O lugar de que sou é estar aqui

Rivoli, Porto, 10 de Abril

[dropcap]V[/dropcap]iagem -relâmpago para outra manifestação em torno das «Constituições» atribuídas a Aristóteles, na versão do António [de Castro Caeiro]. O Rui [Spranger] emprestou a voz cava para dar corpo aos fragmentos e José Meirinhos propôs um detalhado e muito cuidado enquadramento do percurso destes textos até chegarem à mão do tradutor, que, como bem assinalou, atreve-se a contribuir com inúmeros neologismos. A nossa língua não tinha ainda acomodado medidas e moedas e demais peças de um quotidiano perdido no tempo (e na fantasia). Pena terem sido poucos os que se atreveram à viagem.

CCB, Lisboa, 11 de Abril

Poucos conseguem falar de livros como o Jorge [Silva Melo]. Há um saber que se esconde nas calorosas definições das personagens, no respigar do detalhe biográfico do autor que interessa para estender da história como toalha tombando sobre a mesa. Falou-se de teatro, e muito, neste Obra Aberta. E de língua, que o Duarte [Azinheira] trouxe como pretexto um utilíssimo «Novo Atlas da Língua Portuguesa», de José Paulo Esperança, Luís Reto e Fernando Luís Machado (ed. INCM).

Casa da Cultura, Setúbal, 12 de Abril

Acaba sempre sendo viagem, a conversa desta «Filosofia a Pés Juntos». Lá fomos às raízes para perceber que a alma ensopa o corpo e que demorámos séculos até perceber de que massa somos feitos. O órgão do tempo demorou a descobrir o coração como centro. Até então, o esterno era o lugar da consciência de si: quando apontamos para nós próprios, o cerne fica mesmo ali. Depois, em fundo de boca, fica-me o sentido de sarcófago como comedor de carne.

Povo, Lisboa, 15 de Abril

Sessão marcada por avarias e desencontros, esta dedicada à poesia de José-Emílio Nelson, que terá para mim sempre o caracter de «Beleza Tocada», de fruto que o toque encaminha para a maturação, talvez o apodrecimento. O Henrique de-tantos-nomes Fialho ficou na estrada, traído pelo motor. O Filipe [de Homem Fonseca] foi travado e não podemos ver as suas mãos dançar no ar que o teremim respira. Mas o Pedro [Proença] desenhou com a voz, a Rita [Taborda Duarte] abriu caminhos, que o Luís [Carmelo] e eu seguimos diligentemente. Mas esta poesia é ruim de se dizer, despega-se dos olhos, faz-se agreste e desassossegada, com ela todo o caminho se faz sobre gelo fino. Peculiar, portanto, o encontro.

Coura, sem paredes, 26 de Abril

De súbito, na esplanada, talvez em resposta ao Trakl que o António [de Castro Caeiro] acabava de ler, o Miguel [Martins] diz de cor o «soneto presente», do Ary dos Santos. Na rua onde pulsa o coração desta terra inscrevo na pele o meu hino para estes dias. «Não me digam mais nada senão morro/ aqui neste lugar dentro de mim/ a terra de onde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui.// Não me digam mais nada senão falo/ e eu não posso dizer eu estou de pé./ De pé como um poeta ou um cavalo/ de pé como quem deve estar quem é.// Aqui ninguém me diz quando me vendo/ a não ser os que eu amo os que eu entendo/ os que podem ser tanto como eu.// Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/ a força do lugar que for o meu.» As gaiolas também se rasgam, grita o cartaz do «REALIZAR:poesia» (algures na página), assinado pelo António Pinto.

Biblioteca Aquilino Ribeiro, Coura, 27 de Abril

Por agora, uma certa ideia totalitária de cânone enquanto regulador do gosto vai fazendo escola, suscitando aqui e ali boas traduções, mas acompanhado de retóricas castigadoras, sem se afastar de miserável proselitismo. O momento, portanto, não será o melhor para entender que alguns livros possam nascer de gestos de amor, na crença de que o humano possui grandeza única. E que merece ser celebrada. O António Cabrita e o Miguel [Martins] escolheram guiar-nos através da esparsa produção do Levi [Condinho] com este «Pequeno Roteiro Cego». Trata-se de um tributo afectivo, um reconhecimento da importância que o autor teve no concreto de algumas vidas, tornando-se ainda testemunho de um certo tempo. A poesia ilumina e muito para além desta circunstância, apesar da tocante simplicidade que parece praticar. E depois Levi Condinho trata deus por tu, chama-o para inúmeras conversas, de braço dado, de olhos nos olhos. O autor não quis subir, não se dá com viagens, mas foi devidamente descrito enquanto paisagem pelo Miguel. Por causa da música que soa ininterruptamente em pano de fundo, a Luísa [Pires Barreto] glosou na capa um certo modo das cores se arrumarem para dizer jazz, como foi com certas editoras que, no seu tempo, não recusaram esta luxúria.

«A sensibilidade do miolo miúdo do poema/ não concebe o grito do pregador/ nem o sarcasmo dos castrados da intempérie// o homem vai no transporte da sua vida/ e a escrita faz-se no andar do transporte/ quem entende apenas o exterior parado/ nada vê – por isso o abandono é tanto// e o pudor de uma flor discreta comove/ como o grito das aves na montanha árida// voltar ao grito e ao silêncio/ mas não da forma tão visível como quereis/ eis a ciência do azul de dentro// canto/ mas os cães mijam/ nos postes de silêncio/ do meu canto.»

