António Caeiro, autor de “Os retornados de Xangai”: “Este livro é uma saga humana”

A comunidade portuguesa em Xangai começou a formar-se em meados do século XIX e chegou a ser a segunda mais importante na cidade. Com o estalar do conflito entre comunistas e nacionalistas, muitas famílias foram para Macau, dando depois origem à diáspora macaense espalhada pelo mundo. O livro “Os retornados de Xangai – Histórias de portugueses do Oriente”, do jornalista e autor António Caeiro, conta as suas vidas

 

Como chegou a este projecto de reunir os testemunhos daquele que é considerado o primeiro grupo de retornados para Portugal?

Desde muito cedo, quando fui para a China, ouvi falar da existência de uma comunidade portuguesa em Xangai numerosa e completamente desconhecida do grande público. Além disso, havia a particularidade de se saber quando tinha começado e acabado, entre meados do século XIX até meados do século XX. Existiu num determinado local, à margem de diversos impérios, como o português, britânico ou chinês (Império do Meio), e que não só se estabeleceu durante várias gerações como foi durante muito tempo uma das principais comunidades estrangeiras de Xangai. Sabia-se muito pouco sobre isso e à medida que fui investigando, em arquivos e ouvindo pessoas…

Falou com descendentes dessa comunidade também.

Sim. Essa comunidade, maioritariamente de Macau, acabou por se dispersar pelo resto do mundo. Só uma pequena parte é que foi para Portugal, pois a maioria foi para o Brasil, Austrália, Canadá, EUA… achei que valia a pena conhecer mais figuras e histórias, e à medida que fui fazendo este trabalho mais surpreendente se revelou a história desta comunidade.

Uma das histórias que o livro conta é a de Art Carneiro, músico e antepassado de Roberto Carneiro, presidente do conselho de administração da Escola Portuguesa de Macau.

Há várias personagens absolutamente surpreendentes e deslumbrantes. O pai de Roberto Carneiro, com o nome artístico de Art Carneiro, é sem dúvida uma figura que atravessa todo o livro. Ele nasceu em 1904 e iniciou a carreira musical em Xangai. Mais tarde veio a ser um dos pioneiros do jazz em Portugal, participou na primeira jam session organizada em Lisboa, em 1948, cerca de um ano depois de ter regressado a Portugal. Art Carneiro tocou com uma das melhores orquestras dos anos 20 e 30 em Xangai, que tinha na altura centenas de salões de baile e cabarés. Tinha a vida nocturna mais animada de toda a Ásia, era também a capital do jazz. Era uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Mas desde que o livro foi impresso que me cruzei com outras histórias e pormenores que, se soubesse, tinha incluído no livro, pois cada pessoa tem a sua história.

Macau surge aqui como um território fundamental neste elo de ligação entre Portugal e a China.

Sim, porque os portugueses estabeleceram-se em Macau no século XVI e quando se dá a Guerra do Ópio, em meados do século XIX, os ingleses vencem o conflito e uma das consequências foi a anexação de Hong Kong e a obrigatoriedade, exigida aos chineses, de abrir cinco portos ao comércio internacional. Um deles era Xangai. Quando os ingleses se estabeleceram aí, os primeiros estrangeiros a estabelecerem-se na cidade foram os portugueses de Macau que já lá estavam há várias gerações e conheciam bem a cultura local. Estavam ambientados, misturados e com um nível de instrução capazes de serem quadros das empresas que os ingleses e americanos estavam a fundar em Xangai. Macau era um território pequeno e com poucas oportunidades de trabalho, mas Xangai era uma economia em expansão. Praticamente não havia nenhuma família de Macau que não tivesse alguém em Xangai.

