AL BERTO em filme versão pop gay

[dropcap style≠'circle']O[/dropcap] filme AL BERTO, do realizador Vicente Alves do Ó, teve estreia comercial a 5 de Outubro de 2018. Um filme é sempre o resultado de duas coisas, o olhar de quem o filma e as condições de produção que o circunscreveram. Este axioma encerra e contém todos as variáveis, equipas artísticas e técnicas, contextos, estéticas e pensamento cinematográfico, distribuição e mercados. Este AL BERTO é o do Vicente Alves do Ó.

Na nota biográfica que se pode ler na página da Assírio & Alvim, editora da obra poética do AL BERTO, prémio PEN de poesia em 1987, lê-se : “Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de Janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa. Tendo vivido até à adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, dedicando-se, entre outras atividades, ao estudo de Belas-Artes.

Publicou o primeiro livro dois anos depois de regressar a Portugal.

Em mais de vinte anos de actividade literária, a expressão poética assumida por Al Berto, o pseudónimo do autor, distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas) que a palavra encontra o seu poder exorcizante, combatendo o mal com o mal. É neste sentido que Ramos Rosa fala de uma “poesia da violência do mundo e da realidade insuportável”: “a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral”, mas “à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital.”, sublinhando ainda a forma como esta espécie de “grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança”, se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo “ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra” (cf. ROSA, António Ramos – A Parede Azul. Estudos Sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 120-121).”

No filme do Vicente Alves do Ó, conhecemos um Al Berto nos anos de 1975, em Sines, regressado do seu exílio em Bruxelas.

Importa notar que 1975 é o ano quente, o tempo de maior tensão social e cultural vivido na sociedade portuguesa depois dos anos de convulsão do final da regime Monárquico e implantação da República nos anos de fronteira do séc. XIX para o Séc. XX.

O mundo estava ainda dividido em mundo livre, o mundo Ocidental de economia de mercado aberto, e o mundo para lá da “cortina de ferro” , a Europa Oriental e a sua zona de influência , de sistema comunista, mercado planificado e onde o Estado era assumido como um poder de classe, mas naquele caso, a classe dos proletários.

Em Portugal sonhava-se as possibilidades do mundo. Sines avançava nos projetos já anteriormente decididos ( Estado Novo) da grande indústria da energia a partir do petróleo. Sines, a vila porto de pesca, vivia novos enxames, gente que chegava das ex-colónias e ali procurava um recomeço de vida, e mão de obra à procura do salário.

A Sines chegava também o poeta. A casa apalaçada da sua família tinha, como tantas outras, sido objecto de expropriação. Desabitada, era o lugar ideal para um Maio de 68, não em Paris, mas em Sines. Este é o contexto.

O filme mostra um AL BERTO em que o seu capital de transgressão pouco mais parece ser do que o desregramento e o amor homossexual . Poderá a muitos não parecer pouco. Para mim é. Pouco se percebe, para quem não o saiba já, do tempo social e histórico em que a narrativa acontece. Pouco se sabe da profunda sensibilidade estética, do homem que na sua vida e já naquele tempo teve como lugar absoluto a sua obra literária.

Por essa altura, 1974/75 escreveu “ À PROCURA DO VENTO NUM JARDIM D’ AGOSTO” , em “atrium” , lê -se:

“ luta de sonâmbulos animais sob a chuva, insectos quentes escavam geometrias de baba pelas paredes do quarto, em agonia, incham, explodem contra a límpida lâmina da noite, são resíduos ensanguentados do ritual.

na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita.                                                  abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades, sozinho, procuro o fio de néon que indica a saída.

eis a deriva pela insónia de quem se mantem vivo num túnel de noite, os corpos de Alberto e Al berto vergados à coincidência suicidaria das cidades.

eis a travessia deste coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas.

ardem cidades, ardem palavras, inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias, arde a paixão no esquecimento de voltar a dialogar com o mundo, arde a língua daquele que perdeu o medo.

germinam fluidos mágicos por dentro da matéria contaminada do corpo, os órgão profundos gemem assustados pelo excesso, nunca mais voltámos a encontrar um paraíso. a pausa para respirar não existe, o tempo dos grandes desertos absorveu a seiva dos adolescentes dias.

a insónia, essa ferida cor de ferrugem, festeja noctívagas alucinações sobre a pele. no ácido écran das pálpebras acendem-se quartos alugados onde pernoitamos. são enfim brancos esses pedaços de memória onde dávamos abrigo e sossego aos corpos.

para sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo frio, perdidos no tempo, mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutámos o que há de inaudível em nossos corpos.

era quase de manhã no fim do cansaço. despertava em nós o vago e trémulo desejo de escrever.

 

O filme AL BERTO do Vicente Alves do Ó, acontece, propõe-se acontecer no tempo desta escrita, e tem o mérito de nos permitir regressar a ela, de exigir mesmo esse regresso a todo do corpo da escrita do poeta, porque é aí, e só aí, que sentimos o batimento do sangue, o sal das lágrimas, o espanto e o horror do mundo, neste combate em que raramente se passa o estágio de aprendiz ofuscados na euforia das guitarras eléctricas e esparsos fios de mel.

Vicente Alves do Ó, é um realizador inteligente, sabe o que quer, sabe onde está. Sabe também que cenas como a vandalização da livraria que coloca no filme não aconteceram. Sabe que a homossexualidade e o comportamento transgressivo da norma sexual é um dado permanente e comum, embora sempre um interdito, no quotidiano das comunidades, sejam rurais ou citadinas, agora ou ontem. Mas a associação direta do artista, da sensibilidade inerente à prática e exercício duro, solitário, feroz, radical, da arte, à homossexualidade, coisa muito vista cá no burgo, é uma falácia, como outras. Ser homossexual não é passaporte para ser poeta, ou cineasta, ou pintor, como evidentemente também não é impeditivo, nem barreira.

Hoje, quando passam 20 anos ( o tempo corre veloz) , da morte do Alberto e do Al Berto, SINES vive-o como o seu máximo e justo herói. AL BERTO é património e identidade de SINES, tal como o Festival Músicas do Mundo recentemente distinguido – a 19 de Setembro- pela Plataforma Europeia de Festivais , entre os 715 festivais de todas as áreas artísticas, um dos seis vencedores desse prémio europeu.

Ou a excomunhão farisaica de que nos fala Vicente Alves do Ó, de uma vila a expulsar um dos seus habitantes, não tem uma ligação assim tão direta ao real vivido pela comunidade, ou a mentalidade da comunidade mudou totalmente, e o pecador é agora o santo eleito.

Inocente também não é colocar o partido comunista português como o agente principal da repressão à liberdade de costumes do poeta. É uma visão, a do realizador, e terá sempre o mérito de trazer à discussão o cinema português e o poeta Al Berto.

No filme temos alguns rasgos do imaginário e do real, e em várias sequências estivemos perto de um tratamento com maior profundidade da complexidade do pulsar da realidade social nesse tempo retratado, mas quase sempre, a inquietude e o sonho do mundo, fica reduzida a um registo pop gay.

O poeta AL BERTO resiste, foge, como sempre fez, arde no caminho solitário como cometa, resiste consciente da sua efemeridade, foge da tela para a obra, a palavra escrita, onde permanecerá maior e voz singular.

10 Out 2017

O Corpo Nu esse lugar incivilizado onde cresce a febre

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]élia Correia escreveu “ADOECER”, uma tragédia contemporânea que fala da insanidade e da dor dos amantes irredutíveis, e da arte, esse lugar da exceção, da insanidade da radicalidade da vida arrancada para fora da convenção perante o mundo também ele doente, pesa embora o amparo da vida comum esperada, quase higiénica, civilizada, onde afinal a doença também cresce, sempre mas mais modesta, menos catártica, mais aceitável, comedida.

“ADOECER” esteve em cena entre os dias 15 e 18 na Sala de Ensaio do CCB com encenação e dramaturgia assinada pelo Miguel Jesus, numa coprodução  do teatro “ O BANDO  com o Centro Cultural de Belém.

