Ana Cristina Alves Via do MeioConto Fantástico ao jeito de Pu Songling Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 21 de outubro de 2024 Pu Songling (蒲松齡) viveu no início da dinastia Qing 清(qīng), entre 1640 e 1715, legando à posteridade uma das obras mais notáveis da literatura chinesa, traduzida para inglês como Strange Tales from a Chinese Studio e para português como Pu Songling Contos de Fantasia Chineses. O Título original é Liaozhai Zhiyi (聊齋誌異Liáozhāi zhìyì), sendo Liaozhai “o estúdio das conversas” onde o mestre-escola compunha as seus contos fantásticos; ele, que nunca conseguiu passar nos exames imperiais a nível provincial, apenas tendo adquirido o grau distrital de xiucai (秀才xiùcái), que significa numa tradução literal “talento cultivado”, viveu longo tempo no campo, onde pôde recolher os contos fantásticos, em circulação desde as dinastias Tang (唐Táng) e Song (宋 Sòng), aos quais juntou muitos da sua lavra, tendo legado 491 contos, de acordo com a informação da Library of Congress, reunidos em 16 volumes, que inicialmente não passariam de 6. O professor do campo levou uma existência obscura e pobre, mas feliz, no que à expansão da sua criatividade diz respeito. Malquistou-se, no entanto, com o sistema de exames imperiais, que falhou ao nível provincial, o que lhe daria acesso a uma vida confortável isenta de preocupações materiais. Tal talvez o tenha despertado para a revelação da injustiça do sistema, que deixava grandes talentos de lado, sobretudo quando estes vinham de famílias menos favorecidas, sem terem o que era conhecido por “privilégio sombra”, assim como sucedia ao escritor, oriundo de uma família da classe média empobrecida. O seu talento acabou, de algum modo, por ser reconhecido ainda em vida, quando aos 71 anos lhe foi concedido um título, mais pela obra literária, do que pelos feitos eruditos, “tributo ao estudante” (贡生 gòngshēng). Meio século depois da sua morte, o seu trabalho tornou-se muito popular sendo, publicado na segunda metade do século XVIII (1766) em chinês, em Hangzhou, e nos séculos XIX a XXI traduzido para inglês por Herbert A.Giles (1880); John Minford (2006); Sidney Sondergard (2008-2014), mas também para alemão, russo e português. Nesta última língua, surge numa edição ligada à Universidade de Macau, publicada na Editora Moinhos em 2022, tendo sido traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian; contou também com tradução e revisão da docente Ana Cardoso. Yao Jingming/ Yao Feng, na introdução à tradução intitulada Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses, resume: “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). As “raposas-humanas” encarnam um ideal de mulher pouco comum à época, já que cortam com as submissões e obediências tradicionais às hierarquias e convenções sociais para assumirem papéis capazes de revolucionar em nome de sentimentos universalmente acarinhados, como o amor, a amizade ou outras tonalidades afetivas condensadas no conceito de “sentimento” (情 qíng), que se desdobram em paixão sexual, amor abnegado até à busca de bens por todos desejados, como a felicidade. O escritor mostra grande preferência por histórias de amor entre mulheres fantasmas e/ou raposas encantadas e intelectuais pobres, talvez por estas de algum modo refletirem a sua condição existencial. Explora ainda todas as variantes do mundo sobrenatural, de seres fantasmagóricos a verdadeiros demónios. Além disso denuncia, em vários contos, a corrupção e os oficiais ímprobos daqueles tempos, muito concentrados na satisfação de interesses egoístas, alheios às dificuldades do comum dos mortais. Um conto biográfico ao estilo de Pu Songling Pu Songling estava muito empobrecido, o que já vinha sendo um hábito na sua família. O seu pai nunca conseguira prosperar nos negócios, sofrendo concorrência acirrada dos colegas de profissão. Na verdade, os seus negócios mal davam para sustentar a família, por isso o filho ficou louco de alegria quando chegou a casa com a notícia de que havia sido bem-sucedido no exame imperial. Era um xiucai2. Se a vida lhe continuasse a sorrir e se preparasse com afinco para os próximos exames, poderia vir a obter o grau máximo nas provas, seria então um jinshi3. A partir daí, as portas da riqueza, abrir-se-iam para ele e sua família. Talvez fosse convidado pelo imperador para a Academia Hanlin, onde estavam reunidos os melhores intelectuais de toda a China. Teria assistentes, uma ou várias mansões luxuosas, carruagens com fartura, um séquito de serviçais e, por último, mas não na ordem das emoções, uma mulher belíssima à qual seria fiel até à morte, porque casaria apenas uma vez. Se ela não conseguisse dar-lhe descendência, então tomaria uma concubina só para efeitos de procriação. Para quê dispersar o seu amor? A sua consorte havia de ser tão bonita e mágica como uma raposa encantada. Quanto maior é o sonho, mais dura é a queda. Três anos volvidos, Pu Songling falhava o exame para jinshi. Sentiu-se miserável. Com o coração envenenado, como o de uma mosca, dirigiu-se para Taishan, onde viveria como eremita. Não tinha nem coragem, nem vontade de enfrentar a família. No caminho, passou por Qufu, prestando homenagem a Confúcio. Sentia-se terrivelmente injustiçado. Tinha consciência de que o chumbo não fora merecido. Os examinadores eram incompetentes, um deles era ignorante, como poderia ele entender a sua excelsa prosa? O outro incompetente e facilmente subornável, já que a única linguagem que entendia era a do dinheiro. E com ele haviam-se candidatado tantos nobres e rapazes de famílias ricas… Ora ele, em termos de nome, infelizmente nada tinha para mostrar. A sua ascendência não era ilustre nem poderosa e quanto a riqueza, o seu progenitor suava-a a cada dia para colocar o arroz em cima mesa. Enfim, o seu coração transbordava de tristeza e ódio à medida que se dirigia para a terra do Grande Mestre. Mas se o coração estava envenenado, o espírito continuava vivo e curioso. Assim, como que a temperar-lhe a jornada, foi escutando os relatos de histórias fantásticas, muito antigas, que remontavam à grande dinastia Tang e até a posteriores, que o povo, com a sua memória prodigiosa ia retendo e lhe fazia o favor de contar. Quando chegou a Qufu, já ia mais animado, pois pensava em registar os relatos de fantasia, naquele que havia de ser o seu “estúdio das conversas”, bem no meio da montanha, onde certamente teria o privilégio de receber a visita de fantasmas e raposas encantadas. No templo, prestou homenagem a Confúcio, mas ia tão cansado, que se sentou, cerrando as pálpebras. De repente, tinha o Grande Mestre a seu lado, dirigindo-lhe a palavra: – Não estejas tão desesperado. Poderás não ser rico nem famoso nesta vida, mas serás recordado pela humanidade para todo o sempre. Deixarás uma obra notável, que servirá de inspiração e alegria a muitas gerações. – Grande Mestre, o que me diz não me deixa nem um pouco regozijado, pois prevejo uma vida dura e cheia de trabalhos para mim. Foi tão injusta a minha reprovação nos exames! Vi os outros candidatos. Muitos deles, nem sequer tinham lidos os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, estavam lá porque compraram os examinadores. – Pu Songling, sabes bem como me bati por uma verdadeira nobreza intelectual. Em vida, também não fui reconhecido, mas nunca deixei que os obstáculos criados me afastassem do verdadeiro Tao. A minha conduta foi sempre irrepreensível, orientada pelas Cinco Virtudes Constantes, por isso ainda hoje me respeitam no Império do Meio. – Mestre, tem razão, não me posso deixar abater pelas circunstâncias adversas. Farei por honrar o meu destino, agora que mo revelou, enquanto estiver em Taishan, escreverei com afinco todas as histórias que fui aprendendo no caminho. – Como disse nos Analectos há muito tempo, um cavalheiro deve possuir conhecimento vasto, não é um utensílio4. Serás um sábio na aceção mais alargada, reunirás mundos, o material e o espiritual, o visível e o invisível: terreno, paradisíaco