Sexo com corpo

[dropcap]N[/dropcap]ão podia sugerir ideia mais banal que esta: o sexo faz-se com o corpo. Óbvio. O nosso sentido de consciência está conectado com este conjunto de moléculas, células e órgãos que nos transportam por este mundo. O problema é que este corpo é, muitas vezes, entendido exclusivamente pelos olhos do modelo bio-médico. O desenvolvimento de medicamentos para o tratamento de disfunções sexuais são um exemplo dessa visão. Se não há erecção sugerem-se uns compostos para ajudar a reverter a situação, sem grande reflexão de que este corpo é bem mais complexo do que isso.

Este modelo também perpetua a assumpção de que estamos programados, como um computador, a reagir de determinada forma a estímulos. O sexo seria “natural”, tal com a maternidade. Seriamos compostos por algoritmos que prevêem comportamentos. Mas o corpo não está assim tão desconectado do mundo que habita. Molda-se e reage. O corpo que incorpora o social é outra proposta de corpo – esta, inspirada por Foucault. Ele foi dos primeiros a teorizar acerca das dinâmicas de poder sociais e institucionais que perpetuaram o binarismo de género e a heteronormatividade ao longo dos tempos. O corpo dança para responder às limitações de uma suposta normalidade. Neste caso, por exemplo, a disfunção eréctil seria contextualizada nas visões de masculinidade (e de ansiedade de performance) e a forma como estas imagens e pressupostos incomodam e limitam. Já muita investigação mostra que a não-erecção é resultado de dinâmicas às quais o viagra não conseguiria, sozinho, resolver.

Ainda vos consigo oferecer mais uma perspectiva de corpo, inspirada no trabalho de Merleau-Ponty. Diria que é uma visão mais íntima e sensorial. A proposta é de que o corpo precisa de ser entendido como um espaço de processamento do mundo. Esse mundo que não precisa de ser verbal ou intelectual. A vida contemporânea ocidental tem contribuído para o contrário. Proveniente do dualismo de Descartes levado ao extremo, actualmente, vive-se em dissociação constante com o corpo. Por isso é que o sexo com consciência e aceitação – que deixa a sensação fluir e fruir – é um estado raro. A indisponibilidade de dar um pouco de tempo à sensação é resultado da pouca importância que damos ao corpo e à sua própria linguagem. Quantas vezes é que se deixam sentir? Sem as distracções do costume: sem a cabeça cheia, sem o smartphone que não pára de tocar e sem os emails que não param de cair. A honestidade no sexo e na sexualidade depende da capacidade de nos ligarmos com o corpo. Por mais básica que esta proposta pareça, o processo pode ser teimosamente difícil. Se quisermos voltar ao exemplo da disfunção eréctil, há investigação recente que mostra que terapia de grupo com recurso a técnicas de meditação são bastante promissoras.

Várias visões de corpo permitem reclamar o prazer de uma forma plural, complexa e inclusiva. Um exemplo extremo da visão bio-médica do corpo é o das crianças a quem os médicos decidem (!) se devem ter uma vulva ou um pénis quando nascem com genitais indefinidos. Só com propostas complexas sobre como interligar o social e o psicológico – com as suas representações e significado – e o corpo – com as suas sensações e subjectividade – é que entendemos de onde vêm os limites do sexo e de como é que podemos dar-lhes a volta. Como diz a genial Carmo Gê Pereira, educadora sexual e doutoranda em sexualidade humana, é preciso que todos sejamos polimorficamente perversos para reencontrar o prazer no corpo que habitamos e que merece ser explorado.

3 Nov 2020

Roda livre

[dropcap]S[/dropcap]e há coisa que invejo em criatura alheia é o jeito para tocar um instrumento ou jogar à bola. Eu sempre fui péssimo em tudo quanto implica destreza corporal. É uma espécie de versão caricatural do locked-in syndrome: sou capaz de pensar numa série de escalas no braço da guitarra ou em fintas que poderia fazer mas o meu corpo, ao invés de coadjuvar, conferindo realidade ao que existia somente em potência, não acompanha de todo o que se passa no andar de cima. O cérebro, qual capitão experimentado, exaspera na condução daquele pelotão de recrutas ciclicamente atrapalhando-se a si mesmos. A única coisa vagamente física em que alguma vez fui bom foram os flippers, e mesmo que tivesse idade e determinação para prosseguir uma carreira de jogador profissional, não estou a ver comité olímpico a incluir a modalidade nas olimpíadas num futuro próximo – ou menos muito distante, na verdade.

Como quase tudo, de fora parece relativamente simples: um sujeito coloca a guitarra no colo e traduz fisicamente uma interioridade onde sensibilidade e técnica se encontram de modo mais ou menos perfeito. Eu tive aulas de guitarra. Tive aulas de karaté. De ninjútsu. De basquete. O meu sobrinho mais velho tentou ensinar-me a jogar setas. A maior parte das pessoas que vejo embrenhadas numa actividade física qualquer parecem de lá retirar, no mínimo, a moderada satisfação que decorre da produção de endorfinas. Eu começo a correr e passado escassos minutos os órgãos do meu corpo duplicaram misteriosamente de peso, tenho sede, calor, vontade de fazer xixi, frio, dores um pouco por todo o lado e um medo terrível de morrer de calções. Podia ser disléxico de pés e mãos mas robusto como um pónei. Mas não. Nada disso. Tudo quanto é essencial para a prática do desporto eu tenho-o em negativo.

O mesmo acontece na música, com uma agravante: tenho bom ouvido, pelo que sou extremamente sensível a minha própria incapacidade técnica. Podia ser um daqueles concorrentes dos programas de talentos, harmonicamente surdos, cujos progenitores incensam as qualidades musicais sob o verniz resistente do estoicismo parental, mas nem essa abençoada ignorância me foi concedida. Não é que uma pessoa tenha de ser boa ou razoável em tudo, mas parece-me meio injusto, pelo menos do ponto de vista da distribuição divina ou genética de competências, que um sujeito não o seja em nada.

Quando comecei a andar de bicicleta usavam-se aquelas rodinhas de apoio lateral. Os meus amigos, mais expeditos fisicamente do que eu, faziam gala de andarem somente com duas rodas.

Eu tentava acompanhá-los nas deambulações que faziam pela cidade mas raramente conseguia percorrer duzentos metros sem os perder de vista. O que as rodinhas de apoio acrescentam ao equilíbrio retiram à capacidade de acelerar.

O meu pai insistia que eu estava preparado. Eu tinha a certeza de que ia ficar sem dentes da frente se lhe pedisse para remover as rodas de apoio. Achando-me mais do que capaz e frustrado com o meu aparentemente incompreensível medo, o meu pai desapertou as porcas que sustinham as rodas quase até ao fim. Assim, quando fui andar de bicicleta, uma delas caiu passado pouco tempo e a outra logo a seguir. Sem me dar conta, estava a andar sem rodinhas. O meu pai, do passeio, aplaudia. Não me tendo apercebido ainda do que estava a fazer, achei que ele estava a gozar comigo. Fui ter com ele e perguntei-lhe pela piada da coisa. Ele ria-se. Deu-me os parabéns.

Foi a minha maior proeza desportiva. Em tudo mais não tenho encontrado as rodinhas para as desatarraxar.

18 Out 2019

Umwelt IV

[dropcap]A[/dropcap] nossa relação com o corpo é uma relação também com o nosso ambiente, com a humidade, a temperatura, a alimentação sólida e líquida, a nossa exposição às águas que nos banham ou que bebemos, o ar que respiramos e que nos envolve, os sítios que habitamos e que nos são familiares e nos acolhem.

Também temos biorritmos diferentes ao longo do dia. As horas do dia (ao romper da aurora e ao nascer do dia, de manhã, à hora do almoço, à tarde, à tardinha, ao pôr do sol e ao crepúsculo, de noite) projectam sobre o nosso corpo, alma e vida tonalidades diferentes, modos de estar físico e somático diferentes, sujeitam-nos a estados de espírito também diferentes. As horas do dia, como as estações do ano, as idades da vida influenciam o meio ambiente, influenciam-nos a nós, influenciam a relação que temos com o meio ambiente.

Somos no meio ambiente diferentes ao longo das horas do dia. Do mesmo modo que nos sentimos diferentes num dia cinzento e num dia de sol, também somos diferentes ao longo das horas do dia, de dia e de noite.

Há assim uma relação complexa entre os humores, bílis negra, amarela, fleuma e sangue e as disposições do Thumos. Há um nexo psicofisiológico e uma relação psicossomática no interior do próprio corpo que só é possível havendo uma psicologização do soma e uma somatização da psychê. É possível indagar deste facto não apenas em episódios e de forma avulsa, mas também diacronicamente. Há uma interacção complexa entre o grande ano da vida e as idades da vida, o ano meteorológico e as estações do ano, cada dia e as horas do dia. As idades da vida, as estações do ano, estão ligadas a curto, médio e longo prazos.