O tom geral é do ausência de luz, os corpos a habitar o flagelo dos nervos sensíveis, nessa realidade telúrica da recusa da convenção que escava fundo o caminho do abismo no fio cortante das emoções com sangue dentro.

A maquinaria expositiva coloca em cena a figura do narrador, que comenta e conduz a narrativa que nos fala da radicalidade da sua relação amorosa de Elizabeth Siddal, modelo, pintora e poetisa, com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, vivida na segunda metade do séc. XIX, alicerçada com a figura do coral. Encena a prestação exemplar da heroína trágica, a mulher que assume e escolhe a derrota como fim, coadjuvada pelo protagonista, o pintor, na demanda iniciática do mito de Pigmalião, não já na forma do simulacro da estátua que se torna viva com o favor dos deuses do escultor cipriota, mas no da relação entre modelo e representação, mestre e iniciada, em que a arte ocupa a totalidade da vida.

Vive-se a ruína da conformidade mimética entre modelo e representação. O corpo táctil é o objecto artístico na sua eficácia do desejo, da dimensão erótica-sexual  transgressiva dos modelos socialmente aceites como padrão da relação amorosa. O abismo da morte é pré-anunciado, e a maquinaria cénica e interpretativa consume esse anúncio e fim adivinhado.

Aristóteles , no que nos chegou da sua “Poética”, diz-nos que a “ tragédia é a imitação de uma ação elevada, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”.

O texto e a dramaturgia, bem como trabalho corporal dos actores, segue com exemplaridade esta definição proposta e até hoje aceite. A encenação é criativa e eficiente, nos desempenhos tem particular destaque a protagonista Catarina Câmera, com um diapasão expressivo da mais interior contenção à explosão catártica, num encontro conseguido entre o movimento coreografado da dança contemporânea com expressão e carga emocional que remete para o teatro de texto. De igual modo o trabalho físico do actor Miguel Moreira, na fronteira do hiper acting, é um esforço assinalável assim como o desempenho a todos os títulos superlativo da narradora Sara Castro.

O contexto da narrativa é o núcleo mítico do movimento pré-rafaelita inglês. O texto de Hélia Correia tem como eixo de partida a pintura “Ophelia” (1852) de John Everett Millais. Por aqui percorrem sombras de Shakespeare, da Beatriz de Dante Alighieri, na construção do texto que tem como figura central Elizabeth Eleanor Sidda/Lizzie, a modelo do quadro “Ophelia”.

Importa uma nota final sobre os músicos actores em palco, e música gravada, uma partitura que vai do clássico ao rock gótico, sem esforço, servindo sempre com eficácia a proposta estética e dramatúrgica.

Onde entra o cinema? É uma pergunta que pode ser feita dado ser esse o foco do que aqui escrevo. No trabalho de luz e sombra a matéria primeira do cinema, na contaminação com o cinema expressionista e ao cinema “noir”.  Numa cena do coro, um actor mimetiza os movimentos de Boris karloff no monstro Frankenstein ( 1931) ,  ou ao cinema de Jean Cocteau, de “ The Blood of a Poet” (1930), “Beauty and The Beast” (1946). Que o cinema contamina todas as artes e a vida, não é revelação nova.

No “ ADOECER” de Hélia Correia e nesta encenação e dramaturgia do Miguel Jesus, o corpo nu é o lugar do incivilizado, que ameaça e é ameaçado pelo corpo social estabelecido na sua radical afirmação.  Inflama-se a si mesmo e coloca-se em estado febril da doença. Ousa deslocar o lugar do vício e da virtude, torna-se ameaça, uma quase impossibilidade nestes nossos quotidianos ordenados, limpos sempre que possível de bactérias e vírus que possam ameaçar o bom comportamento social. No entanto a vida hospitalar também não se aconselha, os hospitais são territórios contaminados, é imperioso fugir a todo o custo. A Doença é dupla, tem lugar na sociedade com cartografia emocional com legitimação assegurada em guichés de bons comportamentos e na radicalidade dos nervos contaminados por sangue desobediente.  É neste paradoxo que se caminha, e a função da tragédia, como Aristóteles nos disse,  “é provocar a purificação de tais paixões” .  A mais recente criação do teatro “ O bando” , fala-nos disso, com excelente mestria artística.

A partir do romance de Hélia Correia

Miguel Jesus dramaturgia e encenação

Rui Francisco cenografia

Jorge Salgueiro música

Clara Bento e Sara Rodrigues figurinos e adereços

João Neca assistência de encenação

João Cachulo/ Contrapeso desenho de luz

Raquel Belchior produção

Nisa Eliziário assistência de produção

Com Catarina Câmara, Miguel Moreira, Sara De Castro e convidados especiais Antónia Terrinha/ Juliana Pinho, Bibi Gomes/ Raul Atalaia, Carolina Bettencourt /Rita Brito, Nélson Boggio/ Guilherme Noronha, Nuno Nunes, Paulo Campos dos Reis/ João Neca, Ricardo Soares/ Miguel Jesus e Rui M Silva

músicos Carlos Lourenço, Eurico Cardoso e Nélson Ferreira (ao vivo) e Bizarra Locomotiva (gravado)

Coprodução | Teatro O Bando | Centro Cultural de Belém

25 Set 2017

João Salaviza e Gonçalo Galvão Teles ganham 1ª obra no ICA

[dropcap style≠’circle’]”O[/dropcap] Fim da Terra” e “ Verdes Campos Aka Amanhã não é Hoje”, nos ecrãs do mundo em 2018/2019.

Antes de tudo assinalo-me como parte interessada em todos estes processos, por razões de trabalho no exercício da prática cinematográfica e da investigação em contexto académico.

São conhecidos os resultados do concurso do Instituto do Cinema e Audiovisual de apoio à produção das 1ª obras de 2017. O ICA, é o instituto público, com autonomia administrativa e financeira sob a tutela do Ministério da Cultura, que tem a responsabilidade sobre as políticas culturais públicas do cinema em Portugal.

Estiveram no concurso 61 candidaturas instruídas com argumento, sinopse, declaração de intenções do realizador, orçamento, e outros elementos de análise que cada candidatura entendeu apresentar, indicação casting, cartas de apoio, etc.  Como se percebe, um dossier de candidatura é trabalho de vários meses, ou até anos.

Desde a abertura do concurso que era conhecido o número de obras a apoiar; duas, dois filmes vão ter quinhentos mil euros e, a partir de agora têm as condições suficientes para iniciar os trabalhos de produção, desde logo a facilidade acrescida para encontrar novos financiamentos.

A correr normal, dois novos filmes vão poder ter a sua estreia num dos festivais de cinema classe A em finais de 2018 inicio de 2019.

Se o trabalho, a sorte, o talento, o permitirem, vão ser obras fílmicas notadas no circuito no mundial de festivais, e ter exibição nacional e internacional em circuito de sala de cinema.  É uma espécie de ganhar na lotaria, mas aqui sempre em processo de trabalho, e onde o nome de Portugal está sempre presente.

“ O Fim da Terra” é o filme apoiado, de João Salaviza,  “ a filmar na Aldeia Branca, território dos índios Krahô, Brasil, utilizando a língua nativa e recorrendo ao envolvimento dos próprios índios como atores do filme”,  lê-se na ata assinada pelo júri. João Salavisa é licenciado em cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema, com muito considerável sucesso da crítica em filmes anteriores, as curtas; Arena, Cerro Negro, Rafa, e a longa metragem Montanha, filmes  apoiados financeiramente pelo ICA. Ganhou o Urso de Ouro na Berlinale, o Ingmar Bergman Award em Uppsala e a Palma de Ouro em Cannes .

“Verdes Campos Aka Amanhã não é Hoje”,  filme de Gonçalo Galvão Telles, e argumento de Luís Filipe Rocha, é outro filme que consegue o objectivo a que se candidatou.