e subumundo. Trarás alegria e beleza à vida das pessoas; contenta-te, pois, com a tua sorte, segue o teu caminho e não olhes para trás. Ainda nesta existência serás recompensado com um título honorífico em reconhecimento aos teus dotes literários. Pouco depois, deixou de escutar Confúcio. O templo silencioso, indicava que estava sozinho, talvez a conversa entre ambos não tivesse passado de um sonho. Porém, parecia-lhe tudo tão real. Seguia esperançado, cheio de vontade de registar as suas histórias, já que era por elas que iria ser recordado. Não teria benesses em vida, mas muitas honras depois de morto, o que era bem melhor do que nada. Escolheu bem o seu refúgio, ocupando uma cabana deixada por um eremita que o antecedera, quem sabe não teria também ele sido uma das vítimas dos exames imperais. Dedicou-se ao trabalho com afinco e foi esquecendo as misérias por que passava, ou até purgando-se delas quando as registava em contos. Ridicularizava, sempre que podia, os examinadores imperiais, denunciava desmandos e maus tratos, descrevia as penas e humilhações por que passavam os examinandos, coitados! Nos exames, à chegada pareciam mendigos, depois seguiam-se as apresentações em que recebiam tratos de prisioneiros, dentro dos horríveis cubículos eram vespas encurraladas e dormentes. Saíam daquelas gaiolas como aves doentes. Enquanto aguardavam pelos resultados comportavam-se como orangotangos. Depois, se eram rejeitados, os seus corações enchiam-se de veneno. Eram moscas envenenadas e sofredoras a digerir os péssimos resultados, até renascerem como pombos esperançosos em busca da construção de um novo ninho. Ele encontrava-se a libertar o veneno, à procura de um renascimento, não como pombo, já que não tencionava voltar a tentar a sua sorte nos exames imperiais, mas como melodioso rouxinol. O seu esforço era visível e a obra crescia de dia para dia. Os contos eram tantos que seriam necessários vários volumes para os registar. Numa noite de tempestade, em que o vento soprava forte e o frio se fazia sentir, muito agreste, penetrando gelado até aos ossos, sentiu uma presença aromática no quarto. Cheirava tão bem, levantou os olhos e viu uma mulher estonteantemente bonita à sua frente. Parecia uma imortal, ou pensando melhor, uma deusa. Ela assim falou: – Perdi-me na noite escura, não sou capaz de encontrar o caminho de volta para a minha aldeia. Importava-se que ficasse aqui consigo? Tenho tanto medo, está tanto frio… – Receio que esta choupana não seja digna da presença de uma menina tão bela e fina, no entanto tenho muito gosto em recebê-la. Permita que lhe sirva um chá – disse ele, enquanto se afastava para o fundo da cabana. Quando regressou, deu com ela debruçada sobre os seus papéis. – Que linda história está a escrever, é sobre um letrado solitário e uma raposa encantada. Pelo modo como descreve a rapariga parece uma deusa. – Isso foi antes de a ver a si – disse ele estendendo-lhe a chávena de chá- agora vou refazer o texto, porque a sua imensa beleza me inspirou. Com toda a sinceridade, é a primeira vez que encontro uma mulher com a sua finura, graciosidade e leveza. – Ora, ora, fala assim, porque se encontra aqui fechado há muito tempo. Precisa de se distrair um pouco. Não quererá ajudar-me a despir as luvas e o casaco. A minha indumentária, é muito complicada e infelizmente perdi-me das empregadas, umas joias de raparigas, mas devem ter-se assustado com a tempestade, talvez estejam para aí escondidas, o certo é que já as procurei e não há meio de dar com elas. – Pu Songling não se fez rogado. Ajudou a bela donzela a despir o casaco e tudo o resto. A seguir foram para a cama e fizeram amor. A cabana tinha-se transformado num belo palácio. A cama onde estavam deitados, possuía agora finos lençóis de linho bordados e no ar pairava um agradável aroma a flores, talvez a rosas ou seriam peónias? Foi uma noite muito divertida e bem passada. Ela contou-lhe cenas fantásticas do sítio de onde vinha. Depois adormeceram. No dia seguinte, quando o letrado abriu os olhos, a donzela já tinha desaparecido. Deixara, no entanto, um pequeno lenço vermelho bordado aos pés da cama. A casa voltou a ser uma cabana, mas parece que a misteriosa beldade o visitou noutras noites ao longo de todo o inverno e sempre que aparecia espalhava graça e magia em seu redor. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias. “論語》1994. Analects of Confucius. Tradução. para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yu He(夏玉和) e para Chinês Moderno de Cai Xiqin (蔡希勤) 北京,華語教學出版社. Wang, Jeffrey. (2018),” The Strange Tales from Liaozhai” Library of Congress Blogs https://blogs.loc.gov/international-collections/2018/10/the-strange-tales-from-liaozhai/, 2018, 29 de outubro. Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos. Este conto é inspirado numa das muitas histórias de fantasia que o escritor nos legou, intitulada “O Erudito Wang Zian” e, particularmente no Comentário do Autor, no qual expõe, numa reflexão certeira, as sete facetas do calvário do xiucai. Grau conferido pelo exame imperial de nível distrital. Último grau atribuído pelo exame provincial. Analectos de Confúcio, Fazer Política, II.12 論語•為政第二《子曰:君子不器》
Ana Cristina Alves Via do MeioContos, Histórias e Ecologia Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM Desde há muito nos habituámos a que a humanidade ocupa lugar de destaque na tradição cristã. Deus criou o homem (e a mulher) para que pudesse reinar sobre toda a natureza e ao sétimo dia descansou. Ao nível dos contos de fadas e populares mantém-se a mesma tradição. A estética coloca a figura humana como padrão modelar, assim através de contos como “A Cara de Boi”, “A Noiva do Corvo” ou o “Príncipe Bezerro” se transmite que os protagonistas com cara de boi ou de bezerro ou, ainda, corpo de corvo receberam castigos, foram amaldiçoados até se libertarem de um encantamento que os arrastou para uma posição degradante, negativa, mesmo má, da qual serão libertos por outras personagem cujas virtudes são inabaláveis, como a fidelidade, a bondade, etc., verdadeiros antídotos para a maldição que paira sobre as suas vidas. Vejamos alguns exemplos. Em “A Cara de Boi” a linda menina de longa trança abandona a sua mãe, que a fechara numa casa alta e murada, sem qualquer porta, praticamente inexpugnável,- não fora a trança desta Rapunzel portuguesa, servir de acesso à mãe, mas ainda assim, quando foge com o príncipe é castigada pela velha maga, que lhe chama filha cruel e a acusa de a abandonar, enfeitiçando-a com cara de boi. Ela, depois de muito sofrer, casa com o príncipe e recupera a sua linda aparência humana, preparando-se para ser a futura rainha. Seria impensável o conto terminar com uma rainha com cara de boi. A situação é semelhante com “A Noiva do Corvo”, aqui a menina é levada a casar com um corvo, o que lhe provoca grande tristeza. Pensou que o marido estaria encantado e, por isso, lhe chamuscou as penas, dobrando-lhe o encantamento, que apenas seria quebrado se ela rompesse sapatos de ferro, ou seja, se fosse de uma fidelidade absoluta à sua causa, que era encontrar o corvo entretanto de asa em fuga. Correu muito até romper os sapatos, finalmente conseguiu chegar a uma fonte perto da casa onde estavam muitas gaiolas com aves encantadas, ao libertar os pássaros, eles transformaram-se em príncipes. Ora entre eles encontrava-se o rei, já humano, que era o seu marido com o qual havia de viver feliz para sempre. Em “O príncipe Bezerro” somos transportados até tempos muito remotos, onde vivem num reino poderoso um rei e uma rainha sem descendência. A situação faz com que a rainha em desespero profira o desejo de ter um filho “ainda que fosse bezerro” (Gomes, 2000: 53). Tal era a sua aflição por não cumprir as funções de mulher, de acordo com a mundividência tradicional, que já se sujeitava a ter um animal por descendência. A sua voz foi escuta e o desejo prontamente realizado. O príncipe crescia, e com ele a bondade e inteligência, mas não a formosura, já