Andreia Sofia Silva Grande Plano MancheteLiteratura | “Poemas de Su Dongpo” lançado hoje em Lisboa É hoje lançado no Centro Científico e Cultural de Macau um novo livro de poesia chinesa com tradução, introdução e notas de António Graça de Abreu. Editado em Portugal com a chancela da Grão-Falar, “Poemas de Su Dongpo” é uma compilação de escritos do poeta da dinastia Song, que pela primeira vez foi traduzido para português A história da China está repleta de poetas. Depois de se debruçar sobre grandes nomes da poesia chinesa clássica do período da dinastia Tang, como Li Bai ou Wang Wei, António Graça de Abreu está de regresso às traduções, desta vez com a poesia de Su Dongpo, um dos grandes poetas do período da dinastia Song (960 a 1278). “Poemas de Su Dongpo” é o nome do novo livro lançado hoje no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), com a chancela da Grão-Falar, nova editora lançada em Portugal por Carlos Morais José, director do HM. Pela primeira vez será possível ler, em língua portuguesa, os poemas do poeta muito amado na China e bastante estudado no país e no estrangeiro. Dos mais de mil poemas que Su Dongpo escreveu em vida, António Graça de Abreu escolheu 170 para esta obra. “Ele escreveu cerca de 1300 poemas e eu escolhi aqueles que me pareceram mais fáceis de traduzir para língua portuguesa, garantindo alguma qualidade literária. É sempre a minha preocupação, que os poemas traduzidos para língua portuguesa possam soar bem e tenham essa qualidade. Mas estamos sempre longe da maravilha do poema em chinês, porque lê-lo só seja possível a quem sabe muito da língua e quem entende bem a cultura chinesa”, contou ao HM. António Graça de Abreu diz estar “satisfeito” com o livro que é hoje lançado, por ter conseguido “dar um lado chinês a estes poemas em português”. “Poemas de Su Dongpo” tem “a qualidade necessária para que qualquer pessoa consiga ler e entrar dentro da China clássica, e isso para mim é o mais importante nas traduções”. António Graça de Abreu não traduziu os poemas de Su Dongpo directamente do chinês, tendo recorrido a algumas traduções deste poeta já existentes em inglês. “Tenho sempre ferramentas que me ajudam a traduzir os poemas. Comecei a estudar chinês com 30 anos, muito tarde, e tenho algumas dificuldades, pois não conheço todos os caracteres. Além disso, falamos de um chinês clássico, do período da dinastia Song. Os próprios chineses têm dificuldade em perceber a poesia chinesa do passado.” Graça de Abreu, que viveu em Pequim nos anos 70, destaca que é sempre “difícil traduzir directamente dos originais chineses”, fazendo-se sempre acompanhar de dicionários e de outras traduções para línguas ocidentais. “Muitas vezes não entendemos a sequência dos caracteres e há poemas que funcionam em chinês, mas que são intraduzíveis para português ou outra língua ocidental.” Um mandarim peculiar Nascido em 1137, Su Dongpo foi um mandarim, ou seja, um funcionário público que se destacou em algumas funções oficiais, mas que também caiu em desgraça. Viveu na dinastia Song, que se caracteriza como sendo o “período áureo da poesia chinesa”, dando-se a “consolidação cultural do império”. Era um período dos “exames imperiais que privilegiavam a meritocracia”, ou seja, o subir na hierarquia pública mediante o conhecimento dos candidatos, e Su Dongpo “vai ser um dos homens mais brilhantes deste período como funcionário estatal a governar várias regiões da China”, a função que os mandarins desempenhavam à época. Su Dongpo “esteve também sujeito a algo que era muito vulgar na China que era a despromoção de mandarim, que poderia cair facilmente em desgraça”. “Quando