Escreveu o júri, ou transcreveu do dossier entregue, não importa. “ Híbrido de drama intimista e social, inspirado no suicídio conjunto de três jovens em 1996, que aborda a crise, a falta de empregos no horizonte, bem como o contraste da vida no campo e na cidade. Embora os temas e a abordagem não sejam inteiramente originais, a narrativa é alicerçada num guião muito sólido, assente em diálogos cuidados e nos silêncios e no não dito, que assegura potencial de circulação e garante relevância cultural. Estrutura de produção sólida já com coprodutores assegurados e um contrato de distribuição internacional assinado.”

Gonçalo Galvão Teles, é um cineasta com filmes anteriormente apoiados pelo ICA, com alguns prémios internacionais, e lecciona a cadeira de argumento na licenciatura e mestrado em Cinema na Lusófona.

Os restantes 59 filmes, ficam por fazer, dado que filmar sem ICA, num país onde os produtores de cinema não tem capacidade financeira e a banca olha o cinema como qualquer coisa de fantasmático (que também é, mas de outra forma) , pelo que o segmento do capital de risco não tem conhecimento, nem parece querer ter, da realidade deste mercado, é tarefa tão difícil e de tal estoicismo que o bom senso aconselha a evitar. Aliás, o bom senso do senso comum, aconselha a que neste país, salvo condições muito particulares conhecidas à partida, se evite fazer cinema.

Não há, não parece haver, qualquer questão com a decisão de estes dois projectos serem apoiados.  O problema identificado é desde logo os montantes disponíveis, claramente insuficientes, caso se considere relevante a atividade do cinema. Pode-se também perguntar se é necessário um júri exterior ao ICA para fundamentar as decisões produzidas.

Nos 59 filmes propostos encontramos filmes que assumem trabalhar o género ; policial, filme negro, drama, comédia, cinema reflexivo, etc. Pode uma mesma grelha de análise comparar filmes de géneros diferentes ? É possível comparar com a mesma grelha de análise um filme auto-reflexivo que trabalha a etnicidade, com uma comédia? Um filme que na sua proposta estética avança claramente para a situação híbrida e plasticidade de género e um filme assumidamente do género policial?

Levantará seguramente grandes dificuldades.

Encontramos também realizadores que tiveram obras anteriormente apoiadas pelo ICA e portanto condições de produção suficientes para os filmes que fizeram, e cineastas com cinematografia produzida sem orçamento, mas que ainda assim existem.

Faz sentido olhar as obras produzidas sem olhar às condições de produção?   

Dito de outra forma, é possível, expectável, que um filme que teve um orçamento entre seiscentos mil a um milhão de euros, tenha a mesma capacidade de se impor, de chegar a públicos, festivais e mercados, que um filme que teve cinco mil euros na sua produção?

É expectável que filmes sem as condições mínimas de produção, comunicação, cheguem a Veneza, Berlin, ou Cannes, ou Locarno?

No entanto essa cinematografia existe, vai a festivais ( não de classe A ), e por vezes chega a sala de cinema, mesmo sem a possibilidade de campanhas de comunicação.

É claro que o CV de um cineasta com filmes em festivais classe A tem mais pontuação do que o de um que não tenha esses festivais no seu CV.

Se essas presenças resultam de obras anteriormente apoiadas com fundos públicos, produzidas com as condições suficientes consideradas “standart” podem ser comparados, num concurso de primeiras obras, com com outros que nunca o não foram?

Por outro lado, numa abordagem mais foucaultiana, coloca-se a interrogação sobre como é possível legitimar e esperar que um grupo de pessoas, um júri, com  visões e expectativas determinadas, as suas, sobre cinema – júris que variam no tempo de uma mesma legislação, tempo de ação de um governo -,  se articulam com os objectivos plasmas na lei e afirmados no discurso governativo. Se a legitimação do quadro de apoio é a conferida na legislação produzida para o cinema, qual a necessidade de um júri externo ao ministério ou ao instituto da tutela?

Ou se quisermos, pode-se inverter a pergunta, na condição de uma cinematografia produzida em Portugal que resulta de as decisões de um júri externo, para que serve o ICA ?

12 Set 2017

Sisterhood, de Tracy Choi, aplaudido no Indie Lisboa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o catálogo do Festival o filme é apresentado desta forma : “Duas massagistas (Seiya e Kay), na Macau dos anos 1990, tornam-se melhores amigas e criam juntas o bebé de Kay, como uma família. Até que, no dia da entrega do território à China, as duas discutem violentamente e nunca mais se falam. Anos mais tarde, Seiya regressa a Macau, mas apenas encontra o filho da amiga, já adulto, e uma cidade completamente diferente: os casinos e as luzes de néon transformaram a pacata localidade na Las Vegas do Oriente. Sisterhood, da macaense Tracy Choi, é um filme que olha com saudade aquilo que Macau foi e já não é.”

O filme é isso, mas bastante mais.  O filme de 2017, realizado e montado por Tracy Choi com argumento Kin Yee Au, que resulta do primeiro concurso do programa de apoio às longas metragens do Instituto Cultural em 2013, é uma obra cinematográfica fluida, aberta, onde pulsa  a vida contemporânea.

O filme transporta-nos à centralidade do amor na vida das protagonistas,  dá a ver uma cartografia  da construção dos afectos e como, a vida banal dos quotidianos vividos, tem sempre qualquer coisa de heróico, de grandioso, quando o amor acontece.

Fala de outras possibilidades de famílias contemporâneas quando duas jovens mulheres decidem juntas, serem ambas mãe, de um filho que vai nascer da gravidez de uma delas que aconteceu em resultado de um modo de vida, a forma encontrada para pagar as contas, e não de desejo e afecto partilhado. É uma ousadia radical, uma manifestação de amor sem condicionamentos, sejam estes de género, sociais, ou económicos. Ambas sabem, na cidade do jogo e das massagens, as dificuldades da decisão, mas não as temem. Sabem que o corpo grávido se transforma e se afasta dos padrões do das profissionais da massagem, e facilmente uma barriga que cresce é uma condenação a ficar sem o local de trabalho.

E conhecem também o olhar estigmatizado do instituído. Uma coisa são duas jovens mulheres que partilham um apartamento, outra uma família monoparental de duas jovens mulheres e um bebé partilhado. A sabedoria do filme, resulta de, numa história vivida na contingência do quotidiano, a alegria e a espontaneidade dos afectos irromperam exactamente como na vida, sem aviso prévio. Resulta dos pequenos gestos visíveis, como quando um carro de bebé é empurrado pelas protagonistas em que as mãos felizes na partilha da acção se sobrepõem como num abraço, e tem de afastar-se por defesa, na ocultação da visibilidade da expressão afectiva em resultado da fobia social perante o não igual.

O tempo é outro elemento de trabalho na narrativa,  o tempo que muda a cidade, o tempo que muda as protagonistas. Metáfora e símbolo, é o momento da transição da soberania a 20 de Dezembro 1999, o momento de rotura na relação afectiva entre as duas mães do mesmo filho.

Uma fica, outra parte. Mas, para a protagonista, a dor da separação, apesar da saída do território ser sobre a protecção serena e dedicada de um homem rendido e amante, pode ser atenuada, mas não varrida da memória do corpo. O regresso ao território é uma inevitabilidade. O regresso à cidade de pertença onde a memória e também a materialidade do que a define e identifica permanece, bem como um filho, nascido do corpo de outra mulher, agora ele, em crise de adolescência.  Só o regresso a Macau permite o ponto final da dor da rotura pela separação. A cidade mudou, mas é nela que pode ser feliz.

