Hoje Macau Via do MeioVegetarianismo Budista com características chinesas Autor: Alexandre Miguel Lopes Lobo Instituição: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa / Centro Científico e Cultural de Macau / Fundação para a Ciência e Tecnologia Introdução: Relativamente ao tópico do vegetarianismo na religião Budista, pode ser surpreendente para muitos dos que procuram aprofundar o seu conhecimento no Budismo, de que o vegetarianismo não é necessariamente uma das suas características centrais. Atualmente, é seguido pelas comunidades monásticas que têm a sua origem no Budismo chinês, com exceção das do Japão. Não seria assim de estranhar que a posição dominante do vegetarianismo no Budismo chinês entre a comunidade monástica e, em menor escala, a laica, esteja relacionado tanto com ideias budistas sobre ética e soteriologia, como por conceitos locais sobre regras de abstenção e purificação nativas da cultura e religiões chinesas. Contudo, o fenómeno de vegetarianismo no Budismo, ainda que se tenha tornado realmente dominante no contexto chinês, não deixou de ser desenvolvido antes de este entrar em contacto com a cultura chinesa. Tendo essa mesma cultura sido encorajada a adotar o vegetarianismo via o Budismo, qualquer estudo que procure entender as origens da predominância do vegetarianismo nas tradições budistas derivadas da China, tem de, obrigatoriamente, olhar com atenção para as escolas de pensamento Budistas que estavam em circulação na Índia e na Ásia Central na altura em que estas foram transmitidas na China. É igualmente importante ter em conta a particularidade da tradição chinesa e procurar elementos que possam ter encorajado uma dieta vegetariana para os devotos na nova religião. Apesar do vegetarianismo, hoje, ser aceite como a contribuição mais importante feita pelo Budismo para a culinária chinesa, esta situação foi tudo menos inevitável, pois contrasta com a maioria do mundo Budista que não tem ligação com a tradição chinesa. É ainda um elemento que não tem qualquer apoio doutrinal nos códigos monásticos Vinaya, ao ponto de o caso chinês poder ser descrito como uma anomalia. Adicionalmente, o própria Buda autorizou os seus discípulos a consumir carne que fosse oferecida como doação, desde que esta não tivesse origem num animal que tenha sido abatido propositadamente para o monge em questão (Kieschnick 2005:186-187). Vegetarianismo no Budismo antigo: Na fase formativa mais antiga da religião Budista, um dos conceitos centrais para analisar a ética Budista, relativa ao tratamento de animais e vegetarianismo, é ahiṃsā, ou não violência. Apesar de a ideia da não violência ser respeitada e louvada na prática e doutrina budista, aquilo que seria a sua conclusão lógica, a abstenção do consumo de carne, raramente é mencionada ou debatida na literatura budista e está longe de ser uma prática geral na maior parte do mundo budista, ao contrário da China. O vegetarianismo não deixou de ser, no entanto, parcialmente aprovado e debatido nos primórdios do Budismo, como se pode observar em referências à abstenção de carne em certas situações no código Vinaya. Curiosamente, seria uma das práticas estabelecidas pelo rival/antagonista do Buda histórico, Devadatta (Ruegg, 1980: 234) Ligações entre a prática de não violência e vegetarianismo, ou pelo menos a abstenção do abate de animais, surgem também nos éditos do imperador Asoka. Em particular, o primeiro dos seus éditos de pedra indica uma ordem firme de proibir o abate de seres vivos para fazer sacrifícios. Indica também o fim do abate diário de um número incrível, provavelmente exagerado, como era comum em fontes Budistas e indianas, de 100.000 animais para as cozinhas do palácio real. A preocupação com a prática de ahiṃsā por parte do imperador não se limitava ao abate e ao vegetarianismo, pois o segundo dos seus éditos em pedra informa sobre o estabelecimento de serviços socias na forma de ajuda médica, tanto para pessoas como para animais (Basham, 1982: 134-135). Já um édito mais tardio, em Kandahar (Afeganistão), mostra que os pescadores e caçadores do rei deixaram de praticar as suas profissões (Basham, 1982: 137). Para Asoka, a prática da não violência envolvia, por norma, a necessidade de proibir práticas e atividades económicas diretamente relacionadas com o consumo de carne e, principalmente, com o abate de animais, em que a eliminação do seu consumo existe como uma consequência e não necessariamente como um fim. Apesar de a não violência ser aclamada como essencial no pensamento Budista, o vegetarianismo em si está quase ausente, o que pode ser em parte explicado pelo facto de que noções éticas não têm lugar em códigos Vinaya, focados em formalizar regras e regulamentos essências para o funcionamento ordeiro de comunidades monásticas. Peixe e carne chegam até a ser mencionados como alimentos superiores que podem ser consumidos por monges doentes. Além disso, o facto de os monges estarem dependentes de esmolas e oferendas de alimentos por parte de laicos devotos, não lhes permite recusar carne que seja oferecida nesse processo, desde que a mesma não tenha resultado no abate de um animal especificamente para o monge em questão (Ruegg, 1980: 234). Na qualidade de pedintes e indivíduos que devem ser honrados como fonte de mérito, os monges estavam assim obrigados a aceitar oferendas que pudessem incluir carne, ou estariam a interferir com o karma do doador e a impedir que este gerasse méritos religiosos através da sua oferenda, se o não fizessem (Ruegg, 1980: 239). Outras formas de literatura canónica antiga, para lá da Vinaya, também têm pouco a dizer sobre o assunto. A Abhidharma coloca ênfase na qualidade da intenção de um ato e não no ato em si, como comer carne, e as escrituras de categoria sutra também não mencionam o vegetarianismo ou a sua relação com o conceito de ahiṃsā, sendo referido apenas que o Buda histórico não consumia carne crua. Quando o vegetarianismo é mencionado, o Buda não rejeita o conceito, mas autoriza a prática como opcional para os monges (Ruegg, 1980: 235). Seria só com a introdução mais tardia de novos conceitos e ideias pela escola Mahāyāna, que surge uma atitude muito diferente na