Adopção inovadora (II)

Na semana passada, analisei uma notícia que circula na China continental sobre um novo modelo de venda de animais de estimação.

O cliente não paga nada pelo animal, mas compromete-se, através de um contrato, a comprar nessa loja tudo o que o animal precisa até perfazer uma determinada soma. O modelo de negócio é atractivo porque se pode escolher o animal e não se paga nada por ele. Por outro lado, a loja assegura lucros futuros, garantindo a satisfação de ambas as partes.

No entanto, os problemas surgem se o animal morre dentro do prazo contratual. Se o dono não quiser voltar a adoptar, deixa de ter necessidade de comprar provisões para animais, e, portanto, vai querer rescindir o contrato. Mas neste caso os donos da loja ficam descontentes porque gastaram dinheiro para adquirir o animal antes de o colocarem para adopção. As compras que o dono faria cobririam essa despesa e garantiriam a sua margem de lucro e se o contrato for rescindido a loja é prejudicada.

Para resolver o litígio, o adoptante pode ser dispensado da obrigatoriedade de comprar provisões. Essas provisões podem permanecer na loja para serem vendidas a outros clientes e o dono do animal que faleceu pode ser reembolsado. No entanto, terá de compensar a loja garantindo-lhe o lucro que esperava ter no momento em que deu o animal para adopção.

Para além da nova forma de compensação acima referida, existem outros métodos que podem ser considerados. Quando a loja redige o contrato de adopção, deve explicar detalhadamente os seus conteúdos à pessoa que adopta o animal e lembrá-lo que o contrato não cessa se o animal morrer enquanto ainda está em vigor. Desde que o cliente conheça e concorde com os termos contratuais, evita-se litígios futuros.

Em segundo lugar, para além da loja e do cliente considerarem a inclusão de uma cláusula de compensação no contrato, quem adopta o animal pode também considerar a possibilidade de lhe fazer um seguro. Se o animal morrer, o dono pode receber uma indemnização. Além do mais, estes seguros oferecem ainda outro tipo de protecções. Por exemplo, indemnizações se o animal morder alguém, descontos nas despesas de saúde, etc. Embora o seguro seja pago, garante mais protecção. Acresce ainda, que em caso de acidente, o seguro também cobre parte das despesas. No entanto, deve ser dito que a cobertura oferecida varia conforme a companhia de seguros, e a pessoa que vai adoptar um animal deve fazer uma escolha cuidadosa em função das suas necessidades.

Em terceiro lugar, se a loja for à falência, que destino se dará aos depósitos feitos para compras futuras? As duas regiões administrativas especiais, Hong Kong e Macau, têm legislação para regular estas situações. Actualmente, a Lei das Empresas de Hong Kong tem disposições neste sentido. Se se puder provar que o responsável da loja tem intenções fraudulentas e, sabendo que a loja tem problemas financeiros continua a efectuar transacções comerciais e a pedir aos clientes que façam depósitos adiantados, o Governo de Hong Kong iniciará um processo penal contra a loja e o seu responsável. As vítimas também podem intentar acções cíveis para obter uma indemnização.

Resumindo, a compreensão do contrato por parte do cliente, a adição de cláusulas compensatórias, a aquisição de um seguro animal e ter controlo sobre a forma como o depósito é feito, são formas de reduzir as disputas entre a loja e o cliente em relação à necessidade do contrato de adopção se manter em vigor na eventualidade da morte do animal, e devem ser tidas em consideração por ambas as partes.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Abr 2024

Adopção para as calendas

[dropcap]A[/dropcap]lguns dos leitores possivelmente já tentaram adoptar uma criança. Na maioria dos casos porque num casal, o homem ou a mulher não puderam ter filhos após o veredicto clínico. Mas têm um desejo enorme de ter um filho ou uma filha. Há casais que já adoptaram três e quatro filhos. Em Portugal é difícil. Em Portugal é um martírio, um desespero, um sofrimento mental que já levou muitas mulheres à depressão profunda. Tudo isto porque a burocracia é superiormente exagerada. As exigências são as mais variadas e concludentes. Obviamente que o casal é analisado pelos serviços estatais e competentes para o efeito de uma adopção de uma forma criteriosa. O casal tem de ter condições de sobrevivência do eventual filho adoptivo, um bom rendimento mensal, uma residência condigna, um comportamento exemplar. E não são só os casais que desejam adoptar a serem analisados, pois, os seus progenitores também são alvo de uma avaliação por parte dos técnicos da Segurança Social. Pais e avós têm de ter rendimentos suficientes para o caso de acontecer algo de imprevisível ao casal que adopta.

Em Portugal reina a burocracia até ao mais alto grau do desalento dos interessados em adoptar uma criança, tenha a mesma três ou oito meses, ou já com seis ou sete anos. A burocracia é o verdadeiro cancro de uma adopção. E não só a burocracia estatal. Por vezes, o problema reside na atitude do pai, mãe, avô ou avó da criança que foi institucionalizada porque os pais não tinham condições para o sustento. Um dos membros da família da criança, em muitos casos, rejeita-se a assinar a documentação imprescindível para a efectivação da adopção. E assim, ficam as crianças anos e anos a aguardar uma solução. E as crianças institucionalizadas sentem um sofrimento contínuo porque não recebem o carinho de uns pais, não recebem a educação devida, não recebem o hábito de pertencerem a uma família, diríamos mesmo que sem estarem abandonadas estão ao sabor do nada. As de sete e oito anos sofrem imenso nas escolas. Onde está o teu pai? Onde está a tua mãe? Quem é aquela que te veio trazer? Quem é que te vem buscar? Onde moras? São perguntas dolorosas que essas crianças ouvem a todo o momento nos intervalos das aulas. E como as crianças, infelizmente, são cruéis umas para as outras, assim que se sabe na escola que determinado colega está institucionalizado porque foi abandonado pelos pais, ai Jesus, é um fartote de chacota: Olha ele não tem pais! Olha ela não tem casa! Olha ele não sabe quem é mãe! Olha ela nunca viu o pai! Uma triste realidade. E as crianças institucionalizadas a aguardar que a burocracia ou a corrupção lhes arranjem uns pais que requereram a adopção há muitos anos.

Lamentavelmente, o ano passado 80 por cento das crianças que aguardavam adopção, apenas 20 por cento viram a sua situação resolvida e foram acolhidas para um novo lar onde passaram a ter um pai e uma mãe.