Ficção, 2016, 97, DCP

Argumento: Kin Yee Au

Fotografia: Cheong Sin Mei

Música: Ellison Lau

Som: Nip Kei Wing

Montagem: Tracy Choi

Com: Gigi Leung, Fish Liew, Jennifer Yu

Produtor: Wai But Tang, Yuin Shan Ding, Jacqueline Liu

Produção: One Cool Film ProductIon

Países: República Popular da China/ Macao, Hong Kong

11 Mai 2017

Vontade de cinema: 14º Indie Lisboa, de 3 a 14 de Maio

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a competição nacional estão seis longas metragens e dezoito curtas, a maior presença de sempre na competição nacional do Indie Lisboa. No total, são perto de quarenta filmes portugueses, na sua maioria em estreia mundial ou nacional, nas diferentes secções do festival.

Macau tem presença nesta edição do Indie Lisboa, num olhar sobre o que está a acontecer na cinematografia da território, com a colaboração do Instituto de Turismo de Macau.

Dia 1

Ficção, 2017, 135, DCP

Argumento: Teresa Villaverde

Fotografia: Acácio de Almeida

Som: Vasco Pimentel

Montagem: Rodolphe Molla

Com: João Pedro Vaz, Alice Albergaria Borges, Beatriz Batarda

Produtor: Teresa Villaverde

Produção: Alce Filmes

Países: Portugal, França

COLO, de Teresa Villaverde – Um filme que nos fala da falência

Foi o filme da sessão de abertura e esgotou os 830 lugares da sala Manuel de Oliveira . Na projecção, para além do público cinéfilo, realizadores, actrizes, actores, produtores, técnicos, esteve o primeiro ministro António Costa. Em registo de piada com a irreverência usual em cerimónias de abertura de festivais de cinema, foi apresentada a edição e dadas as boas vindas ao público e aos participantes e, aproveitando a presença do primeiro-ministro, foi sugerido que uma geringonça oleada e funcionar, sabe seguramente que investir 2% do orçamento geral do estado na cultura, é a condição necessária para  tornar efectivamente activo e dinâmica o sector, para ultrapassar a percepção geral das políticas públicas da cultura como um exercício sobre o supérfluo,  o não necessário,  os foguetes que se estoiram no calendário das festas ou eleitorais, mas sim actividade necessária para a continuidade da afirmação do capital simbólico e imaterial de Portugal no mundo. No caso do cinema, é a possibilidade de muitos e talentosos profissionais trabalharem, afirmando o papel central do cinema no diálogo do mundo contemporâneo, no desenvolvimento das cidades como espaços criativos, alavancar esta arte/indústria para patamares com maior desenvolvimento e retorno, também financeiro.

Colo é um filme que continua o universo cinematográfico da realizadora, onde o tempo da adolescência é central, e os movimentos de autónoma e aproximação ao real normativo são de confronto, incompatibilidade, sofrimento, mágoa, desencanto, revolta. No filme Colo, que teve estreia mundial na competição oficial do último Festival de Berlim, a trama narrativa desenrola-se seguindo o quotidiano de uma família jovem e suburbana da baixa classe média em desintegração em resultado da fragilidade e ausência de emprego. Mas cinematografia de Teresa Villaverde tem a sua vitalidade no não abdicar do habitar do poético, do trabalho pictórico na composição das linhas e mise-en-céne dos planos,  nas relação das personagens com o espaço e com o tempo em que movem.  No texto de apresentação, é escrito “ … filme, sempre à beira de explodir, que nos recorda do direito fundamental à felicidade.” A felicidade é uma coisa estranha, mas quando nem dinheiro há para a conta da electricidade, mesmo que a capacidade de fantasiar jantares à luz de velas e imaginar quotidianos em séculos anteriores à sua invenção seja activada, ser feliz começa a ser coisa muito distante, um exercício condenado ao insucesso.

O encanto cinematográfico deste filme irrompe da sua construção no fio da navalha. Embora seja visível a construção narrativa dos três actos, é anulado o conforto narrativo de seguir uma personagem principal, sim é filha adolescente, sim é a amiga adolescente da filha, sim é o pai, sim é a mãe.  Ou seja, temos quatro personagens principais. É possível, dar centralidade à figura da mulher que também é mãe, que também é esposa, que também trabalha, que é quem cuida, que é quem ousa sobreviver e organizar um universo que desaba. Mas se ser mulher neste tempo e neste contexto é tudo isto; ser o eixo, o lugar ómega e alfa, é humanamente impossível ser super-mulher,  e o colapso é inevitável. Colo é um filme lento, que se anuncia no plano inicial do beijo e separação da filha adolescente e namorado, instalasse e ganha singularidade estética cinematográfica quando se abre a roturas na racionalidade narrativa, se liberta e abre à errância e falência dos personagens num mundo em perda, mas que ainda assim sobrevivem e, talvez, venham a ganhar novas possibilidades de vida.

Dia 2

Cião Cião, filme de Song Chuan

Competição Internacional

Ficção, 2017, 83, DCP

Argumento: Song Chuan

Fotografia: Li Xuejun

Som: Gao Yuan

Montagem: Jean-Marie Lengellé, Song Chuan

Com: Liang Xueqin, Zhang Yu, Hong Chang

Produtor: Guillaume de la Boulaye

Produção: Zorba Production

Países: França, China

Verde, vermelho, castanho, dourado, é impossível ficar-se indiferente à beleza formal deste drama, à la Tennessee Wiliams, que se joga na força plástica entre a grande escala e beleza imensa das montanhas, céus  e vales da terra mãe, e os planos aproximados aos corpos e grandes planos do rosto da sensual e bela protagonista.

Mas é a vida de homens e mulheres, novos e velhos, neste tempo contemporâneo, que o filme partilha e constrói com cada um na experiência emocional de cada projecção.

Cião Cião, fala-nos do desejo de mundo, da visão da liberdade e possibilidades em aberto que cidade oferece nos sonhos e vontade dos jovens adultos a viver numa aldeia no interior da grande China. E também do receio dos mais velhos por este deslumbramento por um mundo onde, como afirma a mãe da protagonista logo num diálogo inicial, — um mundo onde tudo o que conta é o dinheiro.

A tensão entre o antigo e o moderno, o ancestral e a vanguarda, é vivido nas dinâmicas da construção social do real na aldeia, onde a imagem perante o outro, a tradição e a hierarquia, são as forças nucleares que laçam e seguram uma cultura milenar onde os filhos devem respeito aos pais. Ter presente esse tempo que chegará, em que a sua função social é a de cuidadores, aqueles que zelam para que uma velhice tranquila, serena, em paz, seja vivida por aqueles que os antecederam.

A aldeia não está isolada do mundo, as redes de satélite asseguram o sinal de antena nos telemóveis, e nos diferentes ecrãs fixos ou móveis, como resistir à pulsão do desejo, à liberdade e anonimato dos corpos que a grande cidade oferece, é isso possível? E no grande vale o comboio aproxima e afasta o distante.

O filme começa com Cião Cião a protagonista, jovem mulher moderna que está a chegar a casa dos pais vinda da grande metrópole de Cantão. Faz-se acompanhar pela sua mala e sapatos Louis Vuitton e lenço Hermès. A sua presença agita  o quotidiano da pequena comunidade onde pouco acontece; os homens jovens jogam , bebem, e frequentam mulheres que vendem sexo. As mulheres asseguram que os homens se mantenham nos afazeres que dão estabilidade às rotinas do quotidiano

Cião Cião, deseja voltar à cidade, os seus pais têm um plano diferente: o casamento com o filho de um homem rico que mantém relações de negócio. Na deslumbrante paisagem rural chinesa os rostos e os corpos dá-nos a interioridade da vida. O desejo e a contenção, os códigos  sociais de um mundo onde sangue, honra, hierarquia, não são conceitos vagos mas práticas que facilmente podem conduzir ao abismo da morte. De notar a banda sonora coadjuvante para esta mistura de corpos, paisagem, desejo, transgressão e convenção, neste filme que se aproxima do perfeito, onde o fora de campo tem uma presença permanente, nesta fala no contemporâneo que opõe os desejos de duas Chinas; a rural e a urbana.

9 Mai 2017

Fantasporto, um festival em idade adulta

A insuportável orfandade

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME-FANTASPORTO 2017, 103 minutos, realização e argumento de Mateo Gil , produção de Espanha.