isso acontecia era marginalizado e colocado noutra região com postos insignificantes, quase numa espécie de degredo intelectual. Isso aconteceu com Su Dongpo. Os mandarins caíam muitas vezes em desgraça porque contestavam as ordens que vinham de cima. Era a política, que passava por estas subidas e descidas de quem manda, e a China tem uma longa tradição nisso”, conta António Graça de Abreu. Adversidades na poesia Apesar de caído em desgraça, tendo inclusivamente recebido uma condenação à morte, Su Dongpo nunca viveu de forma amarga. “Este homem também teve os seus problemas ao longo da vida. É curioso que Su Dongpo era um homem muito sábio e conseguiu transformar essas descidas, em que caiu em desgraça e passou a ter menos importância, em períodos de paz e de tranquilidade pessoal, dedicando-se mais à poesia e ao entendimento do homem com a natureza”. Essa temática “é fundamental na sua poesia”, sobretudo para um homem que esteve tão ligado ao budismo. “Ele não transformou essas quedas políticas em coisas más, e isso nota-se na sua poesia. Su Dongpo tem muitos poemas sobre a ideia de saber viver e de envelhecer, uma coisa que é muito útil nos dias de hoje, se estivermos atentos à filosofia e modo chinês de ver o mundo.” Falecido com 67 anos e viúvo três vezes, Su Dongpo tem também poemas sobre as mulheres que amou, colocando-as num pedestal. “Ele foi casado três vezes e todas as mulheres morreram antes dele. É impressionante. Ele descreve o que sentia quando as esposas faleceram, faltou-lhe o apoio feminino, e ele levou as mulheres a um patamar que não era comum na China, em que eram subjugadas ao homem. Para Su Dongpo não era assim, ele tinha uma adoração pelas mulheres.” Além de ter escrito um poema sobre o filho falecido, Su Dongpo compôs também diversos escritos sobre um irmão, de quem era muito próximo. “Tinha ainda poemas de crítica, além de ser também um bom escritor de prosa. Ele explica muito bem a época em que viveu e o que lhe aconteceu. Explica muito bem a China dessa altura que é, se calhar, a China de sempre”, acrescenta o autor. Dedicado ao sogro António Graça de Abreu descreve que Su Dongpo é, ainda hoje, “um poeta querido pela maioria dos chineses”, tendo ficado surpreendido quando percebeu a forte presença da poesia na música ou no cinema que são feitos no país. “Têm sido feitos filmes e canções sobre este poeta na China, faz-se um aproveitamento, nos dias de hoje, por parte de cantores chineses de alguns dos seus poemas. E isso porque ele escreve sobre a arte de saber viver, a ideia do ying e do yang, de coisas que têm de correr bem e mal. É um homem que nos reconforta a vida, e é um nome que me tem acompanhado.” António Graça de Abreu dedica “Poemas de Su Dongpo” ao seu sogro, falecido este ano com 93 anos. “O meu pai chinês foi o meu companheiro na ligação à China nestes últimos anos. E ele era tão parecido com Su Dongpo, aprendi muito com ele. Ele era o bom chinês, que sabia aproveitar as vicissitudes da vida para transformá-las num pequeno ou grande conforto, esquecendo-se das maldades que os homens têm dentro de si próprios.” Com esta obra, António Graça de Abreu pretende chamar a atenção para um período do império chinês, e da própria poesia chinesa, muito pouco conhecidos em Portugal. “É um poeta muito pouco conhecido em Portugal e vale a pena chamar mais a atenção para o período da dinastia Song. Infelizmente a nossa sinologia é pequenina, temos poucos sinólogos portugueses”, lamenta. A sessão de apresentação do livro acontece hoje no CCCM a partir das 17h30, contando com a presença de Ana Cristina Alves, coordenadora do serviço educativo do CCCM.
