diferentes das de há sete décadas, a tentação persiste. Razão por que o escritor Pursewaarden havia de referir, mais à frente, que “Elliot aplicava um tampão de clorofórmio gelado sobre um espírito encerrado numa selva de dados”. As iliteracias próprias do tempo da rede já por aqui afocinhavam, como se vê.

Dir-se-ia que ser pioneiro, à moda de Lawrence, é conseguir antever a própria morte da literatura e sobre o seu cadáver conseguir rescrevê-la, mesmo que a cegueira domine a insciência das bancadas do grande estádio onde hoje tudo se joga a olhar redundantemente apenas para o dia de hoje, ou para o agora – ápice – instante – isso – único (e eu aqui, embalado no sermão da centésima, a piscar o olho ao grande António Maria Lisboa, Saravá!).

22 Out 2020

A arte do reencontro

[dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos: agora mesmo e enquanto escrevo esta crónica atipicamente não tenho mais nada que dizer que não seja o que me esforço por fazer passar. Não tenho episódios veraneantes, explicações da ausência, citações pretensiosas, indignações sortidas, confissões de estados de espírito ou, como é o estilo desta coluna, tudo isso misturado. Irá acontecer, não duvido. Mas por agora só esta vontade única e irreversível de me sentar convosco para conversar. A minha ambição como cronista é esta: olhar toda a gente nos olhos e conversar e ouvir. Talvez seja pouco mas sinceramente esta atitude tende a ser menos praticada. Seja por escrito seja na chamada “vida real”.

Então, pela primeira vez desde que aqui estou não tive dúvidas: isto é um regresso e já aqui falei de como prefiro regressos a partidas e de como a segunda é essencial à primeira. É certo que o conceito não terá sido bem tratado pela literatura clássica e que Ulisses não teria necessidade de chacinar 42 pretendentes de Penélope (aceito correcções sobre o número de baixas, escrevo de cor) quando voltou a Ítaca. Mas quem sou eu? Respondo: sou o tipo que prometeu não fazer alusões pretensiosas no primeiro parágrafo. Enfim.

Ao que interessa, então. Numa destas crónicas tentei sinceramente partilhar o que é uma perda de amizade. Coisa dolorosa, maléfica e que tantas vezes deixa mais mazelas do que a perda romântica. Ainda continuo a acreditar no que escrevi. Mas e o reencontro com a amizade perdida, amigos? Esse momento extraordinário em que depois de tanto tempo e de argumentos de que já nem nos lembramos somos devolvidos de forma bruta mas ao mesmo tempo familiar ao que nunca nos terá deixado? Isso é precioso e feliz e quando acontece deparamos com uma estranha mistura de sentimentos, resumidos em duas frases: “O que aconteceu?” e “Agora quero lá saber”.

A amizade é livre, mais livre do que o amor. Isso não a torna moral ou eticamente melhor, até porque seria falácia a comparação. No amor conseguimos perceber quando acaba ou falha; na amizade – e falo da grande amizade – não é assim: a menos que de permeio exista pulhice à séria de uma das partes, fica-se num limbo de perguntas e respostas. E os dias, e as horas e os minutos vão passando. Nós vamos passando, passando como podemos com um vazio qualquer que nos chama nos momentos mais inoportunos e que são todos.

Depois, se tivermos sorte, existe um instante mágico – esse do recomeço. E estranhamente tudo parece familiar, como se todo o tempo que passou tivesse sido congelado num frame da nossa vida e finalmente libertado por um demiurgo benigno. Sim, amigos: o regresso da amizade contém todos os regressos. Vinicius dizia, provavelmente com razão, que a vida é a arte do encontro. Eu acho que é a arte do reencontro. E apetece escrever ou reescrever o mundo. Ou mais simplesmente frases ditas no cinema, como agora o faço: acho que este é o reinício de uma bela amizade.

19 Ago 2020

A infelicidade como uma das belas artes

[dropcap]T[/dropcap]inha-me prometido, a bem dos leitores e da minha própria saúde, fazer uma pausa nas crónicas menos luminosas e existenciais. Mas o universo encarrega-se de não nos deixar fugir ao que somos. Assim foi, e neste caso da pior maneira: perdemos David Berman, poeta e um dos maiores escritores de canções das últimas três décadas. Para mim e para muitos terá sido como perder um amigo próximo. Ainda mais porque todos andávamos maravilhados com o seu regresso, após uma década de ausência. O álbum Purple Mountains (do colectivo com o mesmo nome, veículo musical para as palavras de Berman) é uma obra-prima. Negra e luzidia, é certo; mas um regresso extraordinário, as marcas do antigo fundador dos Silver Jews a brilharem no fundo do mar. Só que a questão era essa: era para o fundo que Berman sempre quis que olhássemos.

Estupidamente ou não, entre os vários lamentos e extraordinários tributos que fizeram ao homem, não me saía da cabeça a história de Steven Bradbury. Para quem não conhece, eu conto: Bradbury foi um patinador no gelo, na modalidade de velocidade em pista curta, que venceu da forma mais improvável a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002. Depois de várias eliminatórias em que conseguiu ir sendo apurado de forma medíocre ou por desqualificação de concorrentes, Bradbury chegou à final – e vence-a porque os outros patinadores se envolveram numa queda colectiva, restando-lhe deslizar de forma serena até à meta.

