A minha poética de Aristóteles

O quebra-gelo foi o primeiro oásis que a vida te concedeu. Desçamos então do passado ao presente: na tua frente flui o rio Amstel e as casas flutuantes onde habitam pessoas feitas de água, tranquilas como o gelo que emagrece o olhar. Na outra margem os edifícios marcam a paridade de uma grande sala vazia. As bicicletas têm galochas que raspam o grão de brita, completamente alheias à acção da gravidade e aos remansos da esplanada. Sobre o estrado, as torres de aquecimento permitem unir os joelhos, fechar o sobretudo e ter a mão e o cachecol amarelo sobre as folhas de papel. 
 
As vidraças do café percorrem toda a longitude que sopra de lés a lés nos acordes do violoncelo. Atrás do balcão, onde a islandesa (que é uma nuvem de beleza) apoia toda a brancura do corpo, encontra-se a galeria de arte e a sala de concertos. De lá chegam as grandes colheitas que fazem circular a manhã. O quebra-gelo, “Ijsbreker” no original, é um tiro com silenciador e sem necessidade de pistola. Por vezes nem o violoncelo se escuta, nem os pneus das bicicletas, nem o suspiro da islandesa que serve cappuccinos com a palidez dos lustres reflectidos no rio. 
 
Ao fim da manhã, o teu amigo José M. Rodrigues chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, corria o ano de 1983, tinhas acabo de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste. 
 
A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que logo precedeu a feliz etapa de recolecção. 
 
Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá falado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura da moça que parecia afinal inabitada).
 
Passado um trimestre sobre esse acontecimento, vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera, de novo com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma. 
 
Depois foste a uma festa, era perto. A anfitriã, uma pintora e vídeo-artista, tinha o costume de colocar uma mangueira muito esticada por baixo do tecto sempre que as visitas lhe enchiam a sala. Quando as hostes aqueciam, toda a gente levantava os braços no ar com as mãos agarradas ao tubo, dando a sensação de que toda a humanidade viajava de metro. “Um metro que tem deus como última estação”, repetia ela num inglês que tinha as vogais assarapantadas por consoantes de faca cortante, coisa comum nas línguas semíticas.
 
A linguagem do metro infinito surgia como uma espécie de resolução desse problema que éramos nós. Nós, os humanos. Um problema que discorria em voz alta. Todas as pessoas riam furiosamente nessas noites, mesmo quando contavam histórias do holocausto envolvendo os pais, os tios ou os avós. Nessa altura, aprendeste a deixar de estranhar aquilo que cada um de nós não é. Tornaste-te, a pouco e pouco, no cisne que desaparecia e que reaparecia para desse modo receberes o sabor (e o saber) de seres sempre outro. A folha a menos do teu primeiro romance era afinal uma graça: uma estação de metro a menos no metro infinito desse luminoso e invulgar oásis que é a vida.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

25 Mar 2021

E depois de morrer?

E depois de morrer? O que nos dizem os filósofos?

Para Aristóteles a essência precede a existência, tornando simples a compreensão de uma existência imaterial do ego. Essa essência imaterial é descrita como ininterrupta, sem princípio nem fim, uma vez que não interage com o corpo perecível. Descartes concorda com Aristoteles na sua alegação de que o único ato realmente verdadeiro e que é produzido pela mente é o pensamento. Já Tomás de Aquino concebe a essência humana como uma forma simples, que não se consegue na adição de matéria e forma, existindo nela, contudo, uma estruturação de ato e potência concretizada pelo corpo. O ser estaria para a essência como o ato para a potência.

A chegada do positivismo lógico e, posteriormente, da neurociência, tornam a especulação sobre estes termos um terreno enlameado para a reflexão científica, considerando a experiência espiritual primordialmente ilusória.