Mas como se dá a ligação entre as horas do dia e o meio ambiente e as horas do dia e nós? Como se dá a ligação entre as estações do ano e o meio ambiente? Como se dá a ligação entre as estações do ano e nós? Como se dá a ligação entre a passagem dos anos e as estações do ano e o meio ambiente e a ligação entre a passagem dos anos e cada um de nós ao longo de uma vida?

Há uma correlação complexa tal que o humano é o meio ambiente, o humano é a idade da vida. É do interior ou do plano de fundo do ano que se estabelecem fronteiras entre as estações do ano, as horas do dia e as idades da vida e que é isso que influencia o meio e o humano, a relação complexa saudável e nociva implica uma exposição do humano ao ano que finda. O humano está distendido no espaço, à escala universal e encontra-se distribuído num tempo que é o ano da vida.

19 Jul 2019

Umwelt III

[dropcap]O[/dropcap] ser humano existe sob o plano de fundo do grande ano da vida com estações do ano, idades da vida e horas do dia. O corpo é o órgão da existência, o órgão da vida. O tempo meteorológico é uma indicação viva do tempo cronológico. O ser humano existe exposto ao grande ano da vida no interior do qual se gizam fronteiras de teor temporal, cronológico e meteorológico. O ser humano tão exposto ao tempo cronológico como ao tempo meteorológico. Como os gregos diziam o tempo é o céu. O tempo meteorológico é uma indicação do tempo cronológico. Há línguas que usam a mesma palavra para se referirem aos dois tempos.

Cada estação do ano existe como fronteira limite relativamente às restantes. É o ano que serve de plano de fundo às estações do ano. É do ano ou dos anos da vida, então, que as estações do ano são estações. Num só ano: primavera, Verão, Outono e Inverno são delimitações temporais, estações, que duram entre as fronteiras temporais de cada estação. O ano manifesta-se de modo diferente no seu decurso. Vê-se como produz diferentes aspectos no planeta no seu transcurso. O ano solar altera o clima num mesmo local, altera a qualidade do ar e das águas, embora, claro está, cada região ou localidade da terra tenham diferentes climas, atmosferas, ares e águas.

A própria geografia dos locais é já diferente, consoante é montanha ou planalto, interior ou litoral. Qualquer latitude e longitude está exposta às estações do ano com consequências diferentes. Mas a translação, perfazendo o ano solar, permite perceber o espectro temporal onde se produzem as variações e alterações resultantes das estações do ano.

O ser humano está assim exposto ao lugar em que vive. O lugar não é apenas o sítio localizado pelo GPS com as respectivas coordenadas, latitude e longitude. Cada lugar é um aí estrutural complexo que varia ao longo das estações do ano bem como os seus ares, a sua atmosfera, a qualidade das suas águas. Dá-se uma variação ao longo do ano provocada por secas e chuvas, humidade e temperatura. Um lugar tem uma identidade diacrónica com características diferentes e uma personalidade próprias, variáveis ao longo do ano. Basta lembrar-nos da praia da infância como era quando crianças e de como ela agora nos surge. Há uma diferença abissal entre o modo como nos surge um lugar no Verão e no Inverno. Também nós somos diferentes na primavera e no verão, no outono e no inverno, na infância e na velhice.

12 Jul 2019

Umwelt II

[dropcap]O[/dropcap] corpo humano aparece-nos, ao longe, nas suas fronteiras físicas como qualquer outro corpo tridimensional, como qualquer planta e qualquer animal. Mas o aspecto relevante para o autor Hipocrático do acerca do ar, águas e locais, é a transcendência do ser humano para além das fronteiras do seu corpo. Não apenas temos uma percepção do próprio corpo dentro das suas fronteiras físicas delimititadas pela epiderme, mas temos uma percepção que vai para além das suas fronteiras: vemos para lá do globo ocular e ouvimos através das paredes, sentimos as fragrâncias no prado e não no nariz como o gosto da comida e não da língua.

Mas não apenas assim. O plano de fundo para a existência do corpo humano meteorológica. É o clima do local em que vivemos com os seus ares e águas, é o dia como plano de fundo às horas do dia e à sua passagem, é a vida como plano de fundo às idades da vida e à sua alteração, é o grande ano da existência que serve de plano de fundo às estações do ano e à sua mudança. O corpo humano está exposto a diversas distensões temporais.

O corpo humano em que cada um de nós existe, ou melhor, com o qual cada ser humano existe, é o tempo meteorológico. O ano meteorológico divide-se em horas ou estações do ano. O corpo humano existe na dependência do que se passa em cada estação do ano, na mudança de uma para a outra, a cada hora do dia, todos os dias da vida, em cada época da vida. O corpo humano existe neste espaço estrutural, com estas fronteiras no interior do horizonte temporal do ano como metáfora do tempo de duração pelo qual se estende a vida humana.

Os autores hipocráticos dizem assim que a medicina tem de estudar a mudança de estações e as estações do ano para se perceber a alteração qualitativa que produzem nos ares, águas e locais.

Esta alteração qualitativa dá-se mesmo no mesmo local geográfico. Esse estudo é totalmente relevante para a compreensão medicinal do ser humano, das doenças a que o que está exposto.

5 Jul 2019

Umwelt I

[dropcap]O[/dropcap] ser humano para a medicina antiga não era o corpo humano desligado anatomicamente do meio ambiente, do milieu físico, da Umwelt. Não é o interior somático delimitado pelas fronteiras físicas do corpo humano.

Podemos conceber o corpo humano como a configuração mecânica com que nos surge. É como o aspecto físico que um profiler esboça a partir da descrição que alguém faz de um suspeito. Nesse sentido, as características: sexo, idade, etnia, compleição física, tamanho, envergadura, peso, altura, aspecto do rosto, etc., etc., são determinações que apontam para uma morfologia mais ou menos complexa, mas exterior do ser humano. A percepção do corpo humano é igual à percepção de qualquer corpo. Capta só superfícies, isto é, o lado visível do objecto dentro da nossa perspectiva. Não vemos nada do que está tapado. Para lá da epiderme não vemos nada. Nenhum horizonte interno é captado à vista desarmada.

Assim, compramos roupa, ocupamos espaços públicos e privados, temos lugar ou não em transportes públicos, restaurantes, espectáculos, etc., etc.. É inegável que cabemos ou não cabemos com outras pessoas em aviões e que sentimos mais ou menos as dimensões simpáticas e acolhedoras do tamanho de apartamentos, roupa, camas, cadeiras, etc., etc..

Isto é, nós somos o tamanho do corpo que temos. Temos também uma percepção do que se passa no nosso interior. Sentimo-nos mais ou menos enfartados, pesados, leves, com o comemos, se muito, se pouco. Sabemos da nossa altura, se somos mais ou menos altos. Somos, portanto, o que achamos ser a configuração mecânica do corpo.

O nosso corpo está continuamente sob acção de um radar interior. O corpo não se reduz nunca apenas a músculos, tendões, articulações, ossos, carne, órgãos e aparelhos. Há sempre um sobredeterminação funcional a dar sentido ao conteúdo estritamente percepionado. Sabemos como puxar e empurrar, agarrar e soltar, porque há uma acção do corpo todo, com uma maior solicitação de uns músculos do que de outros. A própria pele — que cobre toda a extensão do nosso corpo — sente-se diferente ao vento, ao frio e ao calor, dentro e fora de água. Sentimos também o bater do coração, o fluxo sanguíneo, a falta de ar, dores musculares e de cabeça, tudo no nosso interior por assim dizer. Não damos conta dos músculos solicitados habitualmente. Há actividades físicas que, às vezes, solicitam músculos que nem sabíamos que tínhamos.

O texto sobre o ar, as águas e os lugares esboça uma concepção do corpo humano a existir para lá do interior das suas fronteiras físicas. O ser humano é mais do que um volume tridimensional. É mais do que um vulto com um determinado aspecto. Por um lado, cada pessoa é igual a si própria e diferente de qualquer outra. Cada um é como cada qual. Para a medicina, cada caso é um caso.

Por outro lado, podemos apurar características semelhantes e diferentes entre indivíduos: rostos, compleições físicas. Um asiático é diferente de um europeu. Mas há asiáticos e europeus parecidos e diferentes entre si.

1 Jul 2019

Trapezista temporária

O MEU CORPO
Este é o meu corpo,
mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.
Gisela Casimiro in Erosão (Urutau, 2018)

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando escrevi este poema, O meu corpo, estava muito longe de imaginar que um dia estaria em palco, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, pendurada numa barra, qual Cristo crucificado. Este poema vem de longe, de um lugar de memória permanente.