Sinopse: “Marc é diagnosticado com uma doença que lhe dá um ano de vida. Não aceita o seu destino e decide congelar o corpo. Sessenta anos mais tarde, em 2084, torna-se o primeiro ser humano a ser reavivado na história. É então que descobre que o amor da sua vida, Naomi, o acompanhou de forma inesperada”.

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme começa com o renascimento do protagonista. Nascer de novo é reencontrar a memória dos acontecimentos vividos, um encontro novo com o que fomos, com o que somos.

Estruturado por capítulos o filme vive o tempo de forma não cronológica. Sucessivas elipses dão a ver um vai e vem entre o tempo da vida antes da decisão da criogenização e o do momento actual da narrativa.

O empolgante neste filme de realização cuidada, “décores” assépticos de uma realidade tecnológica já sucessivas vezes anunciada e vista em ecrã de cinema, telemóvel e electrodoméstico TV, é o mapear cirúrgico ao território da habitabilidade do hedonista urbano, através da história do protagonista. Marc é um homem urbano, contemporâneo, jovem, belo e rico, figura de sucesso na agência de publicidade onde trabalha.

Realive, interroga e dá resposta ( com a qual se pode ou não concordar – os filmes são democráticos) a uma pergunta filosófica central neste tempo de orfandade colectiva.

Pode um ser suportar a solidão da consciência da sua total orfandade?

Num tempo em que o antigo conforto da aceitação de Deus é, para muitos, impossibilidade, ou apenas desejo sonhado de pertença a uma organização possível para o mistério da metafísica. Reaparecer vivo num tempo futuro onde todos os que conhecemos desaparecerem, e no qual é a memória o que nos distingue, identifica, é acordar num mundo de solidão imensa.

Como em (quase) todo o cinema , há uma história de amor. É trágico este amor, e o crime aqui, como o definir? Foi Godard que disse que para se fazer um filme é preciso uma mulher, um crime e uma pistola, e não necessariamente por esta ordem.

A morte de Marc é anunciada por análises clínicas que identificaram um tumor na laringe, avançam um tempo de vida ao protagonista que não excede um ano. A decisão pelo suicídio assistido, para um regresso à vida num tempo futuro com data incerta, assim que a tecnologia médica o vier a permitir, ainda antes da falência dos órgãos do corpo o que facilitará o regresso à vida, é a opção e decisão do protagonista.

Esta decisão de antecipar a morte e impede a Noemi de viver com a morte anunciada em calendário conhecido esse tempo com Marc.

A estória do amor dos dois tem sido, foi, uma estória de sucessivos falhanços e, decisão de Marc, é sentida por Noemi como totalmente egoísta. Impossibilita em absoluto à realização da redenção, a vivencia da revelação, esse estado de transcendência, esse tempo com sabor a paraíso que é a comunhão dos amantes.

Marc e Noami, são, foram, os amantes comuns deste tempo onde a procura do êxtase transforma quotidianos em montanha russa emocional, nesta incapacidade para a permanência no tempo da construção da pertença, da permanência com e no outro, mesmo quando esse outro é sujeito que se ama.

Esta é a questão central em Realive, não sendo a linha principal do plot do filme, é o que dá unidade textual ao objecto filme.

É Marc quem, através do último grito do gadget de maior sucesso e de uso massificado nesse novo tempo em que renasceu, 2084 (um par de óculos tecnológicos com um acesso directo, profundamente intenso a todo o banco de emoções, memórias, actos, anteriormente vividos) , nos dá a ver e qualifica a relação amorosa que teve com Noami. É descrita a relação no ecrã em sequências de imagem e em “voice over” , como uma continuidade de desencontros, ora por vontade dele, ora por vontade da Noami. Primeiro ao abrigo de leituras sobre as respectivas carreiras profissionais que falam mais alto do que as exigências do compromisso na relação, depois porque quando um quer assumir o amor ao outro como realidade primeira na sua vida não é o tempo certo o fazer, segundo o outro, num vai e vem de do mesmo comboio em diferentes estações, ou linhas trocadas. Uma espécie de quando eu quero não queres tu e quando tu queres agora não estou para aí virado. E, no contínuo do tempo, desta forma, a vida amorosa dos dois amantes foi partilhada com relações mais ou menos canibais das vidas sexuais mutantes das noites e dias da cidade, naquele só estou bem onde não estou que nos cantou Variações.

Neste regresso à vida em 2084, Marc, é também um produto, o mais valioso produto de uma corporação, a valiosa publicidade concreta para a concretização da expectativa dos lucros na casa dos muitos milhões de yuan renminbi ( conhecem a moeda — o interessante no fantástico é sempre a leitura que é feita do real) . É o primeiro homem com total sucesso no processo tecnobiomédico de regresso à vida após a criogenização .

O seu imenso valor comercial é apenas comparável à profunda solidão que sente e vive.

Noami, também ela, decidiu um regresso à vida num tempo futuro, sabe-o agora Marc, neste seu regresso. Mas não fez a criogenização em tempo de fulgor anímico nas células do seu corpo como fez o seu amor Marc. E, nestes casos, o re-viver é tecnologicamente de dificuldade mais elevada e sem certeza de sucesso.

Na sua profunda solidão, Marc exige, como troca para a permissão à sua exibição como produto, o empenhamento total do gigante da industria médica no regresso à vida de Noami. Mesmo com essa promessa em linha, o seu sentimento de orfandade é total, não resiste, são demasiados tempos num tempo dentro de si que não existe. Está só, e não é Deus.

PRÉMIOS

O Júri Internacional da secção de Cinema Fantástico da 37ª edição do FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DO PORTO decidiu atribuir os seguintes Prémios:

GRANDE PRÉMIO MELHOR FILME -FANTASPORTO 2017

Realive – Mateo Gil (Spain)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas)

MELHOR REALIZAÇÃO

Liam Gavin – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ACTOR

Frederick Koehler – The Evil Within (EUA)

MELHOR ACTRIZ

Catherine Walker – A Dark Song (Irlanda)

MELHOR ARGUMENTO

Mateo Gil – Realive (Espanha)

MELHORES EFEITOS ESPECIAIS

Drew Casson – The Darkest Dawn (Reino Unido)

MELHOR CURTA-METRAGEM

Cenizo – Jon Mikel Caballero (Espanha)

MENÇÕES ESPECIAIS

A Repartição do Tempo – Santiago Dellape (Brasil)
Garden Party – Théophile Dufresne, Florian Babikian, Gabriel Grapperon, Lucas Navarro, Vincent Bayoux, Victor Claire (França)

27ª SEMANA DOS REALIZADORES / Prémio Manoel de Oliveira

O Júri Internacional da 27ª Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto 2017 decidiu atribuir os seguintes prémios:

PRÉMIO MELHOR FILME SEMANA DOS REALIZADORES 2017

Pamilya Ordinario de Eduardo W. Roy, Jr (Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI

Sins of the Flesh- Khaled el Agar (Egipto)

MELHOR REALIZADOR

(Kim Jee-Woon – The Age of Shadows (Coreia do Sul)

MELHOR ARGUMENTO

Ivan Szabó , Roland Vranik- The Citizen (Hungria)

MELHOR ACTOR

Park Ji-Il – The Net (Coreia do Sul)

MELHOR ACTRIZ EX AEQUO

Nahed el Sebai – Sins of the Flesh (Egipto)&
Hasmine Kilip- Pamilya Ordinario (Filipinas)

COMPETIÇÃO OFICIAL EXPRESSO DO ORIENTE 2017

MELHOR FILME

The Net – Kim Ki -Duk (Coreia do Sul)

PRÉMIO ESPECIAL

Dearest Sister- Mattie Do (Laos)

MENÇÃO HONROSA

Saving Sally – Avid Liongoren (Filipinas/França)

PRÉMIO CINEMA PORTUGUÊS

MELHOR FILME PORTUGUÊS 2017

Um Refúgio Azul- João Lourenço

MELHOR ESCOLA DE CINEMA PORTUGUESA 2017

Politécnico do Porto

Menção Especial do Júri para filme de Escola (Criatividade)

Schlboski – Tomás Andrade e Sousa – ETIC

PRÉMIOS NÃO OFICIAIS

PRÉMIO DA CRÍTICA

Caught – Jamie Patterson (RU)
Division 19 – Susie Halewood (RU)

PRÉMIO DO PÚBLICO

Saving Sally – Avid Liongoren (França/ Filipinas)

PRÉMIO ESPECIAL FANTASPORTO

Catarina Machado – Pintora – pela sua contribuição para o Festival
Rede TV GLOBO – (Brasil)

PRÉMIOS DE CARREIRA 2017

Ate De Jong – realizador (Holanda)
Glória Perez – argumentista, vencedora de Emmy

10 Mar 2017

Os 37 anos de Fantasporto

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá a terminar o FANTAS’2017 que nesta edição anunciou como linha de programação O CINEMA DOS NOSSOS TEMPOS.