Se quisermos espreitar o que os contemporâneos têm escrito sobre o assunto, vale a pena passar os olhos por John Hick. Hick tenta encontrar uma alternativa que não rotule a linguagem religiosa como ilógica. Hick considera a objeção da neurociência insuficiente. Argumenta que os próprios neurocientistas muitas vezes não têm a perspicácia filosófica necessária para interpretar as suas próprias descobertas científicas e que muitos filósofos estão excessivamente agarrados à racionalização, dando uma mera atenção simbólica às descobertas da neurociência, assumindo uma visão de mundo naturalista à partida. O resultado é que se assume praticamente como facto, que a neurociência provou uma visão da existência como meramente materialista quando na verdade as evidências são ambíguas. Para Hick, os seres humanos não foram concebidos num estado perfeito num ambiente idílico, mas sim num processo contínuo de criação e existência multidimensional em que o ser progride através da experiência da morte e ressurreição atravessando estados de imaturidade nas realidades inferiores, até se aperfeiçoar em dimensões sucessoras e atingir o estatuto de moralidade perfeita.

Tendo em conta a característica da potencialidade ligada à identidade passível de ser recreada noutras dimensões, Hick vai buscar uma noção de ligação corpo-mente ou corpo-espirito que se encontra em vários pontos com a concepção de Tomás de Aquino. É, no entanto, impossível não pensar nessa evolução multidimensional da alma sem pensar no que o legado do budismo no deixou. Também no budismo há uma transfiguração do ser na sua própria evolução que parte dos chamados reinos inferiores até à iluminação. Não existe, contudo, a possibilidade da manutenção do ego. Isto é, o ego cumpre a sua função de existência concebida pelo ato mas a sua abnegação torna-se parte de um desempenho essencial para a evolução da existência não material. É precisamente neste ponto do pensamento sobre a ressurreição que me apercebo de uma particularidade: a ressurreição é “praticável”. A ressurreição não é apenas um ato automático se pensarmos que podemos contribuir ativamente através da cognição e da experiência para um aperfeiçoamento do ser. A vantagem dessa prática é que esse aperfeiçoamento pode ser sentido nesta dimensão, à falta de clareza sobre a existência de outras. Estar presente e desapegar-se do ego porque perecível, é uma prática recorrente em grupos de pessoas das mais diversas áreas – da arte à ciência – que procuram viver com presença e com disciplina emocional, promovendo um maior entendimento do ato de existir e, dessa forma, facilitar a concretização de possibilidades. Esta prática da ressurreição interna torna-se assim mais concreta, um plano de trabalho, uma forma de estar. O trabalho interior vale sempre a pena mesmo que não saibamos que impacto pode ter em possíveis vidas futuras porque, mesmo que não ressuscitemos depois de morrer, podemos sempre encontrar alguém novo em nós todos os dias desta vida.

5 Mar 2021

O longínquo

[dropcap]O[/dropcap] que depende de nós e o que não depende nós é um operador da ética antiga. A formulação encontra-se em Aristóteles já como termo técnico, mas são os estóicos, designadamente Epicteto. O que está de facto nas minhas mãos e o que não está? O que depende de mim e o que não depende de mim? Posso ou não posso, sou capaz ou não sou capaz? Consigo ou não consigo? Estas perguntas têm domínios de interrogação, objectos relativamente aos quais cada um de nós se pode comportar. Os horizontes podem alterar-se. Cada um de nós olha para campos de possibilidade que num dado momento da vida não são para nós, mas depois podem vir a ser. Esses mesmos campos de possibilidade deixam de o ser.

Qualquer que seja o motivo, há coisas que dependem de nós e outras que não dependem de nós. Há coisas que nos acontecem por acaso, por sorte ou por azar, por necessidade ou por acidente. Outras há que são o resultado da nossa vontade, do nosso trabalho, do nosso empenho, de querermos tê-las adquirido. Os antigos compreendiam claramente que há coisas que não podemos ter. Há coisas que não poderemos nunca ter. Mas não é por não podermos tê-las que não as desejamos. Temos um desejo imenso de eternidade.