António Graça de Abreu Via do MeioYuan Mei – Palavras Poéticas Tradução e textos de António Graça de Abreu Yuan Mei 袁枚 nasceu em Hangzhou em 1716. A cidade, na margem do lago Oeste, em Zhejiang, com mil e quinhentos anos de história, será talvez a mais bonita capital de província de todo o império chinês, rodeada de montes e florestas, polvilhada de templos e pavilhões, com um lago enorme que nas margens se desdobra em recantos onde são possíveis quase todos os encantamentos do mundo. Hangzhou está embebida no lastro do passado, recordando mil vilanias e todos os prazeres. Yuan Mei, talvez o maior poeta da dinastia Qing (1644-1911), provinha de uma família de modestos letrados da cidade. Seria ele o primeiro mandarim da família, grau que obtém nos exames imperiais aos 23 anos. Exerceria as funções de funcionário estatal apenas durante nove anos. Voltou ainda aos afazeres de mandarim, mas tinha pouco ou nenhum gosto pelas malhas do poder, um dos seus maiores prazeres era nada ter que fazer e dedicar-se apenas à escrita e à leitura. Os seus poemas começavam a ser conhecidos e tinham venda. Ele próprio acabaria por montar na sua casa uma espécie de tipografia, com painéis de impressão com pranchas de caracteres móveis em madeira. Editava assim os seus próprios livros e obtinha avultados rendimentos. Com menos de quarenta anos, Yuan Mei retirou-se para uma grande mansão que comprou em Suiyuan, nos arredores da também bonita cidade de Nanquim, e, com muitas viagens de permeio, aí viveu até ao fim da sua longa vida. Fechou os olhos, para sempre, em Dezembro de 1798, aos 82 anos de idade. Três poemas de Yuan Mei 袁枚 (1716-1797) , Contemplando um amigo que toca flauta ao luar Noite de Outono, visito um ermita meu amigo. Vem até mim a música, acordes perfeitos debaixo do céu, ondeando na superfície do lago, à luz fria do luar. O trinar de uma flauta, o coração do amigo, a melodia agarra nuvens azuis que descem sobre as águas. Encontramo-nos no meio de perfumes coloridos pelo rosa das flores de lótus, cobertas de gotas de orvalho cristalino. Na claridade prateada humedecidas nossas vestes. Na estrada para Baling[1] A oeste do lago Dongting, um templo, uma deusa no altar, jovens de sobrancelhas pintadas confortam viajantes cansados. A região montanhosa, vazia de gentes, as tendas fechadas, distantes os faróis na margem, a minha barca ao entardecer. Não entendo o dialecto do lugar, preciso de alguém para traduzir, pássaros estranhos, de nomes desconhecidos, envergonham o poeta. Raros barqueiros conhecem a minha vontade, o meu sentir, levanto a janela do barco, por toda a parte, ramos em flor. [1]Baling, ao lado da actual cidade de Yueyang, famosa pelo torreão junto ao lago Dongting, na província de Hunan. Aceitando a minha sorte Fechado em casa assumo os dias como um pobre poeta. Acumularam-se os anos, entrei agora no carreiro dos velhos. Fascinado por montanhas rodeadas de nuvens esqueço a minha própria terra, por vizinhos, tenho macacos e pássaros. Abandonei todos os meus cargos, dedico-me a fruir o prazer de existir. Porque não tenho um filho varão. vou casando, vez após vez.1 Esqueci o grande talento que julgava ter para mandar e governar, e aceito ser um simples poeta, minha sorte, meu destino. [1] Só aos 62 anos, Yuan Mei conseguiu ter um filho rapaz da sua quarta concubina. Nas últimas duas décadas da sua vida, Yuan Mei entreteve-se a redigir um vasto conjunto de Shi Hua 詩話, Palavras Poéticas, utilizando sobretudo a prosa. Com esta denominação apareciam desde o século XI inúmeras recolhas de textos breves da autoria dos mais diversos letrados. Yuan Mei não inovou no título dos seus