Agora que o espectáculo terminou posso, aos poucos, começar a descer do trapézio e a olhá-lo, como fazia em palco mas, agora, sem deixar de fazer a inevitável analogia ao meu percurso de vida. Abril marca que foi há quatro anos que me submeti a uma cirurgia bariátrica, um sleeve gástrico, em que nos retiram 80% do estômago, que depois volta a crescer mas nunca a retomar o seu tamanho original. Apesar de tornar-se mais sensível, também passa do modo avestruz para algo mais evoluído e inteligente: tudo o que não pertence ali, não fica muito tempo. Fossem os nossos cérebros e corações tão capazes de reagir com a mesma rapidez e parcialidade. Talvez seja uma questão de sobrevivência, talvez o estômago seja mais difícil de enganar ou mais eficiente em matéria de autoprotecção. Talvez o amor-próprio seja um super poder que é despoletado por situações extremas. Outro poema meu, 2015, confessa: “O que perdi em estômago, ganhei em coração.” Que é como quem diz, no caminho para voltar a reconhecer-me, ou talvez para conhecer-me de uma vez por todas, aprendi a respeitar o outro e a colocar-me no lugar dele, e apenas posso esperar que tantas provações me tenham tornado um grama melhor que seja enquanto pessoa.

Há a versão de Hamburgo, em que os meus papéis são desempenhados por uma moça robusta e loira. Como ela, levo o cálice para o palco. Como ela, carrego uma bandeira branca. Faço piadas com outra colega, agora uma nova amiga, cabelo escuro e pele alva, cuja antecessora era, também, loira. Com ela partilho o trapézio, momento em que a cor invade o palco por momentos, pois praticamente tudo é branco neste cenário. Não pergunto a quem me escolheu porque é que o fez, mas sinto essa graça e esse peso, mais do que o meu, a comover-me. Há muitos contrastes, uma capa vermelha e uma azul. Uma criança-esqueleto e um autocarro que invade o palco em altura de terrível e lamentável tragédia na Madeira e da agora menos relevante, face a isso, falta de combustível. Há as línguas portuguesa, italiana, francesa, alemã e há o silêncio e a dedicatória da estreia a Notre Dame, onde infelizmente nunca fui. Há um entendimento, harmonia e caos, orquestra e coro, técnicos e produtores. Há uma árvore, já destinada ao abate, e os seus ramos cortados no momento. Há quem lhe leve flores, à árvore, num dos mais bonitos quadros vivos que já vi. As folhas atenuam os cheiros dos químicos usados neste laboratório improvisado, pois que nada foi deixado ao acaso, desde o amoníaco à electrólise. Há uma pedra que se racha, e que outro dia ficou com um formato de coração partido. Há aqui tanto que me comove que anda ali estou, incapaz de falar noutro tempo que não o presente, ou de ouvir outra música que não a que me tem acompanhado nos últimos meses mas sobretudo nas últimas semanas. Há uma obra inspirada na religião que é a minha, e que é imperfeita como eu, mas da qual não consigo desvincular-me, por acreditar demasiado em algo que é como eu, e maior que eu, tal como eu também sou capaz de ser, sobretudo quando me faço mais e mais pequena e me lembro de que servir é o mais importante. Contar histórias seria inútil se não servisse ninguém. Uma religião é obsoleta se não se alicerçar no amor, e o amor não tem fronteiras, ou passa a ser outra coisa.

Nos corredores, nos bastidores, cronometra-se o tempo que cada um resiste e fazem-se ajustes, enquanto se abusa do pó de magnésio nas mãos, para horror da produção, e se observa os colegas, um de cada vez, alguns dedicados inteiramente a este momento e outros com mais funções. Mas quase toda a gente gostaria de fazer também esta parte. Há quem venha precavido com ligaduras ou pensos, há quem descaia a cabeça para a esquerda e quem o faça para a direita.

Há homens e mulheres, há outra criança. A mim, observam e parabenizam muitas vezes: “És quem aguenta mais tempo”, ou “Tens um ar tão natural”, ou “A mulher do trapézio”. Rio e respondo que a minha vida me preparou para este momento; que não sei como isto aconteceu, e é verdade; que a minha hérnia inguinal, operada em 2017, e que ultimamente tem voltado a chatear-me, não acha muita graça. No dia da estreia, também o meu estômago não parece querer colaborar, e passo horas agoniada. Há quem vá correr uma ou duas vezes por dia durante os ensaios mas que não consiga deixar de pensar em bolos, mesmo se traz uma caixa gigante com cenouras cruas para ir petiscando. Há quem se conheça pela primeira vez e quem já se tenha cruzado neste e noutros palcos. Respirações conscientes e profundas, yoga aproveitando que existe um tapete de luta no cenário, alongamentos e uma panóplia de pequenos exercícios e rituais de preparação. Há ainda quem leia ou durma e quem não consiga estar calado ou afastar-se do telemóvel por muito tempo, ou de um cigarro. No Capítulo XVI, Crucificação, podemos ler: “O peso do corpo dos condenados à crucificação provocava a morte por asfixia. (…) O condenado mantinha-se plenamente consciente até ao momento da morte.” A Paixão segundo São Mateus, de Bach, dirigida por Romeo Castellucci, inclui, ainda, no libreto, o peso, nome, idade e altura dos figurantes a quem foi pedido que suportassem o peso do seu corpo o máximo de tempo que conseguissem. Nenhum de nós, figurantes, fala em palco, não fosse esta uma ópera, a primeira a que assisti na vida, e da qual tive ainda a honra de fazer parte. Falam os nossos gestos, os nossos olhares e as nossas pálpebras fechadas. Falam os braços que tremem por vezes ou as mãos que ajustamos. Falam o baloiçar dos nossos corpos suspensos, e a posição das nossas pernas. Falam os nossos pensamentos, ou o que quer que nos ajude a permanecer por cá. Há quem deteste que lhe perguntem a idade. Eu detesto que me perguntem ou tentem adivinhar o peso, mesmo se na verdade me dão menos peso (e idade, vá, afinal sou negra) do que o que tenho. Eu já tive orgulho do meu peso e já tive vergonha do meu peso. Mas agora sei que consigo suportá-lo, seja ele qual for, e até vê-lo exposto assim, impresso: os 70 kg que tinha e que me ficavam tão bem mas ocultavam o peso equivalente a uma pessoa em escuridão, peso esse que foi passando tão para fora de mim que deixei de poder ignorá-lo, ao chegar aos 133 kg certa vez.

Há o Joel, que sobreviveu a uma hipotermia no mar, perdido que esteve durante cinco horas. Tinha ido surfar. Há o Carlos, que se viu de pernas presas debaixo de um tractor; consciente durante todo o tempo do acidente, que forçou a amputação de ambas, agora usa próteses. Há a entrada leve e cómica do Joel nos agradecimentos e o sorriso e as brincadeiras constantes do Carlos. O nosso peso, interior ou exterior, parece muito pouco, perante a coragem e a alegria de ambos. O amor à vida de ambos, penso, numa semana em que ouvi de alguém próximo que queria muito morrer.

Diz o libreto: 78kg – Gisela Casimiro, 34 anos, 172 cm. Trapezista temporária no palco, permanente fora dele. Ainda com muitos pesos para deixar cair. Ainda tendo de me lembrar de respirar, ao fim de todos estes anos. Olá, eu sou a Gisela. Muito gosto em conhecer-vos. Talvez possamos conversar quando eu recuperar os sentidos, o equilíbrio e a voz.

6 Jun 2019

Dina Pedro da Dinamite Team

[dropcap]Q[/dropcap]uem sobe a um ringue, tem as maiores expectativas, a da vitória. Um ringue é um laboratório vivo da vida. Quando um dos meus sobe ao ringue, eu só penso na sua vitória, por ele, pela minha Mestra, pela sua família e seus amigos. Quando alguém sobe a um ringue para combater só tem um pensamento na sua cabeça, a vitória. Se eu pudesse, fazia que só os meus ganhassem, mas há o combatente do outro canto, também tem a sua disciplina, a sua treinadora, a sua família e os seus amigos. Se eu pudesse, só os meus ganhariam. Não se pode entender mal o que eu digo. Não aposto por dinheiro.

Aposto o que os meus apostam. A vida toda. A vida toda não é a preparação para um combate.

Tenho assistido a meses que se estendem por anos.

Quando vemos um combatente treinar, só podemos acreditar nele, na sua técnica, na sua dieta, no seu sono, no seu treino. Nem nos passa pela cabeça que são corajosos. Parece que não sofrem nem com o treino, nem com a dieta. Muito menos, parece que sofrem com a dor física. E a dor física é de toda a espécie. Não é só a aceleração, não é só as horas sem descansarem bem até regressarem ao treino. É a dor que é tão aguda que só a adrelina a sufoca. Não é que não haja dor ao sofrer um golpe. Até pode parecer que se sofre, mas é mais a consciência de se ter perdido.

Não há dor. Há outra coisa. A compreensão de que o corpo apagou. E se não apagou, a mente já não vai buscar nada ao corpo. Podemos achar, quem vê de fora, que há violência. Violência há com armas e haveria se um fosse treinado e o outro combatente não.