Desejo não é apenas uma veleidade. Quer dizer uma falta que se sente. Imenso quer dizer incomensurável. Temos uma sempre quer consciente quer inconsciente uma falta desmesurada de eternidade. De um modo positivo, queremos viver para sempre, queremos que quem amamos vivesse para sempre. Ora isto não está nas nossas mãos. A mortalidade da alma constitui a nossa essência. Há filosofias que se edificam a partir deste facto não anulável, inexorável da existência humana. A religião promete a vida eterna depois desta vida neste mundo, sob cláusula da existência de Deus. Mas a própria ideia que nos é mais próxima e autêntica e genuinamente humana, a da liberdade depende da possibilidade não anulável, inexorável e implacável da morte. Se não está nas minhas mãos decidir poder não morrer, como posso ser livre? Posso escolher morrer já? E como posso saber se não era esse o momento que me estava destinado e o modo que estava traçado, coincidindo a minha vontade subjectiva com a oportunidade objectiva que a morte me apresentava na ocasião? Por outro lado, a nossa mente tem também a capacidade de tornar tudo impossível, quando transforma todos os objectos reais, possíveis até, susceptíveis de serem adquiridos por nós, em objectos simplesmente impossíveis. Qualquer objecto transformado em objecto impossível é desejado com aquela falta com que se deseja a imortalidade. Toda a impossibilidade que desejemos se transforma no objecto pelo qual nos apaixonamos, mas faz-nos amá-lo de um modo infeliz.

A ilusão projecta-se sobre um sem número de coisas, pessoas, actividades, sobre nós próprios, sobre as nossas relações com as coisas, sobre os nossos comportamentos, sobre as nossas versões pessoais, sobre o que nós queremos de nós próprios para o futuro e diz-nos que não, que é impossível, que não vamos lá chegar, que não é para nós. A ilusão da paixão faz-nos querer com paixão objectos impossíveis não antes sem os tornar impossíveis. O amor eterno mas infeliz do desejo do sonho de impossível transforma o real e o possível em impossível. Logo que o impossível se converte em possível— é possível que coisas impossíveis aconteçam— o amor eterno, o desejo de impossível, desfazem-se. O que é um sonho concreto senão a realidade? A realidade é o contrário do sonho não pode ser o sonho.

Mas os antigos tinham boas razões para falar no que depende de nós e no que não depende de nós. É que a liberdade não é uma ilusão. A morte é a chave da vida. A morte não fica fora da vida. Enquanto vivemos, a própria existência é a deposição continua no tempo da situação em que nos encontramos até ao último momento. A procura pelo sentido terá sempre de ser uma procura pela inteligibilidade que dê sentido à promessa do sonho, ao voo do desejo não do impossível mas do possível, à possibilidade que possibilita, ao amor que arranca a realidade que nos deixa inerte, inactivos, feridos, para morrer, e levanta, eleva, faz mexer, expande do sítio fechado da fronteira anatómica do corpo, para o vento que sopra, o mergulho atlântico, o vento norte, a atmosfera, a chuva cósmica, o raio solar, o longe, o mais longe, o longínquo.

12 Jun 2020

Apresentação de um livro perdido e actual

[dropcap]V[/dropcap]em agora a lume As Constituições Perdidas de Aristóteles, com tradução do filósofo António de Castro Caeiro. Trata-se de um livro envolto em mistério e polémica. Logo na introdução, Caeiro escreve “Os fragmentos são citações de livros perdidos, imputados a Aristóteles. (…) Os fragmentos foram coligidos a partir de obras de outros autores e cobrem um período de mais de mil anos.” Adiante, o filósofo que aqui faz de tradutor acrescenta: “Aristóteles não escapou ao processo de falsificação.” Estamos, por conseguinte, diante de um livro que levanta inúmeros problemas, mesmo antes de analisarmos o seu conteúdo. Mas os olhares que mais me interessam salientar neste livro são outros e dois: o literário e o político, ambos extremamente contemporâneos, actuais. E começo pelo sentido político que grassa as páginas deste livro.

