Espionagem | NSA acusada de piratear computadores de universidade

Uma agência de segurança da China acusou ontem os Estados Unidos de piratearem os computadores de uma universidade que, segundo as autoridades norte-americanas, desenvolve investigação na área militar, num novo episódio de acusações recíprocas de ciber-espionagem

 

De acordo com o Centro de Resposta a Emergências de Vírus Informáticos da China, a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos infiltrou-se e acedeu, em Junho passado, ao sistema interno da Universidade Politécnica do Nordeste da China.

A NSA alegadamente obteve informações sobre a gestão de rede da universidade e outras “tecnologias essenciais”, lê-se no comunicado da entidade chinesa. Os analistas chineses encontraram 41 ferramentas de “ataque de rede” que foram rastreadas até à agência norte-americana.

China, Estados Unidos e Rússia são considerados líderes globais na chamada guerra cibernética. Washington acusa Pequim de usar indevidamente as suas capacidades para usurpar segredos comerciais e apresentou acusações criminais contra oficiais do Exército chinês.

Já a China acusa as autoridades norte-americanas de espionarem universidades, empresas de energia e tecnológicas, entre outros alvos.

Especialistas em segurança dizem que o Exército de Libertação Popular, e o Ministério da Segurança do Estado também patrocinam piratas cibernéticos que operam fora de agências governamentais.

A fazer scan

A Universidade Politécnica do Nordeste, na cidade de Xi’an, faz parte de uma “lista de entidades” designada pelo Governo dos Estados Unidos. Washington diz que a universidade ajuda o Exército chinês a desenvolver ‘drones’ (aeronaves não tripuladas), submarinos e tecnologia de mísseis.

No ano passado, um cidadão chinês, identificado como Shuren Qin, foi condenado a dois anos de prisão por um tribunal federal na cidade norte-americana de Boston, depois de se ter declarado culpado de exportar tecnologia submarina e marinha para aquela instituição de ensino, sem ter as licenças necessárias.

O Centro de Resposta a Emergências de Vírus Informáticos foi criado em 1996, pelo departamento da polícia da cidade chinesa de Tianjin, e descreve-se como uma agência chinesa responsável pela inspecção e teste de produtos anti-vírus para computadores.

O comunicado emitido ontem acusou a agência norte-americana de realizar outros “ataques de rede maliciosos” na China, mas não deu detalhes ou qualquer indicação se algum dano foi causado.

A mesma nota não explica como os analistas chineses concluíram que a agência norte-americana foi responsável pelos ataques, que foram realizados a partir de servidores localizados em 17 países, incluindo Japão, Coreia do Sul, Suécia, Polónia, Ucrânia e Colômbia.

6 Set 2022

Da imortalidade literária às tentações digitais

[dropcap]D[/dropcap]aqui a uns anos, vamos digitalizar o nosso cérebro, pô-lo num raio laser e lançá-lo em direcção às estrelas. Chegaremos à Lua num segundo, a Plutão em oito horas. Na Lua, um CPU vai descarregar as informações do nosso genoma, contidas no laser, e transferi-las para um avatar. O nosso avatar vai explorar a Lua. Acordamos em Nova Iorque, paramos em Marte para um brunch, e à tarde saímos do sistema solar.” A afirmação é de Michio Kadu, professor de Física na Universidade da Cidade de Nova Iorque.

Este quase sentido de imortalidade foi também objecto de outra recente intervenção, desta feita pela voz do investigador Salvador Macip da Universidade de Leicester: “A imortalidade é real, já existe no planeta. Temos animais que são imortais, como algumas medusas e um pequeno animal chamado “hidra”. Esses animais são imortais. Portanto, a imortalidade é biologicamente possível. Resta saber se um organismo complexo como nós pode alcançar a imortalidade. E eu não sei. Neste momento é apenas uma hipótese. Mas se realmente entendermos por que envelhecemos, não há nada que nos possa impedir de realmente reverter esses mecanismos”.