comunidade monástica relativamente ao vegetarianismo. Isto deve-se ao facto de estes interpretarem o tópico através de sutras Mahāyāna que lidam especificamente com o assunto. Em particular, as sutras que ensinam a teoria da Natureza Buda, ou Tathāgatagarbha, condenam claramente o consumo de carne (Ruegg, 1980: 236). Portanto, não terá sido por acaso que o Budismo chinês, onde as escolas Mahāyāna se tornaram predominantes, tenha adotado a prática do vegetarianismo, na generalidade. Praticamente, todos os budistas chineses de hoje seguem esta escola, introduzida a partir da Índia e que, gradualmente, evoluiu na China (Tseng, 2018: 145). Dentro da literatura Mahāyāna relativa à doutrina da Natureza Buda, a Laṅkāvatāra Sūtra tem um capítulo inteiro dedicado ao conceito de comer carne que menciona vários textos, como a versão Mahāyāna da Mahāparinirvāṇa Sūtra (onde a ideia de que um monge pode comer carne quando doente é criticada), os quais proíbem o consumo de carne. Os textos mencionados, com exceção de um, estão ligados ao conceito de Natureza Buda, o qual indica que todos os seres vivos têm a capacidade de atingir a iluminação, não sendo assim permitido destruir o potencial para tal com o consumo de carne. É também mencionado, noutros textos, que dentro do ciclo infinito de reencarnação não existe nenhum ser vivo que não tenha sido mãe, irmã ou outro para todos os restantes seres; toda a carne é um e deve-se evitar o consumo daqueles que foram, em determinando momento, nossos parentes. O consumo de carne é assim rejeitado tanto por razões filosóficas como por razões metafísicas. Assim, no Budismo, o vegetarianismo ficou estabelecido como resultado de uma ligação a ensinamentos e escolas específicas, as quais rejeitam o conceito mais antigo de consumo de carne doada a monásticos e se referem a conceitos Budistas, como benevolência e compaixão, para justificar dietas vegetarianas. A adoção de novos códigos Mahāyāna complementares à literatura Vinaya, como os preceitos do Bodhisattva, levou ao fim do consumo de carne por parte de monásticos e também por adoradores laicos, como foi, eventualmente, o caso do Budismo chinês (Ruegg, 1980: 236-237). Budistas da escola Mahāyāna, não derivam assim a sua proibição do consumo de carne do conceito universal de não violência, mas de conceitos como benevolência, compaixão e, em particular, do conceito de Natureza Buda (Ruegg, 1980: 238). A Mahāparinirvāṇa Sūtra, em particular, tornou-se num dos textos principais para a tradição vegetariana chinesa. O texto indica uma serie de implicações negativas para quem consome carne. Entre elas, o consumo de carne causa a diminuição da capacidade para sentir compaixão e da eficácia de magias e encantamentos, dificulta a concentração em práticas meditativas e é um hábito imundo que causa mau cheiro e traz má reputação (Kieschnick, 2005: 190). Desenvolvimentos na China: A introdução do vegetarianismo no Budismo da China e da Ásia Oriental pode ser rastreado por um período de cerca de 100 anos, entre os séculos 5 e 6 na nossa época, quando uma confluência de fatores culminou com o imperador Wu, da dinastia Liang, a decretar o vegetarianismo obrigatório para os monges budistas. Estes fatores incluem a tradução de textos indianos que promoviam as dietas vegetarianas e a prática chinesa de renunciar ao consumo de carne em situação de luto, como expressão de piedade filial (Greene, 2016: 1). Debates entusiásticos sobre o tópico estão atestados neste período, em particular em relação ao Budismo, e foi durante esta altura que a sutra da rede Brahma (Brahmajāla Sūtra) foi composta. Este texto ganhou muita importância na tradição chinesa e tinha a particularidade de apresentar os votos do Bodhisattva, regras complementares aos códigos Vinaya, com uma proibição clara e especifica do consumo de carne, ao contrário de versões indianas dos preceitos (Greene, 2016: 5). Existem também textos budistas chineses, produzidos por volta do século três, que indicam que já neste período o vegetarianismo era um componente aceite e até comum na China, como o Tratado da eliminação da dúvida do mestre Mou. Os debates do século cinco podem ter surgido em sequência de traduções da Vinaya, que permitem o consumo de carne (Greene, 2016: 23). Muitas das biografias de monges e monjas pré-século cinco, indicam que eram vegetarianos, por exemplo (Greene, 2016: 7). Convém, no entanto, ter em conta que em muitas das compilações de biografias de monges proeminentes que surgem a partir do século 6, é referido, em particular, que estes são vegetarianos. Fica subentendido de que não comer carne está associado, especificamente, com monges particularmente devotos e meritórios. Biografias de séculos posteriores deixam de fazer referência à dieta dos monges, indicando que o vegetarianismo passou a ser a norma e o mínimo que se espera de qualquer monge (Kieschnick, 2005: 194). Em relação à sutra da rede de Brahma, texto que insiste que os discípulos de Buda não podem consumir carne para não eliminar a capacidade para a compaixão, a sua proveniência é considerada suspeita. Apesar de ser apresentada como sendo de origem indiana, parece ter sido composta na China, mostrando assim a importância em justificar o vegetarianismo no Budismo chinês, em oposição a formas mais antigas de Budismo (Kieschnick, 2005: 191). Quando o Budismo foi originalmente introduzido na China, encontrou uma cultura com uma relação complexa e desenvolvida relativamente ao consumo de carne. Por um lado, o consumo de carne é um elemento importante da adoração ritualística de divindades e antepassados, desde que é possível averiguar. Por outro lado, a China tem uma história longa e significativa de abstenção do consumo de carne por motivos religiosos, antes do Budismo se estabelecer. Práticas Confucionistas, Taoistas e da religião popular chinesa tiveram, pois, um papel na formação do vegetarianismo na sociedade chinesa, ainda que o do Budismo tenha sido mais significativo. Nomeadamente, conceitos de abstenção, como forma de purificação do Confucionismo, e crenças taoistas no poder de dietas não convencionais influenciaram a atitude chinesa perante o vegetarianismo, em conjunto com