Ao lermos estas Constituições não podemos deixar de ser invadidos pelo sentimento de estranheza que habitava estes povos, que no seu conjunto constituíam a Hélade. Ao lermos o livro vemos bem que o mundo é todo ele constituído de diferenças, de estranhezas. O mundo é um lugar estranho. E é este o ponto de vista que grassa os fragmentos. As palavras mostram esta estranheza que é a verdadeira dimensão do humano. Só quando está a sós e sem pensar é que um humano não é estranho para si próprio. Fora desse momento a estranheza invade-o e tudo para quanto olha aparece como não sendo familiar. Ao se agrupar num mesmo texto estes fragmentos sobre “outros povos”, pois é disto que se trata, está-se a promover a visualização da diferença numa tentativa de compreensão do outro. O tom do livro não é o da crítica ou repulsa do hábito do estrangeiro, mas do espanto e da tentativa de aproximação, de querer entender, de querer ver para além da evidente distância que há entre esse hábito e o nosso.

Num dos fragmentos, o 611, III parte, Constituição de Creta, 15, ficamos a ver que a hospitalidade aos estrangeiros não era comum, fazendo dos cretenses um povo à parte. Escute-se esta passagem: “Todos os cretenses costumavam-se sentar em cadeiras. Foram eles os primeiros a partilhar alimentos com os hóspedes. Depois de terem dado uma parte do rendimento aos hóspedes, davam quatro porções ao rei: uma tal como deram aos outros, a segunda para o seu reinado, a terceira para a sua casa e a quarta para as suas peças de mobiliário. Em geral, em Creta há uma enorme boa vontade para com os estrangeiros. Também lhe chamavam o lugar de honra” Há aqui de algum modo, com o elemento que nos parece estranho de mostrar terem sido os cretenses os primeiros a sentarem-se em cadeiras, um elogio aos cretenses, mostrando que eram um povo evoluído, civilizado, e que isso se mostrava também ou principalmente pelo modo como tratavam os estrangeiros. Como se a atenção ao diferente fosse uma marca de civilização, uma marca de evolução, fazendo da aproximação entre os humanos uma mais-valia, um universal desejado e ambicionado.

Quero, contudo, deixar claro que este esforço pela anulação da distância não vai promover a anulação da estranheza. Veja-se como exemplo o fragmento 611, Constituição de Esparta, 13: “As mulheres espartanas não tinham nenhum adorno, nem sequer podiam trazer o cabelo comprido ou andar com ouro. Alimentavam os filhos de tal sorte que nunca ficassem saciados, para que se habituassem a ser capazes de suportar a fome. Também os ensinavam a roubar e castigavam com açoites quem fosse apanhado a roubar, para que fossem capazes, como resultado deste treino, a sofrer e a permanecerem acordados se caíssem em mãos inimigas.

Começavam logo desde crianças a falar de forma breve e a serem comedidos tanto a gozarem com os outros como a serem gozados pelos outros. As suas sepulturas são simples e iguais para todos. Entre eles ninguém coze pão, pois não têm farinha de trigo, mas apenas cevada.” Mas talvez os fragmentos em que este esforço de entender a diferença, o estranho, apareçam de modo mais claro sejam os fragmento 538 e 539. Vejamos primeiro o 538: “A krypteia era chamada a agência secreta dos lacedemónios – se é que se tratava de um dos órgãos de governação de entre os que foram incluídos na constituição de Licurgo, como nos informa Aristóteles.