Tiremos o chapéu a estas investidas, mas, convenhamos, que a imortalidade literária nunca ficou atrás destas (ainda) utopias digitais. Se se pensar bem, a figura do narrador é uma invenção que deixa até deus (com D grande) a um canto. Benjamin já se referira à insolência do narrador e Magris relembrou-o numa crónica escrita há década e meia em que constatou o modo como esta figura está de tal modo enraizada em todos nós que até a morte, “para ela, não representa um escândalo ou um limite”. O narrador omnisciente é, pois, por excelência, a nossa maior aposta na imortalidade até aos dias de hoje.

A interiorização da figura do narrador, como um ser que transcende toda a existência humana, é um fenómeno ancestral que sempre foi aceite com a maior das normalidades. Escutemos os dois primeiros versos da segunda estrofe da Odisseia: “Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada/ se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar”. Esta voz que nos fala ‘de cima’ corresponde realmente a uma estranha omnipresença que se faz ouvir a partir de um gravitas incerto. As gramáticas narrativas e todo o elegante torso teórico que se debruça sobre a literatura propuseram múltiplas conjecturas e designações para responder a esta pergunta simples: quem fala num texto ficcional? As respostas têm sido variadíssimas, engenhosas e agradáveis de estudar. Mas raramente se constatou existir uma pausa que fosse capaz de suspender a reflexão (e o mundo) para tentar perceber de que galáxia provém a transcendência do narrador.

A existência do narrador omnisciente foi sempre tida como uma coisa dada, adquirida e inquestionável. Estuda-se o que ele implica na narrativa, lado a lado com os narradores autorais, mas não de onde procede e de que antecâmara (anterior à experiência e à vida) será originário. Mesmo quando se exprime na segunda pessoa, exibindo uma familiaridade excessiva para com o mundo dos mortais e seus fantasmas, tudo parece ser-lhe permitido. Ora veja-se: “Fala-me Musa do homem astuto que tanto vagueou…” (primeiro verso da primeira estrofe da Odisseia)”.

A Odisseia recorre a muito material anterior ao século VIII a.C. e deve ter sido fixada em texto escrito não muito depois. Parte dos mais antigos fragmentos dos chamados “Textos Proféticos” são da mesma época, por exemplo o Primeiro Isaías. Mas aí, o aludido profeta (anónimo e a várias mãos) preferiu recorrer à primeira pessoa para se referir a si próprio, enquanto evocava Deus na terceira pessoa verbal (um ‘Ele’ que era situado no seu mundo próprio e não no obscuro ‘Além’ que é atribuído ao narrador). Apenas no período apocalíptico, mais de meio milénio depois, é que aparece o elemento intermediário (o anjo) a recentrar as relações entre o humano e deus e, desse modo, a aumentar ainda mais a distância entre a esfera da terra e a dos sete céus.

Sem geografias celestiais ou coisa parecida onde tivesse ancorado, o narrador esteve sempre para além da descrição, dos lugares e de todas as abstrações escriturais. Nunca houve topografia que se lhe conhecesse. O narrador limitou-se a surgir nas narrativas como origem da origem de uma voz que a tudo se sobrepõe, mesmo quando, ao fim de quase mil páginas, o Quijote de Cervantes decide dar o dito pelo não dito e se confessa cansado de ficcionar, deixando os seus circunstantes pasmados. Aproveitou então o narrador o ensejo e, vindo de cima – sabe-se lá de onde! -, logo esclareceu: “Olharam-se uns aos outros, admirados das razões de Dom Quixote, e, ainda que em dúvida, quiseram crer nele; e um dos sinais por onde conjecturaram que morria foi o haver tornado com tanta facilidade de louco a discreto…”.

O narrador omnisciente é efectivamente o sinal mais óbvio de que existe uma imortalidade literária. E é claro que olha de cima para baixo – e com o maior desdém – para as aventuras digitais expostas por Michio Kadue e por Salvador Macip. Platão previu o imbróglio e inventou os diálogos para evitar que este vírus da eternidade – o narrador – fizesse sombra ao seu enigmático mundo das “Ideias” e pudesse dar entrada nos textos de um modo inadvertido. Dois mil anos depois, More fez o mesmo.

