António Caeiro, ex-delegado da agência Lusa em Pequim: “No PCC existem muitas sensibilidades”

Faz hoje 100 anos que foi criado o Partido Comunista da China. Dos 53 militantes iniciais, o partido cresceu para cerca de 200 milhões de militantes e é uma peça fundamental em toda a sociedade chinesa. António Caeiro, ex-delegado da agência Lusa em Pequim, para onde foi viver em 1991, considera que o Ocidente encara o partido de uma forma simplista e com um certo “paternalismo”

 

 

Comecemos pelo início da sua vida em Pequim. Quando foi a primeira vez que se deparou com a máquina partidária do Partido Comunista da China (PCC)?

A presença do PCC sentia-se desde [o primeiro momento] da chegada a Pequim, embora, em 1991, os sinais exteriores não fossem muito evidentes. Não havia foices nem martelos, nem muita propaganda política. Não se poderia comparar a China com a Coreia do Norte, por exemplo, ou outros países. Em todos os discursos e instituições o papel do PCC está sempre presente, e a aspiração do partido é, precisamente, liderar toda a vida em sociedade e todas as instituições. Mas nunca tive contacto directo com o secretário-geral do PCC.

Qual a figura do partido de que esteve mais próximo?

O final do congresso do PCC é um momento especialmente importante. Na era pré-Xi Jinping, os líderes mudavam de dez em dez anos, e nessa altura o secretário-geral apresenta os membros do Politburo. Mas é um encontro sem direito a perguntas ou respostas.

Como olha para o PCC de hoje?

É dito que tudo tem de ser dirigido pelo partido e esse é um slogan do Presidente Xi Jinping. O PCC acha que o colapso da União Soviética e do partido comunista soviético aconteceu justamente por não ser suficientemente firme no papel dirigente, firmeza essa da qual o PCC não abdica. Mesmo com todas as reformas económicas que encorajou, e cujos resultados são um verdadeiro milagre económico, nunca o PCC abdicou do papel de dirigente. Hoje é defendido que a China nunca seguirá o caminho da democracia ocidental, nem advogará o regime de separação de poderes.

Apesar da liberalização económica, a máquina partidária parece estar sempre presente no meio empresarial. Temos inclusivamente o exemplo do que aconteceu com Jack Ma e do grupo Alibaba.

A sensação que se tem é que o Estado nunca anda muito longe. O próprio Jack Ma tinha uma frase que lhe era atribuída, em que aconselhava os quadros da sua empresa a namorarem com o Governo, mas a não namorarem com ele. Isso diz muito de uma relação que não é exclusiva da China. Muitos grupos privados na Coreia do Sul, por exemplo, cresceram à sombra ou estimulados pelo Estado. Na China, nas novas áreas da economia, onde antes o Estado não estava muito presente, como nos serviços ou tecnologias, o sector privado desenvolveu-se muito. E agora parece haver, por parte das autoridades, uma espécie de alerta. O partido quer lembrar que, acima de milionários ou de pessoas que emergem na sociedade civil, há um poder maior do que o dinheiro ou a riqueza, que é o poder político.

Xi Jinping anunciou este ano novos códigos de conduta para funcionários do partido, reforçou a importância da lealdade. É uma nova mensagem? É um sinal no combate à corrupção, por exemplo?

A desvantagem de já ter uma certa idade é que, muitas dessas coisas que parecem novas na realidade repetem-se. A campanha anti-corrupção é uma coisa cíclica. Já no tempo de Hu Jintao se falava disso. O presidente Xi Jinping emergiu e notabilizou-se por ter desencadeado a mais profunda e exaustiva campanha anti-corrupção de que há memória na história da China. Nunca houve nada semelhante com altos quadros políticos, mesmo os mais poderosos do Politburo.

Temos o caso de Bo Xilai, por exemplo.

Claro, os grandes tigres, como se dizia. No entanto, passaram quase 10 anos e a situação continua muito difícil, embora existam resultados históricos no combate à corrupção. Parece haver uma questão sistémica que, periodicamente, está em cima da mesa. É também uma forma de testar a lealdade política de todo o aparelho em relação ao secretário-geral e ao núcleo do partido, e é também uma forma de manter uma certa vigilância e impedir que a máquina se acomode. Não há nenhum sector que esteja imune à corrupção. Eu próprio ficava espantado com o número de generais, forças de segurança, forças estatais [afastados]. O problema parece nunca estar resolvido.