Como quer que tenha sido, permitiu a Platão formar uma opinião sobre a Constituição dos Lacedemónios e Licurgo. A krypteia agia assim: os comandantes jovens enviavam, de tempos a tempos, aqueles que lhes pareciam ser os mais inteligentes para o campo, apenas com um punhal e ração de sobrevivência. Mais nada. Escondiam-se durante o dia, espalhados por locais desconhecidos, e descansavam. Mas, de noite, faziam-se a caminho e assassinavam todos os Helotas que apanhassem. Aristóteles diz ter sido sobretudo quando os Éforos chegaram ao poder que decidiram declarar logo guerra aos Helotas, para o massacre poder ser praticado sem violação de escrúpulo religioso.” Percebemos claramente, no final, o esforço de Aristóteles em incutir racionalidade a um acto que em si mesmo parece falido de razão.

E iremos ver o mesmo no fragmento 539: “Como diz Aristóteles, quando chegaram ao poder, os Éforos mandaram anunciar aos cidadãos que deviam cortar o bigode e obedecer às leis, para não terem de ser duros com eles. Eu acho que propuseram a coisa do bigode para que os mais novos se acostumassem a obedecer, mesmo a respeito dos mínimos detalhes.” Embora este último fragmento tenha um carácter cómico, à luz dos nossos dias, se em comparação com o primeiro, a verdade é que estamos diante da mesma espécie de fenómenos: por um lado a prepotência e irracionalidade dos actos perpetrados e, por outro, uma tentativa de compreensão, de conferir racionalidade ao que nos é estranho.

Mas voltando ainda ao espectro da estranheza e da diferença, e neste caso em relação a nós aqui e agora, leia-se o fragmento 542: “Aristóteles diz que na Constituição dos Lacedemónios que estes usavam para os combates um uniforme cor de púrpura e isto por dois motivos. Primeiro, por causa da virilidade da cor. Depois, porque o sangue é dessa cor e assim ajuda a fazer pouco caso do sangue derramado.” Esta ligação da cor púrpura à virilidade soa-nos claramente estranha. Mas imbuídos do espírito do livro, deste exercício de aproximação ao estranho e distante, ficamos presos ao segundo argumento, o de ser duma cor semelhante à do sangue e por isso ter ou poder ter efeitos práticos e úteis.

Esta aproximação contínua ao estranho e diferente faz deste livro um livro actual. Actual, porque necessário aqui e agora. Falta-nos hoje, e cada vez mais, este exercitar-nos na aproximação ao diferente e estranho. Aliás, o que temos visto recentemente é o nosso mundo a caminhar cada vez mais para uma anulação do diferente.

Caminhamos perigosamente, e na contramão deste livro de Aristóteles, não num conferir racionalidade ao que nos parece carecer dela, mas conferir irracionalidade ao que nos escapa por falta de exercício racional. Isto só por si faz deste livro um livro urgente, um livro que tem um uso actual e necessário. Um livro político, na melhor acessão da palavra.

Do ponto de vista literário, estes fragmentos estão repletos de pequenas pérolas narrativas, como se se tratassem de micro-contos, que, no seu conjunto, acabam por nos dar um retrato panorâmico da Antiga Grécia e da sua enorme diversidade. Relatos que nos instiga a querer ver mais do que nos é contado, a imaginar, a fazermos nós uma continuação daquilo que nos é contado, que é a função da grande literatura. E apenas como exemplo disto, vou ler-vos o fragmento 609: “Aristóteles, o filósofo, relata que alguns dos Gregos, quando regressavam de Tróia, foram surpreendidos, ao contornar o cabo Maleia, por uma tempestade violenta.

Arrastados pelos ventos durante tanto tempo, vaguearam por muitos mares, acabando por ir dar a um local de Ópica, chamado Lácio, e que fica no mar Tirreno. Contentes por verem terra, puxaram os barcos para aí mesmo passarem a estação das tempestades, preparando-se para partir quando chegasse a Primavera. Então, numa noite depois de o fogo lhes ter destruído as embarcações, sem saber o que fazer para prepararem a partida, a inevitabilidade inesperada obrigou-os a fazerem vida justamente no local onde tinham ido dar. Isto aconteceu-lhes por causa das mulheres cativas que traziam de Tróia. Foram elas quem incendiou as embarcações, com medo da partida para a casa dos Aqueus, porque uma vez lá chegadas iriam para a escravidão.” Estamos assim perante uma versão da fundação da cidade de Roma, mais literária e mais humana do que a versão mitológica conhecida. E ao longo deste livro temos várias pérolas literárias semelhantes a esta.