escritos. Tratava-se fundamentalmente de pequenos excertos autobiográficos, meditações sobre a essência da poesia, vidas de poetas, anedotas, etc. Por exemplo: “Wang Chizi foi meu colega nos exames de 1744. À entrada na sala das provas, recitou um poema da sua autoria com o título Junto de túmulos antigos. Assim: Sombrio, triste, minúsculo o antigo templo, um mocho descansa nas gravuras do arco de pedra. Ainda é dia quando quem perdeu entes queridos se reúne e prepara as cerimónias fúnebres. Enorme confusão de cavalos e carruagens. Eu ousei perguntar-lhe porque é que ele parecia tão satisfeito por ter escrito este poema,. Wang Chizi sorriu e disse: “Fecha os olhos e pensa.” Outro exemplo: Os taoistas para ascender ao céu precisam de fabricar nove vezes os seus pozinhos da imortalidade. Os confucionistas apreciam sobremaneira a rectidão e o meio justo. Um cozinheiro conhece bem a sua arte, sabe como controlar o fogo, como manter o lume. Yuan Mei continua questionando o leitor. Alguém me perguntou qual o nome do melhor poema escrito durante esta dinastia. Eu argumentei, perguntando: qual é o melhor poema do Shi Jing, (o Livro das Odes.)[1] Não obtive resposta. Então disse: A poesia é como as flores, uma orquídea na Primavera, um crisântemo no Outono, não podemos dizer que uma é melhor do que a outra. Quando a música das palavras e a ideia na concepção do poema emocionam um coração, estamos diante de um bom poema. E continua Yuan Mei: O poeta Yang Wanli (1124-1206) terá escrito “Porque é que as pessoas com pouco talento literário sempre falam sobre métrica e a utilização dos tons em poesia? A métrica e os tons são apenas a armação e não é difícil levantá-los. Mas é na concepção do poema que se expressa o génio do poeta, é aqui que se mostra a sua qualidade. Outro exemplo da prosa breve de Yuan Mei, citando Bu Xian um amigo presidente de uma academia em Guilin onde o nosso amigo o encontrou em visita que fez à cidade, em 1784: Bu Xian disse: “A poesia nasce do coração e depois faz-se com as mãos. Se o coração controla a mão, está tudo bem, mas se a mão faz o trabalho do coração, está tudo errado. Hoje em dia, muitos imitam as bases da poesia, copiam um pouco daqui e de acolá, usam tudo o que está amontoado em pilhas de papel velho em vez de contarem com o que brota dos seus próprios sentimentos. É o que eu chamo ‘A mão fazendo o trabalho do coração.’” Na China do século XVIII aconteciam ainda acaloradas discussões sobre a poesia do passado. Yuan Mei explica: A divisão da poesia entre estilo Tang e estilo Song continua hoje a manifestar-se. Isto corresponde ao facto de muitos ignorarem que a poesia é o produto dos sentimentos dos homens, enquanto que Tang e Song são simplesmente nomes de duas dinastias. Os sentimentos das gentes não mudam com o renovar das dinastias. Para terminar, uma referência a um incerto poeta chamado Tai Yuyang: Este senhor escreveu o seguinte verso: “O ar da noite envolve os montes/ apequena-se a terra e o céu.” A beleza reside na margem existente entre o inteligível e o não inteligível, trata-se de dois versos primorosos. Mas quem foi Tai Yuyang, o autor? Não faço a mínima ideia.