Era uma comunidade importante…

Chegaram a ser três mil portugueses. Nos anos 30, registados no Consulado [português em Xangai] estavam dois mil portugueses. A Guerra do Ópio é um episódio traumático na história da China, pois os chineses dizem que foi promovida pela Grã-Bretanha para desenvolver o seu comércio do ópio, que era proibido na China. A seguir, deu-se a tal abertura forçada dos portos chineses e a entrada em força dos estrangeiros e do capitalismo, do comércio internacional. Isso mudou muito a China e Xangai foi, de certa forma, o berço da modernização da China, e foi aí que apareceu o próprio Partido Comunista. Em todos esses portos havia portugueses. É curioso que as tipografias eram, em grande parte, dominadas por tipógrafos portugueses formados em Macau. Estes iam trabalhar para Hong Kong e depois iam para vários portos. Imprimiam jornais e toda a informação que era difundida nesse novo mundo marcado pelo comércio internacional.

Esta comunidade passou por várias fases da história da China. Mas o grande motivo para o seu regresso foi o conflito entre nacionalistas e comunistas?

Houve uma altura em que era a segunda comunidade de estrangeiros mais importante, a seguir aos ingleses, e que depois foram ultrapassados pelos japoneses. Depois houve uma grande vaga de emigração russa a seguir à revolução comunista na Rússia, em 1917, que passou a ser a segunda comunidade. O primeiro êxodo dá-se com a invasão japonesa, em 1937. Muitas famílias estrangeiras deixam Xangai, uma grande parte vai para Hong Kong onde tinha familiares e outra vai para Macau. Depois acabaram por regressar a Xangai. Finalizada a II Guerra, começa a guerra civil na China, e com a aproximação do exército comunista e tomada do poder pelo Partido Comunista, muitas empresas estrangeiras começaram a sair. Com isso desapareceram muitos dos postos de trabalho ocupados pelos portugueses. Graças ao trabalho de um grande investigador, Jorge Forjaz, consegue-se saber quem foi o último português a sair, já nos anos 60.

Mas o livro refere que em 1953 terá saído a última família portuguesa de Xangai.

Era uma família de apelido Collaço. Já havia muito poucas, a maioria foi para Macau, que se tornou num centro de refugiados, mas a maioria não ficou no território, tendo partido para outros sítios. Foi o início de uma nova diáspora. Para Portugal foram muito poucos porque não tinham muitas raízes. Veio a família de Roberto Carneiro, por exemplo. As casas de Macau espalhadas por esse mundo fora foram criadas por estas pessoas.

Uma das características desta comunidade é que o regresso a Portugal não foi fácil, pois não havia essa ligação forte ao país e à língua.

Todos contam que falavam inglês entre eles, e só os mais velhos é que falavam algum português. Havia uma ligação mítica a Portugal, muitos nunca tinham visitado o país, tinham apenas alguns familiares. Muitos falavam francês e algum chinês. Depois Xangai era muito cosmopolita e Portugal nos anos 40 era um país pobre e cinzento. Acima de tudo encaro este livro como uma saga humana, que envolveu portugueses, e isso toca-nos muito. Temos uma ideia de que existiu esta comunidade, mas quase todas as pessoas com quem falei me disseram que não faziam ideia da sua dimensão.

30 Mar 2022

António Caeiro, ex-delegado da agência Lusa em Pequim: “No PCC existem muitas sensibilidades”

Faz hoje 100 anos que foi criado o Partido Comunista da China. Dos 53 militantes iniciais, o partido cresceu para cerca de 200 milhões de militantes e é uma peça fundamental em toda a sociedade chinesa. António Caeiro, ex-delegado da agência Lusa em Pequim, para onde foi viver em 1991, considera que o Ocidente encara o partido de uma forma simplista e com um certo “paternalismo”

 

 

Comecemos pelo início da sua vida em Pequim. Quando foi a primeira vez que se deparou com a máquina partidária do Partido Comunista da China (PCC)?

A presença do PCC sentia-se desde [o primeiro momento] da chegada a Pequim, embora, em 1991, os sinais exteriores não fossem muito evidentes. Não havia foices nem martelos, nem muita propaganda política. Não se poderia comparar a China com a Coreia do Norte, por exemplo, ou outros países. Em todos os discursos e instituições o papel do PCC está sempre presente, e a aspiração do partido é, precisamente, liderar toda a vida em sociedade e todas as instituições. Mas nunca tive contacto directo com o secretário-geral do PCC.