Uma tristeza quando neste Portugal os processos de adopção começam logo por ficarem na gaveta durante os três meses das férias judiciais. Três meses em que pára tudo nos tribunais, o que provoca um atraso significativo em todo o andamento que se deseja o mais rápido possível. Rápido? A maioria dos casos leva seis, sete, oito anos para ser resolvida. Um amigo meu juntamente com a sua mulher requereu há oito anos uma criança para adopção. Em todos os testes e avaliações de que o casal foi alvo a aprovação foi total. O casal tem todas as condições financeiras, e outras, para poder adoptar um filho. Esse casal ao fim de cinco anos esqueceu a pretensão e nunca mais pensou no assunto de poder ter um filho. Felizmente que agora, ao fim de oito anos, a Segurança Social informou-os que tinham um bebé para lhes ser entregue. Foi a alegria mais sentida na vida do casal. Demorou muito, mas neste caso a luz ao fundo do túnel tornou-se realidade e o casal está a viver os dias mais felizes da sua existência. Realmente, quando existe um desejo assoberbado não há ventos e tempestades que façam desistir definitivamente um casal de receber nos braços o que tanto sonhou.

Neste tema da adopção há surpresas. Alguns casais tentam conseguir ter um filho através do método in vitro e mesmo assim nada feito. Mas, surpreendente um dia mais tarde o mesmo casal que tentou por esse método consegue naturalmente que a mulher engravide. Todavia, uma assistente social transmitiu-me que para tristeza de todos que trabalham no seu departamento a mesma mãe após o nascimento de dois gémeos transmitiu que o namorado já tinha desaparecido e que ela estava desempregada e órfã, sem condições para criar os bebés e nesse sentido entregava os filhos para adopção. Dá que pensar. Tal como recentemente uma mãe foi deixar o seu recém-nascido à porta de uma igreja dentro de uma alcofa, bem tratado, bem alimentado, bem agasalhado, com um biberão ao lado e uma carta onde a mãe apelava que alguém criasse o seu filho com muito amor porque ela não tinha a mínima possibilidade. Que raio de país é este em que se apela a uma maior natalidade e depois não existem condições para muitas mães poderem sustentar e educar os seus filhos.=

27 Set 2020

Adopção | Dois lados de histórias de família

Em quase 20 anos, foram adoptadas em Macau menos de 40 crianças. Uma mãe e uma filha partilham a experiência de adoptar e ser adoptado, vivida por poucos numa terra onde ainda há caminho por desbravar

 

[dropcap]T[/dropcap]alvez tenha sido o destino, mas Mariana também não sabe. Certo é que, contra todas as probabilidades, regressou a Macau, a terra que a viu nascer há 20 anos, para estudar a língua e descobrir a cultura associada aos traços chineses que lhe talham o rosto de menina. Mariana Vivas foi adoptada sensivelmente um ano depois de ter nascido, mas desde que abriu os olhos esteve sempre nos braços daquela a que viria a chamar mãe.

“Eu nasci em Fevereiro de 1999, ela ficou como minha tutora durante um ano e a adopção foi declarada pelo tribunal apenas em Março de 2000”. Um hiato temporal que coincidiu precisamente com a transferência do exercício de soberania que, aliás, esteve em vias de pôr em causa o pedido de adopção. “Tenho de admitir que me considero muito sortuda”, graceja Mariana Vivas que, aos cinco meses, foi viver para o Ribatejo, porque a mãe, solteira, queria que crescesse em Portugal com a família.

Foi em Almeirim que Mariana passou a infância e a adolescência, sem nunca franzir a sobrancelha à imagem que via diante do espelho. “Às vezes até eu me esqueço que sou chinesa”, brinca Mariana, relatando que sempre soube dar a volta a troças na escola. “Tinha personalidade para ultrapassar isso”, diz, confiante. O facto de ser adoptada “nunca foi uma questão ou algo do outro mundo”.

A descoberta foi ainda em tenra idade, surgindo com as primeiras noções dadas na escola sobre donde vêm os bebés: “Perguntei à minha mãe como era quando estava na barriguinha dela e ela respondeu que eu nasci na barriguinha de outra senhora”. Mariana ficou “a pensar”, mas a sua principal preocupação não era ter sido adoptada, mas antes saber se a melhor amiga também o era. “Ela era o meu modelo, eu queria ser em tudo como ela, ter tudo o que ela tinha e, por isso, a minha reacção foi perguntar se ela também tinha sido adoptada. Por acaso, tinha”, enfatiza.

Embora sempre de bem com as origens, Mariana, que celebra dois aniversários (o de nascimento e o da adopção), confessa que só compreendeu na perfeição quão “importante” e “séria” era a adopção aos 14 anos. “A minha mãe ofereceu-me uma caixinha, com fotografias e cartas da minha mãe biológica [em chinês, depois traduzidas para inglês], e com os documentos todos do processo do tribunal. Fiquei a saber mais da minha história, porque na altura quase não sabia nada da minha mãe biológica”.

Nos primeiros anos de vida, Mariana recebia postais da mãe biológica pelo aniversário ou pelo Natal, mas depois esse contacto cessou. “Para mim é uma pessoa que, de certa forma, parece estranha. Nunca a vi e não sinto nenhuma conexão em especial quando vejo as fotografias. As cartas também nunca referiram nada sobre um reencontro, apenas explicavam a razão pela qual não podia ficar comigo”, conta. “Muitas pessoas perguntam-me se gostava de conhecer a minha mãe biológica. Se eu um dia tiver a oportunidade, claro que a aceito, mas caso contrário não me faz confusão. Há sempre uma curiosidade, mas não é algo muito muito forte”, partilha.

À terceira de vez

Mariana veio a Macau pela primeira vez há dez anos, com a mãe, a melhor amiga e a mãe da melhor amiga. Seguiu-se uma segunda viagem, em 2015, desta feita apenas com a melhor amiga. Foi, aliás, a primeira vez que saiu de Portugal sozinha. Dois anos depois, em 2017, veio ‘definitivamente’ para estudar mandarim no Instituto Politécnico de Macau, eventualmente outra obra do acaso. Mariana estudou ciências, sempre esteve inclinada a enveredar pelas engenharias, mas quando surgiu a informação sobre o curso lançou-se sem medos, apoiada também na bolsa de estudos.

“Uma coisa que me chamou a atenção e uma das razões para vir foi ser em Macau, o que me permitia conhecer um pouco da minha história”. A reacção maternal foi a típica de uma mãe: “Inicialmente, ela estava um pouco apreensiva, com medo de que a minha escolha tivesse sido tomada por impulso e que eu não estivesse a pensar no meu futuro, mas só na parte económica [por ter uma bolsa de estudo] sempre sem me querer tirar o entusiasmo”.

Luz ao fundo de túnel

Entusiasmo é a palavra quando Rita (nome fictício) fala da filha, apressando a exibir com orgulho as fotografias da sua pequena de três anos e meio. Rita, natural de Macau, que prefere falar sob a condição de anonimato, casou em 1999 e sempre quis ter filhos. Esperou durante anos, mas natureza não quis e a possibilidade de engravidar com a ajuda da ciência foi sempre uma carta fora do baralho. “Somos católicos e não queríamos fazer nada contra a vontade de Deus”, explica.