Como acha que a pandemia influenciou a visão dos cidadãos chineses em relação ao partido?

No início [da pandemia], a liderança do PCC esteve em causa, porque andaram duas ou três semanas sem reagir aos alertas de médicos do hospital central de Wuhan. Os líderes do partido em Wuhan e em Hubei, com categorias superiores a ministros, isso evidenciou alguns problemas. A popularidade do partido foi testada e o próprio Xi Jinping admitiu pouco tempo depois que a pandemia constituiu um sério teste à capacidade de governação. Mas as drásticas medidas que foram tomadas tiveram outro resultado, pois a China acabou por ter menos mortes que Portugal, por exemplo. Quando se olha para o caos que se passa nos países ocidentais, tem de se atribuir crédito ao Governo. Mas mesmo assim ficaram algumas lições.

Quais foram?

A legitimidade do PCC na China não advém de eleições, mas da sua performance económica e social. É por isso que ele é avaliado. E esses dois planos têm sido, nos últimos anos, espectaculares para a maioria dos chineses. Mas se houvesse um desastre sanitário a credibilidade das autoridades ficaria seriamente ameaçada. Um diplomata brasileiro disse uma vez que o povo chinês tem medo do PCC, mas o PCC também tem medo do povo.

As autoridades sabem que um desvio pode influenciar o regime.

Sim. Esse medo do caos é partilhado quer pela liderança do partido quer pelas pessoas, porque estas sabem o que é o caos. Qualquer alteração do país e do status quo passa sempre por uma alteração do próprio PCC, porque falamos no total de 200 milhões [de militantes], não é um partido, mas uma parte da sociedade. Interrogo-me se o investimento que o partido faz em novas tecnologias de leitura facial se não revela também uma certa inquietação e segurança. O grande dilema é como governar populações cada vez mais instruídas e evoluídas. O PCC nasceu em 1921. Eram 53 militantes e 13 delegados, hoje é aquilo que sabemos. Mas em 1949, quando tomaram o poder, 90 por cento da população vivia nos campos e o analfabetismo era enorme. A ciência política, como é ensinada nas sociedades europeias, indica que, à medida que a economia se desenvolve, e que as necessidades básicas da população estão satisfeitas e emerge uma classe média cada vez maior, mais instruída e viajada, isso pede mais pluralismo político e social. Penso que é também muito precipitado, e um bocado paternalista, muitos comentadores ocidentais dizerem que a democracia não se adapta à China. Se virmos bem a história chinesa deste século, muitas das chamadas ideias ocidentais tiveram impacto na China. Entre a queda da monarquia, em 1910, e 1949, todas as grandes ideias que agitavam o mundo passavam também pela China. Xangai era um centro intelectual com grande vivacidade. Nos meios académicos chineses há um debate muito actual sobre as questões da democracia e separação de poderes. A China é mais plural e aberta do que os discursos oficiais e também do que certas abordagens ocidentais tendem a fazer sobre a China. A simplificação, não só do papel do PCC, mas também da sociedade chinesa, desfoca a nossa visão da China. Mesmo no PCC sendo o que é, existem muitas sensibilidades.

Acha que Xi Jinping tentou trazer uma maior união?

A inovação introduzida por Xi Jinping foi de que, com os novos desafios, e no mundo actual, o país precisa de uma liderança mais forte e centralizada. Quando era vice-presidente do país houve vários clãs, o de Bo Xilai era dos mais conhecidos. Xi Jinping parece ter aparecido para arrumar a casa. Ele próprio não pertencia a nenhuma facção mas era como se tivesse ligações transversais a vários grupos e famílias políticas, algo que na China também é importante, e tentar unir o partido. A questão da corrupção tinha-se tornado um problema, a par da poluição. Ele aparece como alguém que diz que a China precisa de uma liderança forte e centralizada. Em 2018 houve uma mudança da Constituição a acabar a limitação de mandatos. Quase sem se conhecer o projecto [de lei] ele foi aprovado [por uma larga maioria], só uma pessoa é que votou contra, de entre mais de dois mil deputados. Eu assisti a votações com 30 por cento de votos contra ou abstenções.

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