Qual a figura do partido de que esteve mais próximo?

O final do congresso do PCC é um momento especialmente importante. Na era pré-Xi Jinping, os líderes mudavam de dez em dez anos, e nessa altura o secretário-geral apresenta os membros do Politburo. Mas é um encontro sem direito a perguntas ou respostas.

Como olha para o PCC de hoje?

É dito que tudo tem de ser dirigido pelo partido e esse é um slogan do Presidente Xi Jinping. O PCC acha que o colapso da União Soviética e do partido comunista soviético aconteceu justamente por não ser suficientemente firme no papel dirigente, firmeza essa da qual o PCC não abdica. Mesmo com todas as reformas económicas que encorajou, e cujos resultados são um verdadeiro milagre económico, nunca o PCC abdicou do papel de dirigente. Hoje é defendido que a China nunca seguirá o caminho da democracia ocidental, nem advogará o regime de separação de poderes.

Apesar da liberalização económica, a máquina partidária parece estar sempre presente no meio empresarial. Temos inclusivamente o exemplo do que aconteceu com Jack Ma e do grupo Alibaba.

A sensação que se tem é que o Estado nunca anda muito longe. O próprio Jack Ma tinha uma frase que lhe era atribuída, em que aconselhava os quadros da sua empresa a namorarem com o Governo, mas a não namorarem com ele. Isso diz muito de uma relação que não é exclusiva da China. Muitos grupos privados na Coreia do Sul, por exemplo, cresceram à sombra ou estimulados pelo Estado. Na China, nas novas áreas da economia, onde antes o Estado não estava muito presente, como nos serviços ou tecnologias, o sector privado desenvolveu-se muito. E agora parece haver, por parte das autoridades, uma espécie de alerta. O partido quer lembrar que, acima de milionários ou de pessoas que emergem na sociedade civil, há um poder maior do que o dinheiro ou a riqueza, que é o poder político.

Xi Jinping anunciou este ano novos códigos de conduta para funcionários do partido, reforçou a importância da lealdade. É uma nova mensagem? É um sinal no combate à corrupção, por exemplo?

A desvantagem de já ter uma certa idade é que, muitas dessas coisas que parecem novas na realidade repetem-se. A campanha anti-corrupção é uma coisa cíclica. Já no tempo de Hu Jintao se falava disso. O presidente Xi Jinping emergiu e notabilizou-se por ter desencadeado a mais profunda e exaustiva campanha anti-corrupção de que há memória na história da China. Nunca houve nada semelhante com altos quadros políticos, mesmo os mais poderosos do Politburo.

Temos o caso de Bo Xilai, por exemplo.

Claro, os grandes tigres, como se dizia. No entanto, passaram quase 10 anos e a situação continua muito difícil, embora existam resultados históricos no combate à corrupção. Parece haver uma questão sistémica que, periodicamente, está em cima da mesa. É também uma forma de testar a lealdade política de todo o aparelho em relação ao secretário-geral e ao núcleo do partido, e é também uma forma de manter uma certa vigilância e impedir que a máquina se acomode. Não há nenhum sector que esteja imune à corrupção. Eu próprio ficava espantado com o número de generais, forças de segurança, forças estatais [afastados]. O problema parece nunca estar resolvido.

Como acha que a pandemia influenciou a visão dos cidadãos chineses em relação ao partido?

No início [da pandemia], a liderança do PCC esteve em causa, porque andaram duas ou três semanas sem reagir aos alertas de médicos do hospital central de Wuhan. Os líderes do partido em Wuhan e em Hubei, com categorias superiores a ministros, isso evidenciou alguns problemas. A popularidade do partido foi testada e o próprio Xi Jinping admitiu pouco tempo depois que a pandemia constituiu um sério teste à capacidade de governação. Mas as drásticas medidas que foram tomadas tiveram outro resultado, pois a China acabou por ter menos mortes que Portugal, por exemplo. Quando se olha para o caos que se passa nos países ocidentais, tem de se atribuir crédito ao Governo. Mas mesmo assim ficaram algumas lições.