Temos dois combatentes que não lutam um contra o outro, mas um com o outro. Se tudo tiver sido como mandam as regras, treinaram. Estão um para o outro. Mas eu tenho os meus e os outros terão os deles.

Eu pensava que os meus não perdiam.

Mas como não? Todos nós perdemos algures, em algum tempo na vida, com quem merecemos perder e com quem não merecemos perder. No knock down vai-se abaixo. Há contagens. O combatente ergue-se.

O que achamos nós que lhe passa pela cabeça? Não é perda. Quer-se erguer, quer ficar de pé, mostrar as luvas ao árbitro, mostrar que está apto a continuar. E quer continuar. Não, não pensa na dor, não pensa na família, não pensa na treinadora, não pensa em si. Sim: pensa em tudo, em todas as pessoas que o levaram ao ringue. Alguém no canto diz-lhe para respirar, para fazer a contagem: um, dois, três, quatro, cinco, seis, aos sete tenta levantar-se e levanta-se. Podemos pensar que fica ali, queremos que fique ali, porque somos a mãe ou o pai ou a namorada ou o namorado.

Mas a nossa treinadora diz coisas incompreensíveis para o público e para o outro canto. Diz qualquer coisa simples como: respira, levanta a guarda, bate com a perna esquerda no lado de dentro da direita, fica com a guarda alta.

O segundo round ecoa. Depois das miúdas anunciarem outro round. Ninguém vê como são belas. Não há sexo dentro de um ringue. Há a disputa da vitória. Há a liberdade para se disputar a vitória. Há a competência que quer a vitória, porque se é livre. O que se quer é a liberdade. Ninguém consegue perceber um combatente se não compreender que quer ser livre.

A vitória é a liberdade. A dor não existe. Existe depois, se calhar. Mas os combatentes querem a vitória porque decidiram ser livres. Pode ser um sonho de infância, mas nunca é um sonho negativo. Nunca ninguém ganha por raiva.

Só se ganha por… amor. Um combate é um acto de amor.

E tu vais ao tapete. É a segunda contagem. E levantas-te. Um, dois, três, quatro, cinco, seis… E lembras-te do que te disse a tua treinadora. Levanta-te com tempo. Toma o teu tempo.

E lá está outra vez o teu oponente. Pode parecer maior do que tu, mas tu não queres que nada acabe. Não tens tempo, agora, para que o combate acabe, queres que continue a eternidade, porque tu sabes que tens a técnica, a coragem.

E vais de novo ao tapete. O árbitro dá-te a terceira contagem.

Não foste ao tapete de qualquer maneira.

Do outro lado, comemoram a vitória.

E tu bates palmas ao teu oponente.
A vida é celebrada.

Lembras-te de todas as vezes que venceste. Sobretudo, uma vez mais, lembras-te do que pensaste quando perdeste da última vez.

“Segunda, quando tiver lambido as feridas do meu corpo e, sobretudo, as da minha alma, regresso aos treinos.”

E os treinos são no local sagrado, onde vais voltar a perder peso, fazer dieta, treinar.

E a tua treinadora diz-te: “acredito absolutamente em ti, querida, querido”.

23 Mai 2019

Que me diz o corpo? Cai.

Fora de Lisboa, 24 de Março

 

[dropcap]A[/dropcap] notícia apanha-me fora da cidade, fora de mim. Andávamos a arranhar céus, por causa de uma ideia, é sempre assim, mas agora não sei, Manuel [Graça Dias]: desapeteceu-me.

Hei-de dar umas voltas, para ganhar coragem de arrumar o irresolvido. Quem, como tu, viu na cidade um corpo vivo, fulgurante e contemporâneo a cada instante? Ninguém, como tu, defendia o direito de cada um, sem restrição de gosto ou proveniência, a fazer a sua casa, a sua cidade. A riscar, arriscando. A construir com ruínas, a erguer em circunvoluções, vasculhando noas catálogos do disponível, sem perder a hipótese do sonhado. Lembro agora que falámos muito de janelas. Hei-de dar umas voltas, de pernas para o ar.

Almirante Reis, Lisboa, 28 de Março

Deixei-me alhear. A cena estava destinada a durar poucos minutos naquele aquário com uma única parede de vidro, a porta abrindo sobre azáfama de papéis, em murmúrio de irrequietude, prestes a sossegarem em um quase nada absolutamente determinante. A leitura em voz alta e borracha na mão despejava em ladainha dados objectivos, moradas, lugares de nascimento, portanto datas. Definitivos que nem lâminas, se excluirmos os nomes. Os nomes completos não se limitam ao real, trazem primeiro o próprio, e logo dele evocação, perfume, um eco; seguem-se os apelidos revelando raízes, as serras e os rios onde germinaram os pais dos pais, quando uns ainda eram filhos e não sonhavam ser pais. Os apelidos são paisagens que nos atravessam. Movimento, só passada a fronteira de vidro. Os corpos aqui fizeram-se estátuas sentadas, recebendo a chuva a conta-gotas da voz verificando o que precisava ficar escrito para que a vida dos apelidos cruzados prosseguisse depois da morte. Estava quase como devia, a emenda fez-se para justificar o aparato do absurdo formal. Sem precisar, pus os óculos e assinei. O carimbo fez ponto mais final. Ainda não sequei as lágrimas.

Santa Bárbara, Lisboa, 29 de Março

Corto [Maltese] fez corte à navalha na mão desenhada para prolongar destinos. Meio torto, resolvi alterar a leitura das rugas na testa com lanho longitudinal. Demorei a perceber que se trata de acentuar as coordenadas. Lá diz José [Anjos]: «a mera consciência de si próprio/ ou do corpo/ não é mais do que uma tentativa,/ vã tentativa de estar parado / no que é imparável: a queda.»

Horta Seca, Lisboa, 2 de Abril

Valério [Romão] regressa de mais uma incursão europeia trazendo na bagagem dois contos vertidos para castelhano, italiano, neerlandês e romeno, no âmbito do projecto CELA (Connecting Emerging Literary Artists), projecto a dar atenção aos emergentes, escritores e tradutores. Isto além da participação na delegação portuguesa à Feira do Livro de Leipzig. Parece satisfeito com ambas as experiências, mas não se lhe arranca relatório minucioso assim à primeira.

Anda embrenhado em traduções e junta-se logo ao colossal coro de cobradores das minhas crónicas tardanças: «já trataste da autorização?» Nada me castiga mais que a papelada. Ainda nem abri o documento com as vendas do mês passado. A derrapagem parece ser a minha maneira de caminhar.

Campos Trindade, Lisboa, 3 de Abril

Nas poucas vezes que não fizemos o tradicional lançamento, por vontade do autor ou outro contratempo, sobrou-nos um estranho gosto da incompletude. Algo parece faltar no longo ciclo de construção do livro sem este ponto de exclamação. Contudo, uma avaliação rigorosa, subtraindo o que se investiu em tempo, recursos e incómodos aos parcos resultados, justifica a dúvida: valerá a pena? Até que acontecem destes, o de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça», do mano José [Anjos]. Falo do intangível, claro: o ambiente. E para melhor explicar, dissequemos, rezando para que o Frankenstein seja, ao menos, terno na sua disformidade.

O lugar do crime, de vizinhança que se quer crescente, possui o perfume das raras possibilidades.

O Bernardo [Trindade] acendeu a luz da sala de estar, que sabe ser o epicentro de encontros insuspeitos. A Graça [Ezequiel], com foto na página, em versão antes da noite cair, ajuda a dar ideia. A generosidade da Quinta do Gradil, pela mão gentil da Ana [Matias], dispôs saborosas boas-vindas em formato viosinho, no branco, e cabernet sauvignon com tinta roriz, para o tinto.

Entre muitos amigos, chegados ou dos de partir, estavam a querida Luísa [Pires Barreto], que desenhou o objecto, cuja capa nasce de uma tela onde o Gil Madeira pôs o Anjos a procurar o feminino por entre luz e espelho e manuscritos. O Gil oferece, ainda, o nosso primeiro logótipo em círculo, dança doida de linhas sinuosas. O Marcello [Urgeghe] rodou sobre si sob o lustre para sussurrar leituras comovidas. E o João [Morais] encheu o espaço que já não havia com a sua campaniça, insuflando oxigénio. O autor, tão amante da queda, levitava, talvez por sentir que as páginas se cumpriam nas mãos e nos olhares, enfim, chegavam algures, a uma estação primeira (à maneira de O Gajo). O Gui sublinhou passagens, sem surpresa, sentindo-se com exemplar naturalidade em casa.

Ademais só mesmo a calorosa interpretação cantada pela Ana Teresa [Sanganha], que liga o seu gosto pela poesia à psicanálise, «que de gosto meu não se trata, mas sim de uma identidade». A leitura veio tintada pela amizade, como convém, mas revelou-se justa e cheia de alma.