era considerado horrível por ter aparência de bezerro. Surge então em cena uma menina muito linda e boa, que não se importa de casar com o animal. Como recompensa descobriu que ele estava encantado e, na verdade, era um belo rapaz quando à noite despia a pele de bezerro. Ela seguiu então os conselhos precipitados da mãe, sendo levada a queimar na noite seguinte a pele do animal, o que viria a multiplicar o encantamento dele por muito tempo. O príncipe foi forçado a desaparecer não sem antes a advertir que ela teria de romper sete sapatos de ferro se o quisesse voltar a ver. A futura rainha, mergulhada em mágoa, correu mundo em busca do marido, até que a sua persistência e sincero arrependimento foram recompensados, colocando fim a um mau encantamento. O príncipe recuperou a figura humana, a melhor, a mais bela e digna, devido à bondade e amizade da sua igualmente humana mulher. Situação idêntica pode ser observada em “O Príncipe Sapo”, cujos pais não tinham filhos, a mãe proferiu a heresia de ter descendência nem que fosse um sapo, pelo que foi imediatamente castigada com o nascimento de um batráquio. Este foi criado por uma menina muito boa, que viria a ser sua mulher. Também ele à noite largava a sua aparência animal, transformando-me num belo homem, pelo que os pais e a rapariga acabaram por queimar as vestes, encurtando, segundo acreditavam o tempo de feitiço, mas aumentaram-no, pelo que também a mulher teve correr mundo até chegar ao Rio Jordão, onde, após muita persistência, com um beijo, conseguiu pôr termo a um fado negativo. Franz Kafka (1883-1924) em A Metamorfose explora o inconsciente coletivo ocidental chegando por absurdo à pior das transformações, a que sucede quando as vidas se tornam tão absolutamente desinteressantes e sem qualquer sentido lógico que conduzem à transformação das pessoas em animais repugnantes, de acordo com a narrativa, tal como sucedeu ao caixeiro-viajante, protagonista da história: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em rijos segmentos arqueados (…) As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.” (Kafka, 1975: 7) No oriente chinês, desde os tempos mais recuados que existe uma íntima relação entre os seres humanos e os animais, digamos que assim sucedeu em muitas civilizações, incluindo o ocidental, só que a nossa cedo trocou as influências naturalistas pelas personalistas, logo acarinhando o ideal estético humano como o mais excelso, sendo todas as transformações em figuras animais, a menos que fossem animais imaginários, perspetivas como muito negativas. A tradição chinesa manteve a forte ligação à natureza, não esquecendo a sua ancestralidade totémica, na qual descendia de um dragão, ou melhor, de um imperador mítico meio humano, meio dragão. Se pensarmos no caso português, descendemos de heróis mitológicos, Ulisses, ou heróis mais próximos, o humano Viriato. Também em muitos contos, incluindo populares e fantásticos, as mutações de humanos em animais são muito bem acolhidas, assim como os próprios animais quando penetram na esfera espiritual, revelam dons prodigiosos, inteligência, bondade e outras virtudes que raramente são concedidas a animais no mundo ocidental, se excluirmos o universo das fábulas de Esopo ou La Fontaine. Recorde-se uma das mais belas histórias de amor do povo chinês, 梁山伯与祝英台 (Liáng Shānbó yǔ Zhù Yīngtái), conhecida no ocidente como “Os Amantes Borboleta”. Esta belo conto, a que muito chamam o Romeu e a Julieta da China, é na verdade um tratado de filosofia em versão condensada, portanto, ainda que se baseie numa relação amorosa, revela muito mais da mentalidade chinesa do que Romeu e Julieta o faz em relação ao ocidente europeu. Estes amantes contrariados mostram-nos uma protagonista extremamente decidida, Zhu Yingtai, pronta a disfarçar-se de homem por amor aos estudos, por volta do século V d.C, durante a dinastia Jin do Leste (东晋,317-420). Ela conheceria Liang Shanbo na escola, seriam companheiros de carteira, já que este último acreditava ter adquirido um grande amigo, que nunca revelou a sua verdadeira identidade, mas que se apaixonaria pelo colega. Um dia, a menina foi forçada a cumprir a palavra dada ao pai e teve de voltar à sua terra Natal para casar com um homem do seu nível social, como devia ser na China tradicional: os pais arranjavam os casamentos aos filhos procurando alianças ao mesmo nível social, ou até um pouco acima do seu estrato, de modo a receberem privilégios e a alargarem o seu património e zona de influências, como sucedeu com Zhu Yingtai que teria de casar com o filho do governador da terra, depois da interessante experiência escolar. Além disso, Liang Shanbo, de origem humilde, não era de modo algum elegível para consorte de uma filha única de uma família abastada de Zhejiang. Ele viria a morrer de desgosto quando percebeu que não podia casar com a menina e ela, a caminho do seu futuro casamento, pediu para parar na campa daquele que poderia ter sido o seu noivo se os tempos fossem outros. É então que um fenómeno extraordinário sucedeu à beira do túmulo do amado, o céu escureceu, desencadeando uma imensa tempestade, por entre a qual se abriria o túmulo do rapaz. Ela aproveitando a ocasião, precipitou-se para dentro da terra. Logo, cessaram raios e trovões, o sol reapareceu e, antes da campa se fechar, escapavam duas borboletas, que rodopiaram livremente por entre as flores, uma branca, a força masculina yang, outra preta, Zhu Yingtai, a força feminina yin. Duas figuras libertaram-se da forma humana, numa transformação positiva em forças naturais, as borboletas, insetos que simbolizam a beleza, e muito mais, já que também indicam a transformação no sentido correto de bichos da seda em seres que voam e representam a evolução espiritual e a liberdade, além, de a partir desta história, passarem também a simbolizar o amor. “Quem eram elas? Sim, eram Liang Shanbo e Zhu Yingtai, metamorfoseados pelo amor” (Wang, Alves, 2009: 131). É o sentido das transformações positivas que muitos animais sofrem, especialmente as raposas, enquanto espíritos encantados, que Pu Songling (蒲松齡, 1640-1715), um escritor e intelectual dos finais da dinastia Ming primórdios da Qing comunica, nos seus Contos de Fantasia Chineses (聊齊誌異), como revela Yao Feng na Introdução à obra. Esta, publicada na Editora Moinhos em 2022, foi traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian e, ainda, teve a tradução e revisão da docente Ana Cardoso. Como explica Yao Feng na introdução ao livro “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). Estas, esclarece o estudioso, metamorfoseiam-se em “raposas-humanas”, encarnando mulheres inteligentes, avançadas, corajosas, capazes de cortar com a tradição em nome de valores universais como o amor e a felicidade. As “raposas-humanas” são animais que morreram e se transmutaram em espíritos encantados, mantendo as suas características essenciais do mundo animal. Vêm à terra para retribuir dívidas, favores, e auxiliar os humanos, normalmente muito conservadores e limitados. Em Xiao Cui – Uma raposa encantada retribui um favor ela casa com o filho de um mestre de cerimónias de um templo local, Wang Tai Chang. Ela era “incrivelmente bela” (Yao, 2022: 244) e aceita casar com o filho do mestre de cerimónias, Yuan Feng, que tinha fortes limitações intelectuais, dizia-se até que era retardado. A verdade é que esta filha do Imperador de Jade (Yao, 2022: 250), ou seja, do Imperador Celestial, equivalente a Júpiter na cultura chinesa, devolve a inteligência ao rapaz e promove toda a família, que lhe paga com a ingratidão habitual dos humanos, mas se ela aparece milagrosamente no seio daquela gente é para retribuir um favor, como explica quando é insultada por quebrar inadvertidamente um vaso: “Por que é que não podem mostrar alguma clemência? Para ser honesta, admito que não sou humana. A razão pela qual apareci para a sua família é que o seu pai protegeu a minha mãe quando ela fugia de uma tempestade, e eu quis pagar esta dívida de