práticas budistas morais (Broy, 2019:37). Numa sociedade em que carne era escassa e, por isso, considerada um luxo, o seu consumo ganhou uma qualidade social com que o vegetarianismo teria de lidar, a fim de se conseguir estabelecer. A elite chinesa era referida, por vezes, como aqueles que comem carne, e era considerado um ato importante de piedade filial oferecer carne e álcool aos pais, ambos, ingredientes com um papel importante nos sacrifícios do culto dos antepassados e de determinadas divindades. Apesar disto, já durante a dinastia Han (202 AC- 220 DC), antes da chegada do Budismo à China, existia uma tradição estabelecida de abstenção do consumo de carne e álcool como forma de purificação, limitado a ocasiões especiais, como períodos de luto. Ao mesmo tempo, na China feudal, jejuar era visto como um pré-requisito para comunicar com os deuses, ato que serve para avivar qualidades morais. A dieta vegetariana permitia também a aquisição de poderes não naturais e era essencial para processos de purificação ritualística. Havia também uma justificação moral da parte do Confucionismo, que insistia numa atitude modesta relativamente ao consumo de carne. Em particular, Mengzi, discípulo de Confúcio, declara que o homem virtuoso é incapaz de tolerar a morte de um ser vivo (Broy, 2019: 38-39). Símbolos de estatuto e de privilégio, é, por outro lado, um sinal de decadência e de gula para os seus críticos, crítica também presente em textos budistas indianos (Kieschnick, 2005: 193). Já os taoistas, aproximam-se mais das práticas vegetarianas Budistas. À semelhança do conceito de não violência, instruem os seus seguidores a não causar dano ou sofrimento a outros seres vivos e a evitarem o consumo de carne, pois todas as formas de vida são consideradas sapientes. Dependendo da escola, muitos sacerdotes Taoistas vivem em mosteiros onde seguem dietas vegetarianas. Os Taoistas também acreditam que a sua dieta é central para a sua saúde mental, física e espiritual, e que jejuar permite atingir a imortalidade (Tseng, 2018: 152). O Budismo entrou, assim, numa sociedade já com ideias próprias sobre o consumo de carne, que teriam certamente um efeito na forma como o Budismo introduziu práticas vegetarianas na sociedade chinesa. Potencialmente, facilitou ainda a adoção do vegetarianismo como regra e não como exceção nas comunidades monásticas, ao ponto da ideia do monge maléfico que come carne e bebe álcool se ter formado na imaginação popular. Mais importante que os monges, para a adoção do vegetarianismo em larga escala, seria o papel de seguidores laicos e das suas atividades persistentes, que estabeleceram o não consumo de carne como um elemento identitário do Budismo chinês. Estes ativistas, simultaneamente, davam ênfase à crueldade do abate de animais, assim como relacionavam o seu vegetarianismo com valores Confucionistas. Entre os vários seguidores laicos que promoveram o vegetarianismo encontram-se vários imperadores, sendo que o mais relevante terá sido o imperador Wu, da dinastia Liang do Sul (464-549 DC). Budista laico extremamente devoto, foi instrumental em estabelecer o vegetarianismo como padrão do Budismo chinês. Introduziu também as primeiras proibições temporárias de caça, captura e abate de animais (Broy, 2019: 42-43). Procurando usar compaixão e fé da religião budista para guiar o seu império, seguiu com rigidez os preceitos de não matar, opôs-se a penas capitais e baniu o sacrifício de animais. Eventualmente, decretou que todos os monásticos tinham de ser vegetarianos e não beber álcool, prática que também impôs a si mesmo, ficando conhecido como o imperador Bodhisattva (Tseng, 2018: 148). A influência da autoridade imperial serviu assim como a força mais consistente para a propagação do vegetarianismo entre o povo chinês (Tseng, 2018: 145), começando com o imperador Ming, (28-75 DC) da dinastia Han, que, gradualmente, integrou o vegetarianismo junto com a proibição de abate nos rituais de jejum oficiais, dando espaço para inserir o conceito no subconsciente popular (Tseng, 2018: 147). Para lá de imperadores devotos, outros laicos budistas tiveram um papel ativo na promoção do vegetarianismo, com maior ênfase no bem-estar do animal do que nas recompensas metafisicas que o Budismo indiano atribui a quem pratica vegetarianismo. Um dos laicos mais famosos foi o oficial Zhou Yong, que menciona as preocupações clássicas de resultados kármicos, ao mesmo tempo de mostra maior preocupação com o sofrimento dos animais consumidos. A tendência para dar ênfase ao sofrimento animal tornou-se, assim, típico da propagação do vegetarianismo por parte de laicos e monges chineses (Kieschnick, 2005: 196-197). O papel de oficias laicos, como Zhou, é particularmente significativo para demonstrar a devoção perante o conceito e a moralidade do vegetarianismo no Budismo chinês, pois, em determinados contextos, era uma prática difícil de manter. Certas posições especiais necessitavam consumir carne em determinados banquetes e cerimónias, como era o caso de oficias de alto nível para quem o vegetarianismo era visto como excêntrico e inapropriado. Os vegetarianos e os seus associados desenvolveram técnicas para lidar com inconveniências, como banquetes cerimoniais. Alguns vegetarianos passaram a consumir vegetais que foram cozinhados com carne e anfitriões mais atenciosos preparavam pratos especiais (Kieschnick, 2005: 204). O Budismo seria ainda influenciado pelos conceitos pré-Budistas de que poderes especiais podiam ser adquiridos com dietas vegetarianas, existindo textos budistas medievais que prometem proteção divina para aqueles que não consumissem carne. A crença em proteção divina e de eficácia medicinal deste tipo de dietas, daria origem a festivais de grande escala, como o banquete vegetariano dos nove imperadores (Broy, 2019: 44). Pelo século 13, a procura por dietas vegetarianas por parte da comunidade budista chinesa deu origem a restaurantes vegetarianos, espalhados por várias grandes cidades, e inspirou a criação de uma culinária distinta, em que o álcool, o alho e a cebola também eram proibidos, de acordo com a tradição indiana (Kieschnick, 2005: 186). Conclusão: Textos budista da tradição