«Digo complexidade porque, à medida que ia mergulhando nos poemas e dobrando as ondas do livro, percebia que não estava a conseguir dissociar as partes em que me tocava, da mesma maneira que não consigo dissociar corpo e mente. Mas pude perceber que memória, infância, amor e morte emergem com a subida das páginas e vivem, transversalmente, numa roda-viva de posições e justaposições. E, enquanto me desvendo através do Zé, penso que afinal só de quatro gotas se faz o oceano e que os mergulhos poderão ter só a profundidade destas quatro gotas: infância, memória, amor e morte… talvez arriscasse dizer que poderíamos retirar a infância e a memória, que das duas fala o amor e a morte, mas, como escreve o José, “são precisos dois olhos para focar/quatro para ficar”. São estas as Quatro Águas que matam a sede à humanidade e lhe dão a distância suficiente da boca do corpo até à terra.»

Ferin, Lisboa, 4 de Abril

Anuncia-se programa para a televisão pública em torno da música que nos fez mais portugueses. Pede-me o Pedro Castro depoimento matutino sobre o Sérgio [Godinho] e dispara logo a abrir um refrão de memória. A minha perdeu o pio. Sou homem do presente, sobretudo do indicativo, o que me perturba e irrita, fica escrito. Lembrei-me na atrapalhação do hoje que se quer primeiro dia para lançar novo sopro no resto a vir. Veio-me depois à boca o grão da mesma mó, «não sei se estão a ver aqueles dias/ Em que não acontece nada sem ser o que aconteceu e o que não aconteceu/ E do nada há uma luz que se acende/ Não se sabe se vem de fora ou se vem de dentro/ Apareceu». Está visto que o meu tempo continua à espera de suceder. E não ocorreria da mesma maneira sem o SG [gigante].

Biblioteca da Imprensa Nacional, Lisboa, 5 de Abril

Lá está, lançamento: «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», de Mariana Viana, com a vetusta a dizer que está atenta aos cânones agitados apesar dessa camisa-de-forças onde a querem fechar, mas que não abdicam nunca de atacar a jugular, a que sangra, não a cegueira das minudências do artesanato do ódio. Ele há diferenças, podemos fazer degraus sem pensar em cânone, subindo ou descendo. Esta sala faz-se lugar perfeito para este desdobrável, em cada uma das direcções de todos os ventos. Entre a terra e o céu, umas varandas sem acesso, disponibilizam livros a quem saiba sobrar o varandim, folhear a geografia, saber o caminho dos degraus de água.

10 Abr 2019

O corpo digital

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e há uma coisa que as redes sociais vieram inequivocamente provar é que não estávamos preparados para as redes sociais. A forma como a nossa identidade habita o espaço cibernético é assaz diferente daquela a que estamos acostumados. Por um lado, a nossa voz está “ali”. Mas é uma presença amputada, já que esta dispensa o corpo. E talvez a imortalidade tão almejada pelo humano desde sempre – sem qualquer noção das consequências que dela podem advir – acabe por ser isso mesmo: uma consciência desprovida de corpo, visto que o corpo, como toda a matéria, está exposto à degradação que o tempo provoca. Mais a mais, e mesmo que o corpo fosse incorruptível, subsistiria um problema de monta: se todos fôssemos imortais, o espaço disponível para nos albergar seria sempre limitado. As almas, mesmo que na versão digital, são muito mais económicas na área que ocupam.

Ora esta ausência de corpo é porventura o aspecto que melhor define a radicalidade das posições do sujeito digital. Não é raro vermos sujeitos, no Facebook – sujeitos que conhecemos pessoalmente e que prezamos pela capacidade de diálogo e pela moderação – demonstrarem uma extraordinária intolerância perante opiniões que não perfilham. Intolerância amiúde acompanhada de violência verbal. Esta síndrome Mr. Hyde cibernético, pela qual um sujeito cordial na vida quotidiana se transforma num arruaceiro digital radica fundamentalmente na ausência de corpo que é a marca de água da presença da identidade nas redes sociais. Do corpo e da forma como este condiciona e define a nossa relação com outrem.

De facto, não há consequências físicas para o excesso de tenacidade com que defendemos determinada posição. Não há olhares que se cruzam, não há os múltiplos indícios pelos quais o nosso substrato animal percebe imediatamente a fronteira da passagem do confronto verbal ao confronto físico. O sujeito que discute na internet não aposta o corpo nessa discussão. É apenas um tipo num quarto com um teclado sob os dedos e a possibilidade de transcender o constrangimento físico que advém de estar cara a cara com aquele com quem se discute. Pode crescer à vontade em volume e violência. Pode crescer infinitamente.

Esta ausência de consequências físicas dá azo aos comportamentos arruaceiros que vemos um pouco por todo o lado, desde as caixas de comentários dos jornais aos murais do Facebook. Como canta Sérgio Godinho “foi muita liberdade de uma só vez / e o rapaz está confuso”. Até a característica fundamental das redes sociais que podia prevenir este tipo de atitude – que é a memória infinita e infinitamente precisa que subjaz à internet – não é suficiente para condicionar e restringir o excesso. O sujeito conta – e bem – com a rapidez esmagadora dos conteúdos digitais a que estamos expostos. Dada ao particular confinamento do nosso foco de atenção, uma coisa rapidamente substitui outra no fluxo de consciência.

O que resta saber, em boa verdade, é se com o tempo conseguiremos crescer civilizacionalmente e sair deste wild west digital onde nos encontramos ou se, pelo contrário, a ausência de corpo e das consequências a que este está sujeito condicionará sempre a nossa presença cibernética. No melhor dos cenários, ultrapassaremos esta infância digital de algum modo. No pior, a violência virtual acabará por nos transformar e por transformar o modo como nos relacionamos com os outros “cá fora”. A despeito do corpo.

14 Ago 2018

Caprichos (ou como ouvir uma vagina)

[dropcap style=’circle’] Q [/dropcap] uem tem uma vagina – mulheres, mulheres trans e também possivelmente homens – saberá que é um pedaço de corpo delicado e versátil, com capacidade de promover o prazer e a procriação. Quando nós temos caprichos do sexo e fantasiamos com tudo e mais um par de botas (daquelas com salto agulha, sensuais), o nosso corpo também tem uns caprichos por satisfazer. O que quero dizer com isto: o capricho, definido como uma vontade inexplicável e repentina, não é só uma vontade da mente, mas uma vontade do corpo.

E quem é que entende as vontades do corpo na sua plenitude? Poucos de nós. Porque vivemos a vida presos na nossa existência mental, e lá de vez em quando temos uma brecha de consciencialização deste corpo que nos carrega, que tem apetites, que tem manias e caprichos. As vaginas são pedaços particularmente misteriosos que poucos parecem entender – poucas e poucos parecem ter a vontade, sequer, de olhá-la, cara a cara, mediada com a ajuda de um espelho. A inabilidade de poder olhá-la francamente no nosso dia-a-dia talvez venha ajudar ao nosso evitamento constante.

Há quem se lembre, certamente, da primeira vez que tentou colocar um tampão – porque enfim, está sol, há uma boa praia e nós queremos evitar pensar que o período existe e que possa estragar os nossos planos – e é então necessário todo um domínio das partes íntimas para poder colocar um ‘mini’ pedaço fálico de algodão, com o intuito de absorver o inevitável sangramento. A vulva e vagina são vistas como sagradas, e a ideia de que está lá toda uma área flexível (muito flexível), capaz de absorver aquele pedacinho, é, para muitas, difícil de compreender. Se isto é difícil para as virgens, para as que começaram a sua vida sexual também pode ser complicado porque, é como vos digo, há pouca consciência da vagina.

A vagina ressente-se, claro, e capricha-se. O que se tornou no senso comum vaginal de evitamento, algum nojo, e em casos mais extremos de repúdio, faz com que as necessidades da vagina não sejam ouvidas com atenção. O tabu da menstruação e do prazer sexual feminino também leva com o tabu da vagina, tanto que mais não seja porque ‘originalmente’ estaria escondida por detrás de um pequeno arbusto de pelugem púbica, que até essa é rejeitada hoje em dia. Já ouviram a vossa vagina hoje? Estará em que fase folicular? Como é que gosta de ser estimulada? Saberemos tratá-la bem, com saúde e bem-estar? Estou ciente da minha hipocrisia, porque verdade,verdadinha, também não percebemos nada do nosso corpo de outras partes menos censuráveis, quanto menos do orgão sexual biologicamente tido como feminino, e historicamente alvo de alguma negligência, de todas as naturezas.

Se pudesse mudar de carreira num abrir e fechar de olhos, provavelmente teria sido ginecologista e terapeuta sexual, e tentaria pregar por aí a importância do bem-estar vaginal – e digamos que não são só as mulheres que se aproveitam desta vantagem. Vagina feliz leva a um sexo feliz, em qualquer idade. Será necessário relembrar que o nosso corpo que cresce e se desenvolve, muito na expectativa do sexo, passa por fases mais ou menos difíceis? Com mais ou menos apetites, mais ou menos lubrificação. A maternidade até, que de partos e nascimentos transformam vaginas e o sexo. Onde e quando é que se fala disso? Na novela das 21h? No telejornal? Na literatura erótico-pornográfica? Na medicina? Onde é que afinal se fala de vaginas felizes e caprichosas ao longo da idade adulta?