Durante alguns dias lutei comigo próprio para tentar descobrir a razão desta imagem recorrente mas aparentemente tão distante do que estava a sentir. Percebi quando comecei a revisitar, de forma mais calma, a obra de Berman. Desde o princípio que as suas canções são sobre os patinadores que caíram naquela elipse gelada e sobre quem vence daquela maneira. Berman escrevia sobre a vida do ponto de vista do perdedor e sempre com a consciência de que mesmo quando se vence, é o acaso que é a lei. Sim, sim: Random Rules, uma das mais famosas canções dos Silver Jews.

Na minha opinião, Berman conta-se entre os grandes cronistas da infelicidade, uma arte nobre e difícil. Não o ser infeliz, nem a tristeza – isso são temas que atravessam desde há muito a música popular, de Hart a Porter, a Cohen ou Curtis. O que Berman descrevia era a própria infelicidade, algo diferente e mais profundo; e como outros grandes chegava a rir-se dela. Um pouco como o risus purus de Beckett ou o optimismo desesperado que Francis Bacon dizia colocar nas suas telas. Uma constatação da miséria mas também um humor de condenado na masmorra. Os versos de Berman são altamente citáveis e precisaria de duas crónicas para poder esgotar os melhores. Isso dá-lhe uma capacidade aforística que não é só mera catarse: é trabalho, vontade de criar a linha perfeita. Numa vida atormentada por dependências, abandonos amorosos, má relação com o pai e uma terrível depressão, era capaz de escrever coisas como “In 1984 I was hospitalized for approaching perfection”, o verso de abertura do já citado Random Rules.

Neste disco a luz negra foi mais longe enquanto que, por contraste, a estrutura musical e produção são mais acessíveis e complexas. As canções são demasiado perto do osso, sabemo-lo sempre. E mesmo assim cantamos com gosto o refrão contagioso que diz “All my happiness is gone”.

A morte de Berman tornou este Purple Mountains o mais belo dos testamentos musicais, só comparável ao último disco de Leonard Cohen. Mas haverá sempre a nuvem terrível do absurdo da vida e o desespero de um homem que depois de regressar resolve deixar este mundo. “The dead know what they’re doing when they leave this world behind”, assegura-nos no belíssimo Nights That Won’t Happen. Pois sim, mas quem me dera que isso servisse de consolo, David. Quem me dera.

14 Ago 2019

Recessos de cidade

Lisboa, 11 Junho

 

[dropcap]T[/dropcap]em armadilhas, a (suposta) diarística. Agravadas a cada degrau pela vida, alheia aos esforços do (suposto) cronista. Alturas há em que a folha se estende qual cemitério na falda da colina. E que dizer descontado o banal, além do bem e do mal, sobre aqueles que partem, mais ou menos próximos, relativizando-se a proximidade por conter intimidades, por ter contribuído, das maneiras mais díspares, para o que fomos sendo? Mal conheci Ruben de Carvalho (1944-2019), mas devo-lhe muita navegação no grande oceano da música, não apenas pelo que foi dizendo, mas por quem programou na Festa do Avante, para dar um exemplo. A América, sem o jazz e o romance policial por ele recontados, não me seria a mesma. Saudades das crónicas! Antigamente, os jornais andavam prenhes de futuro. (Relembro a talhe de foice que a minha infância desaguou em revolução, para a qual ele contribuiu.) Mas Lisboa, a minha tão ausente Lisboa, não me seria a mesma sem Ruben, por milhentas razões, as que se sabem e as outras. Uma delas, talvez despicienda, foi a sua defesa, enquanto vereador, de uma Bedeteca de Lisboa condenada à lenta agonia da indiferença. Saravá, Ruben.

Varandão, Lisboa, 15 Junho

Apesar dos pesares, Lisboa continua sendo o que jamais deixou de ser: jogo de patamares e vielas onde o encontro floresce que nem enigma. Ramón [Gomez de la Serna] imaginou-a ponte de grande navio prestes a rasgar oceanos. E nela assim me sento, a olhar os nós por desatar do horizonte. Abro parêntesis [recto] nos afazeres e passo a porta, que é janela, do Luís [Gouveia Monteiro] para experimentar o concerto de bolso do Fred Martins, na companhia de cristal da Sandra [Martins]. As linhas do horizonte são agora as cordas de onde se soltam as melodias de estonteante riqueza, conduzindo a voz que nem seta ao coração perfurado pelo violoncelo, mas o órgão do sangue pensa e diz do tempo e da paisagem, da casa e quem nela mora, de ontem e de amanhã. O varandão, com esta dilecta companhia, foi mundo pulsando, levou a gente. «Onde mora a ternura,/ onde a chuva me alaga,/ onde a água mole perfura,/ dura pedra da mágoa,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora.»