Quais foram?

A legitimidade do PCC na China não advém de eleições, mas da sua performance económica e social. É por isso que ele é avaliado. E esses dois planos têm sido, nos últimos anos, espectaculares para a maioria dos chineses. Mas se houvesse um desastre sanitário a credibilidade das autoridades ficaria seriamente ameaçada. Um diplomata brasileiro disse uma vez que o povo chinês tem medo do PCC, mas o PCC também tem medo do povo.

As autoridades sabem que um desvio pode influenciar o regime.

Sim. Esse medo do caos é partilhado quer pela liderança do partido quer pelas pessoas, porque estas sabem o que é o caos. Qualquer alteração do país e do status quo passa sempre por uma alteração do próprio PCC, porque falamos no total de 200 milhões [de militantes], não é um partido, mas uma parte da sociedade. Interrogo-me se o investimento que o partido faz em novas tecnologias de leitura facial se não revela também uma certa inquietação e segurança. O grande dilema é como governar populações cada vez mais instruídas e evoluídas. O PCC nasceu em 1921. Eram 53 militantes e 13 delegados, hoje é aquilo que sabemos. Mas em 1949, quando tomaram o poder, 90 por cento da população vivia nos campos e o analfabetismo era enorme. A ciência política, como é ensinada nas sociedades europeias, indica que, à medida que a economia se desenvolve, e que as necessidades básicas da população estão satisfeitas e emerge uma classe média cada vez maior, mais instruída e viajada, isso pede mais pluralismo político e social. Penso que é também muito precipitado, e um bocado paternalista, muitos comentadores ocidentais dizerem que a democracia não se adapta à China. Se virmos bem a história chinesa deste século, muitas das chamadas ideias ocidentais tiveram impacto na China. Entre a queda da monarquia, em 1910, e 1949, todas as grandes ideias que agitavam o mundo passavam também pela China. Xangai era um centro intelectual com grande vivacidade. Nos meios académicos chineses há um debate muito actual sobre as questões da democracia e separação de poderes. A China é mais plural e aberta do que os discursos oficiais e também do que certas abordagens ocidentais tendem a fazer sobre a China. A simplificação, não só do papel do PCC, mas também da sociedade chinesa, desfoca a nossa visão da China. Mesmo no PCC sendo o que é, existem muitas sensibilidades.

Acha que Xi Jinping tentou trazer uma maior união?

A inovação introduzida por Xi Jinping foi de que, com os novos desafios, e no mundo actual, o país precisa de uma liderança mais forte e centralizada. Quando era vice-presidente do país houve vários clãs, o de Bo Xilai era dos mais conhecidos. Xi Jinping parece ter aparecido para arrumar a casa. Ele próprio não pertencia a nenhuma facção mas era como se tivesse ligações transversais a vários grupos e famílias políticas, algo que na China também é importante, e tentar unir o partido. A questão da corrupção tinha-se tornado um problema, a par da poluição. Ele aparece como alguém que diz que a China precisa de uma liderança forte e centralizada. Em 2018 houve uma mudança da Constituição a acabar a limitação de mandatos. Quase sem se conhecer o projecto [de lei] ele foi aprovado [por uma larga maioria], só uma pessoa é que votou contra, de entre mais de dois mil deputados. Eu assisti a votações com 30 por cento de votos contra ou abstenções.

1 Jul 2021

António Caeiro, jornalista: “Pensamento de Xi Jinping é mais citado que Mao”

[dropcap]O[/dropcap] jornalista António Caeiro defende que Xi Jinping, que na próxima semana visita Portugal, mais do que Presidente é o guia ideológico da China, cujo pensamento é mais citado e estudado que o de Mao Tse Tung.

“É mais do que um Presidente, é o guia ideológico do Partido Comunista Chinês (PCC). É mais citado que qualquer outro líder, mais do que Mao Tse Tung ou Deng Xiaoping, e emergiu com uma autoridade que não se via há muito tempo”, disse António Caeiro.