Terminava esta apresentação voltando à estranheza que percorre as páginas deste livro e que não vos deve ter passado despercebido ao escutarem os fragmentos que vos li. De facto, a estranheza está não só no conteúdo, para nós agora e para os povos da Hélade, confrontados uns com os outros nos seus hábitos, mas também na forma, neste confronto entre as línguas gregas que falam nos textos originais e a nossa língua portuguesa. Resta agradecer ao António de Castro Caeiro este livro fazer agora parte da nossa língua.

7 Dez 2018

A voz do vidro

Público, 14 Agosto

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo resistir ao estilhaçar de ironias causado pela notícia da queda de um visitante na escultura de Anish Kapoor, Descida para o Limbo (foto na página de Filipe Braga)? «Serralves está a acompanhar a situação clínica do visitante italiano, com cerca de 60 anos, que sofreu ferimentos quando caiu naquela escultura.» Podia a frase pertencer a conto do (tão meu) Mário-Henrique Leiria. O círculo negro no chão cumpre a sua função de perturbar com enganadora maneira o chão que pisamos. O escultor explora o vazio e procura pelos meios ao seu alcance mexer com a nossa percepção, em busca de outros lados, espaços negativos, chama-lhes. Não têm que ser físicas as armadilhas da arte, mas em servindo para alguma coisa, além da salvação do artista, há-de ser esta de se meter nos interstícios das coisas, ampliando-as. Ou encolhendo-as ao mínimo de uma noção. Limbo é um subúrbio do céu, construído para abrigar aqueles, justos e crianças, que não foram baptizados. Na teologia católica, segundo Borges, ramo da literatura fantástica.

Facebook, nenhures, 16 Agosto

Voz assim não se calará nunca. Por efeito de contiguidade, dei por mim a pensar que escultura poderia Kapoor imaginar a partir de Aretha Franklin (1942-2018). Orgânicos corredores vermelhos facilitando à superfície deambulações pelas vísceras? A sua voz explorou os côncavos do amor e do sofrimento, o sagrado e o profano, de modos, a um tempo, dilacerantes e prazerosos. Por inteiro, testemunhou um tempo, ou melhor: tempos, que foi capaz de eternizar fundindo-os em áspero diamante. Cai-lhe como vestido brilhante o nome de Lady Soul, ainda por cima baptismo de momentos iniciais. A máquina de produzir simbólico que são os Estados Unidos da América tocou o meu céptico coração com a sua participação vibrante na tomada de posse do presidente Obama. Por causa das coisas, as minhas horas procurarão um qualquer Spirit in the Dark. Aprenderei a dançar com as sombras? «Sure I know I can, I can borrow a smoke/ Why I can sit here all night and tell jokers some jokes/ But who’s gonna to laugh, / Who’s gonna laugh at my broken heart, heart.» Lá estou eu, Drinking Again.

Horta Seca, Lisboa, 17 Agosto

Esqueçamos por ora o momento primordial da escolha. Um editor realiza-se na preparação da obra, retirando do processo grande gozo e não menor ensinamento. Andamos a desenhar uma colecção para acolher os clássicos em duas vertentes, uma de traduções e outra de ensaios. A abordagem gráfica do Miguel [Macedo] pareceu-nos a melhor, para acrescentar um grão de sal ao conservadorismo que se pede. Quisemos descomplicar ao máximo a vida ao leitor, colocando cada expediente ao serviço do texto, que só por si será rico em excepções e notas. Cada detalhe da construção do livro suscita riquíssimo debate.