Santa Maria Maior, Lisboa, 19 Junho

A minha cidade tem uma galeria elevadora. Talvez devesse escrever elevatória, mas no contexto cruza-se com voadora. Diz o dito contexto que são «As Lisboas» do Nuno [Saraiva], postas no prédio da Junta de Freguesia que junta o baixo e o alto, Fanqueiros e Castelo, ou quase. Vou ter que voltar (fica até 27 do corrente), pois descobri que não consigo acompanhar o andamento do gabiru. Gabo-me de conhecer o seu corpus como poucos e logo me encontro hirto de surpresa, carapau a pedir o auxílio de alma caridosa na corrida de ver. E o quê? O mais solar dos cruzamentos entre a cidade e as suas personagens. O mais irónico dos mergulhos nos estereótipos, massa movediça da identidade. Um sem fim de suportes, a afirmar que Lisboa podia lá ser apenas de papel! Recapitulando, muito por culpa de sucessivas Festas da Cidade, mas também por ser filho de Alfama, o Nuno tem desenhado as figuras de que Lisboa se faz hoje. E cruza os monumentos, as ruas, os lugares, famosos e nem tantos, queridos ou nem por isso, com os corpos em andamento. E depois mergulha nas tradições, da sardinha à ginjinha, das marchas ao Fado, para colher os elementos com que compõe imagens que respiram sangue na guelra. O meu maravilhamento resultou ainda do encontro com azulejos e garrafões gourmet, mupis e troféus, jornais e muros. E finalmente os esboços, revelando as hesitações, as aproximações, antes do traço definir o corpo, ainda ele, da cidade, sempre ela. (Exemplo algures na página).

CCC, Caldas da Rainha, 22 Junho

A tarde respira de luz, mas, em obediência ao tema e à combinação, entramos no cubo escuro da sala. Nem por isso o momento deixou de se fazer solar, muito pela simpatia que o Carlos [Querido] suscita nesta sua terra (enfim, por onde passa). «Habeas Corpus» anuncia-se conjunto de micro-contos a bailar à volta da morte, a atazaná-la, empurrando-a, rasteirando-a, na certeza de que lhe cairemos nos braços. Cansados. Mas mesmo os aqui pousam nesta página acreditaram que, pelo riso e outras artes, a faremos mais tonta. Mas outras melodias se tocam nas deambulações destas figuras pelo território fértil do absurdo. E a palavra é uma delas. Os sentidos são tratados como produto da terra, com raízes e regas, cuidados de poda e desbaste. A Ana [Sousa Dias] teve a generosidade de nos oferecer leitura. «Gosto deste livro de caminhos obscuros e muitas vezes absurdos, recheado de citações discretas (ou evidentes) de grandes livros que fazem a história da nossa humanidade, e que recomendo que o leiam (e comprem, previamente). Que se divirtam como eu, sem gargalhadas mas com um sorriso cá por dentro, à espera do desfecho que chega na página seguinte. Que saboreiem a belo domínio das palavras, aquelas que são o fulcro de toda a literatura. Cuidado, que a fome das palavras pode levar a que desapareçam das páginas. E regresso ao início, a um dos temas recorrentes do «Habeas Corpus»: “Sempre que procurou o sentido da vida deparou-se-lhe o denso e indecifrável mistério da morte. Kyrie Eleison”.»

Santa Bárbara, Lisboa, 22 Junho

Este papel não parece de fibra, a não ser que seja de tempo feita. Não tivemos todo quanto precisávamos, Carlos [Câmara Leme] (1957-2019), para cumprir os projectos, muito conversados, inevitavelmente adiados. Deste prolixo testemunho do teu tempo, do nosso tempo e dos seus actores, perdido algures nos arquivos. Não te deixaste ficar. Procuraste sempre acompanhar em passo de corrida, como convém ao jornalismo, os que pensavam ou escreviam. Que saudades do tempo em os jornais falavam! Saravá, Carlos.

Horta Seca, Lisboa, 24 Junho

A ritmo mais do lento do que aspira o nosso querer, vão saindo edições internacionais dos nossos autores. Umas mais convencionais, como esta de «O da Joana», do Valério [Romão], que na versão francesa da Chandeigne se fez «Les eaux de Joana», o que me agrada bastante. As águas e o seu romper, na mulher, são fonte inesgotável de fascínio, portanto, de mistério. A saga de Joana é-nos apresentada, na contracapa, como cruzamento impiedoso de estudo clínico sobre a histeria, o cinema de Buster Keaton e a crueza de Louise Bourgeois, celebrando as sinistras núpcias do desespero com o burlesco. Sublinho a presença das referências visuais aplicadas ao texto do Valério, uma das suas forças.
Outras publicações resultam da soma de desejos e vontades, como «Chiuso per Inventario», pequena antologia de poemas da Rita [Taborda Duarte], passados a italiano pela Paola [D’Agostino] e acompanhados ao pincel pelo Pedro [Proença]. Destinado, por «Malas Artes», apenas aos sortudos de festival mediterrânico «na terra do pesto», eis inestimável volume, pássaro breve. «Non srivere troppi uccelli nelle poesie: è cosi triste/sentire un uccello che cinguetta nel posatoio del verso le unghie/ che raspano le frasi razzolate della poesia.”

3 Jul 2019