Mahāyāna desenvolveram uma perspetiva mais centrada em ética, relativamente ao consumo de carne, relacionando o vegetarianismo com a compaixão e a interconexão de todos os seres vivos. Mesmo assim, não existe muita noção do sofrimento e da dor dos animais, em si, nestas descrições (Broy, 2019: 40). Ultimamente, budistas chineses foram atraídos para a prática do vegetarianismo para fortificar o desenvolvimento da sua compaixão para com o mundo; essa compaixão era apresentada como o caminho correto para atingir a iluminação, constante em várias sutras Mahāyāna, que eram praticadas na China (Tseng, 2018: 153). Fontes budistas, no entanto, sempre expressaram alguma forma de desconforto com o consumo de carne devido à sua ligação com o ato de matar seres vivos e o karma negativo gerado no processo. Grupos monásticos indianos eram críticos de práticas como o sacrifício de animais, ainda que não seguissem dietas vegetarianas como obrigatórias (Greene, 2016: 2-3), mas certamente adotaram a prática até certo nível, como indicado nos textos Mahāyāna, traduzidos na China, onde o consumo de carne era claramente proibido. A partir do século t3, o vegetarianismo surge como parte do modo de vida de monásticos budistas na China. No século 5, entram na China novos textos budistas que promovem o vegetarianismo, mas também são traduzidos códigos Vinaya que permitem o consumo de carne em certas circunstâncias. Um debate é então gerado sobre este tópico, que culmina no édito do imperador Wu, definindo a dieta vegetariana como uma obrigação de, pelo menos, a comunidade monástica (Greene, 2016: 31-32). O vegetarianismo ficou, portanto, estabelecido como um elemento permanente entre monásticos budistas e alguns laicos, já no período medieval, e foi, consequentemente, criticado por elementos da elite, a partir da dinastia Tang. A partir daqui o vegetarianismo acabaria por ser praticado com maior empenho por cultos populares sincretistas, alguns dos quais chegaram até aos dias de hoje (Broy, 2019: 46-47). Este vegetarianismo puro não monástico, acabaria por ser estigmatizado a partir do século 12 DC e identificado como “culto demoníaco vegetariano”, uma denominação aplicada, originalmente, apenas para a religião maniqueísta (Broy, 2019: 48). Ideias confucionistas e taoistas seriam adotados por comunidades vegetarianas, em conjunto com elementos budistas. Enquanto praticantes pré-budistas preferiam abstenção temporária do consumo de carne, foi só através do Budismo que o conceito de vegetarianismo permanente foi introduzido na cultura e culinária chinesa (Broy, 2019: 57). Os fatores que levaram a esta adoção pelo Budismo chinês foram variados, mas, entre eles, destaca-se o facto de o vegetarianismo ter servido como forma de estabelecer uma identidade religiosa distinta dentro da sociedade chinesa (Greene, 2016: 35). Bibliografia: Basham, A. L. (1982). Asoka and Buddhism–A Reexamination. Journal of the International Association of Buddhist Studies, 131-143; Broy, N. (2019). Moral Integration or Social Segregation? Vegetarianism and Vegetarian Religious Communities in Chinese Religious Life. Concepts and Methods for the Study of Chinese Religions III: Key Concepts in Practice, 37-64; Greene, E. M. (2016). A Reassessment of the Early History of Chinese Buddhist Vegetarianism. Asia Major, 1-43; Kieschnick, J. (2005). Buddhist vegetarianism in China. Of tripod and palate: Food, politics, and religion in traditional China, 186-212. New York: Palgrave Macmillan US; Ruegg, D. S. (1980). Ahimsa and Vegetarianism in the History of Buddhism. Buddhist studies/for W. Rahula, 234-241. London and Bedford: Gordon Fraser Gallery; Tseng, A. A. (2018). Five influential factors for Chinese Buddhist’s vegetarianism. Worldviews: Global Religions, Culture, and Ecology, 22(2), 143-162. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/
Ana Cristina Alves Via do MeioBudismo Chinês: Mentalismo com Características Chinesas Numa breve contextualização histórica do Budismo com características chinesas, acredita-se que este, fundado por Gautama Shakyamuni (c. 560-c. 480 a.C.) príncipe indiano, afastado do poder real para nutrir a via espiritual, terá entrado na China na versão do Grande Veículo, Mahāyāna (大乘Dà Chéng ), aquela que se desenvolveu a partir do século III a.C., surgindo como um alargamento de via, já que floresceu a partir do Pequeno Veículo, Hīnāyāna (小乘Xiǎo Chéng), na crença de ser possível renunciar à iluminação total em prol do benefício da humanidade, a favor da qual Budas cederiam o seu lugar a Bodhisattvas (菩萨/薩Púsà), seres que voltavam propositadamente as costas à dimensão transcendente para se manterem ao nível imanente a auxiliar todos aqueles que necessitam de apoio. Acredita-se ainda na versão popular que o Budismo terá chegado à China no século I, no reinado do Imperador Han Mingdi (汉/漢明帝, 28-75), na sequência de um sonho com um ser voador dourado, talvez uma visão de Buda, que o terá impulsionado a enviar emissários à Índia em busca das escrituras budistas. Mas segundo eminentes estudiosos do Budismo como o mestre budista Nan Huai-Chin defende em Basic Buddhism (1997), ou o pensador Daisaku Ikeda em The Flower of Chinese Buddhism(1986), esta filosofia religiosa ter-se-á consolidado na China com o estabelecimento da Escola da Terra Pura (净土 Jìngtǔ) pelo patriarca Hui Yuan (惠远遠, 334-416). Mas este não é ainda o budismo que se considera com características tipicamente chinesas, por várias razões, entre as quais a defesa de mentalismo parcial, em que a humanidade renasceria num paraíso buda, a Terra Pura, a terra do Buda Amitabha. Este é popularmente retratado com pele vermelha e uma tigela mendicante, que contém o elixir da longevidade/imortalidade (Alves, 2007: 92). Ele é o da infinita luz, que preside ao paraíso ocidental, onde os seres renascem, apenas na condição masculina, para atingirem o estado de iluminação perfeita. Este tipo de Budismo, que pressupõe a unidade mental, mas que na prática implica uma visão parcial da existência onde o princípio masculino Yang (阳/陽), concretamente encarnado em homens, é privilegiado, bem como os métodos concretos de acesso à Terra Pura, nos quais se enfatiza a repetição