Andreia Sofia Silva EventosLi Bai | Traduções de António Graça de Abreu reeditadas em Portugal “Cem Poemas de Li Bai (701-762)” é o nome do livro com traduções de António Graça de Abreu que acaba de ser editado em Portugal pela mão da empresa Vela Chinesa. Depois de uma primeira edição em Macau nos anos 90, este livro é totalmente bilingue, incluindo o prefácio e as anotações dos poemas Já está nas livrarias um novo livro de poemas chineses traduzidos por António Graça de Abreu, académico, autor e tradutor de poesia chinesa. “Cem Poemas de Li Bai (701-762)” é uma edição de autor financiada pela empresa Vela Chinesa, sediada em Portugal. Aquele que Graça Abreu diz ser “talvez o maior poeta dos trinta séculos de poesia chinesa” e também “um dos grandes poetas de toda a literatura universal”, ganha agora uma nova versão dos seus escritos, depois de duas edições produzidas em Macau na década de 90, com mais de 200 poemas. “Esse livro teve uma certa importância porque foi apresentado em Lisboa pela Natália Correia e no Porto pelo Eugénio de Andrade e pelo professor Óscar Lopes”, recordou ao HM. Desde então que António Graça de Abreu tem vindo a tentar reeditar as suas traduções. “Encontrei muito pouca receptividade por parte de Macau. Há dois anos apareceu a Vela Chinesa que deu importância às minhas traduções e fizeram uma sugestão de reedição. Propus a várias entidades em Portugal, desde a Fundação Oriente até ao dr. Jorge Rangel, para que fossem reeditados estes grandes poetas da China e não tive muita receptividade”, apontou. A grande diferença de “Cem Poemas de Li Bai (701-762)” é o facto de ser totalmente bilingue, sendo que os poemas foram escolhidos pela empresa que financiou a edição. “Os poemas estão bem escolhidos e todos eles são representativos [de Li Bai], embora tenha escrito à volta de mil poemas. [Li Bai] não passa de moda, mesmo com todos os problemas que a China tem tido ao longo da sua história, estes poemas estão sempre presentes. A poesia de Li Bai é sempre actual e os chineses também têm muito orgulho neste homem.” Graça de Abreu assegura que “qualquer chinês que tenha pelo menos o quarto ano conhece Li Bai, porque é um poeta que tem a dimensão de Camões ou Dante”. “É um homem universal”, aponta. O amor e a guerra Nos cem poemas agora publicados, e nos restantes, é possível encontrar temas como “a guerra, que fez com que milhões de pessoas tenham morrido, não dos conflitos mas de fome, porque todas as estruturas do império eram alteradas”. Mas Li Bai escreveu também sobre a relação do Homem com a Natureza e sobre o amor. O poeta “amava os amigos, e também o feminino”. Graça de Abreu assume ter uma paixão pela poesia chinesa e pela tradução, que vai fazendo nas horas vagas e recorrendo a outras bases de apoio escritas nas línguas ocidentais. “A poesia não me é estranha e mexo-me nela com alguma facilidade, embora os meus conhecimentos de chinês não sejam tão vastos como eu gostaria. O poema, na sua língua de chegada, tem de ter qualidade literária e força, e eu socorro-me de tudo e mais alguma coisa [para assegurar isso].” O autor e tradutor lamenta que a poesia chinesa traduzida tenha surgido tão tarde. “Ainda ninguém tinha traduzido Li Bai a sério para língua portuguesa e pela primeira vez apareceu um grande poeta chinês [refere-se aos anos 90, aquando das publicações em Macau]. Não sou nenhum especialista mas nestas coisas nota-se algum atraso, porque foi preciso chegarmos ao final do século XX para aparecerem as primeiras grandes traduções de poetas chineses.” “Dei o meu contributo, já traduzi cinco grandes poetas chineses, todos eles da dinastia Tang, o período dourado da poesia chinesa”, rematou.