Numa entrevista à agência Lusa a propósito da visita do Presidente chinês a Portugal, a 4 e 5 de Dezembro, o jornalista, que viveu na China durante quase 20 anos, assinala a importância de o pensamento de Xi Jinping estar consagrado na Constituição e de ser estudado nas universidades do país.

“O último congresso do PCC (2017) consagrou o pensamento do actual líder, como um dos modelos orientadores, um dos guias ideológicos do partido. A vocação e a inspiração marxista é reafirmada e a aspiração do PCC é dominar toda a vida social, económica e política do país”, sublinhou.

António Caeiro sustenta que o actual Presidente da China, no poder desde 2013, instituiu “um sistema muito mais autoritário de liderança”, tendo revogado algumas das medidas políticas de reforma e abertura instituídas, na década de 1980, por Deng Xiaoping.

A Assembleia Nacional Popular da China aprovou este ano uma emenda constitucional que elimina o limite de dois mandatos consecutivos de cinco anos para os presidentes do país.

Constitucionalmente, a Assembleia Nacional Popular (ANP) é o “supremo órgão do poder de Estado na China”, mas cerca de 70% dos seus quase 3 mil deputados são membros do PCC, assegurando a sua lealdade ao poder político.

“Teoricamente poderá eternizar-se no poder”, assinalou Caeiro, acrescentando que o Presidente deixou de estar sujeito ao limite de mandatos que estipulava que a sua presidência terminaria em 2023.

“A própria ideia de liderança colectiva, alimentada durante algum tempo, esbateu-se completamente. É o Presidente que orienta”, acrescentou.

Uma figura “enigmática”

Do ponto de vista pessoal, António Caeiro vê uma figura “enigmática”, à semelhança de muitos outros líderes chineses, que surgiu num momento em que este tipo de líderes “tendem a ter um apelo universal”.

“Não dá entrevistas, não é interpelado pelos jornalistas. É um homem que sabe o que quer, os seus planos são executados e, havendo um vazio internacional devido à nova política da administração norte-americana, aparece como o campeão da globalização”, considerou.

A nova liderança de Xi Jinping, eleito em 2012 secretário-geral do PCC, lançou uma campanha anti-corrupção na China, o que lhe granjeou grande aprovação da população.

“A corrupção era um problema e uma fonte de descontentamento social, mas veio revelar também uma face inesperada a China” porque permitiu perceber que “não havia nenhuma instituição da sociedade chinesa cuja direção não estivesse profundamente corrompida”.

Sobre a visita a Portugal, o jornalista, que foi delegado da agência Lusa na China, considerou que servirá para “consagrar as boas relações” entre os dois países.

“Estas visitas são momentos altamente simbólicos, são rituais e os chineses dão muita importância a esses rituais. Irá consagrar as boas relações que os países têm e consolidar a nova imagem que a China tem de Portugal: um dos países mais amigos e mais receptivos ao investimento estrangeiro na Europa e um bom parceiro da China na União Europeia”, disse.

Xi Jinping estará em Portugal na terça e quarta-feira da próxima semana depois de ter visitado a Espanha, a Argentina, onde participa na cimeira do G20, e o Panamá.

China e o caminho desconhecido

O jornalista considerou também que o “mais inquietante” na China de hoje é não perceber para onde caminha o país, se quer mudar o sistema internacional ou apenas integrar-se nele.

“O que é mais inquietante na China é não se saber como é que as decisões são tomadas e para onde caminha. A grande dúvida, em termos estratégicos, é saber se a China quer mudar o atual sistema internacional ou apenas integrar-se nele”, defendeu.

António Caeiro assume que, sobre a China, quase tudo são perguntas. “Além da sua dimensão absolutamente colossal do ponto de vista físico e humano, o sistema, que o PCC parece ter aperfeiçoado, é extremamente opaco e isso faz com que as análises ocidentais pareçam mais palpites ou prognósticos”, disse.