2 Mai 2018

Libertem os mamilos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá que é assim tão simples, libertar os mamilos? Eu diria que não é fácil. Há qualquer coisa de especialmente escandaloso, chocante e perverso no mamilo, feminino, claro!  Não que esta seja a minha opinião mamária (muito pelo contrário), mas o meu contacto diário dá-me a entender que esta é a opinião geral. Tópicos como sutiãs, aleitamento ou cancro da mama revelam os macaquinhos conceptuais e a constante censura da aréola mamária.

Às raparigas/mulheres desde muito tenra idade que lhes são incutidos sutiãs, um obrigatório rito de passagem assim que as picadas de mosquito começam a ganhar uma forma melhor ajeitada. E assim continuamos, usamos sutiãs atrás de sutiãs, e umas aprendem, melhor ou pior, a lidar  com o desconforto dos arames e dos enchimentos. As dificuldades são eternas, entre encontrar o tamanho absolutamente perfeito para a felicidade das nossas mamas, a decidir qual o formato desejado para o nosso peito. Dificuldades que existem desde a clássica obsessão pelo espartilho – a problematização do peito feminino não é de agora.

Há quem se liberte da ditadura do sutiã porque até a ciência já provou ser mais saudável assim fazê-lo. Libertem a mama e o mamilo! Mas haverão consequências. Basta nos aventurarmos a ir para a rua com as meninas a baloiçarem livremente em contacto directo com a nossa t-shirt que vamos ser alvo de olhares – e quiçá de comentários. Nem parece que foi há muito tempo (nos anos 60 e 70) que parecia muito mais normal deixar as mamas livres de armação. Desde então que o pudor se intensificou, em vez de ter diminuído. E sejamos claros, não é a mama em si que incomoda – porque somos bombardeados por imagens de decotes generosíssimos – mas a existência do mamilo. A protuberância, o alto, o espevitado, o relevo, qualquer mera lembrança de que os mamilos existem no corpo da mulher e de repente tudo se torna muito mais provocatório.

Esta teimosia em perceber os mamilos femininos como uma arma de provocação sexual infalível dificulta a conversa acerca de outros tópicos bastante normais, como por exemplo, falar do cancro da mama ou lidar com o aleitamento. Chegou ao ponto de anúncios de sensibilização pela prevenção do cancro da mama terem que utilizar mamas masculinas para mostrar como é que a apalpação é feita. Como as mamas femininas (detentoras de mamilos) são censuráveis pelos meios de comunicação, tiveram que pegar num homem de algum peso, com alguma gordura mamária, para ensinar como é que se pode prevenir o cancro da mama (que apesar de haver alguma incidência nos homens, tem maior incidência nas mulheres).

O aleitamento, então, nem se fala. Há depoimentos de mulheres a amamentar os seus filhos em público e que foram criticadas por terem-no feito, a ponto de serem expulsas fora de um avião! Irónico, não é? O mundo força e reforça que o leite materno é o melhor suplemento para o crescimento de uma criança saudável e depois? Tem se ser feito à porta fechada ou devidamente tapadas. Ai delas se tiverem um mamilo à solta em público!

Os mamilos são assim, muito úteis e grandes proporcionadores de prazer, mas censurados até ao tutano quando… os homens também têm um par e ninguém os chateia por terem-nos ou não à mostra. Até lá sofremos os dilemas de querer andar confortavelmente livres sem sutiã, ou mostrar um ou outro mamilo a nosso bel-prazer.

23 Mai 2017

Ode ao Traseiro 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma fascinação contemporânea pelo rabo. Talvez sempre tenha existido, mas só recentemente me apercebi que um rabo grande está na moda. Há quem aumente os seus rabos, há quem proteja os seus rabos com um seguro contra todos os riscos (estava a pensar na Jennifer Lopez especificamente, mas há quem diga que é mito urbano)! O traseiro está no centro de todas atenções, tanto masculinas como femininas. Porque é que o traseiro é especial? Porque é que é tão desejado?

Há partes do corpo feminino que são mais obviamente sexuais, como as mamas ou a vulva. Mas o rabo informa-nos da perfeita razão entre a cintura e as ancas, um grande sinal de fertilidade e, por isso, é uma grande fonte de atracção pelo sexo masculino, dizem-nos os biólogos da evolução (porque os homens só vão para cama com mulheres de corpos potencialmente paridores, claro). Assim, as razões para o fascínio masculino são muito mais facilmente entendidas – evolução isto, evolução aquilo, quer dizer que consegue ter muitos filhos, consegue subir escadas com genica, um rabo redondinho e musculado é sinal de saúde… E não nos podemos esquecer que um rabo com o ângulo perfeito de 45 graus consegue aguentar uma garrafa de cerveja como se fosse uma prateleira (afinal de contas para que é que serve um bom rabo?). Ou que um bom tamanho de rabo é preditor de uma mulher mais empática, com melhores qualidades sociais e maior inteligência emocional. Eu podia estar a brincar, mas não estou. É desta forma que os grandes mestres da informação sexual e cibernética andam a espalhar a sua sabedoria, a objectificar o rabo o mais que podem, e torná-lo na obsessão mais tonta da cultura pop contemporânea. Esta tendência de naturalizar a objectificação feminina mascarada em teorias simplistas da evolução humana já me chateia. Chateia-me mesmo.

Nem tudo é tão dramático, claro. Um bom rabo é giro de se ver, de se tocar e de se fazer o que nos bem apetecer (com consentimento, óbvio). Tanto para homens como para mulheres! Mas alvitrar razões para as mulheres gostarem de um bom rabo, não é tão fácil para os mentores do sexo das revistas cor-de-rosa. Se os homens gostam de rabos das mulheres pela fertilidade, não faz muito sentido que o contrário também se aplique, i.e., as mulheres gostarem dos traseiros fofinhos masculinos porque garantem produção filial. Talvez um rabo mais musculado seja capaz da palpitação incessante para o coito bem sucedido, não sei. A psicologia da evolução não tem ajudado na explicação do fenómeno.

Acho que muitos estarão de acordo quando digo que o rabo é uma área de conforto, é fofo, macio, dá gosto em beijar e deixa todos os envolvidos no acto amoroso verdadeiramente felizes. O rabo é daquelas zonas do nosso corpo que é de muito difícil acesso, e por isso é que a sua fascinação é crescente, e a tentativa de tirar proveito dos rabos dos outros faz parte da nossa auto-descoberta. Os nossos traseiros, para além de simplisticamente bonitos, são misteriosos e dignos de alguma atenção amorosa e sexual. Como dizia o James Joyce nas suas cartas de amor muito traseiro-cêntricas, quão grande é o prazer de observar umas ‘nádegas frescas e roliças’.

Agora, se este nosso saudável fascínio vale a obsessão actual ao que o rabo é sujeito, ao ponto de incentivar mulheres de todo o mundo ou a pôr implantes de silicone nas bochechas, ou a usar daquelas cuecas com umas próteses almofadadas para criar a ilusão perfeita de que as calças estão bem cheiinhas… Isso é que não. Pelo menos que haja uma aceitação da diversidade de rabos que há por aí. Essas razões para a procriação não valem nada se não se gostar da pessoa, parece uma coisa demasiado óbvia de se dizer, mas vale sempre a pena reforçar. Nós não vivemos na idade da pedra. Quando quisermos assentar e constituir família, quem é que vamos escolher? A pessoa que tem os mesmos valores que nós, as mesmas ideias de como criar um filho, os mesmos planos de vida, ou escolher alguém que tem um rabo grande para garantir que se dá bem a parir um bebé?

10 Jan 2017

Saúde | Tatuadores operam sem fiscalização e licenças especiais

Em Macau, as lojas de tatuagens abrem portas sem uma licença específica, enquanto nas redes sociais proliferam páginas de tatuadores que se oferecem para fazer o trabalho em casa, sem qualquer fiscalização. Tatuados e tatuadores pedem legislação que garanta a higiene e o controlo de doenças

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]iago ostenta num dos braços uma tatuagem feita em Macau há alguns anos, numa loja que, no fim de contas, não era bem uma loja. Tiago nem sequer sabe se essa loja, localizada no rés-do-chão de um prédio, tinha licença para ter as portas abertas.

“É uma habitação que foi alterada para ser uma loja de tatuagens, mas não sei se tem autorização ou não. Não sei se tem licença, é uma espécie de apartamento T2 localizado no rés-do-chão, sem qualquer publicidade ou visibilidade cá para fora. Só quem sabe é que lá vai.”