Ensaiando proximidades a esta perigosa figura do narrador, houve tentativas modernas de o dominar, através do chamado “discurso indirecto livre” que tornou ambígua a origem da voz nos textos (é como se proviesse, ao mesmo tempo, do narrador e de um personagem). As polifonias de Faulkner e dos seus sucessores (mesmo dos mais afamados lobos lusitanos) não andaram longe dessas infrutíferas tentativas, próprias de quem seria capaz de trocar a imortalidade pelo diabo à moda do senhor Fausto.

Bem se pôde no Fédon ou, mais tarde, pelas vozes de um Cícero ou mesmo de um Montaigne, repetir a máxima segundo a qual ‘filosofar é aprender a morrer’. Para fazer frente a tais dislates, a figura do narrador sempre se expôs ao mundo (e não apenas ao mundo dos textos) como uma arma letal, invencível e certeira, muito mais incisiva do que aquelas que a eternidade digital nos está agora ingenuamente a propor.

P.S. – Michio Kadue foi entrevistado por Carlos Fiolhais no Público de 2 de Dezembro (pp.32/33), enquanto, no mesmo jornal, Salvador Macip foi entrevistado por Andrea Cunha Freitas a 23 de Novembro (p. 25). O livro de Claudio Magris, referido no início desta crónica, é Arquipélagos (Quetzal, Lisboa, 2013, pp.345-49).

12 Dez 2019

Crimes, escapadelas e computadores (III)

[dropcap]H[/dropcap]á algumas semanas atrás, falámos sobre um caso ocorrido numa escola primária. Quatro professores divulgaram as perguntas dos exames e foram acusados de “aceder a computadores com intuitos desonestos”, ao abrigo da secção 161(1)(c) da Lei Criminal, de Hong Kong. Esta secção aplica-se a crimes informáticos. Este caso ficou famoso em Hong Kong e foi inicialmente julgado no Tribunal de Magistrados, posteriormente no Tribunal de Primeira Instância e finalmente no Tribunal de Recurso. A sentença desta última instância foi publicada no dia 4 deste mês. O julgamento durou, na totalidade, cinco anos.

Da sentença publicada, destacam-se cinco pontos dignos de análise:

Em primeiro lugar, fica bem claro que uma pessoa que cometa um crime abrangido pela secção 161 (1) (c) terá de usar o computador de outrém para satisfazer o pedido “irregular”. Se aplicarmos este princípio legal, a secção 161 (1) (c) não cobrirá situações em que o faltoso usa o seu próprio computador para actos fraudulentos a pedido de terceiros; ou no caso de usar o seu próprio computador para defraudar outras pessoas. Nestes casos, é problemático para o Governo da RAEHK acusar os responsáveis das infracções. Possivelmente, o Governo terá de analisar caso a caso antes de tomar uma decisão. Podemos apenas afirmar que não existe uma norma que regule todas estas situações.

Em segundo lugar, na sentença nunca é dito que o smartphone é considerado um computador. Como o Tribunal de Recurso não se pronuncia sobre esta matéria, prevalece o parecer do Tribunal de Primeira Instância; ou seja, os smartphones são vistos como computadores.
Relacionando o primeiro e o segundo pontos, não é difícil de concluir que o Governo da RAEHK será levado a legislar de forma a cobrir delitos que ainda não estão abrangidos por leis específicas. Um outro exemplo é o caso das fotos que são tiradas de forma a revelar o que as saias cobrem (muitas vezes sem o consentimento da mulher em questão). Ao abrigo da lei actual, se estas fotos forem tiradas em locais privados, não existe crime. Se não houver uma nova legislação, o fotógrafo pode continuar a cometer este delito sem qualquer punição.

No caso de o Governo da RAEHK promulgar uma nova legislação, esta deverá conter, pelo menos, dois elementos:

1. Fotografar partes intímas deverá ser considerado crime, mesmo que ocorra num espaço privado.

2. A nova lei deve estipular que o smartphone é um computador, ou em que circunstância o smartphone pode ser considerado uma ferramenta criminosa, que permita ao fotógrafo registar, à socapa, imagens de zonas intímas. Este elemento é fundamental, porque estas fotos são sempre tiradas com telemóveis e nunca com computadores.