gratidão por ela.” (Yao, 2022: 252). A nobreza deste espírito de raposa é de tão elevado nível ético, que merece o seguinte comentário a Pu Songling no final do conto: “Até uma raposa encantada sabe pagar uma dívida de gratidão, apesar de ter sido protegida inadvertidamente. No entanto, Wang Tai Chang, que tanto recebeu de Xiao Cui, repreendeu-a duramente só por ter partido um vaso. Que desprezível era ele.” (Yao, 2022: 255) Os contos e histórias aqui apresentados mostram bem que o espírito ecológico chinês vem de muito longe, ou melhor, nunca se perdeu. Os chineses mantiveram, através da sua literatura, um profundo respeito por toda a natureza, que se revela na atenção à diversidade natural. O universo é um cosmos interligado e inteligente, onde cada um ocupa o seu lugar e não deve sobrepor-se aos outros. Todos os seres comunicam entre si e podem transformar-se uns nos outros, porque estão imersos num universo animado, sempre vivo, eterno, ligados à mesma raiz. Quando os seres se metamorfoseiam tudo pode suceder, não o fazem necessariamente para pior. Umas vezes assumem formas positivas, outras negativas, consoante o grau da sua evolução espiritual. As transformações das pessoas em borboletas podem ser boas se os espíritos em jogo também o forem, assim como acontece com os das raposas ao assumirem a forma humana. Estamos imersos num todo manifestando infinitas potencialidades, que muito nos pode auxiliar se o soubermos escutar e respeitar, como nos ensinam as histórias tradicionais chinesas. Bibliografia Braga, Teófilo. 2000. Contos tradicionais do Povo Português. Frankfurt am Main: Texto Editora; TFM, Frankfurt am Main. Coelho, Adolfo. 1995. O Príncipe Sapo. Contos Populares Portugueses. Prefácio de Ernesto Veiga de Oliveira. Lisboa Publicações Dom Quixote. Gomes, José António (Org.)- 2000. O Príncipe Bezerro. Fiz das Pernas Coração. Contos Tradicionais Portugueses. Ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa Caminho. Kafka. 1975 A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América. Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Liang Sanbo e Zhu Yingtai. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho. Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDos jornais [dropcap]T[/dropcap]omé não planeou enfiar-se no chapa e raspar-se com a viatura quando a viu estacionar à frente da barraca Trinitá e topou o motorista a esgueirar-se – torcido pelo gotejar de uma mija – para as traseiras. O apagão que logo a seguir, com artes de cleptómano, fez desaparecer a cidade é que lhe ondulou na cabeça e aí limitou-se a obedecer ao impulso. Entrou na cabina, rodou a chave na ignição. A carrinha deslizou suavemente por entre os volumes enegrecidos (experimentou os óculos Ray-Ban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo. Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no breu, mansas criaturas amodorradas, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba – gado bom de ordenhar. Era estranha a música que o leitor de dvds emitia, uma toada electrónica que parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça um refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Vacilava, se achava mais bizarro o gosto musical daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam na mente, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Deixou a música fluir, a ver onde aquilo ia. Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people, botões que se acotovelavam na gana de aninharem em casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Quase gala-gala, mas não conhecia. Voltou a pisar o play. Algas com ferrugem num mar electrónico – como vira uma vez na Costa do Sol. Já apinhado o carro, deu conta que aquele chapa andava sem cobrador – melhor, cobrou ele logo à cabeça. Era vinte e duas horas em ponto e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade. Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando sacou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais ruído que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez – ajudaram. O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros, no calado de um navio de muitos quilates, miravam as vítimas de cabeça pendida. Atingira um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço gorgolejante. Uma mulher gritou, pela última vez na sua vida. Remédio santo para os demais. Disse-lhes: – Bradas, passem tudo o que têm nos bolsos. Depositaram tudo no lugar do morto. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até camisinhas. Encheu os bolsos. Depois fechou as luzes do chapa e articulou, pausadamente: – Zuca lá para fora mas easy, relax, vamos pôr os mortos onde devem estar… Aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava metálica, não se apercebia. Desceram do chapa retardando o passo, mais enfiados que o esterco no rabo do cabrito. Veio-lhe ao nariz a certeza de que um gordo se borrara. Depois do gordo desceu um madala com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando-lhes o estupor, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os, eram treze. Abateu o gordo: – Crazy, não gosto do treze e o camone fedia… Uma mulher soluçou. Baixinho. Grossas bátegas de calafrio entrechocavam-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecido. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado e observou: – Black é assim mesmo, vive da bacela do medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro… Os homens superam-se. Os cadáveres rebolavam sobre si mesmo, impulsionados à justa. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, somou uma reviravolta ao trajecto e pairou no ar antes do ombro esquerdo ir embater no topo do muro fazendo-o girar para o outro lado. Suspiros. Não ficaria mal aqui a ratonice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, Há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu! Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou: – Somos melhores que os mambas… os moçambicanos só precisam de uma motivação… – e atirou para o ar – Alguém guia? Um rapaz novo, receoso, levantou a mão. Tomé – deu-lhe um súbito cansaço – deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, atencioso: – Leva-os daqui… – após o que sorriu, antegozando a ideia – Para os jornais digam que foi um comando da Renamo, e largou uma gargalhada. Num ápice, desapareceram. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando. Tudo correra pelo melhor. O apagão, a hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói… até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom. Encaminhou-se para casa, ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. Os óculos Ray-Ban ficavam-lhe a matar. Glossário: madala, cinquentão; bacela, brinde; mambas, equipa moçambicana de futebol
Miguel de Senna Fernandes h | Artes, Letras e IdeiasBetsy, no último dia da sua vida [dropcap]M[/dropcap]eticulosamente, o seu pincel deslizava sobre a borda da sua pálpebra esquerda. Aquele tom preto reluzente dava-lhe finalmente a satisfação que já não conhecia havia algum tempo, depois de tanto vasculhar por todas as casas de cosméticos do burgo. Agora sim, os seus olhos destacavam-se claramente. Como ele gostava deles. Mirou-se ao espelho. A sua nudez denunciava a leveza do seu corpo delgado, de pele alva amarfinada, de seios pequenos, braços esguios, dedos de fada, sobre pés de menina. Dava graças ao Divino que a aspereza da sua vida fora benevolente ao seu corpo elegante, que não carecia de veste alguma para se enaltecer. Nessa última noite da sua vida, Betsy preparava-se religiosamente para o evento mais importante da sua existência. Dera tantas voltas e finalmente chegara o momento que tanto sonhara. Iria ser a noite. A maquilhagem, o cheong-sam (1), as unhas de rubro escuro, de comprimento conservador, o penteado clássico a Audrey Hepburn, os saltos, tudo previsto até ao pormenor. À medida que a escovinha de rimmel levantava as pestanas, o coração batia a um ritmo que não conhecia, como se vivesse dentro