A hipótese de adoptar surgiu quando a notícia de uma bebé abandonada num caixote do lixo mexeu com Rita que, pouco tempo depois, decidiu contactar o Instituto de Acção Social (IAS) para se inteirar dos procedimentos. Sete meses depois, Rita tornava-se mãe. “Estávamos no festival do meio outono, em 2016, quando ela veio para nossa casa”, conta. Rita reconhece que o processo foi “bastante rápido” para a média normal, algo que, a seu ver, pode ter que ver com o facto de não terem imposto requisitos em termos de nacionalidade, atendendo a que a menina não é chinesa. “Os chineses têm dúvidas em adoptar crianças estrangeiras. Penso que é algo cultural, porque temem que as gerações mais antigas – como os avós – possam não aceitar”, contextualiza.
Importante a facilitar o processo foi também o papel da mãe biológica que não abandonou a criança, mas antes prescindiu da guarda quando ainda estava grávida. “Ela deixou os papéis todos preenchidos, tudo tratado. Ela fez algo pela criança. Se não a amasse provavelmente teria abortado. Foi um acto de amor”, realça.

Rita vê a adopção como “uma bênção”. “É realmente algo muito bom e bonito. Não apenas para a criança, mas também para os pais”, sublinha, sem esconder o desejo de adoptar outra criança.

“Estou à espera que a minha filha me peça um irmão para avançar”, graceja Rita, hoje com 47 anos.

A experiência relativamente ao processo de adopção foi positiva, mas Rita entende que existem melhorias que podem ser feitas pelo IAS sobretudo ao nível da informação. “Era bom haver seminários e aconselhamento para quem quer adoptar – tanto antes como depois”, sugere.

Em defesa da criança

Em entrevista ao HM, a chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do IAS, Christine Lao, defende que, comparativamente a outros países e regiões, a parte burocrática, além de gratuita, é “muito simples e prática”, algo corroborado, aliás, por pais adoptivos. O incógnito tempo de espera surge, porém, como um dos pontos apontados por quem aguarda por acolher uma criança.

No entanto, como explica o IAS, afigura-se difícil definir uma meta temporal, sobretudo porque “em Macau “existe um número reduzido de crianças abandonadas”. “Sabemos que os futuros pais querem que o seu desejo seja concretizado o mais rapidamente possível – e compreendemos isso –, mas têm de estar cientes das diferentes etapas [VER TABELA] e que é difícil calcularmos o tempo da fase de espera”. Como realçou a responsável do IAS, desde 2000, houve anos sem registo de adopções, mas também outros com quatro, como em 2012, por exemplo.

“A postura do IAS é a defesa do interesse superior da criança. Nós ajudamos as crianças a encontrar pais e não o contrário, pelo que as expectativas dos candidatos não são o factor mais importante a ter em conta”, sublinha Christine Lao.

Desde a transferência do exercício de soberania, 68 menores foram encaminhados para o IAS, dos quais 14 regressaram à família de origem, deixando de ser classificadas como abandonadas. Das 54 crianças, 38 reuniam condições para ser adoptadas, segundo decretou o tribunal, e foram-no efectivamente ao longo dos últimos 19 anos.

Actualmente, há oito crianças para a adopção: uma já concluiu a fase experimental, estando a aguardar que o tribunal a decrete, duas estão na fase experimental, enquanto três encontram-se na etapa de emparelhamento, havendo ainda duas crianças com necessidades especiais sem futuros pais à vista. De acordo com o IAS, entre as crianças abandonadas, quatro saíram da lista de potenciais adoptandos por terem atingindo os 16 anos, enquanto outro menor expressou a vontade de não ganhar uma nova família.

Neste momento, existem 70 pedidos de adopção de famílias/indivíduos de Macau, a somar a cinco de estrangeiros, que não residem no território.

Condições para adoptar

Casais:
– Devem ter mais de 25 anos, casados há mais de três anos ou a viver em união de facto há mais de cinco
Solteiros:
– Deve ter mais de 28 anos e menos de 60 anos à data em que o adoptando lhe for confiado; a diferença de idades entre o adoptante e o adoptado deve ser superior a 18 anos e inferior a 50

Condições para ser adoptado:

-Quem seja filho de pais incógnitos ou falecidos
Aquele relativamente ao qual tenha havido consentimento prévio para a adopção
Quem tenha sido abandonado pelos pais

A pessoa, cujos pais, por acção ou omissão, ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação moral ou educação em termos que, pela sua gravidade, comprometam seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação

Quem tenha sido acolhido por uma pessoa ou por uma instituição, contando que os seus pais tenham revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação durante, pelo menos, os seis meses que precederem o pedido de confiança

Etapas do processo

Apresentação da intenção de adopção ao IAS
Avaliação para a adopção
Escolha do adoptando
Período de pré-adopção
Sentença judicial

 

Duas centenas de crianças vivem em lares, mas têm família

Actualmente, há sensivelmente 200 crianças a viver em lares, mas que não se encontram disponíveis para adopção. Parte figuram como ‘crianças de ninguém’: os pais não cuidam (porque não podem ou não querem) mas também não abrem mão da guarda dos filhos. Em entrevista ao HM, a chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do Instituto de Acção Social (IAS) deixa claro que cada é um caso. “Essas crianças que vivem nos lares encontram-se em situações diferentes, mas a maioria vive num lar por os progenitores terem dificuldades em cuidar delas”, explicou Christine Lao.

As razões por detrás são da mais variada ordem, desde problemas financeiros a problemas de saúde. Também há crianças cujos pais não se encontram em Macau e que não têm mais ninguém com quem ficar, bem como outros que têm os progenitores presos ou a braços com problemas como a droga. Estes cenários levam a que “pais e filhos se separem temporariamente”, mas o objectivo último é que, uma vez solucionados os problemas, possam regressar a casa e, mais importante, à família.

Linha vermelha

No entanto, nem sempre tal sucede, existindo crianças no paradoxo de terem uma família que não abdica de si, mas que a deixa crescer num contexto institucionalizado. Se bem que, “em nome do interesse superior da criança”, o ideal será que volte ao seio da própria família, o IAS observa que existe uma ‘linha vermelha’. “O IAS tenta sempre manter o contacto com os pais/familiares das crianças. Quando deixam de contactar ou de visitar os filhos durante mais de seis meses, conforme a lei, o IAS pode entrar em contacto com o Ministério Público que vai inteirar-se da situação e ver se a melhor solução é a adopção. Se assim o entender, vai propor ao tribunal que, após estudar o caso, decide se decreta ou não a criança como abandonada, qualidade necessária para se considerar que reúne condições para ser adoptada”, esclareceu Christine Lao. Embora sem dispor de números concretos, o IAS estima que, desde 2000, tenha havido uma dezena de casos em que tal sucedeu. As crianças podem viver num lar até aos 18 anos.