do nome do Buda, as escrituras e seus mantras e a contemplação de várias imagens mentais, que vêm a distanciar a escola, bem como uma outra, a da Plataforma Celestial (天台Tiāntái), fundada por Huiwen (惠文) no século VI, daquela que se considera a linha budista mais representativa da mentalidade chinesa – o Budismo da Meditação ou Chan (禅 Chán), fundado por Bodhidharma (菩提达達摩) no séc. VI, tendo chegado à China durante a dinastia Liang (梁), vindo do Sul da Índia para a maioria dos estudiosos, mas há também quem lhe atribua nacionalidade iraniana e o suponha a entrar na China a partir da Ásia Central via a Rota da Seda. De acordo com Fung Yu-lan/ Feng Youlan (馮友蘭冯友兰) no seu segundo volume de History of Chinese Philosophy (1983:390) todas as escolas da Meditação/Chan concordam em cinco pontos fundamentais: 1) a verdade última é inexprimível; 2) a via espiritual não pode ser ensinada; 3) nada se ganha, mas pode-perder se muito na e com a vida; 4) os ensinamentos budistas não contêm nada de especial; 5) o tao cultiva-se diariamente, transportando a água e cortando a lenha. Se atentarmos bem, nestes cinco pontos que tornam tão característico este Budismo da Meditação chinesa, verificamos que ele ganha toda a sua especificidade no encontro com o Taoismo, já que também para os grandes filósofos taoistas a verdade última não é conceptualizável nem, portanto, nomeável. Também o Mestre taoista, o Santo (圣聖 n人Shèngrén) não ensina através de palavras, teorias ou doutrinas, mas com a sua postura silenciosa e modelar. Os taoistas não esperam que a vida lhes acrescente algo, mas temem sinceramente que lhe seja roubada a visão espontânea, natural, que lhes confere as melhores características, a virtude do Recém-nascido (婴儿/嬰兒Yīng’ér), manifestando uma imensa suavidade e flexibilidade. Além disso, também para os taoistas o melhor do mundo reside em -se ser simples, cumprir com todas as pequenas acções quotidianas que nos colocam no caminho da vida, afastando a morte. O Budismo que cultiva a perspetiva mentalista e, simultaneamente, se oferece como um hino à vida simples do comum dos mortais, que rejeita escrituras e dogmas, bem como aforismos de grandes mestres e, em última análise todos os ensinamentos escritos, é, a meu ver, o verdadeiro Budismo Chinês, aquele que no século XXI tem através das suas escolas, sugestivamente denominadas montanhas, beneficiado a sociedade, ao levar os seus membros a prolongarem a atuaçãos dos Bodhisattvas, empenhando-se ativamente em beneficiá-la através da criação e desenvolvimento de instituições sociais tão necessárias como escolas, hospitais, lares, etc. Mas voltemos ao ponto de partida de mentalismo chinês. A mente exercita-se por se desprender de todas as formas físicas e intelectuais, de modo a oferecer-se ao meditador como pura energia. Para trás ficou o ego, o senhor bélico que na caligrafia chinesa é re-apresentado como uma espada contra outra, o Eu (我 Wǒ) . Este só traz problemas por estar sempre pronto para uma boa luta, como a etimologia indica sem falhar. Como se adquire então a concentração no poder mental? É seguindo mais uma vez os antigos ensinamentos taoistas, tranquilizando a mente, silenciando-a, bem como ao corpo, já que um e outro são inseparáveis, transformando a nossa forma física numa montanha, quieta, silenciosa e pacífica, de modo a polir com calma e tranquilidade a mente, que de tijolo tosco se há-de transformar em espelho brilhante. O objectivo final é, recordemo-lo, unir a nossa energia mental à universal, através da postura correcta, do cultivo do Sopro Vital (气/氣). Os patriarcas da Escola Chan conheciam muito bem, por um lado, O Clássico das Mutações (易经/經 Yì jīng), por outro, os princípios básicos da filosofia taoista. Sabemos que entre os oito trigramas do Clássico das Mutações se encontra o Criativo/ Céu (乾Qián), o Receptivo, a Terra (坤Kūn) , a Montanha (艮Gèn) e o Fogo (离離 Lí), sendo estes os trigramas, que no seu jogo de composição hexagramático, nos levam ao entendimento dos princípios essenciais do Budismo Chinês. O corpo necessita de se imobilizar como uma montanha, de modo a dar origem ao poder mental, descrito como, fogo, lanterna, lâmpada a arder num monte escuro de mistério, que medeia entres dois princípios fundamentais, o Criativo celestial, figurado como um manto branco gelado, brilhante, cujo brilho a mente humana partilha como pérola, e uma terra negra, recetiva, palco passivo onde todas as transformações da energia celestial ocorrem. Assim se oferece o 56º hexagrama, o do Viajante (旅 lǚ) no Clássico das Mutações, constituído pelo trigrama na base Montanha tranquila (艮Gèn) e no topo pelo Fogo ( 离離Lí) aderente, brilhante, activo e inteligente. O Fogo na Montanha, a fogueira a arder sob um solo tranquilo e pacificado será assim uma figuração adequada para o verdadeiro budista, um viajante tão impermanente como o mundo onde nasceu, que busca activamente a permanência através do seu poder mental. É assim que julgo dever compreender-se a tese do sexto patriarca Huineng (慧能, 638-713), retirada do Registo dos seus Diálogos (《六祖慧能語錄》) “uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos ”(一燈能除千年暗Yī dēng néng chú qiānnián àn) (Jiang 1997: 36), sendo que a lanterna é naturalmente a mente iluminada. E Huineng completa a passagem com a seguinte afirmação: “Tal como uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos, assim a sabedoria pode extinguir centenas de milhares de anos de ignorância e estupidez.” (一燈能除千年暗, 一知惠能滅)(Ibidem), ou seja, a sabedoria é o fogo que arde sem se ver, pedindo emprestado o verso a Luís Vaz de Camões, mas que é justamente figurada por ele. Ora este fogoso saber vai permitir “derreter” todas as divisões, fronteiras e oposições, favorecendo a criação de uma energia mental una e pronta a fundir-se com unidade essencial e espiritual do coração-mente (心 xīn)que comanda o universo budista, em que Buda e o coração significam a mesma coisa, como nos ensina o quarto patriarca dos Chan, Daoxin (道信, 580-651) , nos Registo dos Diálogos do Quarto Patriarca (《四祖道信語錄》) aquele cuja leitura etimológica do nome aponta para a “Confiança no Caminho ”, e esse tem de ser o Caminho do coração-mente (Jiang, 1997:12-15). Um