À cidade do Porto chegaram filmes do Laos, Albânia, Egipto, Israel, Argentina, Brasil, EUA, entre outros países e cinematografias.

Assume-se como Festival de cinema generalista com especial atenção ao cinema de género. Dá cobertura à grande extensão de filmes produzidos na área do Fantástico.

Não deixa de ser um forte sinal do momento que o mundo vive, a ligação forte ao real em muitos dos filmes programados nesta 37ª edição.

O Fantasporto é um dos mais importantes festivais de cinema Fantástico no mundo, género que dá cobertura a filmes com modelos de produção e estratégias narrativas diversas que vai da ficção científica, à comédia, terror, a filmes “zombies”, ao “gore”, entre outras tipificações e, como sempre, nesta relação própria do cinema consigo mesmo, aos filmes híbridos em que os subtemas do género se misturam, recriam, apoderando-se de códigos que aparentemente lhe eram exteriores.

Antes de, em forma próxima de breves notas de diário traçar um retrato a esta edição, sem pretensão de objectividade de jornalista científico, a fazer no próximo artigo, segue um texto onde, por voz própria, a comunicação do Festival nos conta como em 1981 esta aventura que se chama Fantasporto começou.

Como nasceu o Fantasporto?

À mesa do café Luso, na praça Carlos Alberto, a cinquenta metros do que foi durante muitos a catedral do cinema no Porto, o cinema Carlos Alberto, na altura com o nome pomposo de Auditório Nacional Carlos Alberto. Na mesa estavam a Beatriz Pacheco Pereira, o Mário Dorminsky, e o pintor José Manuel Pereira. Os primeiros queriam mostrar filmes, o último, prematuramente falecido, queria expor a sua pintura. Dois anos depois junta-se à equipa o António Reis.

O primeiro apoio financeiro foi do Instituto Português do Cinema, hoje ICA, no montante de 15 contos.

Das “majors” ao cinema independente? Ou o sentido foi inverso?

Desde o início o Fantasporto mostrou as maiores produções europeias, filmes norte americanos de “majors”.  Em 1981, apresentou a primeira longa metragem de animação chinesa.

Sem rejeitar filmes de baixos orçamentos, produção independente ou experimental, o Fantasporto é desde o inicio uma montra de técnicas de vanguarda. Muitos dos filmes apresentados são Óscares, Goyas, Césars, Baftas.

Para além da programação directa junto das “majors”, o Fantasporto tem uma colaboração privilegiada com produtores e distribuidores portugueses.

Porquê o género Fantástico?

Na altura, em 1981, o género era quase desconhecido. O festival nunca foi apresentado como exclusivamente fantástico.

O “Blade Runner”, só foi produzido em 1982, um ano depois da primeira edição do Fantasporto, onde teve  ante estreia europeia.

A recessão económica impunha, então,  uma fuga à realidade. O pós-25 de Abril permitia a abertura do cinema do resto do mundo a Portugal, já não tínhamos a censura.

Tínhamos a ideia de que havia um enorme potencial do imaginário a explorar, desde Murnau aos clássicos do neo-romantismo francês. Havia ainda o Maravilhoso na literatura, na pintura, nos filmes de todos os tempos. Os cruzamentos com outras artes começaram também logo na primeira edição do festival

Georges Méliès e todos os realizadores do passado, e em todos os países, tinham favorecido a imaginação através da fantasia. Nem Akira Kurosawa nem Manoel de Oliveira ( “O Estranho Caso de Angélica”) escaparam à moda.

Hoje as grandes produções  mundiais ainda favorecem o género: “ O Senhor dos Anéis”, “Matrix”,  “ Avatar”, “Harry Poter” , etc, são a prova que todos conhecem.

Festival generalista agora, porquê?

Porque, depois do surto dos anos 80, o cinema Fantástico sofreu uma crise qualitativa, e havia que manter o nível da programação. O festival alargou os seus horizontes para todas as temáticas, no que foi seguido pela maioria de festivais do fantástico na época. Foi criada a Semana dos Realizadores, inicialmente só para os primeiros e segundos filmes.

Pedro Almodôvar foi visto pela primeira vez em Portugal com o seu filme “Matador”. Em 2002, perante a crescente importância do cinema oriental, surgiu a Secção Oficial Orient Express.

Hoje, muitas dos filmes vistos nas retrospectivas são inéditos em Portugal, e resultam de uma programação organizada em colaboração com os Ministérios da Cultura e Institutos do Cinema dos países envolvidos.

A promoção de um evento cultural

O Fantasporto é uma referência no mercado do Filme no Festival de Cannes, com um stand próprio onde divulga o festival e o país. Esta acção no maior festival de cinema e mercado do mundo, inclui uma intensa campanha nas revistas ; “Variety, ( que inclui o Fantasporto na lista dos 25 melhores festivais do mundo e envia correspondente), é apenas um exemplo, televisões, distribuidores , etc.

O festival tem das maiores coberturas mediáticas de eventos nacionais.

Uma comédia antes de adormecer

A noite de ontem terminou com a projecção no grande auditório do filme  Night of Living Deb

Uma comédia romântica e um “apocalipse de Zombies”, parece ser uma mistura com sucesso improvável, se a isto se misturar uma leve crítica de costumes e denúncias ambientalistas, ainda o parecerá mais.  Mas é isso que acontece neste filme de 2015, produção dos EUA, realizado e escrito por Kyle Rankin.

A actriz Maria Thayer, tem aqui uma interpretação divertida, fresca, capaz de levar ao riso o mais sorumbático dos espectadores.

O filme dura 85 minutos. Na verdade os zombies são uma figuração com dimensão de epidemia, todo o interesse do filme resulta da interpretação da actriz e do actor com quem contracena, este a protagonizar o cliché do “bonzão” e, no caso, filho de família de elite ambientalmente contestatário. O pai é um poderoso homem de negócios, controla a água da cidade, convive com as altas esferas do poder político executivo. Tudo é caricatura, um jogo descarado e frontal que procura a cumplicidade do espectador num humor vários furos acima do usualmente praticado no cinema que se assume, sem complexos, como entretenimento e complemento à venda de pipocas. É isso que torna o filme interessante e eficaz, capaz da surpresa do riso.

7 Mar 2017

Histórias do Fantas

37º Festival Internacional de Cinema do Porto

The  Citizen

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ilme  de  Roland Vranik, 117’, Hungria,  também seleccionado para os ecrãs do Festival de Berlim,  é de uma colagem forte ao real e ao tema da migração. A relação do eu com o outro, o reconhecimento da alteridade como processo de descoberta do eu. A Europa, espaço civilizacional e território organizacional,  é olhado como desejo e vontade de pertença  pelas populações que sofrem na dureza do quotidiano as actuais guerras da reconfiguração da ordem internacional que ocorrem no lado sul do mediterrâneo.