As outras mães

Depois de conquistas quanto à possibilidade de menores de 18 anos entregarem os filhos para adopção, a directora do Centro Bom Pastor, Juliana Devoy, espera agora mudanças relativamente às grávidas não residentes.

É um dos pontos na agenda do Grupo de Acção para a Adopção, fundado em 2017, por Juliana Devoy, para evitar “histórias tristes” como a da trabalhadora birmanesa, de 27 anos, que se encontra actualmente em prisão preventiva, após ter dado à luz na casa-de-banho dos patrões e abandonado o recém-nascido na varanda “por pânico”. “Do que tem sido a nossa experiência, se a mãe não for residente tem de levar o bebé para o seu país de origem, mas parece tão injusto. Em Hong Kong, por exemplo, podem dar o bebé para adopção se assim o entenderem”, realça Juliana Devoy. “Pedimos ao Instituto de Acção Social [IAS] para ver se há formas de resolvermos este problema, para olhar para estes casos”, apontou ao HM.

Para a directora do Centro Bom Pastor, os ventos que correm auguram sinais positivos: “O IAS tem estado muito interessado nas mulheres grávidas – independentemente da idade – e abertos às nossas sugestões”. “Estou contente com os progressos significativos, apesar de não podermos mudar do dia para a noite uma cultura”, realçou Juliana Devoy, referindo-se à recente conquista relativamente às menores de 18 anos. “O IAS mudou a atitude e, no ano passado, duas jovens de 15 anos puderam entregar os filhos para adopção sem problemas, porque o IAS compreendeu a importância de uma criança ser integrada, o mais cedo possível, no seio de uma família”, observou. A lei não o proibia, mas a política do IAS durante anos foi a de seguir a posição de um juiz que entendia que uma grávida com menos de 18 anos era muito imatura para estar em condições de decidir dar o filho para a adopção. “Como resultado, houve muitas histórias infelizes”, destacou a directora do Centro do Bom Pastor, radicada em Macau há 30 anos.

“Não sou ‘naive’ ao ponto de pensar que vamos conseguir grandes mudanças, mas o essencial é que temos avançado”, afirmou Juliana Devoy, elogiando o trabalho da chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do IAS, que tem, aliás, participado nas actividades promovidas pelo Grupo de Acção para a Adopção. “A Christine [Lao] tem uma mente muito aberta e feito o seu melhor”.

Na agenda do Grupo de Acção para a Adopção figura também a intenção de promover o ‘foster care’, ou seja, o conceito de famílias de acolhimento, que possibilita que uma criança seja acolhida temporariamente, em vez de estar numa instituição. “Não há esse tipo de política, mas podia haver. Claro que há uma grande diferença em relação à adopção, mas também permite que seja providenciada uma família a crianças que estão em lares”, destacou.

Acelerar processos

Em termos genéricos, Juliana Devoy entende que os procedimentos da adopção devem ser acelerados para que as crianças cheguem o mais rápido possível às famílias que tanto os desejam. “Antigamente, segundo os relatos que ouvia, os candidatos sentiam-se muito desencorajados com a resposta do IAS quando não havia bebés disponíveis para adopção. O processo ainda é lento, mas se houver uma avaliação antecipada [dos candidatos], mal haja crianças, pode ser logo activado em vez de demorar meses. Tenho membros da minha família que foram adoptados logo na maternidade”, exemplificou.

9 Abr 2019

Adopção | Os problemas de uma lei que não vai ser revista pelo Governo

Só num dos centros de acolhimento de crianças e jovens estão mais de 80. As famílias à espera de adopção são 70 e apenas uma criança está apta a entrar no processo. Os tribunais só as podem libertar para adopção depois do consentimento parental e a lei não vai ser revista

[dropcap style≠’circle’]V.[/dropcap] tinha cerca de 40 anos quando engravidou. Vivia precariamente e sofria de distúrbios mentais. Não conseguia tomar conta de um bebé, mas aconselhada a ficar com a criança, acabou por levar o filho para casa. Poucos dias depois, a criança foi entregue a um lar de acolhimento de menores para poder ser devidamente cuidada, visto a mãe não o conseguir fazer. Contudo, esta criança nunca foi admitida para adopção.

v. não queria abandonar o filho para ser criado por uma outra família e não podia ser a sua família. A lei de Macau relativa à adopção não permite que uma criança seja adoptada sem a autorização por parte dos pais biológicos nem contempla casos especiais, em que dada a incapacidade parental evidente, possa intervir para que o menor entre em processo de adopção. A criança é agora adolescente e está a terminar o ensino secundário. Nunca teve família e viveu sempre num lar.

H tinha 15 anos quando engravidou. Menor, não podia dar o filho para adopção. Em Macau, apenas as mães a partir de 18 anos podem declarar que querem entregar as crianças. O bebé ficou três anos à guarda dos avós, cresceu e transformou-se num fardo. Foi entregue a um lar. Foi resgatado pela mãe algum tempo mais tarde, mas as prioridades de uma jovem de 18 anos são outras. Voltou a ser entregue aos cuidados de uma instituição. Em Macau, uma mãe menor não tem poder para renunciar à parentalidade.

Jurisprudência, não lei

De acordo com directora do Centro do Bom Pastor, Juliana Devoy, não se trata, aqui, de um condicionamento legal. “A premissa saiu um dia da boca de um juiz que considerou a menor imatura para decidir se queria ficar com o filho e, a partir daí, é tido como um dado adquirido”, disse ao HM.

Independentemente das circunstâncias, são crianças que acabam por passar parte da vida a serem cuidadas por uma instituição e o Instituto de Acção Social (IAS) já reiterou ao HM: “A lei da adopção não vai ser revista”.

Para Juliana Devoy, a manutenção de um sistema, que não delimita tempos de espera para a libertação de crianças para adopção, mostra não se ter como valor o bem maior da criança. O mesmo se aplica à ausência de excepções quando é provada a falta de capacidade parental para cuidar dos filhos. “Quando uma mãe é visivelmente incapaz de cuidar da sua criança, o sistema deveria, desde logo, proteger o menor e encontrar mecanismos para acelerar a integração dessa criança numa nova família”, sublinha a responsável pelo Bom Pastor.

Juliana Devoy, que tem acompanhado mães que muitas vezes ainda não sabem se querem cuidar das crianças, não tem muitas dúvidas. “É urgente ter um regime jurídico capaz de encaminhar os bebés para adopção com a maior rapidez para que as crianças não passem o crescimento institucionalizadas”.

A razão, aponta, é o direito maior da criança a ter direito a uma família.