de um corpo alheio. Uma ponta de saliva crescia no canto dos seus lábios por pintar. Lábios de malabarismos que tanto prazer lhe dera. Sorriu, quando se lembrara da noite duas semanas volvidas, em que Terrence lhe dissera que era altura de a apresentar à sua mãe. Nessa noite, ele saiu da sua casa às duas da manhã, mas ela não dormiu. A adrenalina atingia níveis pouco usuais, o seu coração pulsava a ritmo mais forte. Uma nova prova se avizinhava. Recordara que no passado, por duas vezes tivera a experiência da noite decisiva. Dois homens que supostamente iriam pôr fim à sua vida sub-canina e sem sentido, não lograram cumprir o desiderato. Ricky empresário de sucesso de Hong Kong, viúvo de sessenta e dois anos e sem filhos, depois de lhe ter oferecido um anel de diamante, morre de ataque cardíaco no momento em que lhe iria pedir a mão. Seguiu-se Jason que se arrogava de dono de uma sala VIP de um casino, que lhe levara a viajar pela Europa fora, a alojara em hotéis estrelados e a deliciou em restaurantes michelânicos. O casório teria acontecido se ele não tivesse que se pôr em debandada. Soube-se depois que afinal era mero “bate-fichas” e surripiara dinheiro do seu patrão, um sujeito que fazia tão bem as contas, quanto resolvia os problemas de desvios a tiro e facada. E antes de se ir embora “por tempo que ele próprio não sabia quanto”, pediu-lhe o anel de diamante, para comprar o seu bilhete de avião. Por duas vezes tivera de regressar à realidade depois de sonhar alto, por uma vida condigna, de civilidade, sem problemas de renda, cheiros hediondos de dejectos no corredor do seu prédio, gente sub-humana, camafeus, agiotas e pregos. Por duas vezes chorara pela sua sina de calvário e se revoltara contra a injustiça do Divino que recaíra sobre ela, pobre rapariga de quase trinta anos que apenas suspirava por um lugar ao sol. Betsy nascera Pek Si. Os pais, oriundos de uma aldeia nos limítrofes de Foshan, Província de Cantão, entraram em Macau clandestinamente, onde se estabeleceram no “bairro de lata” então ainda existente na zona norte da cidade. Ele conseguiu um emprego na construção civil, transportando tijolos e ela como lava-loiças de vários estabelecimentos de comidas da zona. Já nessa altura os ilegais estavam sob controlo apertado das autoridades policiais. Era usual verem os seus vizinhos serem caçados e recambiados para lá das Portas do Cerco. Mas, sem drama algum, pois ao cabo de um mês acabariam por se re-introduzirem em Macau de uma ou doutra forma. Ele não teve tanta sorte, porém, quando o mal se abatera sobre si num dia em que ele trepava pela estrutura de bambu, transportando os usuais quilos de tijolo acima. O assalto de pânico não distinguia vítimas e ele descontrolou-se, caindo do segundo piso. Não morreu, mas de maca saía escoltado de Macau, para nunca mais poder regressar. Pek Si, não frequentou a escola como as crianças normais de Macau, não envergou uniformes limpos passados a ferro, nem teve mãe para lhe fazer festinhas. Conheceu quatro paredes num cubículo de lata, onde se penduravam também utensílios vários, desde tesouras, panos de limpeza e canecas de lata para água e escovas de dentes. O papel de jornal era a coisa melhor que se podia ter, pois servia de tapa-buracos, toalha de mesa, limpa-vidros e reforço de cobertor em tempos de frio húmido e implacável do Inverno. O odor a almíscar, mesclado com o de gengibre e peixe da noite anterior, o ar quente que não circulava, era assim na cela que se chamava casa. De nada lhe valeu a “Operação Dragão” (2) em 1990, destinada a reconhecer os imigrantes ilegais que o Governo de Macau na altura levara a cabo. Apesar de ter conseguido obter um documento de identificação, de ser já gente, as condições de vida não alteraram. A mãe continuou a lavar loiça e ela crescendo em paredes meias com a qualidade de vida, com a qual nunca comungara e sempre a fugir-lhe a meros centímetros de distância. Dinheiro passou a ser uma razão de ser, porventura a mais importante. Não compra a felicidade, estava enjoada de ouvir, mas era fundamental para a atingir. Preferiria estar doente sendo rica, a sadia sendo pindérica. É deprimente ser pobre, chorava para os botões. Teria que dar um salto para um mundo fora do de Pek Si. De se chamar outra coisa. Betsy foi o que ouvira numa noite de devaneio, quando um bife a chamara no meio de copos, piropos e apalpadelas. Nunca mais respondera a quem pronunciasse o seu nome de origem. Deixou crescer o seu cabelo para além dos ombros, passou a usar roupa mais ajustada e saltos altos. Os seios eram pequenos, mas sabia como compensá-los com a flexibilidade das suas ancas. Aos dezasseis anos virou boneca da noite. Viu muito homem, na maioria estafermos e cretinos. Só com Ricky Lam e Jason Chiu, pôde experimentar o que era uma vida de gente, de ser servida com amabilidades e deferências. Limpeza. Sofreu muito quando a sorte lhe fora travada por duas vezes a milímetros do seu alcance. Entrou em estado de luto por uma semana, e quando acordou ao sétimo dia, olhou para o sol, apontou-lhe o dedo e bradou: “Ainda não acabou!” De facto não seria assim que previra o seu fim. Por duas vezes a hora lhe fintara, para descobrir que afinal ainda não chegara. Esboçou um sorriso, ajeitou os seus sedosos cabelos lisos, arrebitou os seios e, meneando as suas ancas experientes, caminhou para a frente em antecipado desafio à sorte ainda por vir. E conheceu Terrence. Com trinta e três, era filho único de uma família distinta de Macau e Hong Kong. Aluno de Harvard, com brilhante mestrado em gestão de empresas, fino nos modos, voz mansa e de trato fácil. Houve uma altura em que até se sentia inferiorizada a seu lado, porque achava não ter a sua categoria e que só lhe faria figura triste. Mas, docilmente ele aplacava os seus temores e lhe dizia que não se importunasse com questões falsas. Foi num caraóque com amigos, aos quais se juntaram outros amigos, reunindo-se todos numa única sala de canto. Ele destacava-se, não por falar muito ou de ser o engraçado da turma, mas pela simplicidade de um homem que atraía respeito. Não cantaram. Falaram é muito no meio da barulheira e da desafinação descarada dos comparsas. E continuaram a falar depois sentados à beira do mural da Meia Laranja, cada um com a sua lata de cerveja, sobre tudo o que trivialmente vinha à cabeça. As horas batiam três, ele levou-a de carro até a casa. Aí pôde ver que não era um bora-botas. O automóvel era lindo, a cheirar cabedal novo. Nunca esteve num Bentley, mas sabia que era muito mais distinto que um Mercedes ou BMW. Pela primeira vez não esperou que ele subisse. O seu trato era tão reconfortante que preferiu voltar a vê-lo no dia seguinte. E mais dias seguintes vieram. Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente. Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno. Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente. Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno. Mas nessa noite, a última da sua vida, iria passar pelo teste da sua existência. Ela sabia que não seriam favas contadas, não se casaria com Terrence sem mais nem menos. Toda a sua vida foi construída de provações e era mais uma por onde passaria. Malgrado, não sabia que era a mais importante. Iria encontrar-se com a pessoa de uma importância gigante para Terrence. A mãe era uma mulher de maneiras aprumadas, com “postura imperial” como alguns conhecidos seus diziam. Naturalmente graciosa, Mabel fazia questão em se vestir bem. Mesmo nas situações mais triviais ela escolheria roupa que, sem destoar a informalidade da ocasião, evidenciaria a elegância que encarnava. Todas as semanas estaria no seu cabeleireiro, para manter o seu penteado enformado. Não era muito conversadora, mas o sorriso era garantido para todos com quem se relacionava. De estatura média, delgada de pele muito clara e lisa, aos sessenta, as suas faces mantinham o rosado jovem, duma senhora delicada, à qual os anos passaram à ilharga. Uma ou outra ruga, no canto dos seus olhos, não alteravam a jovialidade da sua aparência. Continuava “bela como nos tempos de ouro”, como suspiravam nostálgicos os cavalheiros que a conheceram jovem. Apreciava a serenidade nas pessoas e o sentido de oportunidade de cada um. “Sem nos trairmos, somos todos circunstanciais”, dizia amiúde. Uma mulher de personalidade ferro, que nunca precisou de levantar a voz, Mabel tinha um jeito sedutor de manifestar a sua autoridade e desagrado, e atingia o alvo com pontaria de alfinete, mantendo intacta a sua calma e timbre. Haveria que saber interpretar as suas pausas descompassadas, acompanhadas do seu olhar fixo e enigmático sorriso. Não se abria com facilidade, mas Terrence lembrava-se de tantas ocasiões, mesmo já homem feito, em que se deleitava nos braços da mãe que lhe fazia festinhas na testa, cantarolando-lhe “Yeh Loi Heong…Yeh Loi Heong” (4) uma melodia de Xangai que aprendera em miúda, ao som do piano na telefonia. Betsy ouviu tudo isso como uma criança diante de um conto de embalar e apaixonou-se por essa figura que por sinal também lhe será importante um dia. Dias a fio, tomou notas e memorizou tudo o que era preciso saber sobre Mabel. Até, sem querer, já ensaiava poses de elegância, tentando reproduzir a sua mulher de referência. Nessa derradeira noite da sua vida, estava pronta. Olhou para o espelho e pôde constatar a sua postura de classe com que ela vestira. Tudo ao pormenor estudado com dias de antecedência. Não era ela, mas gostou do que vira e a vontade de ser o que estava diante dos seus olhos crescia. Suspirou, tinha que ter calma. O seu coração ribombava. Terrence segurou-lhe a mão, mas ela recusou. Ainda não era altura. Mabel conversava com o gerente do restaurante, sorvendo o seu chá. Estava de cheong sam verde com tons de jade. Seus olhos abriram-se ante o deslumbramento que Betsy lhe causara, percorreram por todos os cantos da sua aparência. Terrence encontrara uma modelo, dizia para si. Os gestos da Betsy eram brandos e pausados, sem pressa alguma. Evitou gesticular em demasia as suas mãos, mas apenas o necessário para realçar essa ou aquela ideia. Ombros sempre rectos acompanhando a sinuosidade do seu dorso. Tinha iniciativa de conversa, mas sempre a propósito dos comentários que Terrence fazia. Betsy estava tão à-vontade que se até se esquecera de que estava sob escrutínio. O olhar de Mabel brilhava a todos os detalhes que ela lhe dava. Terrence estava feliz, ao presenciar a intensidade da interacção entre estas duas mulheres mais importantes da sua vida. O jantar decorreu conforme o previsto, sem falhas. Cumprira com mestria tudo o que foi combinado. A mãe, todo o tempo muito cordial, mas reservada. Sempre preferiu ouvir a falar. De olho atento, o seu sorriso era doce e meigo, os seus gestos limitavam-se ao mínimo como um menear da cabeça, um franzir da testa, um trejeito leve dos seus lábios, em reacção deste ou daquele comentário que se fazia ao longo da conversa amena da noite. “Estou muito feliz por ter esta oportunidade de a conhecer. O Terrence fala-me tanto de si e consigo agora perceber a razão por que ele tem a grande admiração pela senhora.” Betsy ensaiou com timidez um cumprimento. “Terrence conhece muito bem a sua mãe”. Riram-se todos, e Terrence aproveitou a boa disposição e pousou a sua palma sobre a mão débil de Betsy. “Conhece tão bem, que sabe do que gosto. Cresceu atencioso para as coisas da mãe até ao ínfimo pormenor. Coitado dele, pelos inúmeros sermões que aturou de mim.” Mais uma ronda de risada e a noite prometia. Betsy ria de coração, agora liberta de tensão. Via em Mabel a dignidade de uma mulher simples e afável. Era isso que ela gostaria de ser. “Há alguma coisa que ele não saiba de si?” aventurou-se Betsy, apoiada agora do sorriso confiante de Terrence. Mabel sorriu para o vácuo. De repente, tudo parou, nem música de fundo se ouvia. “Claro.” Pausou e depois prosseguiu. “Não sabe que a sua mãe também pode ter várias faces, fruto de muitas vidas que teve. Não sabe que a sua mãe vê o que anda a tramar e a combinar com outros para lhe agradar. Oh, como amo o meu filho, que quer sempre a sua mãe feliz. Só que muitas vezes isso tem um preço, que é o de estar preso por algo que afinal não é bom para si. Eu, como mãe, naturalmente sofrerei.” “Não entendo o que está a dizer” sorriu Betsy ainda na onda da boa disposição reinante. “Entendes sim, e muito. Tens uma escola de invejar, fizeste tudo com fina arte. Mas falhaste num pormenor. Foste perfeita demais.” “Mãe… o que se passa?!”. Mabel ignorou o filho e fixou-se em Betsy. “Estudaste muito bem a lição e deste todos os passos até ao ínfimo pormenor. É a tua experiência da vida que falta a muita gente. Confesso que gostei do teu profissionalismo, fizeste tudo do agrado de qualquer pessoa. Mas, menina … não é assim que se conquista. O meu filho não é um troféu e eu não sou parva.” “Mas … Deve haver um equívoco. Que mal fiz eu?” . Estava atónita. Mabel retorquiu com um sorriso. Não deixava dúvida de que algo de mal se seguia. “Escolheste vestir a roupa que não é tua. Foste tudo menos tu própria. Não tenho tempo para estas coisas. Se queres roubar, é na rua e não na minha cara. Betsy, volta para casa e aprende melhor a lição. Tiveste a sorte de o Terrence ser meigo e inexperiente. Mas o azar teu é teres de enfrentar uma mãe-galinha como eu. Levantou-se. “O jantar foi bom e a companhia agradável. Mas, não desejo repeti-lo. Terrence telefona ao Ah-Seng para vir buscar-me”. Saiu do restaurante. Terrence largou logo a mão de Betsy. Era visível a sua aflição perante a situação com que não contava. Doía-lhe presenciar a rejeição da mãe. Nunca lhe tinha acontecido isso. “Peço desculpa, isto não devia acontecer. Volto daqui a pouco, juro!” E desapareceu. Ainda ficou por mais dez minutos. Sem fala. Por fim, saiu do restaurante, sem saber se Terrence voltara como prometera. Que importava mais, se estava tudo dito? Nunca ligou para essas coisas do destino, mas começara por acreditar que era esse o seu. Não estava com raiva, o seu coração até palpitava normalmente. Sentiu era o vazio que sugava para si a sua existência, a sua razão de ser. O vazio que vinha da desilusão, da fraqueza de Terrence perante o seu próprio destino. Da sua condição de dependência dessa rocha que ela pensava que fosse. Ele foi a primeira pessoa por quem lutaria mesmo que fosse pobre. Respirava tenuemente enquanto caminhava pelas ruas húmidas, ante olhares de curiosos ou de indiferentes. Na Meia Laranja, tirou os saltos e lançou-os para longe. Não tinha forças para gritar como gostaria. Mas não havia mais nada por que gritar, nem revolta, nem nojo de si. Recordou as palavras de Mabel e concordara com elas: andou a cobrir-se com a roupa dos outros, como andou sobre saltos dos outros. Nada sobre o seu corpo era dela. Ela própria era um enfeite para o deleite de olhos alheios. Lançou os brincos para o lago. Queria fazer o mesmo com o seu penteado, com as suas unhas, com a sua maquilhagem. Surpreendeu-se quando deu por si a chorar, não de tristeza, mas de desespero de quem se quer livrar dum emplastro agarrado ao corpo. Betsy era uma invenção, uma via que se transformou num beco. Toda a sua vida fora uma miragem sem contornos. Não podia continuar a viver, porque nunca devia ter nascido. E essa fora a última noite da boneca que vestira tudo para estar junto à vitrina E prosseguiu a sua caminhada, mergulhando-se no escuro da madrugada. No dia seguinte, transeuntes encontraram um cheong sam, uma pulseira, no mural enquanto pousavam uns saltos, um aqui outro acolá, sobre as rochas existentes no lago. Ninguém soube decifrar esse enigma, nem tão pouco dizer quem os usara. Quem se importaria? Nunca mais se ouvira falar de Betsy. Onze meses passaram. Os seus dedos continuavam delicados e lindos, assim como as unhas, agora mais curtas e sem verniz. Pressionavam os botões da caixa de registo das compras que se sucediam peça por peça, ante o olhar enfadado e impaciente dos clientes enfileirados. Com o seu cabelo