É com a ideia de identidade e pertença a um território com soberania própria, a nação, no caso a Hungria, e o processo de aquisição do estatuto de cidadão para quem chega de fora movido pela urgência da sobrevivência e o sonho Europa, que Roland Vranik, filma “The Citizen”.

Na sinopse do filme pode ler-se: um homem negro tenta durante anos tornar-se cidadão da Hungria

Filme de grande e aparente simplicidade, transporta-nos à realidade que sabemos existir através dos espasmos noticiosos dos prime time das tvs.

Esta realidade, a dos campos de refugiados e da guerra nos países no lado sul do mediterrâneo  é permanente em todo o filme. Em campo, seguimos as rotinas de um quotidiano banal de um homem da Nigéria.   O trabalho de segurança no supermercado de bairro de uma organização transnacional de distribuição alimentar, a vida no apartamento que partilha com um amigo, a vontade e o esforço para a obtenção do documento que confere o estatuto de cidadão húngaro.

São várias as dimensões com  relevância na inteligente construção fílmica desta obra, uma, é a eficácia com é trabalhada a percepção da presença do fora de campo enquanto elemento da materialidade narrativa.  Nunca, em nenhum momento, é-nos dado a ver qualquer campo de refugiados, ou imagens das cidades destruídas nos conflitos da guerra, nem emigrantes em movimento.  O realizador sabe que não é preciso, já todos as vimos. O que é preciso, é conhecer o outro, viver com ele a vida, o seu quotidiano de humildade, esperança, revolta. A força da dignidade do homem.  A vontade de uma vida comum, banal, pacífica, sem errância, onde a dor pode ser, se não esquecida, atenuada e tolerada no movimento repetido dos afazeres do quotidiano sem acessos constantes de intoleráveis imprevistos.

O filme mostra-nos a verticalidade, a dignidade do outro na submissão por vontade ao processo burocrático e Kafkiano para a admissão ao lugar de cidadão húngaro.

Essa vontade e a dificuldade da sua concretização levam o protagonista ao encontro com uma professora reformada, uma mulher que vive a sua família num quotidiano normal, marido e dois filhos, numa vivenda em rua tranquila com velhos castanheiros nos passeios. É a irmã da gerente do supermercado onde o herói trabalha como segurança.

Este encontro é toda uma sequência de cenas de uma rara e revolucionária beleza trazida à centralidade do filme.  O amor, a descoberta do outro, o pré-conceito, o racismo,  o ciúme e a posse,  a solidariedade,  o afecto, a aceitação da condição de diferente do outro,  a capacidade da alegria e a vontade de servir, proteger, amar .

A raridade é todo se passar numa quase total ausência de espectacularidade, a um ritmo que torna visível a interioridade dos sentidos e sentimentos com os quais se reconhece a especificidade do humano.

Olhar é este filme é também verificar o rigor e eficácia da sua construção narrativa. Logo no início, aquele que partilhava com o herói o apartamento parte para a Áustria. Vai para um novo trabalho. Pouco depois, uma mulher, jovem refugiada do Irão chega.  Não vem só. Está grávida. Sem papéis e neste contexto em que o acesso à Europa é mais do que um oceano de burocráticas dificuldades, o apartamento é uma minúscula ilha abrigo. O herói torna-se parteiro e o apartamento maternidade. A criança é uma bela menina a quem a mãe dá o nome da avó.

Os exames e as reprovações para o acesso aos papéis que conferem a cidadania sucedem-se. Para um negro é ainda mais difícil. O processo pode demorar 8 a 15 anos.

A mulher mãe de família, professora reformada, descobre novamente a paixão, muda e é expulsa de casa.  O herói é desancado, batido pelo pai e filho da professora que se tornou amante.

O desejo de posse, ciúme, a vontade de apropriação do outro, fazem com que aquela que por vontade e contra hábito instituído,  ousou amar o negro emigrante, informa a polícia da existência da bebé e da mãe.  São deportadas. Finalmente pelo correio chega a carta que confirma a cidadania do herói.

O negro, que lutou para que lhe fosse reconhecido o direito de ser igual , pela admissão à comunidade territorial de pertença, é agora cidadão húngaro. Não consegue aceitar o acto que, para a professora reformada foi de amor, e para o herói, denúncia e violência. O agora cidadão húngaro abandona o país. Parte para a Áustria onde o amigo lhe encontrou novo trabalho.

Lines

Do realizador Vassilos Mazomenos, um grego que também é produtor e argumentista, foi exibido o seu mais recente filme, cujo título original é Grammes.

O realizador é fundador e director da Horme Pictures. Este filme é a sua oitava longa metragem e os seus filmes já passaram por festivais internacionais;  Montreal, Cairo, Puchon, Sitges, Chicago entre outros.

Filme rodado em 2016, segue a abordagem estetizante e procura de uma linguagem plástica com que o realizador tem vindo a afirmar a sua carreira.

Vassilos,  tem neste filme como tema e estética cinematográfica, as consequências da crise grega em pessoas de diferentes condições sociais. Organiza a estrutura em capítulos; teatro, fábrica, escritório, rua, política, contando histórias pessoais de vivências que se desmoronam em resultado do tempo económico , financeiro e social, vivido na Grécia.

O eixo que une narrativamente o filme é uma linha telefónica de atendimento SOS para pessoas em situações de enorme fragilidade. A linha oferece exclusivamente, apoio psicológico, basicamente a disponibilidade de ouvir e, em todos os casos, é a ausência de fundos financeiros a razão do estar em crise.

Com 85 minutos, montagem de Thanos Koutsandreas, fotografia de Giorgos Papandrikopulos, o filme, com momentos de particular interesse pela composição; enquadramentos, mise-en-cène, direcção de arte, décores,  cuidados e que reflectem a abordagem estética do realizador ao seu cinema, causa alguma  interrogação e perplexidade que no entanto não parece ser suficiente enquanto abordagem para a dimensão social, cultural e económica que se propôs tratar.

Veremos o que dirá o júri do Festival.

6 Mar 2017

37.º Festival Internacional de Cinema do Porto | “O ruído não mata mas o medo sim”

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 1 de Março, 16h30, o ecrã do grande auditório Manuel de Oliveira no Teatro do Rivoli abriu-se para o formato 2:39.1. A projecção de “Comboio de Sal e Açúcar”, filme de Licínio de Azevedo, com argumento a partir do livro com o mesmo nome que o mesmo autor escreveu, começa. É uma viagem iniciática e transformadora de 93 minutos, onde a contenção e a exuberância do continente África são expressão da voz humana sitiada em corpos e almas em guerra com as trevas e as visões de luz.

Em 1988, a independência de Moçambique, a afirmação do direito de soberania e consequente anulação do estatuto de território colonizado pelo império português desde o séc. XV, tinha 13 anos. No entanto, o mundo da geopolítica, dividido entre livre e marxista, mantinha em África uma guerra pelo poder. É em Novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, que se precipita o fim de uma visão do mundo divido em dois blocos ideológicos e políticos.

Em 1988, em Moçambique, a guerra colonial continuava, eram outras as potências mandatárias, é sabido, e o nome dado à guerra outro.

Moçambique está em plena guerra civil. A viagem no comboio puxada pela locomotiva D 67, que liga Nampula ao Malawi, é uma oportunidade de comércio para as mulheres com a sabedoria da exigência da sobrevivência num mundo de terror e delinquência com força normativa. Trocam sal por açúcar e garantem desta forma a subsistência das famílias. Uma viagem a 5km/h numa linha sabotada, que expõe e torna vulnerável todos aqueles que a fazem, uma viagem em que se confronta a esperança e o pesadelo da guerra.