Além da lei

Mas as mudanças não podem ser apenas legislativas. As mentalidades, os serviços e mesmo os juízes têm de mudar a forma como pensam e actuam. “É preciso educar pais, funcionários e mesmo juízes. O IAS diz que não é do âmbito da sua acção e que a decisão é do juiz, mas isto pode ser mudado. Os juízes precisam de ser educados. Eles não sabem muito acerca de psicologia, mas quem saiba o mínimo, sabe que o período da primeira infância passado sem uma família ou de uma pessoa significativa, vai afectar todo o futuro das relações da criança”, explica Devoy.

A opinião é partilhada por Amélia António. Para a advogada, “o problema maior nem é a lei, são as pessoas e a sua sensibilidade”, algo que vai ter reflexos na forma como a lei é interpretada e praticada.

Tendo em conta o bem maior da criança e o direito a uma família, não há nada que impeça a confiança administrativa de um menor famílias candidatas a adopção enquanto os processos de espera por autorização parental decorrem.

“Uma criança candidata a adopção pode ser confiada com a ressalva de que aquela criança ainda não está com estatuto para poder avançar com o processo”, começa por dizer Amélia António. Mas, o que acontece, explica, é que a lei é interpretada de outra forma e as crianças só são libertadas para adopção depois de todo o processo concluído. Entretanto, vivem institucionalizadas.

“O processo administrativo e judicial pode estar a decorrer paralelamente. As pessoas têm é de estar devidamente esclarecidas. Conheço pessoas que adoptaram sem ter certeza se o processo iria funcionar e o que me diziam era que, enquanto a criança estivesse com elas, estaria a ser bem tratada e em ambiente familiar”, refere.

Para Amélia António, o maior problema tem mesmo que ver com a falta de esclarecimento das pessoas.

Desleixo nos serviços

O advogado Miguel de Senna Fernandes, especialista em Direito da Família, considera que a lei não é má. “As esperas não são uma questão de chatear as pessoas”, diz tendo em conta as 70 famílias que se encontram na lista de espera para adopção em Macau. Para o advogado, “o problema é a necessidade de existir uma actividade investigatória e todo um conjunto de procedimentos a ter em conta. Se aliarmos isto ao factor do desleixo, já é outra história e não é exclusivo no âmbito da adopção”.

No entanto, tratando-se de crianças que, de alguma forma, estão sob os cuidados do Governo, “há que ter todas as cautela, mesmo que este tipo de abordagem possa dar azo a muito papismo”.

Ainda assim, e mesmo em sintonia com a lei, Miguel de Senna Fernandes admite que os tempos indefinidos de espera em instituições “podem realmente não ir de encontro ao bem maior dos menores”.

Para o advogado, há que ter em conta os serviços e a sua pouca eficiência. “Não tem que ver com o regime mas com a forma como está a ser gerido e com a gestão dos serviços”, refere. Má pode ser a gestão dos recursos e o tempo de espera e as razões por esperas tão grandes sem ter que ver com  o próprio procedimento legal. É a este nível que tem de ser feita alguma alteração”, deixa com sugestão.

Discurso oficial

Em Macau há 70 famílias qualificadas para adoptar e à espera de acolher uma criança. Só num dos nove lares que recebem menores estão, neste momento, mais de 80 crianças. No território, apenas um menor está admitido para adopção “porque as autoridades judiciárias decretaram nesse sentido após os pais terem renunciado ao poder parental”, disse o IAS ao HM.

Quanto aos restantes utentes, por falta de renúncia de poder parental por parte dos pais biológicos, “não se encontram em situação susceptível de adopção”, reitera o IAS.

De acordo com o organismo, a colocação num lar de crianças e jovens tem como fim o “assegurar a sua permanência num ambiente seguro e o acesso aos cuidados adequados”, lê-se na resposta dada ao HM pelo organismo quando questionado acerca do assunto.

O IAS vai mais longe. “Em simultâneo, será também definido um projecto de vida em função das suas necessidades com o objectivo de reforçar a sua capacidade de se auto-cuidar ou desenvolver os seus interesses e talentos”, ainda que sem família.

E, nos casos em “que necessitam de ficar em lares durante um período de tempo mais prolongado e não possam regressar à família, o IAS apresenta periodicamente relatórios especiais ao Ministério Público para que as instituições judiciárias possam tomar as devidas providências”, refere o IAS.

 

Faltam leis para proteger os menores

As crianças que se encontram institucionalizadas, muitas vezes durante todo o seu desenvolvimento até atingirem a maioridade, são umas sobreviventes. A ideia foi deixada pelo psicólogo clínico Pedro Senna Fernandes ao HM.

Com experiência a trabalhar com crianças em idade escolar, Pedro Senna Fernandes considera que “Macau peca por não ter uma lei de protecção de crianças e de jovens em risco nem um regime relativo ao acolhimento institucional” o que faz com que “não se consiga apurar quem tem responsabilidades pelos menores que se encontram institucionalizados”, começa por dizer.

O resultado é o que se vê: “Crianças com um percurso saltitante entre aquilo que são os lares de acolhimento e orfanatos, e as próprias famílias”.

A situação tem consequências. Sem vínculos afectivos sólidos, têm elas próprias de arranjar forma de conseguir obter um reconhecimento emocional por parte das pessoas que estão nestes lares e que lidam com dezenas de outros menores, refere. “O que acontece em termos emocionais e comportamentais é que estas crianças começam a ter uma exposição às emoções básicas como a alegria tristeza e raiva, de uma forma muito dura o que faz com que desenvolvam competências emocionais de forma desajustada.”

Processos difíceis

Para Pedro Senna Fernandes a solução passaria além da criação dos regimes em falta, a constituição de equipas técnicas multidisciplinares que avaliassem cada situação em profundidade e apresentassem um relatório a um juiz que decidiria do seu encaminhamento para adopção ou não.

Em Macau o encaminhamento dado para adopção é “tremendamente dificultado”, considera, sendo que os casos que podem seguir para processo são ou de órfãos ou de crianças abandonadas, o que faz com que se mantenham, “num grande limbo, as crianças que continuam a estar nas instituições e a ir a casa, e que, muitas vezes permanecem em lares até aos 18 anos. Chegados à maioridade, saem dos lares e não há nenhum projecto capaz de os acompanhar”, remata.

29 Nov 2017

Família | Nasce em Macau “Grupo de Acção para a Adopção”

Depois da aprovação da lei da violência doméstica, Juliana Devoy decidiu que se devia focar na questão da adopção em Macau. Como tal, o Centro do Bom Pastor ajudou a criar um grupo que promete lidar com a situação

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] adopção é um assunto a necessitar de urgente intervenção, e para o qual Juliana Devoy considerou estarem reunidas as condições para, finalmente, ser tratado.

Em primeiro lugar, ficou decidido que se deveriam juntar pais adoptivos e fazer um brainstorming de forma a identificar os principais problemas e intervir. “Achámos que o melhor não era falar de adopção, mas falar dos direitos das crianças em crescer numa família”, revela Juliana Devoy.