negro segurado dentro dum boné, ela executava a tarefa maquinalmente, sem pestanejar, sem abrandar ritmo. Apenas falava quando lhe perguntavam algo ou quando tinha de usar o intercomunicador. Quem a conheceu não mais a reconheceria, se não fossem os seus olhos grandes e despertos que continuavam a irradiar algo excitante, apesar da nova vida radicalmente oposta à que levara. As faces apresentavam agora um rosado sobre as maçãs. Sem qualquer pintura, os olhos eram mais meigos, que espelhavam vulnerabilidade, mas sempre determinantes. Os seus lábios ganharam mais escarlate e destacavam-se nesse seu novo semblante, mesmo sem batom. De ganga e sapatilhas era esse o seu visual diário com que um novo universo de gente a identificava. E “Ah Pek”, o seu nome de guerra. No seu íntimo, resignara-se de que a tal hora sua não chegará jamais, pois afinal nunca teria sido sua. Malgrado, de modo algum aceitaria sair de Macau de maca. Aqui passou a ser a sua terra. “Pek Si!”, o chamamento quebrou-lhe o fio do pensamento. Não era de homem que a conhecia, ademais, ninguém se lhe referiria nesse nome. Quis ignorar, mas traiu-a a sua cabeça quando lentamente girou para reconhecer a origem. E ficou tensa. A fila do seu balcão não parava de crescer e a pessoa não parava de a olhar. Não teve outra solução que chamar a sua colega para a substituir por um momento, para poder atendê-la. O silêncio manteve-se durante alguns segundos. “Custou-me a encontrar-te, mas há meses que soube onde trabalhavas. Não vim antes, quis observar mais.” Pek Si manteve-se muda, atenta ao que se lhe seguiria. Já se tinha habituado a isso, esse tempo todo. “Terrence não sabe que estou aqui. Aliás, há muito que não falamos. Peço apenas que me escutes até o fim. Prometo que não me verás nunca mais”. Concordou. Mabel não quis olhá-la quando principiou. “A minha vida nem sempre foi de sol. Conheci bem o cheiro da rua, pois vim de lá. Isso, também o Terrence não sabe.” Pek Si de olhos fixos, não esperava isso dela. “Sei o que é fome e das manhas que temos de engendrar para sacar mais. Sei da memória que temos de conservar boa para mantermos a peta para o dia de amanhã e outros mais que lhe seguirão” sorriu. “Gastamos o tempo a escolher a nossa roupa, para nos despirmos num ápice, porque ele está com pressa. Fazemos o beicinho no momento certo e fingimos tão bem o prazer que eles nos dão. Bem sabendo que na cama ninguém nos vence, temos de saber ser frágeis e estar à mercê. No entanto, ninguém tem culpa da nossa condição, a escolha foi nossa. Tive sorte porque consegui uma passagem para a ribalta. Não sei se amei o pai do Terrence, nem sei se devia ter-lhe agradecido por aquilo que me deu, mas eu fiz o meu trabalho e ele compensou-me. Fui uma mulher à altura dele ou pelo menos como ele esperava de mim. Deixei intacta a dignidade da sua família, mesmo depois da sua morte. Fi-lo sentir-se marido honrado, apesar das fragilidades que também teve. Podia sentir-me realizada. Todavia, o que me perturba, é que não devia viver disso, da mentira. Embora me seja tão difícil largar mão daquilo que me custou a vida a conseguir, o meu começo estava errado. Com Terrence, pude novamente escolher. E assim, dei-lhe o que de melhor soube dar. Decência e razoabilidade. Não iria alimentar mais um estafermo, pois estafermos fazem nascer mulheres como nós, que criamos outros estafermos. É um ciclo vicioso, sabes? Quis fazer dele um homem. E um homem não deve querer mulheres como nós. Todavia, o amor não tem razão. Ele venda-nos os olhos e nos atira para o abismo abaixo. Como ele te adora. A sua apatia perante tudo não me deixa dúvidas. Quando eu te vi, julgava saber com quem estava a lidar. Achei-te artista que não me iludirias. É que somos da mesma gente, menina, exalamos rua. Não queria que ele sofresse com a mentira dos outros. Estava tão certa de que irias destruí-lo. É coisa de mãe, Pek Si. E os filhos são a nossa fraqueza. Mas, o tempo tem destas coisas, contraria as nossas certezas. Ele deu-me a conhecer que o meu filho terá de sofrer por si, pela escolha que fizer. Ele quis amar-te. E o tempo também me disse que estava errada a teu respeito. Escolheste sem troco romper com o passado e renasceste. Isto é garra que muita mulher não tem. A minha foi-se-me, depois de tantas decisões desacertadas que achei correctas. Um dia serás mãe e verás …” “Um dia serei como você, minha senhora”. Pek Si interrompera sem a desafiar, embora não tinha nada mais a perder em se sentir à altura de Mabel. “Lutarei para poder escolher. E os meus filhos conhecerão o preço da dignidade. Porém, sem as minhas garras. Eles terão que escolher por si. Enterrei Betsy, mas não me envergonho dela. Faz parte de mim, foi a minha vida e aprendi a viver com ela.” Mabel assentiu. “Obrigado. Morrerei infeliz se não pudesse dizer isso tudo. Não te vou maçar nunca mais.” Olhou fixamente nos olhos de menina de Pek Si e afagou-lhe o ombro. “Que linda que estás. Como o Terrence gostaria de voltar a ver-te. Eu também.” Não respondeu logo. Mas os mesmos olhos comprimiram ao esboçar um sorriso, como há muito não fazia. De facto, o seu semblante desnudado de qualquer maquilhagem, faziam-na mais bela. Mais ela. “Vou pensar”. “Acho uma bela escolha.” Sorriu também Mabel antes de entrar no automóvel que estava à sua espera. (1) Cabaia chinesa. (2) Operação do Governo de Macau, em Março de 1990. destinada inicialmente a resolver o problema de pais indocumentados de cerca de 4000 crianças e que resultou em verdadeira amnistia a todos que se apresentassem a registo. (3) 腐乳 tofu fermentado e depois embebido numa solução de sal, vinho de arroz, vinagre, com uma mistura de malagueta picada. Servido em cubos, é um condimento muito apreciado em pratos fortes de inverno, como carneiro cozido. (4) Ye Lai Xiang (夜來香), o jasmim da noite. Título de uma canção chinesa muito em voga dos anos quarenta do século passado, metáfora que exprime a saudade por um amor perdido.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasConta-me contos, ama [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ontos, o melhor da literatura e os mais interessantes parceiros de viagem, onde sem nenhum esforço vamos encontrar os grandes escritores contando de formas várias quantas vezes o mesmo conto, que neles reescritos são sempre novos, sempre únicos. Discursos que se unem derivados das mesmas fontes, culturas que partilham espaços oníricos, tão próximos que ficamos a saber de uma provável fonte comum. Contam então muitas vezes os contos, aspectos particulares das culturas dos povos, na vertente do gosto pelos ciclos curtos e intensos, por onde férias e dias grandes hão-de passar: esse tempo de papel que rasgado em mil pedaços, deles fomos recolhendo as lendas, e hoje, escutamos no interior deste género literário ainda as “vozes” pelos autores que tão bem, e jamais, deixaram de escutar tais chamamentos . Faltam-nos sempre alguns que a voracidade agarra e leva rápido num saco de viagem. Já não temos amas e vozes que nos contem coisas nesta solidão, e carregamos com eles levando as “vozes” e num breve instante damo-nos conta que grande parte das nossas bibliotecas estão pilhadas deles, que esperam partir connosco para longe em fuga aos quotidianos. Por instantes, ainda nos admiramos de tanta coisa sem interesse de carácter marcadamente intimista que ocupa lugar a mais, impressão volumosa, pesadas notas interpretativas, um conflito permanente com a nossa paciência que desejamos polida para nos massacrarmos na ânsia de não ficar para trás nos temáticos interesses da época. Medimos o tempo pelo resto que nos falta e resolvemos só levar connosco tudo que nos faz radicalmente bem. Que tempo descritivo é o nosso, sim, onde a factualidade é de tal ordem implementada que se remete a herança de uma memória colectiva para certos apeadeiros a que chamam ficção, que passa rapidamente a fixação, quando todos numa embrulhada gigantesca resolvem soltar a sua história. Por isso todos sabem de tudo e o que não sabem