Em terceiro lugar, a secretária da Justiça propôs que a secção 161 (1) (c) se aplique a estas situações a bem das boas práticas públicas. Como já foi mencionado, se estas fotos forem tiradas em locais privados, não é possível formular acusação. O Tribunal de Recurso não leva estes argumentos em consideração e afirma que a função do Tribunal é interpretar a lei e tomar decisões baseadas nessa interpretação. As boas práticas públicas são um factor com que o Tribunal não tem de lidar.

A maior diferença entre o sistema da common law e o sistema da civil law reside no facto de, no primeiro caso, o Tribunal ter como função a interpretação da lei, ao passo que no segundo não terá. Após o Tribunal ter interpretado a lei, deve tomar a decisão de acordo com o seu próprio entendimento. A interpretação da lei só pode ser feita de acordo com métodos legais e segundo os princípios do estado de direito. Estes métodos não contemplam as boas práticas públicas. A secretária da Justiça apelou às boas práticas públicas por razões de ordem pessoal. Para além de ser representante do Governo da RAEHK, a secretária da Justiça é conselheira jurídica do Executivo. Uma das suas principais funções é a manutenção das boas práticas públicas através da aplicação da lei. No entanto, se o Tribunal de Recurso aceitar que este argumento é válido para recorrer de uma sentença, futuramente poderá usá-lo como critério para tomar decisões. Como as boas práticas públicas não são necessariamente princípios jurídicos, este método de interpretação legal não é, obviamente, compatível com uma interpretação apenas baseada na lei.

Em quarto lugar, alguns casos têm estado pendentes à espera da clarificação do Tribunal de Recurso sobre o alcance da aplicação da secção COFA 161 (1) (c). No momento que que o Tribunal de Recurso publicar o seu Normativo estes casos serão retomados. Em função disso, o Governo da RAEHK pode manter ou rever as acusações. Depois das emendas, parece muito improvável que o Tribunal de Recurso venha a receber o mesmo tipo de apelos.

Em quinto lugar, o caso dos professores que divulgaram os resultados dos exames foi julgado pelo Tribunal de Magistrados em 2014, depois passou ao Tribunal de Primeira Instência e, após recurso dos réus, ao Tribunal de Recurso, tendo ficado concluído só em 2019. Durou cinco anos. Independentemente de se ser, ou não, considerado culpado, é bastante difícil para alguém aceitar que um julgamento se arraste durante cinco anos. A pressão a que os réus ficam sujeitos é um trauma que dura uma vida. Este foi o preço que os professores tiveram de pagar por divulgarem as perguntas dos exames.

Com a democratização da educação, um número cada vez maior de jovens ingressa nas escolas. Estas fugas de informação deveriam acabar, mas acontecem cada vez mais. Talvez o Governo da RAEHK tenha de considerar a possibilidade de legislar sobre esta matéria. Como Hong Kong realiza vários exames públicos, para simplificar, vamos dividi-los em dois tipos: públicos e privados. Antes das provas, as perguntas dos exames das escolas públicas, são consideradas documentos confidenciais do Governo. Mas os exames das escolas privadas são outro caso. Não podem ser considerados da mesma forma. Assim, se alguém divulgar as perguntas dos exames de uma escola privada, não incorre em nenhum crime. No entanto parece impossível que alguém que divulgue perguntas de um exame não venha a ser julgado.

Macau tem a “Lei de Combate ao Crime Informático”. Se o caso da Escola Primária Heep Woh aqui tivesse acontecido, haveria forma de lidar com o assunto. Em breve irão realizar-se exames nas escolas primárias e secundárias e também provas de admissão às Universidades. Haverá necessidade de promulgar legislação especial para punir quem divulgue as perguntas dos exames?

 

Conselheiro Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
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9 Abr 2019