Não por acaso, e depois de tanto tardar, começamos com As Constituições Perdidas de Aristóteles, na tradução do mano António [de Castro Caeiro]. Uma micro enciclopédia sobre o mundo antigo, que se desdobra também em livro de viagens, carregado de momentos entre a luz e as trevas. «Aos Beócios, a divindade deu a seguinte resposta oracular: “domiciliem-se onde corvos brancos forem avistados”. Logo que viram as aves de Apolo, corvos brancos, pintados com giz por crianças inocentes, a voar em torno da baía de Págasa, ocuparam o local. Mais tarde, os Eólios expulsaram-nos dali e enviaram exilados para o mesmo local. Outros [interpretavam assim o oráculo, dizendo que era] porque o corvo é um animal sem vergonha e indica a proximidade do ocaso ao género humano. Aristóteles, por outro lado, diz que quando uma praga atacou, havendo muitos corvos, os homens capturavam-nos e depois de os terem purificado, punham-nos vivos em liberdade. E ordenavam à praga: “refugia-te nos corvos”». Assim nos fazemos crianças inocentes pintando de branco animais sem vergonha, dos que indicam ao humano a proximidade do ocaso.

Trindade, Lisboa, 20 Agosto

Casos há em que a preparação começa antes. Tive hoje primeiro mergulho em apneia no acervo de Tóssan, esse cometa das artes gráficas, além da escrita humorística e, afinal, um pouco mais, sobretudo contos e alguns poemas. São centenas de páginas, manuscritas na sua maior parte, generosamente disponibilizadas por amigos dilectos. Lição de humildade, este perceber que podemos ser reduzidos a meia dúzia de folhas conservadas pela amizade. O autor tinha planos para a papelada, tropeça-se em tentativas de arrumação, depuradas até ao singelo alinhamento que será a base das fases seguintes. Por ocasião de tais leituras, como que titubeantes, encontramos invariavelmente motivos de espanto. Veja-se este pequeno conto, que ilustra à transparência dias de tactear no nada.

«É preciso ter coragem para partir um vidro.
Nunca parti um vidro, mas sinto que é uma cobardia.
Tive sempre respeito pela limpidez de um vidro.
Tenho a impressão que os estilhaços se insinuariam na minha mágoa.
E depois o vidro tem voz. A voz do vidro é duma musicalidade fria, cortante. Não é só o grito emancipado, mas a multiplicação de gritos ao cair no chão, como se o primeiro protesto não fosse o suficiente.
E quando se pisam os estilhaços – é um longo lamento de rãs sem disciplina.
E depois o vidro quando quebra deixa uma cicatriz fosca cúbica que risca a noite ou o silêncio do dia.
Se o vidro não protestasse com violência, talvez as montras não fossem de vidro. A voz do vidro deve ser o guarda do próprio vidro. E quando tornasse a passar pelo lugar onde esteve o vidro, ainda por substituir, sentiria, quem sabe, os olhos doerem por não ver e a certificação do tacto gasta de tactear no nada.

Os estilhaços são o testemunho da agressão.»

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Pouco importa que seja este mês pulverizado, cheio de ausências brancas e brandas vontades. Tumultuosa ou plácida, a gestão corrente obriga-nos a trocar o essencial por um esmagador acessório. Há cobranças por fazer, pagamentos atrasados, gritos presos na garganta, impostos ameaçadores, formalidades por cumprir, direitos a pedir e outros a ceder, projectos a definir em papel, avaliações a ponderar, arrependimentos avulso, decisões tomadas e outras adiadas, impaciências por tolher, explicações que tardam, impressos a preencher, regras e mais regras de um negócio que me cheira ser dos mais estúpidos. O telefone, de súbito, cresce feito instrumento de tortura. Um único email estraga o dia por completo. Uma reunião que dura há semanas. E agora mesmo a suposta ajuda revelou-se obstáculo. Dia que se preze tem, pelo menos, uma crise, um buraco, quando não inferno, limbo.

29 Ago 2018