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasDiário (secreto) de Pequim (1977-1983) Parte I António Graça de Abreu Pequim, 8 de Setembro de 1977 Alegria, emoção ao chegar à China. O aeroporto pequeno numa manhã de sol, o grande retrato de Mao Zedong, a garganta presa. O acolhimento afectuoso, fraterno dos camaradas chineses, futuros companheiros de trabalho. O primeiro contacto com Pequim. Camponeses, carroças, casas pobres. As árvores bordejando a estrada, a vegetação repousante, as gentes que não conheço. A primeira decepção, a habitação que me destinaram, um apartamento feio, esquisito, mal mobilado. Vai ser preciso mudar esta casa. Estranha sensação do estranho. A primeira saída até ao centro da cidade. Pequim plana, avenidas largas, milhares e milhares de bicicletas, poucos automóveis sempre a buzinar. Trânsito desorganizado mas que funciona, reina uma grande ordem nesta desordem. Ainda hortas e terras cultivadas, os campos entram por dentro da cidade. Sempre muita gente. Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria. A Praça Tian’anmen, a da Paz Celestial, enorme, vazia, majestosa. Amanhã faz um ano que morreu Mao Zedong. Cortejos com milhares de pessoas vêm depositar coroas de flores de papel nas tribunas da Praça, junto ao monumento dos Mártires da Revolução porque haverá cerimónias oficiais comemorativas do primeiro aniversário da morte de Mao. Ao fim da tarde, ainda uma visita e algumas compras na Loja da Amizade. Creio ser um dos grandes armazéns de Pequim, destina-se a estrangeiros e tem montanhas de coisas bonitas e baratas. Ao jantar, neste hotel que tal como a loja também se chama “da Amizade” e é uma Babilónia de línguas e gentes de todo o mundo, conversa com um velho casal brasileiro, a Raquel Cossoy e o Amarílio Vasconcelos, já com muitos anos de Pequim, e outro casal colombiano, todos refugiados políticos. Cansaço, um dia pleno. Pequim, 9 de Setembro de 1977 Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, agora o meu local de trabalho. Um edifício pesado, tipo caixote com seis andares, espartano, uma espécie de convento marxista-leninista-maoísta. Mas funcional. Os companheiros de trabalho que vão fazer as traduções que depois corrigirei e a quem vou ensinar mais português, todos risonhos, simpáticos falando razoavelmente a língua de Camões. A camarada Bai Yuhua e o camarada Fu Ligang, dois dos mais competentes tradutores, estudaram português em Macau. Na cave das Edições, cerimónia fúnebre muito simples em honra de Mao Zedong. Tudo a preto e branco, as cores do luto, mas com aparência de missa comunista. O retrato do revolucionário, as pessoas a curvarem-se diante da figura do falecido timoneiro, muitas coroas de flores de papel, dois discursos longos de que não entendi uma palavra. De tarde, visita ao Palácio de Verão. Um estupendo conjunto de construções no estilo tradicional chinês, não muito antigo — parece que é tudo dos séculos XVIII e sobretudo XIX – junto a um belo lago, com pavilhões, torreões, pagodes e, ao fundo, as montanhas a oeste da cidade. Hei-de voltar muitas vezes ao Palácio de Verão, não fica longe do Hotel da Amizade, talvez uns cinco quilómetros, e hoje vi apenas de relance, com os olhos. Eu quero conhecer, quero começar a meter a China dentro de mim. Pequim, 14 de Setembro de 1977 O presidente Mao Zedong repousa no mausoléu que acabou de ser inaugurado, a sul da praça Tiananmen. Fui ver o corpo do defunto que mais contribuiu para mudar a face da China. Grupos compactos de pessoas organizadas por entidades de trabalho, filas silenciosas de soldados, os rostos parados, compungidos, aguardavam a vez de entrar na construção de mármore, rectangular, nem bonita, nem feia onde jaz Mao. Juntei-me à fila ininterrupta que avançava num lento ritmo fúnebre. Lá dentro, na vasta antecâmara, uma grande estátua também de mármore de Mao Zedong, sentado, branco, irradiando a altivez e segurança do melhor período da sua vida. Logo depois o salão com o sarcófago de cristal e Mao coberto pela bandeira comunista, e ele, velho, encarquilhado, uma cara que parece de cera. À minha frente, o peruano Guillermo Delly que pertence a uns estranhos grupos maoístas lá da sua pátria, agora também acabado de chegar à China e que trabalha comigo nas Edições de Pequim — ele no semanário Beijing Zhoubao北京周报, o que dá Pekin Informe na língua de Cervantes –, pois o Guillermo levantou o braço e, de punho fechado, saudou Mao Zedong. Em 1970, já no ocaso dos dias mas ainda todo-poderoso, o grande líder confessou numa entrevista a Edgar Snow que entre as multidões imensas que gritavam Mao Zhuqi Wansui! 