dos textos que considero mais emblemáticos da filosofia Chan é aquele em que o monge da dinastia Song Jingxuan (警玄, 943-1027) se refere a Um Pássaro Negro na Neve na Noite Escura (夜放鳥雞帶雪飛) do Registo dos Diálogos de Jingxuan (《警玄語錄》) do Vol. 14 da Fusão das Fontes das Cinco Lanternas (《五燈會元》), também da dinastia Song, por reunir os opostos num jogo complementar, onde facilmente visualizamos uma espécie de Supremo Último (太极Tàijí), no qual um pássaro negro voa sobre a neve na noite escura, logo as únicas formas que permanecem são a máxima criatividade, aqui representada pela neve, já que o princípio celestial é branco em complementaridade com a telúrica e misteriosa escuridão. Procura-se reter o dinamismo perdendo as formas, sendo o poder mental como um espelho, um diamante, a neve, pérola branca, esta contém o conjunto das cores sem refectir especificamente qualquer delas, ou podendo fazê-lo a todas, e joga com um outro dinamismo, o do chão da noite e do pássaro negro. Este oferece-se como a ausência de forma e de cor, traduzindo a condição adequada ao coração-mente refletor, como de resto termina a passagem na qual Jingxuan agradece ao Mestre por lhe mostrar como era o coração dele, um pássaro negro onde sobressai a neve na noite escura (Jiang, 1997: 345). Um pouco antes dos primeiros patriarcas Chan viveu Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos nossos maiores patriarcas cristãos (354-430). Nasceu em África na atual Souk Aras da Argélia. Era de uma grande sensibilidade, intuição e afecto, valorizando a amor cristão acima de tudo. É dele o famoso aforismo ama e faz o que quiseres. Mas o amor ao qual ele se referia era altruísta, universal, capaz de ligar toda a humanidade, porque vindo diretamente de Deus. O autor de grandes obras religiosas como Confissões, Cidade de Deus e A Trindade, foi também um grande pensador filosófico da linha platónica, tendo-nos deixado nove diálogos, entre os quais aqui se distingue o último que nos ofereceu, O Mestre . Neste diálogo, esbatem-se as fronteiras entre a transcendência e a imanência, aproximando-o, por isso, da tradição oriental e, especificamente, chinesa. Há um mestre que ensina, Jesus, alcançável pela mente, explica Santo Agostinho ao filho Adeodato: “nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza aquele que se denomina homem interior” (1984: 71). A divindade habita no interior da pessoa e dá-se a conhecer diretamente através da mente, poder racional, coração ou buda. Afinal que diferença há entre Buda, o Homem Interior e o coração-mente? O certo é que todos estes nomes se deixam figurar por uma luz iluminante que permite contemplar diretamente a verdade, à maneira ocidental, ou a sabedoria através “ dessa visão íntima e pura, que conhece pela sua contemplação o que eu digo, e não pelas minhas palavras” (Santo Agostinho, 1984: 71). Assente fica que a verdadeira sabedoria habita no interior, na mente e que em ambas as linhas filosóficas se desconfia e muito das palavras. Assim, também no pensamento cristão agostiniano se privilegia a intuição, muito acima do discurso, para o conhecimento da realidade ou, como o filósofo lhe chama, das coisas: “Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade.” (Santo Agostinho, 1984: 72). Se a vida venturosa do cristão agostiniano, implica o conhecimento intuitivo e amor a este Mestre interior, não é menos verdade que a natureza é digna da melhor das contemplações enquanto belíssimo sinal de Deus. É evidente que há grandes diferenças entre ambas as tradições e não chegamos com Santo Agostinho a uma visão imanentista e panteísta, mas sim ao método contemplativo que rejeita as palavras enquanto instrumento privilegiado da verdade, favorecendo, à maneira taoista e budista, a ligação direta à realidade sem interferências intelectuais, ou pelo menos tão poucas quando possível. Por último, e num regresso ao nosso ponto de partida, reafirma-se que o budismo mais caracteristicamente chinês é o Chan, que habilmente equilibra e doseia os rigores mentalistas com um louvor incessante à natureza e a à vida, sendo por isso que o Mestre Chan Huiji (慧寂,807-883) defende estar a via de Buda no quotidiano ao qual somos ligados na sua expressão , “pelos olhos, ouvidos e nariz (眼裏耳裏鼻裏)” (Jiang, 1997:250 ). Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau. ______________. 2007. A Mulher na China. Lisboa Tágide. Ikeda, Daisaku. Le Boudhisme en Chine. Monaco: Éditions du Rocher, 1986. Nan Huai-Chin. 1997. Basic Buddhism. Exploring Buddhism and Zen. York Beach, Maine: Samuel Weiser, Inc. Jiang Lansheng. 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: 商務印書館有限公司. S. Agostinho. 1984. O Mestre. Braga: Faculdade de Filosofia. Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. 張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Hoje Macau China / ÁsiaCrime | Monge acusado de má conduta sexual deixa presidência da Associação Budista [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]hi Xuecheng, o monge que presidia a Associação Budista da China, demitiu-se do cargo, após acusações de má conduta sexual e desvio de fundos, ilustrando o crescente dinamismo do movimento #metoo no país asiático. Um crescente número de académicos, artistas e activistas têm apelado para a denúncia em casos de comportamento impróprio, apesar de o movimento não ter ainda tido repercussões nos meios governamentais. Num relatório periódico, a Associação informa que Shi abandonou o cargo, mas sem mencionar a controvérsia em torno deste. Um dos mais conhecidos monges e autores chineses, Shi era um influente conselheiro político para o Governo central chinês. Situado no norte de Pequim, o seu mosteiro, Longquan, é conhecido entre os chineses bem-educados, incluindo aqueles que abdicam de trabalhos bem remunerados para se dedicarem ao estudo religioso. Este ano, dois monges compilaram um dossier de 95 páginas sobre Shi Xuecheng e entregaram-no à polícia de Pequim. O documento, que incluía imagens de mensagens de texto alegadamente enviadas pelo monge a freiras e o balanço financeiro do mosteiro, tornou-se viral, em Julho, após ter sido vazado nas redes sociais do país. O caso obteve grande atenção por parte da imprensa chinesa, mas Shi afirmou que o documento foi fabricado. Na semana passada, a Administração Estatal dos Assuntos Religiosos, o órgão do Governo encarregue de gerir as religiões no país, anunciou uma investigação a Shi. Nos últimos meses, vários académicos prestigiados foram demitidos por má conduta sexual na China.