Estava dado o pontapé de saída para a criação do Grupo de Acção para a Adopção. Este é um assunto muito próximo do Centro do Bom Pastor, uma vez que a instituição, desde 1990, acolheu 92 mulheres que decidiram ter filhos apesar de não terem condições para tal. Dessas mulheres, 32 eram menores de idade.

Neste ponto há uma situação institucional que não favorece as crianças: um bebé só pode ser adoptado depois de a mãe completar 18 anos de idade. Isto leva a que criança não tenha estabilidade familiar. Primeiro fica com a progenitora e, por falta de maturidade, a responsabilidade de criar a criança acaba por recair sobre a avó. Mais tarde, quando a mãe se torna maior de idade, coloca a criança para adopção.

Além disso, em Macau, adoptar é um pesadelo burocrático, uma vez que os processos se arrastam, demorando “talvez dois ou três anos”, conta Juliana Devoy. A demora leva a que os potenciais pais adoptivos se sintam desencorajados a darem esse passo.

Outra questão é a cultura da região. “Na maioria das famílias, se têm uma filha grávida escondem esse facto, ao ponto de não quererem que ela traga o bebé para casa depois de dar à luz”, conta a directora do Centro do Bom Pastor. Mesmo entre os casais que adoptam, esse acto é mantido em segredo, apenas sendo revelado muito tarde na vida dos filhos. “É algo pouco saudável”, conta, e um grande choque psicológico para a criança. “Entre os chineses há um sentido de vergonha”, comenta Juliana Devoy.

Os casais interessados ainda têm de enfrentar o facto de as adopções em Macau serem limitadas ao território, e no Interior da China. “Não podem adoptar um bebé em Hong Kong ou em Taiwan, não existem adopções internacionais”, explica a directora do Centro do Bom Pastor.

O grupo que foi apresentado ontem, Dia Mundial da Criança, tenciona recolher informação sobre os processos de adopção nos países vizinhos, de forma a ter pontos de referência.

No Dia Mundial da Adopção, que se celebra a 11 de Novembro, o Grupo de Acção para a Adopção organiza uma mesa redonda na Fundação Rui Cunha, para sensibilizar a população para o tema. Participam na discussão pais adoptivos que contarão as suas histórias, de forma a ilustrar o quão importante é para uma criança crescer em família.

2 Jun 2017

Justiça | TUI nega residência permanente a criança adoptada

Nasceu no território, mas a justiça entende que não tem direito à residência permanente, apesar de ser esse o estatuto dos pais adoptivos. Para o tribunal, conta mais o facto de a mãe biológica não ter, à data do nascimento, direito ao BIR
Sónia Chan, Secretária para a Administração e Justiça

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] história tem já alguns anos, mas só agora terminou, com o Tribunal de Última Instância (TUI) a dar razão à Administração. O caso é contado pelo próprio TUI, através de um comunicado que chegou às redacções.

A criança no centro da questão nasceu em Macau em 2011. É filho de uma mulher estrangeira, não portuguesa, sem direito de residência no território. Desconhece-se quem seja o pai. O menor acabou por ser adoptado por um casal português, ambos residentes permanentes da RAEM, tendo o processo de adopção sido concluído em 2014.

No mesmo ano, em Agosto, o casal requereu à Direcção dos Serviços de Identificação (DSI) a emissão do bilhete de identidade de residente permanente, mas a Administração entendeu que a criança não tinha esse direito. Inconformados com a decisão, os pais recorreram hierarquicamente para a secretária para a Administração e Justiça. A responsável pela tutela assinou por baixo a decisão da DSI. Estávamos já em Janeiro de 2015.

O processo passou então para os tribunais: por se tratar de uma decisão de um governante, o casal apelou ao Tribunal de Segunda Instância (TSI), que anulou o despacho, dando assim razão aos recorrentes. Ora, a governante entendeu por bem que a história não deveria ficar por ali e levou o caso ao TUI.

Para a secretária para a Administração e Justiça, o menor em causa não deve ter direito à residência permanente porque, à data do nascimento, nenhum dos pais biológicos detinha este estatuto. Além disso, alegou a governante, o argumento de que os pais adoptivos são ambos residentes permanentes também não tem qualquer importância para caso. “Os filhos biológicos não foram equiparados aos filhos adoptivos pela Lei Básica”, cita o comunicado do TUI.

Os argumentos do não

O tribunal entendeu que a razão está do lado do Governo. Entre outros aspectos, o TUI cita a Lei Básica para explicar que o documento fundamental “atribui direitos de residência com base em vários factores atributivos: a nacionalidade dos interessados (chinesa, portuguesa e todas as outras), o local de nascimento dos interessados, a residência habitual em Macau durante pelo menos sete anos consecutivos e a filiação dos interessados”.

No que toca à nacionalidade, a Lei Básica “concede mais vastos direitos de residência permanente aos cidadãos chineses, num segundo patamar aos cidadãos de nacionalidade portuguesa e, num terceiro nível, aos cidadãos de outras nacionalidades”, escreve o TUI. A mesma lógica é aplicada aos filhos de residentes permanentes.

O tribunal entende que a interpretação feita tanto pelos pais, como pelo TSI é “absurda”, porque mesmo “os filhos nascidos em Macau dos residentes permanentes chineses (não nascidos em Macau) e portugueses (mesmo que nascidos em Macau), não têm direito à residência permanente se, à data do nascimento, os seus pais não tivessem direito de residência” no território.

A importância de como se nasce

O TUI acrescenta ainda que, na interpretação da Lei Básica, “o que releva é a filiação biológica”, porque é essa que existe à data do nascimento da criança.

“A filiação adoptiva não existe no momento do nascimento. Os cidadãos portugueses, que adoptaram o menor, só são legalmente seus pais a partir da data do trânsito em julgado da sentença que decretou a adopção. À data do nascimento do menor, os seus pais eram os seus pais biológicos”, constata o tribunal. “Nenhuma norma do ordenamento jurídico de Macau permite fazer retroagir os efeitos da adopção ao momento do nascimento, sendo que a adopção dos autos teve lugar mais de três anos depois do nascimento.”

Há um aspecto, porém, em que o TUI não dá razão à secretária, sendo que tal não muda, porém, o resultado final: diz a justiça que “é completamente irrelevante discutir a equiparação ou não do estatuto de filho adoptivo ao filho biológico na Lei Básica, porque não é isso que está em causa de acordo com as normas pertinentes”. O tribunal remata dizendo que “se trata de um acto administrativo vinculado, em que a Administração não tem margem de livre apreciação”.