Retiro do Taboão, Coura, 28 de Abril

O sol esbatia, impiedoso, cada contorno. O rio parecia quedo, concentrado na tarefa de espelhar o céu. Os carvalhos receberam as palavras com soberana indiferença. E, no entanto, os versos de Georg Trakl, vertido pelo António para o cadinho do português, parecem resultar de golpes de canivete em um qualquer tronco. Lá nos explicámos o melhor que pudemos este volume de «Poemas», mas foram sobretudo as leituras em voz alta que me parece que impuseram uns laivos de magia. Não vejo melhor lugar para fazer soar esta melancolia escaldante, este «Sussurro ao Meio Dia». «Sol outonal, delgado e hesitante,/ E a fruta cai das árvores./ O silêncio habita espaços azuis,/ Onde um meio-dia se alonga.// Sons de metal, de moribundos;/ E um animal branco precipita-se./ Canções roucas de meninas morenas/ São levadas como as folhas em queda.// De Deus, a fronte sonha cores,/ Adivinha as suaves asas da loucura./ Sombras movem-se na colina,/ Envolvidas pelo negro da podridão.// Crepúsculo sereno cheio de vinho;/ Fluem tristes as guitarras./ E tu entras na terna lâmpada/ Como se de um sonho te tratasses.» Indistinto na folhagem pareceu-me ver o autor tal qual aparece, tão bem apanhado pelo Manuel [San Payo], na capa. Mantinha o corpo trocado pelo sobretudo de traços, de vestígios. E pareceu-me sorrir, mas ao longe podia ser apenas um esgar.

Algures entre Coura e Braga, 28 de Abril

Esta estrada sinuosa presta-se a devaneios meditabundos. À ida, tive por companhia uma série magnífica de nuvens a pintalgar um azul de espanto. Na descida, o assunto foram árvores, sobretudo os carvalhos e as oliveiras. Anda por aqui uma estranha moda de podar as oliveiras arredondando-as e achatando-as que nem pneu. Mas o que tenho que registar (para prova futura) é a revelação desta espécie que me era desconhecida: limão caviar. O fruto contém pequenas nuvens.

8 Mai 2019

Poesia – Georg Trakl

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

 

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

Das raparigas os cabelos amarelos flutuam

Junto à cerca, onde estão os girassóis.

Uma carruagem dourada atravessa as nuvens.

 

Nas castanhas sombras, calam o silêncio

Os velhos, que estupidamente se abraçam.

Os órfãos cantam as vésperas com doçura.

No vapor amarelo, zumbem moscas.

 

No ribeiro, as mulheres lavam ainda a roupa.

Ondulam estendidos os lençóis de linho.

A pequena que há muito me agrada

Vem de novo através da noite cinzenta.

 

Do céu ameno, os pardais precipitam-se

Na direcção de buracos verdes cheios de podridão.

Iludem o faminto ante a convalescença

O aroma do pão e ervas secas.

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

Der Mädchen gelbe Haare wehen

Am Zaun, wo Sonnenblumen stehen.

Durch Wolken fährt ein goldner Karren.

In brauner Schatten Ruh verstummen

Die Alten, die sich blöd umschlingen.

Die Waisen süß zur Vesper singen.

In gelben Dünsten Fliegen summen.

Am Bache waschen noch die Frauen.

Die aufgehängten Linnen wallen.

Die Kleine, die mir lang gefallen,

Kommt wieder durch das Abendgrauen.

 

 

Romance à noite

 

O solitário, sob a tenda de estrelas,

Caminha através da meia noite silenciosa,

O menino acorda perturbado dos seus sonhos,

O seu semblante decai cinzento ao luar.

 

A louca chora com o seu cabelo desgrenhado

À janela que está inflexivelmente gradeada.

Ao largo do pequeno lago, num doce passeio,

Andam à deriva os amantes tão maravilhosos.

 

O assassino sorri pálido no vinho,

O horror da morte agarra os doentes.

A noviça reza ferida e nua

À frente do sofrimento na cruz do salvador.

 

A mãe canta baixinho a dormir.

Muito tranquilo a criança olha para a noite

Com olhos que são completamente verdadeiros.

Na casa de putas, soltam-se gargalhadas.

 

À luz da vela no buraco da adega

O morto pinta com mão branca

Um silêncio sorridente na parede.

O adormecido sussurra ainda.

 

 

 

Romanze zur Nacht

 

 

Einsamer unterm Sternenzelt

Geht durch die stille Mitternacht.

Der Knab aus Träumen wirr erwacht,

Sein Antlitz grau im Mond verfällt.

Die Närrin weint mit offnem Haar

Am Fenster, das vergittert starrt.

Im Teich vorbei auf süßer Fahrt

Ziehn Liebende sehr wunderbar.

Der Mörder lächelt bleich im Wein,

Die Kranken Todesgrausen packt.

Die Nonne betet wund und nackt

Vor des Heilands Kreuzespein.

Die Mutter leis’ im Schlafe singt.

Sehr friedlich schaut zur Nacht das Kind

Mit Augen, die ganz wahrhaft sind.

Im Hurenhaus Gelächter klingt.

Beim Talglicht drunt’ im Kellerloch

Der Tote malt mit weißer Hand

Ein grinsend Schweigen an die Wand.

Der Schläfer flüstert immer noch.

 

(Traduções de António de Castro Caeiro)

19 Dez 2017