A experiência vivida por Tiago, fotógrafo e designer, radicado no território há alguns anos, é comum para quem decide fazer uma tatuagem em Macau. Se é verdade que, nos últimos dois anos, houve vários espaços a abrir portas, com alguma qualidade, a verdade é que continua a não existir legislação específica para esses serviços. Não existem, assim, quaisquer regras quanto à legalização do espaço, a utilização de materiais e equipamentos ou até quanto à idade mínima para fazer uma tatuagem. É comum vários tatuadores – chineses, portugueses ou filipinos – promoverem o seu trabalho nas redes sociais e realizarem tatuagens em casa do cliente, sem que haja qualquer fiscalização.

Tiago teve um pequeno azar, que poderia ter sido grande: após ter feito a tatuagem, teve uma pequena infecção, que tratou em casa. “A minha tatuagem tem vindo a perder a cor e quando fiz os retoques finais infectou um pouco em algumas partes. Não fui ao hospital, desinfectei em casa com água e um creme. Se fosse mais grave, talvez tivesse de ir ao hospital.”

É por isso que defende que deveria haver uma legislação específica para um sector que está a crescer e que vive no vazio em termos legais. “Penso que as coisas deviam ser abertas e legalmente mais fáceis, também não sei se é fácil ter licença para isso. Devia haver uma maior fiscalização e alguma licença especial, porque é um trabalho quase cirúrgico, são usadas agulhas. Se a tatuagem não for bem feita é uma maneira de transmitir doenças, até mortais. Como é óbvio, o Governo devia fiscalizar e andar mais em cima disso. Da parte das pessoas que fazem tatuagens, deviam investir mais em material de topo, investir na qualidade, para que os trabalhos sejam melhores”, sustenta o fotógrafo e designer.

Uma espécie de cosmética

A falta de legalização dos tatuadores e das lojas não é um problema exclusivo em Macau. Em Hong Kong, o panorama é semelhante e é bastante fácil encomendar um trabalho deste género através das redes sociais. Em Portugal chegou a existir um projecto de lei na Assembleia da República, que não avançou. Um estudo de 2016, elaborado pela Comissão Europeia, mostra que é escassa a legislação sobre tatuagens e a formação de quem as faz. Há 60 milhões de europeus com tatuagens no corpo, mas ficou provado que 60 por cento dos pigmentos usados em tintas são “azo” pigmentos, ou seja, com o passar do tempo poderão originar problemas cancerígenos. Muitas das tintas não são, sequer, fabricadas apenas para a realização de tatuagens.

Mandarim Wong, que há dois anos abriu a ZZ Tattoo, aprendeu a tatuar com um amigo. Por norma recebe um cliente a cada dois dias, tendo falado de um mercado que, apesar de recente, já está saturado.

“Há muitos artistas que prestam serviços na casa dos clientes e levam o seu próprio equipamento. Não têm lojas e não é difícil encontrar este tipo de tatuadores. Existem muitos. Em Macau não é preciso licença para ser artista de tatuagens. O Governo também não exige licença. Sou uma tatuadora e não tenho qualquer licença, porque é difícil ter uma licença própria para este sector”, contou ao HM.

“Em Hong Kong, na China e em Macau as lojas de tatuagem não precisam de uma licença específica, e muitas têm licenças como se fossem lojas de cosmética”, referiu Mandarim Wong, que defende, contudo, ser necessária alguma regulamentação.

“Concordo que é preciso alguma legislação para regular o sector das tatuagens porque, para fazer uma tatuagem, é necessária uma anestesia, e esse é um tipo de medicamento. Sei que houve clientes que sofreram algumas alergias cutâneas depois de fazer tatuagens.”

Grace Punx, da Muse Tattoo, também defende novas medidas. “Pensamos que o Governo poderia providenciar algum tipo de licença como uma opção para as lojas de tatuagens, por forma a mostrar aos clientes que seguimos padrões profissionais em termos de segurança e higiene.”

Nesta loja, em operação desde 2014, “todos os tatuadores são profissionais treinados que seguem padrões de higiene semelhantes aos das lojas do Reino Unido ou dos Estados Unidos”. Quanto ao equipamento, “é esterilizado antes e depois da sua utilização”, confirmou Grace Punx.

Rui Furtado, médico cirurgião e ex-presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa, também defende a implementação de regras. “Penso que deveria haver uma supervisão para esse tipo de actividade. Agora, como poderá ser feita não faço ideia, uma vez que eles não são médicos, enfermeiros ou pessoal de saúde. Pelo menos deveria ser feita uma supervisão aos locais onde se fazem as tatuagens, pelos Serviços de Saúde. Julgo que é difícil controlar isso.”

O HM inquiriu os Serviços de Saúde e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) quanto à atribuição das licenças. Apenas o IACM confirmou que não atribui licenciamento a este tipo de lojas. Até ao fecho desta edição não foi possível obter uma resposta por parte da direcção de serviços liderada por Lei Chin Ion.


“A qualidade não é nada de especial”

Apesar de estarmos perante um mercado em crescimento, a verdade é que a qualidade das tatuagens continua a não ser a desejada por muitos dos aficionados. Susana Torres, designer, é peremptória: “Em Macau fiz uma tatuagem há 15 anos e fiquei tão mal servida que nunca mais tive coragem de repetir. A maioria que fiz foi em Hong Kong.”

“Em Hong Kong a oferta é imensa, os artistas são vários e de muito talento. O meu tatuador, por exemplo, é da África do Sul. Existem lojas de tatuagens em Hong Kong em que a lista de espera é de quase um ano para certos artistas. Em Macau há casas de tatuagens há muitos anos, mas são muito fracas”, acrescentou a designer.

Susana Torres põe completamente de parte a possibilidade de atravessar as Portas do Cerco para fazer este tipo de trabalhos, mas garante que há muitas pessoas a procurarem Zhuhai para fazerem algo mais ligado à cosmética, como sobrancelhas permanentes.

“Antes de fazer uma tatuagem, e se estou num sítio que não me é familiar, tento ver primeiro o traço do artista. Aqui em Macau, até há pouco tempo, não havia nenhuma loja em que eu confiasse o meu corpo, pois os traços que apresentavam eram realmente muito fracos. Os tatuadores safam-se em termos básicos e pouco mais.”

Apesar de referir algumas lojas recentes com um nível mais superior, Tiago defende que “a qualidade não é péssima, mas não é nada de especial, se compararmos com Hong Kong e com o que estamos habituados a ver na Europa ou até em Taiwan, na Tailândia. Esses trabalhos não se comparam nada com o que é feito aqui. Muitas vezes não se investe no material, nas tintas.”

Jorge Tavares, jogador de futebol, tem tatuagens em várias partes do corpo, muitas delas feitas em Portugal. Nunca fez uma tatuagem em Macau, nem pensa fazer.

“Conheço pouco a situação em Macau. Colegas meus e pessoas conhecidas optam por ir fazer tatuagens em Hong Kong, os valores são mais elevados mas vale a pena pela qualidade do trabalho. Ainda há o receio de tatuar em Macau. Ainda há muita coisa para explorar. Dificilmente farei uma tatuagem aqui, é uma área que não é muito explorada. Não há o passa-palavra em termos de qualidade e higiene. Aqui temos pessoas com tatuagens e sem grande conhecimento da matéria”, disse ao HM.

Susana Torres acredita que, em termos de fiscalização de qualidade e até de higiene, cada pessoa deve escolher bem o seu tatuador. “Há imenso pessoal que publicita o trabalho no Facebook e que faz tatuagens em casa. O fazer uma tatuagem em casa não torna o trabalho mais perigoso. Tenho tatuagens feitas em minha casa que seguiram todos os códigos de higiene. Isso passa um pouco pela experiência de quem vai ser tatuado e saber o que se deve ou não fazer.”

4 Jan 2017

Nem pena nem paixão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando penso que há tanto lugar no mundo. Que ainda não se estragou tudo. Mas que estamos no bom caminho para isso, enrubescidos de vergonha mas irrascíveis de vontade e intensão egocêntrica. Apetece-me mais que muito mergulhar na micro planície calma de uma distância impossível de conseguir senão na consciência. Na alienação de todas as palavras de uma desconstrução que não tem nada de bem querer, de bem querer fazer. Bolas de bilhar sem olhar definido e permeáveis a um toque seco de uma intensão de jogo. Coloridas mas cegas em si. Reacções em cadeia. Empurrões de gotas do mesmo líquido na inquietação febril de impulsos físicos, na inércia da agitação da matéria de uma individualidade contranatura. De entidades que somos, parte de um todo indivisível.  A tessitura da matéria atómica e social, a rede universal.

O realismo global é a nova corrente. A nova prisão. Diálogo universal a fazer contas às estrelas. Gotas e partículas previdentes na expectativa de assistir a qual evapora, qual congela de um frio maior, qual salta por imperativos de dinâmica das mesmas e cai na margem do todo. Qual se infiltra na terra, vítima de um engano do estado do tempo e pelo mesmo erro alimenta uma partícula seca, engelhada e feia, que era afinal a invisível semente de algo.