16 Jan 2017

Adopção | Legislação de Macau condiciona decisões

A lei da adopção e os seus contornos longos e penosos têm sido alvo de críticas em Macau. Além dos processos normais, o facto de as mães menores não poderem decidir do futuro dos filhos é uma questão polémica, que preocupa quem trabalha na área

 

[dropcap style≠’circle’]L.[/dropcap] tinha 15 anos quando engravidou. Se, no início, não tinha intenção de ter a criança, ao assistir à maternidade de uma colega da mesma idade mudou de ideias. Contra a vontade dos pais, resolveu ter o filho. Mas o dia-a-dia com um bebé não era o que julgava e, logo nos primeiros meses, a realidade fez-se sentir. L. não mais queria o filho. Os avós decidiram tomar conta da criança, mas a solução encontrada não resultou da melhor forma.

Aos 18 anos, agora maior e com poder legal para dar a criança para adopção, L. entregou o filho a um centro de acolhimento, visto ninguém mais o desejar. Meses depois, os avós sentiram saudades do neto que, afinal, tinham criado até aos três anos. Foram à instituição, pegaram na criança e levaram-na para casa. Mas, e mais uma vez, a ideia não foi viável no seio desta família. Alguns meses depois, e já habituado a estas andanças, o filho de L. voltou a uma instituição para, mais uma vez, ficar à espera de ter uma família.

Esta é uma das histórias contada por Juliana Devoy, directora do Centro do Bom Pastor, que acolhe mães e crianças vítimas das agruras da vida. O caso não se passou na instituição que lidera, mas acompanhou-o de perto e é uma das muitas histórias que fazem com que não desista de lutar para que mães menores de idade, e que não reúnam condições afectivas e familiares para poderem criar os seus filhos, possam ser legalmente aconselhadas a proporcionar “o bem maior da criança e entregá-la para que outra família a possa acolher”.

Da sua experiência enquanto responsável pelo centro que acolhe estas menores, muitas vezes, antes de contarem à família que engravidaram, passam por ela casos, uns felizes, outros menos, de situações em que, quem acaba por perder são as crianças.

“O pior destas situações é que, quando nos procuram [as mães menores], não as podemos tranquilizar e dizer para ficarem descansadas que os bebés podem ter acesso a uma família”, desabafa Juliana Devoy ao HM.

Para a responsável, a história que inicia este texto é o exemplo que dá força para que haja “a necessidade de uma legislação capaz de encaminhar os bebés para adopção com rapidez, de modo a que este tipo de situações possa ser evitado”, na medida em que “a lei tem de proteger estas crianças que também têm o direito a uma família”.

Uma questão de justiça

Terem de crescer entre famílias em que não são bem-vindas e casas de acolhimento “é absolutamente injusto” para estas crianças, porque não lhes dá a oportunidade de terem a “sua família”, um lugar que lhes possa ensinar o amor e a aceitação.

Juliana Devoy não hesita em dar o exemplo da vizinha Hong Kong. “Ali não há qualquer constrangimento legal no que respeita à idade para dar uma criança para adopção. Se a mãe for menor e não tiver condições, os pais podem assinar pela filha, mediante testemunhas”, explica. No entanto, e mesmo nestes casos, “há um limite de tempo que lhe é dado para reflectir e ponderar a decisão, e não é um limite aberto como em Macau, mas sim restrito a alguns meses, de modo a não acumular sofrimentos, nomeadamente para a criança”.

A lei de Macau, para a responsável, “é sempre a favor dos pais ou do adulto e esquece o direito da criança”. Devoy dá exemplos de adultos que passaram a meninice e adolescência em centros de acolhimento, porque ou nunca foram formalmente dados para adopção, ou porque, quando foram, já tinham chegado à adolescência e “ninguém os queria”.

“É preciso ter o bem estar da criança e a possibilidade de ter uma família e de criar laços afectivos fortes como base da apreciação legal das situações”, defende ao HM, porque “os pais não podem cuidar deles, mas também não os dão para adopção”.

Mãe é mãe, mas…

Se a necessidade de uma família é evidente também para a psicóloga Goreti Lima, quando se fala de mães menores as reticências começam a aparecer. “São mães e, como tal, o ideal seria que existisse ajuda no sentido de as seguir no que é este seu novo papel”, afirma. Para a psicóloga, não nos podemos também esquecer dos direitos da mãe, “porque uma mãe é sempre uma mãe e isso é insubstituível”.

No entanto, também sublinha que uma criança precisa de se sentir segura e o vai e vem entre instituições “não é, de todo, uma forma de crescimento saudável”. “O facto de estas crianças serem institucionalizadas, independentemente da idade que têm, vai ficar marcado. Quando é abandonada pelo seu primeiro grupo de pertença, por si não é saudável, e quando isso acontece repetidamente, a situação piora muito”, explica.

No entanto, e dada a realidade efectiva de que existem menores incapazes de cuidar dos filhos, que consideram que as crianças “um fardo”, há que encaminhar os casos para uma análise mais profunda e individual, porque, “nestas situações, é necessário ter como prioridade o bem da criança, e a possibilidade de desenvolver os afectos e relações que a vão acompanhar e estruturar”. Assim sendo, “nestes casos, quanto mais cedo a criança tiver a possibilidade de ser adoptada melhor”, remata Goreti Lima.

Maturidade em mudança

Quando se fala neste assunto, o que está em causa é a maturidade. Esta é a ideia defendida por Paul Pun, secretário-geral da Cáritas Macau. Se, num primeiro momento, Paul Pun considera que a maioridade deveria definir o momento em que se atribui a capacidade a uma mãe para dar um filho para adopção, o responsável tem também em conta as mudanças sociais que ocorrem permanentemente.

“Se há uns anos uma pessoa de 16 anos não era considerada madura para poder tomar estas e outras decisões, com o tempo isto tem vindo a mudar”, entende. “Neste momento, o que considero mais aconselhável é que este assunto venha a discussão pública para que se possa reflectir acerca dele e das mudanças que possam ter ocorrido, a nível social, capazes de conferir maturidade suficiente a estas jovens para que possam tomar uma decisão com este tipo de peso, que terão de carregar para o resto da vida”, afirma ao HM. Para Paul Pun, o que deve ser discutido é que se, nos dias que correm, uma pessoa com 16 anos pode ou não ser capaz de tomar este tipo de decisões, “e esta é a discussão que deve vir a público, mesmo a nível legal”.

 

 

 

 

 

Pau de dois bicos

“A questão da menoridade da mãe é, de facto, um problema ao nível legal”, afirma o advogado Miguel de Senna Fernandes ao HM. “Há casos, por exemplo, em que estas mães menores nem têm pais”, aponta. São situações em que se coloca a questão do que fazer com as “duas crianças”, o que é um “problema muito sério”. No entanto, para Senna Fernandes, Macau tem um mecanismo, que pode não ser o ideal, mas que abarca este tipo de situações.

“Dentro do sistema legal actual de Macau, esta mãe não pode decidir quanto ao futuro da criança, por não ter idade para isso. No entanto, o tribunal pode nomear um tutor para fazer esse tipo de acolhimento”, explica ao HM. O advogado recorda que, para mães com menos de 15 anos, esta tutela faz com que sejam acolhidas juntamente com os seus filhos. “Claro que isto são casos extremos em que nem a mãe tem pais.”