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA humanidade como conspiração: Matriz e Budismo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma época em que abundam teorias da conspiração, vamos acercar-nos de um filme que tem como base o encaminhamento de buda, isto é, um modo de pensar espiritual cujo objectivo é alcançar a consciência plena. E este modo de pensar pode também ser visto como a revelação de um segredo: a humanidade conspira contra ela mesma. Por conseguinte, este modo de ver o humano, não trata de uma teoria da conspiração acerca da terra ser ou não redonda ou dos ricos reunirem-se em volta de uma mesa para governarem os destinos do mundo, mantendo-o tal e qual ele é e sempre foi ou como querem que ele seja. Trata-se de algo mais profundo. O budismo pode ser visto como a revelação de que a humanidade conspira e sempre conspirou contra ela mesma. E fique desde logo claro, que não se trata de um texto acerca do budismo, mas de pensar um filme com elementos básicos do pensamento espiritual de Buda. Lembremos o filme que lemos aqui na semana passada. A génese da criação, antes mostrada através de um caso pessoal, é agora levada a cabo aqui através de um modo de pensar e de entender o mundo que é universal, no sentido em que é partilhado por muitos através do espaço e do tempo. As irmãs Wachowski, pegam nesse modo de entender o mundo, que é o budismo, e fazem uma criação onde mostram uma grande conspiração. Para aqueles que estão familiarizados com o caminho de Buda, e bem mais do que eu, o filme que aqui hoje vamos ler, Matrix, surge-lhes de imediato como uma visão desse modo de viver e entender o mundo aplicado a uma estrutura narrativa de ficção científica. O mundo onde usualmente habitamos, todos nós, que é resultado de uma consciência não desperta, o budismo chama Samsara (consciência comum ou consciência adormecida). A samsara é mundo da consciência que a maioria de nós habita. O mundo da consciência antes da libertação. E podemos aqui também lembrar a famosa alegoria da caverna, de Platão. Mas recorde-se a primeira conversa entre Neo e Morpheus, em que este último diz que o outro tem o olhar de quem espera que o que está acontecer seja um sonho e que a qualquer momento vá acordar, e acrescenta que isso não deixa de ser verdade. Não deixa de ser verdade, porque uma consciência adormecida é uma vida adormecida. Estar adormecido é viver na samsara (ou nas sombras da caverna de Platão). E, no filme, Matrix é metáfora de samsara. No início, Neo vive como que num sonho, na consciência comum, imerso na Samsara, na Matrix. Mas está ali, em frente de Morpheus, porque sente que há algo errado com o mundo, o conhecimento que ele tem, e que ainda não sabe, sempre esteve e está lá, dentro dele, à espera de se tornar consciente. Evidentemente, isto também nos lembra Platão. Mas aqui, com o budismo, a similaridade torna-se mais evidente. Como diz o budismo, todos nós somos Buda, mas a grande maioria não o sabe e nunca irá saber. Assim, Neo assume no filme a personificação daquele que quer descobrir o Buda que o habita, o Buda que é, apesar de haver também no filme alguma similaridade com a narrativa de Cristo, principalmente no uso da linguagem, “o escolhido”, “aquele que foi escolhido e que veio ao mundo para nos salvar.” Nessa primeira conversa, Morpheus diz “Matrix está em todo o lado, à nossa volta, aqui mesmo nesta sala. Você pode vê-la ao olhar pela janela, ao ligar a televisão ou ao ir para o trabalho. Quando vai à igreja, quando paga os impostos. É o mundo que puseram diante dos seus olhos para que não pudesse ver a verdade.” E a verdade, continua Morpheus, é que nós somos escravos. Nós nascemos numa prisão que não conseguimos nem ver, nem tocar. Uma prisão para a nossa mente. E esta é a própria definição de samsara. O mundo impede a consciência de se ver a si mesma. E o Matrix não pode ser explicado completamente ou mostrado, a não ser que se saia dele, que se alcance o despertar da consciência. É preciso alcançar o estado de buda – que em muitas tradições se chama Nirvana – para ver o Matrix. A mentira só pode ser vista quando já não estamos nela, quando estamos na verdade e a vimos de fora. É preciso alcançar o desabrochar (sanqyé) à imagem da flor de lótus, de modo a afastar a representação e ficarmos livres dos conceitos e das sensações. Aquilo que Morpheus está a dizer a Neo é que o Matrix só pode ser visto na sua totalidade através de uma experiência de cognição directa, quando a separação do sujeito-objecto desaparece. Porque a ignorância (avidya), em que todos estamos na samsara (matrix), consiste em confundir a realidade com a sua representação. Assim, quando Morpheus lhe dá a escolher entre as duas cápsulas, a vermelha, que o levará na viagem em direcção à verdade, ou a azul, que o deixará como está, a acordar na sua cama como se tudo não passasse de um sonho, Neo escolhe o caminho da verdade, o caminho do despertar da consciência, o caminho de Buda. E aquilo que primeiro choca Neo é precisamente o primeiro dos ensinamentos budistas: tudo é espaço (aliás, à imagem das novas teorias da física contemporânea, principalmente a Mecânica Quântica, que mostra que num átomo há muito mais vazio do que cheio). A própria palavra Bu (vacuidade) – da (compaixão), quer dizer abraçar o espaço com a consciência e com o coração. Há muito menos forma, aquilo que confere individualidade a nós e às coisas, do que espaço contínuo (sem forma). Mas nós somos parte desse espaço contínuo, nós somos vacuidade. Nada nos separa de nada. “Porque é que me doem os olhos?”, pergunta Neo, “porque nunca os usaste”, responde Morpheus. Na primeira vez que Neo luta, num treino com Morpheus, este diz-lhe: “Não penses que és rápido. Sê rápido.” E esta é a diferença fundamental para quem segue o caminho de Buda. Há que ultrapassar o pensar para ser. Há que