E, o “palpite” de António Caeiro é de que o país tem como objectivo a afirmação como potência regional no Pacífico, aliada a uma certa ideia de “vingança” sobre o Ocidente pela “humilhação nacional” na sequência da Guerra do Ópio (1839 – 1860), que marcou o declínio da China como potência mundial.

“A China não aspira a dominar o mundo […], mas quer ser reconhecida como uma potência regional, ou seja, quem manda no Pacífico”, sustentou.

O jornalista sublinhou a tendência de crescimento da influência chinesa em todo o mundo, o que considerou um “fenómeno natural”, para um país que concentra um quinto da população mundial e é o motor do crescimento económico global.

“O que não era natural era a China estar tão apagada na cena internacional. Há 50 anos a China não fazia sequer parte da ONU. A China tem um músculo económico e financeiro que a torna inevitavelmente um parceiro fundamental nas relações internacionais”, disse.

A China emerge como a “segunda economia mundial, com crescente peso económico e militar”, assinalou, apontando o contraste entre a “profunda crise” em que mergulharam a Europa e os Estados Unidos e os “ritmos impressionantes” de crescimento da China.

“A Europa e Portugal precisam das imensas reservas de capital que a China tem e a China sente-se mais desinibida em assumir que o seu modelo funciona”, apontou.

Mas, admite António Caeiro, ao tornar-se “um parceiro cada vez mais importante da economia de muitos países” a China “tende a inibir tomadas de posição contrárias aos seus interesses fundamentais”.

“No ano passado, por veto da Grécia, não houve na comissão dos direitos humanos da Nações Unidas nenhuma moção criticando a situação na China”, disse.

A aposta económica

Sobre os grandes investimentos chineses em países europeus, nomeadamente Portugal, António Caeiro entende que fazem parte da estratégia de um país com “grande excedente de reservas cambiais” e que precisa de modernizar a economia.

“Uma das maneiras é formar quadros nos países capitalistas desenvolvidos […] e uma maneira ainda melhor é comprar as boas empresas dos países desenvolvidos e que funcionam bem, que era, aos olhos da China, o caso da EDP”, referiu.

António Caeiro ressalva, contudo, que Portugal “não é o maior receptor europeu de investimento chinês”, mas que à “escala de Portugal” este “pesa muito” por causa das “importantes participações na energia, na banca, na saúde, nos seguros”.

Regressado a Lisboa definitivamente há três anos, o jornalista vê o país à luz do dilema entre a “China poderosa e muito desenvolvida” de cidades como Xangai e o interior do país onde “há níveis de prosperidade mínimos e défices, do ponto de vista educacional, enormes”.

“Isso pode ser um problema”, disse, apontando que há “dois discursos permanentes e contraditórios” sobre o país.

Há uns que “garantem que a China vai dominar o mundo e que este crescimento é para manter […] e outros que acham que, a prazo, a China tem grandes problemas que a impedirão de se tornar na grande potência que a atual liderança desejaria, nomeadamente o envelhecimento da população”, disse.

“A população activa da China tem vindo a diminuir desde há cinco anos e o crescimento resultante do fim da política do filho único (permitindo agora dois) não foi impressionante e já se fala do fim do controlo da natalidade”, acrescentou.

O jornalista explicou, por outro lado, que a rápida industrialização do país foi conseguida à conta da transferência de 250 milhões de trabalhadores do campo para as cidades e províncias do litoral.

“Alguns estudos indicam que 1/3 das crianças chinesas que vivem no campo têm um índice de inteligência muito baixos”, disse, adiantando que a prazo este “será outro problema” porque “uma China moderna não pode” desenvolver-se com “uma classe trabalhadora pouco instruída”.

“A China tem todos os problemas do mundo a uma escala absolutamente colossal […] Navega rodeada de grandes incógnitas. Recentemente comprei um livro de académicos chineses que se chamava ‘35 perguntas sobre a China’ e nenhuma delas tinha uma resposta, as respostas variam com o ponto de vista de cada um”, concluiu.

30 Nov 2018