Para o advogado, “a mãe que é menor não pode decidir por si e a lei é muito clara”, mas Senna Fernandes admite a possível flexibilização do sistema, sem deixar de frisar que tal terá de depender, e muito, da própria eficácia dos serviços. “Se quisermos arranjar um sistema mais expedito, mais flexível e mais prático, sem esquecer o que está em causa e também os direitos da própria mãe, temos de rodear isto de muitas cautelas, porque não deixam de ser mães menores que, à luz da lei, não têm capacidade para este tipo de decisões.”

 

No (a)colher também está o ganho

A questão das famílias de acolhimento também se destaca no contexto da adopção. Para Juliana Devoy, esta “terá sido uma opção já colocada em cima da mesa, mas que acabou no abandono”. Da sua experiência, na génese do desinteresse, nomeadamente por parte das autoridades, está, por um lado, o facto de haver poucas pessoas interessadas – talvez pela falta de sensibilização e conhecimento – e, por outro, a exigência e rigor em excesso dos requisitos.

“É necessário que se comece a pensar que isto é um assunto importante porque, até agora, o assunto da adopção não se tem desenvolvido muito na medida em que, e aparentemente, não afecta muita gente.” As pessoas lesadas, além das crianças institucionalizadas, são os pais que aguardam a adopção e que não são uma grande parte da sociedade, conclui a responsável pelo Centro do Bom Pastor.

 

Esperas que nunca mais acabam

Contactado pelo HM, o Instituto de Acção Social (IAS) salienta a importância crescente no que respeita aos processos de adopção da região e afiança que “está muito atento ao procedimento e à revisão da Lei da Adopção, pelo que coopera activamente nos referidos trabalhos”. De acordo com os dados do IAS, desde 2000 até Junho de 2016, de entre os casos com pedido de adopção cujos processos de emparelhamento foram tratados pelo instituo, “69 deles referem-se a pedidos locais e seis a pedidos do exterior, encontrando-se esses casos a aguardar o respectivo emparelhamento de crianças pelo IAS”. A duração dos processos “depende das necessidades reais das crianças a serem adoptadas e dos outros factores, pelo que não se pode definir uma duração para todos os casos”, justifica o organismo.

4 Nov 2016

Adopção | Aplicação de lei é errada. Revisão não está prevista

A grande questão da adopção é a falta de uma lei que reúna todos os regulamentos e a aplicação do que dita o Código Civil. A opinião é dos agentes sociais que apelam ao Governo medidas urgentes, como famílias de acolhimento e um decisão rápida dos próprios tribunais

[dropcap=’circle’]O[/dropcap] Governo disse que sim, mas afinal não. Os regulamentos sobre adopção não estão a ser revistos segundo confirmou, ao HM, a Direcção dos Serviços para os Assuntos Justiça (DSAJ). Ainda assim, o grande problema em torno do assunto passa pela má execução da lei e pela falta de um diploma que englobe todos os regulamentos, conforme aponta pessoa conhecedora do processo, ao HM.
São muitas as queixas em torno da adopção. Demasiados anos nas instituições, as crianças não se tornam aptas para a adopção. A ordem tem de vir dos tribunais, depois de receberem os relatórios das instituições, mas teima em não chegar.
Em entrevista ao HM, Vong Yim Mui, presidente do Instituto de Acção Social (IAS) indicou que a adopção é um “assunto importante”, mostrando abertura para rever os dois principais regimes, o de Protecção das Crianças e o Regime de Actuação. “Vamos analisar o conteúdo e depois dar uma opinião aos serviços competentes para se estudar a possibilidade e viabilidade de alterar os regimes”, indicou, frisando que a DSAJ já estaria a “propor uma revisão do regime”. crianças assédio
Por partes. Segundo o Código Civil, artigo 1831º, é adoptando quem seja filho de pais incógnitos ou falecidos, aquele relativamente ao qual tenha havido consentimento prévio para adopção, quem tenha sido abandonado pelos pais, a pessoa cujos pais, por acção ou omissão, ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação moral ou educação em termos que, pela sua gravidade, comprometam seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação; ou haja sido acolhido por uma pessoa ou por uma instituição, contanto que os seus pais tenham revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação, durante, pelo menos, os 6 meses que precederem o pedido de confiança.
“São estas duas alíneas a grande questão. Se há tantos casos destes porque é que os tribunais não colocam as crianças em situação de adopção? Está na lei, é possível. Porque é que o tribunal não actua e não inibe os pais do poder paternal? A criança não fica em condição de adoptabilidade”, referiu a fonte ligada ao processo, frisando que “o que está em causa não é a adequação dos regulamentos ou não, é a forma como é aplicada a lei”

Casa cheia

Macau chegou a ser elogiado pela imprensa portuguesa por ter poucas crianças para adopção, acontece que as instituições estão cheias de crianças que esperam por um sim, dos tribunais, que os faça entrar em processo de adopção.
“Não se percebe como é que o tribunal não toma uma decisão num prazo de seis meses, no máximo, e deixa a criança à espera”, aponta a fonte

O sítio ideal

Para Lei Man Cheng, directora da Associação Contra os Abusos das Crianças, o Governo deve ter como prioridade a protecção da criança. Como passo importante, a directora reforçou a necessidade de “evitar que a criança vá para um lar”.
“Acho que seria importante criarem-se as condições necessárias para as crianças que são retiradas aos pais, serem entregues a uma família de acolhimento e não irem directamente para um lar”, defendeu.
Ideia que vem concordar com o que Marjory Vendramini, directora da Associação Berço da Esperança, já tinha defendido ao HM, numa entrevista em Novembro passado, que a permanência numa “instituição não é o ambiente ideal”.
“O ideal seria estar em família, se estivessem bem, claro. São os problemas que as fazem estar aqui, mas uma instituição nunca é o lugar ideal para uma criança. Até pelas coisas pequenas, por exemplo a mudança do pessoal trabalhador, isso cria instabilidade emocional para a criança, em termos de segurança e confiança. Ferramentas muito necessárias para que as crianças consigam criar uma ligação, e só assim é que é possível trabalhar com elas. Não pode haver medo”, referiu, na altura.
Para a fonte ligada ao processo as “famílias de acolhimento” só seriam possíveis – assumindo a sua posição a favor desta medida – se fosse algo “muito provisório”. “No máximo seis meses”, pois as crianças – e as próprias famílias – criam vínculos que serão rompidos quando a criança avançar para o seu processo de adopção para outra família.
Ainda assim, o primeiro passo, diz, deve passar por organizar a casa. “Parece-me que seria sensato que o Governo criasse uma Lei da Adopção que envolvesse todos os regulamentos, de forma organizada”, rematou.

29 Jan 2016