ultrapassar os conceitos. E pouco depois diz: “Estou a tentar libertar a tua mente, Neo. Mas só posso mostrar-te a porta. És tu que a tens de atravessar.” É também isto, e apenas isto, que um mestre budista pode fazer por um discípulo, mostrar-lhe a porta, mostrar-lhe o caminho que ele tem de percorrer, mas é ele que tem de o fazer por si, sozinho. Apesar de se ter a mente liberta, diz Morpheus, quando estamos na Matrix (quando estamos na consciência comum, adormecida, diria um budista) as pessoas que nos rodeiam, que queremos libertar, são nossas inimigas, pois elas não estão preparadas para acordar. Porque é difícil largar a sensualidade do mundo. Há uma passagem central no filme, acerca disto. Cypher, que trai os companheiros, e a quem o agente Smith trata por senhor Reagan, quando no restaurante a jantar com o agente come um pedaço de bife diz: “Sei que este bife não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Depois de nove anos [com a consciência plena da realidade] sabe o que descobri? Que a ignorância é uma bênção.” Esta é uma passagem central do filme. Cypher / Regan [que nos remete para o Ronald Reagan, actor e presidente dos Estados unidos da América], está a trair os companheiros e a verdade em troca de um lugar ao sol na Matrix [ele pede para ser rico e importante, actor importante]. Isto é, ele renuncia à verdade para viver bem. Viver bem segundo os padrões Matrix ou, se preferirmos, os da sociedade onde vivemos. Viver bem segundo a sensualidade do mundo. E esta é também uma das dificuldades que os budistas apontam para a libertação. O mundo criou a ilusão de bem estar para tapar a verdade. E todos nós preferimos o bem estar, uma “vida boa”, regalada, ao sol, do que a verdade. E Cypher representa precisamente esta dificuldade, representa, no fundo, quase toda a humanidade. É como se a própria humanidade, ao criar o bem estar, a riqueza de uns sobre os outros, estivesse a conspirar contra si mesma, contra a libertação da própria humanidade. Neste caso, para o budismo, não são as máquinas que estão a criar uma realidade imaginária (como no filme), de modo a que os humanos não vejam a verdade, mas os humanos eles mesmos. A riqueza e o ideia de progresso são a armas que a humanidade usa contra a libertação de si mesma. Veja-se o que a respeito disto escreve o professor e pensador Paulo Borges, no seu livro O Coração da Vida (Edições Mahatma, 2ª Edição, pp. 26-7): “Surgiu assim com o Iluminismo, a ideia do ‘progresso’, entendido como a emancipação da humanidade, pelo trabalho, das necessidades do mundo natural e da subordinação da natureza, por via da ciência e da tecnologia, aos fins hedonistas, utilitários e materialistas da civilização. O resultado da crença fanática neste tipo de progresso, que se converteu num novo mito e na nova religião laica e globalizada, foram as sucessivas revoluções industriais, a superstição e o novo obscurantismo do crescimento económico infinito num planeta com recursos finitos, a devastação dos recursos naturais, a destruição massiva da biodiversidade e da diversidade cultural, a destruição, a industrialização e sofrimento da vida animal, a poluição e o lixo industrial, o aquecimento global e as mudanças climáticas, a sociedade obsessivamente mobilizada para o trabalho, produção, consumo e desperdício, com níveis de stress, ansiedade e depressão cada vez maiores.” E como não ver aqui nestas palavras o filme Matrix! Não apenas na sua base budista, mas também na sua base futurista e de ficção científica, de um mundo arruinado, destruído. De facto, os maiores adversários a qualquer tese budista são a ideia de progresso e o bem estar, que quase sempre andam de mão dada. E ao vermos para onde caminha esta ideia de progresso, bem se pode dizer que se trata de uma teoria da conspiração contra a humanidade. Quando Neo vai à Matrix pela primeira vez desde que viu a verdade, faz uma pergunta fundamental para o budismo: [depois de passar por um restaurante onde antes costumava jantar] “Tenho memórias da minha vida… E nunca aconteceram. O que é que isso significa?” E é a Trinity [Carrie-Anne Moss] que lhe responde: “Que a Matrix não pode dizer-te que tu és.” Ou seja, o mundo onde usualmente vivemos não pode dizer quem eu sou. Eu mesmo não posso dizer quem sou. Eu mesmo não existo, porque o “Eu” não existe. E é este o ponto de partida do budismo, a não existência do eu. Pois, como vimos anteriormente, há uma continuidade entre espaço e forma, entre vacuidade e todas as coisas. A nossa memória individual, singular, que nos confere a identidade, que nos permite dizer “eu, Paulo José”, que liga a criança que fui à pessoa de cinquenta e três anos que sou hoje, não passa de uma memória da samsara, uma memória de quem não vê a totalidade, the big picture, como se diz em inglês. Estamos convencidos de que somos quem somos, porque a memória que temos é uma memória que não corresponde à verdade, mas ao mundo, à “samsara”. Há também uma passagem, quase no início do filme, que foca em outro dos aspectos fundamentais do budismo, o Karma. É quando Neo, ainda no escritório onde trabalhava, recebe um telefone de Morpheus, que lhe dá instruções para fugir dos agentes que o foram buscar. E, de repente, ele diz: “Porque é que isto está acontecer comigo? O que é que eu fiz? Não sou ninguém. Não fiz nada.” Para o budismo, esta é a forma usual de lidarmos com as coisas, estamos depostos naquilo a que se chama “consciência comum”, a pessoa acha sempre que não tem culpa de nada, que nada do que lhe está a acontecer tem a ver com algo que ele tenha feito anteriormente. A isto, o budismo chama Karma, que é o facto de todos nós estarmos em rede, que cada gesto influencia os outros gestos, como um pedra atirada ao lago, que irá produzir ondas, mas também afectar as ondas que os outros produziram com as suas próprias pedras. Tudo se interliga a tudo e tudo influencia tudo. Cada acção nossa influencia o nosso futuro e o dos outros, ainda que não nos seja de imediato perceptível ou não seja perceptível de todo. Matrix é um filme que parte do budismo para nos mostrar que o humano conspira contra o humano, ainda que no filme sejam as máquinas que protagonizam essa conspiração.