Aqueles dias, em que me apetece encolher os ombros, os joelhos, tricotar rapidamente um casulo de lã Mohair desde as pontas dos dedos dos pés pintados, até às pontas dos cabelos lineares e bidimensionais. Espalmar toda a subjetividade num pedaço pequeno papel e fechá-lo num livro bom. De palavras boas. Cantilenas de embalar e de encantar. Já agora, com umas pétalas de flores para não esquecer as sensações e ir cheirando um perfume bom. Ou driblar uma bola rapidamente e atirá-la a uma tabela mal desenhada, vezes sem conta, encestar ou não. Com aquele ruído específico, e aquele ruído e aquele ruído do impacto, e de novo, e repetir até à exaustão. E uns calções compridos e contornados a preto para pintar depois num dia mais contente. Ou atirar pedras ao rio e ouvir o ruído do baque na água. E de novo. E de novo. Ou sentar-me e abanar o tronco para a frente e para trás. E vontade de fugir. Para fora deste circuito viciado de violência a que já nem as palavras me fogem. Vontade de ouvir tudo coado pela imensidão da água sobre mim, à minha volta, à minha frente e atrás de mim. Por todos os lados. Em todos os lados e em todos os sentidos. Fechar qualquer coisa por momentos como um casaco pesado de inverno.

E esses dias em que tudo me aparece da esquina mais negra da realidade, tão real e tão reais como os outros em que se alternam momentos de maior lirismo e apaziguamento, tão real este e tão nítidos esses, mas bem mais construtivos. Dos anjos só os mais negros e ausentes. Há uma arquitectura de destruição de que não gosto. As grandes cidades como os pequenos castelos de areia, de nuvens, ou de saber ir indo com os dias sem exigir nada de ninguém, merecem o mesmo respeito. As construções sociais e as empatias coerentes. As pequenas mortes como os grandes genocídios. Todos me fazem aversão. Os grandes princípios edificantes, os pequenos gestos demolidores. De tudo se fazem palavras e mortes. Que arremessadas ao vento ferem rostos de caminho, de passagem ou de indiferença. Na realidade exijo tão pouco dos outros que sempre sou colhida de surpresa. A raiva. O ódio a fermentar numa matéria estranha em rejeição. Mas a encontrar caminho nas palavras e na lógica dos critérios. Sentir palavras infelizes e forasteiras a invadir espaço que não lhes é destinado a desenvolver diálogos que me cansam e calam. A evocar palavrões de violência a desmedir e a libertar de caixas fechadas para o efeito. De guarda. De não querer. De ferir. De recusar. E da recusa sobra o abalo do abalroar sem ter querido.

Tonalidades, texturas e cores de que não gosto, a invadir-me a forma das palavras. Timbres e cheiros a putrefacção e a biis. Perpectivas militares e explodidas, estratégias. Já bastam as guerras. Deformações como doenças dolorosas da pele, dos dias, a vista de cada janela a enrugar de irascibilidade. E nessas alturas todas as palavras amargas e corrosivas se juntam em meu socorro, ansiando por se escapar do lugar fechado onde vivem e fazem alarido incómodo. Mas não as quero para mim, como não as quero para ninguém. Só que me abandonem reabsorvidas numa matéria inócua qualquer.

Há dias em que o meu mundo me aparece coberto de tons de negro, um vozerio desmesurado e agreste, repleto de palavras que não quero dizer. Uma fractura que não quero sentir, um sentido que não quero medir. Há um corpo. E o meu. Imune às palavras. Último reduto a ignorá-las.

E apago a luz. A paisagem de que preciso. Para sentir de que cor ficam afinal todos os negros. De que espessura se faz afinal o silêncio relativo. De que formas se prende o tacto às coisas. De que temperatura se lembra o corpo nelas. De que memória se desprendem os objectos. Tudo novo em escuro e silêncio. Mesmo as vozes esparsas da rua, parecem ignorar melhor e mais. Mais exteriores. Assim. E há felizmente pequenas réstias de quase não-luz, a entrar pelas frinchas das portadas, tábuas compridas e gonzos empenados dos anos. Pela janela das traseiras sempre aberta para o lado do avesso das coisas da casa e da rua, por debaixo da porta e por trás da qual se desce e sobe em outras vidas que não tenho que saber e não me falam. E aí ando um pouco pelas cadeiras e cadeirões das divisões imprecisas. Nocturnas de vez, mas silenciosas nunca. Sinto a frescura de paredes e o gelo da pedra e de um copo esquecido talvez no tampo de uma mesa. Bebo um resto de um vinho escuro e apalpo as roupas que não lembro de ter despido espalhadas por ali. Algo de formas invisíveis se me enrodilha nos pés -o gato ou a roupa – que devem ser meus sem os ver e o soalho é macio e não demasiado fresco. Devem estar descalços. Todos. Mesmo a roupa indistinta.

Ele é silencioso. Roupas misturadas, minhas, da véspera, de há três dias, dele. Estendo-me na cama feita já noite. Nunca me deito sem a fazer. E há um corpo morno e adormecido. Minto. As costas frescas. Senti ao de leve com a mão. As omoplatas assimétricas da posição. Toco de novo. Não, não cresceram asas. O corpo dorme. Não é meu. O meu não dorme. Vigiante. Cansado. Inquieto. O outro volta-se no seu silêncio completo e a temperatura atinge-me como uma carícia. Boa. O hálito sereno e lento. Não lembro nomes nem factos ali no alo daquela proximidade viva e adormecida sem ausência. Assim. Só a enorme objectividade mesurável em graus centígrados e confortavelmente destituída de sentido. Um sono imperturbável e não perturbador. Não gosto de o acordar. Nem ninguém. Mas também porque me apetece andar por ali e pela casa solitária assim no escuro. Ele, ali. Noutros dias, não. As luzes acesas contra o desconhecido monstro da casa. Apagam-se para tudo dormir. Está quente. São dois calores, agora. Três. Se contar com o da porta fechada da noite. Viro a almofado do outro lado. O que está sempre fresco por um tempo. Não o toco. Não o quero acordar. Quero sentir toda a casa secreta e confortável. Tudo ao negro sem temor. Sem sombras. Sem relógio.

E de repente, lembro-me, e avanço no outro corredor até ao fundo, com a mão na parede para não tropeçar e com uma alegria infantil dou um piparote no pêndulo do relógio do corredor, que acorda como se nada fosse. Como a iniciar o tempo do escuro. Sempre parado e preguiçoso, mas que deixo em paz para não acordar os vizinhos. E o tempo retoma em cinza fechado, fino e muito, muito escuro. E todos os sons ficam abafados lá muito atrás de qualquer realidade, por esse som ritmado que preenche a casa de uma ponta à outra. Como se fosse ela própria o interior dele. Do relógio. Dele, há um coração a reger serenamente um corpo em descanso. E em mim há algo indefinido a instalar-se sem pressa e sem palavras. Abro um livro sem nome e leio com os dedos as páginas lisas. Palavras baralhadas de vez. Tenho uma suave vontade de rir sem ter bem razão para tal. Porque tropecei, talvez no pé de um banco. Talvez o outro lado, o do ridículo daquilo tudo ao negro e assim. Lembro-me do perfume que não tenho usado e vou senti-lo. Sabe bem, também. Assim na frescura da memória meio esquecida. Como acontece com luz acesa. Tudo igual mas mais suave e mais escuro. Na verdade, tudo finalmente invisível mas palpável. Com uma densidade nova. Como uma cegueira. Uma frescura e uma novidade. E toda a subjectividade da não significação de tudo. Ali, aqui, ao negro de todas as cores. Esquecidas por detrás da luz ausente. Da pele glabra camuflada de noite mais escura, tornada escura e secreta mais do que é sentido normal. Existência discretamente apagada das cores. Apagada das horas, apagada do olhar. 36 graus acima do nada  Ou além da solidão. Ou aquém dela. Ai sentada à beira e prestes a cair no sono, também. Sem olhos, sem respiração, sem ruído, sem nada. Acordo sobressaltada pelas badaladas imprevistas e histéricas de alegria, do relógio do corredor, a que nunca me lembro de dar corda. E que mesmo com corda, muitas vezes adormece esquecido de si. Também. E dou mais uma volta hesitante pela casa, a estender a perfeição do momento nocturno embalado pelas badaladas raras e pelo tique taque do relógio, a que nunca me lembro de dar corda e cujas badaladas não quero que acordem os vizinhos e que por isso deve estar quase a parar de novo. E depois a noite esgota-se e tudo volta a sofrer da luz.

Ela dizia daquelas crianças sossegadas, que brincam sozinhas, que não inspiram cuidado nem preocupação: “não dá pena nem paixão”. Não era uma coisa má na voz dela. Mas há uma literalidade estranha e indivisível aí. E ele tem esse sono sossegado, ali.

25 Nov 2016