inventam num desespero sem paralelo para que se escute as suas vozes… até fazem cursos para aquilo sair ligeiro e onde fiquem depois mandatados para tecerem resmas de papel nas quais se debruçam testando assim a nossa paciência. Acrescentar matéria aos sonhos requer muito mais, e admoestar um serviço ao seu mais fino conteúdo, exige o grau máximo da qualidade que se dá, quando em proveito de todos nos desembaraçamos de nós. Juntos «Contos Misteriosos e Fantásticos» de Edgar Allan Poe, «Contos Maravilhosos» de Herman Hesse, «Sobre os Contos de Fadas» de Calvino, «Pequenas obras Morais» de Leopardi, «Contos de Amor Loucura e Morte» de Horacio Quiroga, «Amor no Feno e outros Contos» de D.H. Lawrence, «Lendas» de Gustavo Bécquer, «Contos Populares Russos», «Contos» de Eça de Queiroz, voltamos para o ano sem grandes saudades de mais nada. «O Mabinogion» sem par, onze contos da cultura celta, uma arte de bardos e de encantos, as lendas, dadas por dois manuscritos, o Livro Branco de Rhydderch e o Livro Vermelho de Hergest, escritos em língua galesa no século XIV mas podendo remontar ao século XI na versão mais antiga no país do Rei Artur, transformando a leitura de alguns contos por vezes muito curtos em demorado prazer. O clã celta é uma estrutura compacta que afasta o cavaleiro paladino do silêncio e da solidão, naquele local todos se juntam sem ásperos abandonos a um propósito privado. Podíamos viver aqui o resto da viagem. Nos contos encontramos por fim os arquétipos, bem como os mitos inaugurais, e de tão juntos, renascemos outra vez para os grandes e bons encontros. No «Homem que Morreu» ( como se cada homem no país de Lawrence fosse eterno) a “contagem” é a dos Véus de Isis…Quiroga um dos fundadores do conto moderno, dá-nos a contar a Morte de Isolda… a morte está presente como sinal de arremesso aos desaires dos seres… Bécquer, esse, só não quer que se toque nas pedras de Toledo, em Eça de Queiroz e a partir dos seus textos dispersos em jornais e reunidos em «Contos» vamos encontrar as páginas mais bonitas da sua escrita. Os «Contos Russos» onde a Gata Borralheira também entra, bem como um certo aspecto do seu folclore que faz surpreender culturas distantes, instiga-nos a ver melhor a universalidade dos povos. «Lendas e Narrativas», que longe anda, tece esses meandros dos sonhos de antanho e das lutas e amores onde não falta a veia árdua de um cronista na opulenta capacidade de Alexandre Herculano. Quanto ao tema das literaturas populares devemo-la a Almeida Garrett, recuperados os ciclos da expressão oral. São sempre novos, sempre outros, sempre os mesmos, no fazer e refazer da linguagem de cada um, por que é essa similitude que dá o maravilhoso, pois em nós nada há dessa matéria retirados se formos desse todo. Por isso os levo como se levasse apenas um, que contam assim na multiplicidade individual das suas vozes e fazem entender que a trama não passa muitas vezes de um artifício fustigado por “originalidades” sem origem. Conta-me contos ama, todos os contos são esse dia, e jardim e a dama que eu fui nessa solidão… Contam-nos assim os que dizem escrevendo para nós no interior dos tempos, e de tal modo a voz nos soa a uma paz perdida, que ama sempre mais a criança que somos, a velha ama.
Hoje Macau EventosRota das Letras | Liliana Ribeiro ganhou concurso de contos [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]iliana Ribeiro foi a premiada portuguesa do concurso de contos do festival literário Rota das Letras, com a história “E se as Pedras”. Huang Hou Bin foi o vencedor, tendo concorrido com o conto em língua chinesa intitulado “Atravessar a Fronteira”. Em inglês sagrou-se vencedor Graeme Hall, com o conto “O Riso do Macaco de Jade”. Além do prémio monetário de dez mil patacas atribuído a cada autor, os três contos são publicados no livro “Seis em Ponto”, lançado ontem durante o festival. Tal como é habitual, todos os anos é lançado um livro que contém não apenas os contos vencedores como contos de autores convidados que experimentam o desafio de escrever sobre Macau. “Seis em Ponto” conta com histórias escritas pelos convidados presentes na última edição do Rota das Letras, como é o caso de Natalia Borges Polesso, que escreveu “Volta”, ou Bruno Vieira Amaral, que assinou “A vida eterna no Rio das Pérolas”.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA arma do conto [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz-se amiúde que o conto não vende. É provavelmente das poucas afirmações sobre a qual existe uma concordância generalizada e transversal aos intervenientes da cena literária: os críticos, os escritores, os editores e os livreiros mantêm a doutrina à mão e permanentemente engatilhada, não vá alguém perorar positivamente sobre um género invendável e que muitos consideram menor. Contextualmente, porém, a época presente tem tudo para ser um território generoso para o leitor de contos. Temos cada vez menos tempo (ou apenas a percepção de que o tempo disponível é cada vez mais exíguo, o que vai dar ao mesmo) e a nossa capacidade de manter atenção e foco, nesta era em que tudo quanto é importante deve poder ser reduzido ao máximo de cento e quarenta caracteres, parece sofrer de uma miopia de progressão galopante, o conto tem o formato adequado para oferecer ao leitor o que de melhor o romance tem – com ressalvas que não cabem neste texto –, a saber, uma história depurada até ao radical mínimo de sentido narrativo, portátil e amiga do tempo, capaz de ser lida no metro ou nos vinte minutos que antecedem o advento súbito do coma de cansaço que há umas décadas dava pelo nome de sono. No entanto, e apesar das vantagens elencadas, o conto não vende. Paira sobre ele o estigma da obra menor a que os romancistas só recorrem por necessidade de manter a forma. É uma espécie de ginásio low cost da literatura. Assim, quando se inquire um escritor sério sobre a feitura de um livro de contos e a de um romance, espera-se invariavelmente ouvir que para o último investigou meses a fio para, de seguida, enfiar-se numa cabana gélida num ermo na Noruega, alimentando-se de atum e raízes e mantendo a integridade das extremidades do corpo graças a uma combinação engenhosa de aquecedores a óleo e velas. Se, por outra parte, a conversa incidir sobre a publicação de um livro de contos, espera-se que o escritor confesse que o fez entre coisas de muito maior importância: entre romances, por exemplo, entre uma ida ao supermercado e um jantar de amigos, entre Bobadela e a Lourinhã, entre estações de comboio. O objectivo nunca é a produção de um conto, a coisa não se faz por e pelo conto, e até parece estranho que desta musculação literária resulte um livro de contos. O facto de tantos e tão grandes escritores terem sido ou serem contistas não demove de modo algum os detractores do conto. Assim, os nomes de Kafka, Cortazar, Buzatti, Gogol, Borges ou Virginia Woolf são recebidos com a desconfiança de quem suspeita estar exposto ao argumento da autoridade ou com o desdém de quem vê na lista apenas uma sequência de honrosas excepções. Numa altura em que parece ser mais fácil afastar a criançada das drogas do que obrigá-la a ler, parece mais ou menos óbvio que o conto, pelos motivos já apontados, pudesse ser uma ferramenta de trabalho mais interessante para estimular a leitura do que os livros bojudos e intermináveis que assombram as noites da gaiatada e estimulam a indústria das resenhas escolares. Mas nada disso acontece e o conto, pelo menos em Portugal, é o parente pobre do romance, tem de pedinchar o lugar à mesa da literatura e só tem direito a falar se directamente interpelado. Muito do que há em mim de literário é conto. É uma grande parte da minha formação enquanto leitor e, posteriormente, escritor. É um território fértil para experimentação e há ideias que só podem ser traduzidas para o formato de conto, pelo que conto continuar a escrever contos no futuro que o futuro me permitir, sempre neles e para eles – como diziam os fenomenólogos – e nunca entre.