毛主席万岁ou seja “Viva o Presidente Mao”, um terço das pessoas eram sinceras, outro terço fazia o que via os outros fazer e o último terço era hipócrita. Em qual destes grupos entrará Guillermo Delly? E eu, que não fui capaz de erguer o punho, nem nunca gritei “Viva o Presidente Mao”? Dazhai, 16 de Setembro de 1977 A primeira viagem pelos atalhos imensos deste antiquíssimo Império do Meio, rumo a Dazhai 大寨 , a aldeia modelo da agricultura chinesa encravada nas montanhas da província de Shanxi, a uns mil e tal quilómetros de Pequim. Ontem à noite, a estação ferroviária da cidade. Gente por todo o lado, acocorada, dormitando no chão, correndo para os comboios com a filharada às costas, carregando quanta cangalhada pode. Estes chineses vêm a Pequim e aqui compram tudo o que não existe nas suas aldeias, perdidas no mundo. Carregam volumes descomunais, com os objectos mais inesperados e espalhafatosos que enchem tudo quanto é saco ou oscilam na extremidade de varas de bambus num equilíbrio certo sobre ombros calejados. O comboio pintado de verde-escuro com uma tira amarela, sólido, confortável, pelo menos para mim e para mais uns tantos privilegiados. A viagem foi paga pelas Edições de Pequim a meia dúzia de estrangeiros que lá trabalham. Eu sou um deles e tenho direito a ruanwoche軟臥車, ou seja as couchettes “carruagem cama fofa”. Aprendi hoje que existem mais três tipos de carruagens, a yingwoche硬臥車, ou seja, “carruagem cama dura” com sessenta beliches separados por tabiques, mais o “banco fofo”, almofadado e o “banco duro”, de pau, onde viaja a maioria dos chineses. Com o comboio em andamento, passei de carruagem para carruagem, para comprovar como se viaja de comboio na China. A minha carruagem tem apenas trinta e seis lugares distribuídos por doze compartimentos. As camas estão limpas, há toalhas, um candeeiro com abat-jour, sempre uma grande garrafa-termos com água quente e chá. E música chinesa. Por companheiro – somos apenas dois no compartimento – tenho um sudanês enorme, perto de dois metros de altura, de nome Ahmed Kehir, com feições de quase branco e pele negra. Pertence ao Partido Comunista do Sudão, vive exilado na China há doze anos, disseram-me ser um intelectual e poeta, trabalha na Beijing Zhoubao, edição em árabe e deve o bom tratamento ao facto de, há não sei quantos anos atrás, ter aparecido numa fotografia, divulgada por toda a China, ao lado de Mao Zedong, numa pretensa amena conversa com o grande timoneiro. O comboio partiu rigorosamente à hora marcada, deslizando nos carris com uma suavidade impressionante. A carruagem tem os interiores em madeira, é clara e bonita. Num dos extremos funciona um fogão a carvão de pedra, para aquecer água. A conversa, em mau inglês, com o sudanês. A situação política em Portugal, África. Pois. Quase a adormecer, chega um chinês para dormir no nosso quartinho rolante. Mudaram-no de carruagem, é um quadro do Partido Comunista. Terá uns sessenta anos, como cartão de visita diz-nos num inglês de trapos ter lutado na guerra contra a invasão japonesa, nas montanhas das províncias de Hebei e Shanxi. Depois, o sono confortável. (continua)