Lorenzo Esposito, programador do Festival de Locarno, festival em que o filme esteve seleccionado, escreveu: “Um relógio que já não marca o tempo. A câmara mergulha no cais de uma estação perdida. Um grande grupo de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, ali se sentam em silêncio à espera. (…) trabalhadores, observados de longe por um grande contingente militar trabalham para fortalecer o comboio que parte. (…) um Western africano. Estamos a bordo de um comboio de amor e guerra, em direcção ao Inferno ou ao Céu, onde as mulheres têm que se defender da raiva dos soldados, apesar de algumas se apaixonarem por eles e darem à luz os seus filhos (…) o caminho é longo e perigoso, mais de 700 quilómetros que tresandam a sangue e a morte, interrompidos por sabotagens contínuas: assaltos por milícias ao serviço de senhores da guerra e ataques suicidas por tropas sem nome. (…) Os picos de violência, as mortes mais dolorosas e até os duelos pareciam ansiar fugir para fora do ecrã. São restringidos, não por serem anti-espectaculares, mas para contar a história da dignidade melancólica de um povo roubado dos seus sonhos e esperanças.”

Sim, Western africano, tal como “Apocalypse Now” (Coppola, 1979) é um a Western no Vietname, ainda que aqui sejam bem menos os planos americanos (o plano western por definição), embora sejam claramente assumidos no momento do combate final entre o herói, o tenente Taiar, que mais que a guerra sonha a paz, a agronomia e a tranquilidade de uma vida normal em família como modo de vida, e o bandido, o Alferes Salomão, que tornou a guerra sem lei a marca do seu carácter.

É Licínio de Azevedo quem diz sobre estes dois personagens que “o Taiar é um tenente com mentalidade moderna, científica, que estudou numa academia militar na Ucrânia, ex-União Soviética, e que tem um pensamento diferente por ser jovem e ter recebido formação fora do país. O seu antagonista é o alferes Salomão, que ganhou a sua patente na guerra. É um grande combatente, mas tem um visão mais fechada. Sente-se dono do mundo, dono das mulheres, do comboio.”

Licínio Azevedo, cineasta formado pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, nos anos que se seguiram à independência, teve como professores Jean Rouch, Godart, Ruy Guerra, é mestre nesta sua assinatura cinematográfica, capaz de uma contenção, de um fechamento dum comboio que se move enclausurado num carril a céu aberto, num jogo permanente de tensão entre a escuridão e o desejo da luz. E não é fácil resistir à grandiosidade da expansão territorial do continente africano, mas Licínio Azevedo consegue permanecer perto das almas dos homens e mulheres, sem que o fora de campo deixe de estar presente no ecrã, não estando. Por vezes, quando a respiração da narrativa o permite, temos um plano geral da exuberância do território africano mas, quase sempre, num trabalho de grande assertividade, são personagens construídos com uma sabedoria de fino recorte, que a câmara nos dá a ver e sentir.

Ainda sobre o universo do personagens, diz-nos o cineasta: “Neste filme há três grupos de personagens: os militares que protegem e controlam o comboio, entre os quais há os bons e os maus; os trabalhadores dos caminhos-de-ferro que permitem que o comboio siga o seu caminho e que são a intelligentsia; e os civis, sobretudo mulheres, que viajam e que representam a luta humana mais básica: a sobrevivência. É como um microcosmos onde coexistem muçulmanos, cristãos e animistas, numa atmosfera de traições, ataques e morte, mas também de esperança renovada. ‘Quando o sol nasce todas as esperanças se renovam’, já dizia o meu velho Hemingway. E assim se vai mantendo o equilíbrio, porque dentro do comboio todos os passageiros arriscam as vidas. Durante a guerra temos tendência a diferenciar os bons e os maus, mas isso nem sempre é fácil. Aqueles que atacam o comboio são terríveis mas, por vezes, aqueles que o deveriam proteger são piores.”

Há personagens outros, bem desenhados, magistrais, o Caravela, uma espécie de assistente de maquinista, padre e febril nas suas preces religiosas, ou comandante, carismático, animista, líder incontestado.

O filme, uma co-produção entre Portugal, Moçambique, França e Brasil, chega ao Fantasporto após selecção em Locarno e um prémio no Egipto. Veremos o que o 37.º Festival Internacional de Cinema do Porto lhe pode oferecer.

5 Mar 2017

Tempos difíceis. Ai o cinema, ai o cinema

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ard Times, For These Times, é o título da obra literária do Charles Dickens e do terceiro filme do João Botelho (1988), 90 minutos, com um preto e branco nativo (na rodagem) notável, filmado em 35 mm por Elso Roque, direcção de arte de Jasmim de Matos, um talento que infelizmente já não partilha connosco nem as esperanças nem o sofrimento do quotidiano vivido.

Mas este título e esta crónica, não é sobre esta obra cinematográfica, é sobre os continuados TEMPOS DIFÍCIEIS do cinema Português.

O anunciado novo enquadramento legislativo, em lugar de ser um tempo de reflexão crítica por parte dos seus principais actores, os que o fazem, e os que o distribuem em sala, sobre qual cinema serve Portugal, e qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema, tem sido um tempo de vigor nas explosões intestinas, na defesa dos interesses já conhecidos e em vigor nestas últimas três a quatro décadas, ou seja, desde os anos 80 do século vinte.

Nas redes sociais, em artigos de imprensa, em cartas abertas postas a circular em festivais internacionais de cinema, a pressão das facções dos “donos” do direito a fazer cinema com fundos públicos em Portugal, manifesta-se de forma mais corporativa e fratricida, do que na verdade empenhada em posicionamentos estéticos ou teóricos sobre um pensamento sistematizado sobre o cinema neste tempo concreto da hipermodernidade que vivemos.

Em resumo, temos assistido ao território da criação cinematográfica radicado em duas igrejas. Ambas falam em nome da relação do cinema com o público, ou melhor com os públicos. O deus verdadeiro está em cada uma, segundo os próprios funcionários, ou crentes, da instituição respectiva. Uma igreja segue mais de perto a teologia do marketing, essa grande ciência que sabe mais das nossas vontades e necessidades do que nós mesmos, e a outra, sente-se dona, legitima e única continuadora da chamada política de autor – movimento do cinema europeu iniciado com a geração dos “Cahiers du cinema”, Bazin, Godard, etc, afirmando recusar-se a tratar os públicos como imbecis.

Mas, a razão de fundo da querela é outra, é que, para filmar em Portugal com o mínimo de condições necessárias para cumprir as obrigações com as equipas técnicas e artísticas; os custos de desenvolvimento, preparação, produção, pós-produção e de comunicação de um filme com possibilidade de existir nos circuitos de exibição nacional e internacional, salvo casos esporádicos e nessa condição únicos, é necessário ter os apoios financeiros que resultam das políticas culturais públicas e, como os montantes são sempre escassos, o eixo do mal instala-se, e em cada igreja, instala-se a verdade com exclusão do que lhe esteja fora. Conviria, parece-me, traçar de forma breve o “estado da arte”, com o enfoque no cinema e na sua contaminação no banal quotidiano.

O cinema é matéria de múltiplos territórios, é transdisciplinar, é arte e indústria, contamina comportamentos, atitudes, artes, num duplo movimento de apropriação e recriação do apropriado.

É o mais poderoso construtor do “phatos” (palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, sentimento, ligação afectiva), utilizando a terminologia do cineasta Eisenstein (1898-1948), neste tempo da irrupção de milhões de subjectividades, de comunidades afectivas territorialmente difusas. O cinema afirma-se enquanto olhar singular do homem sobre si e sobre o mundo.

Capaz de transportar o espectador para a tela, o cinema é produtor de modelos e da reflexão crítica aos modelos que cria, é construtor de sombras e de luz, inventor de presentes, passados e futuros possíveis, afirma a radical dimensão da construção simbólica como alicerce e pilar para toda a tentativa hermenêutica do humano olhar sobre o mundo.

Presente na forma e no desejo do habitar dos quotidianos pelas populações urbanas indiferentemente das geografias e modos de vida, sejam mais ou menos conservadoras, liberais, alternativas, dissidentes, feministas, pós-feministas ou pós-revolucionárias, o cinema está presente e, essa presença, sustenta e enforma olhares e subjectividades, visões do eu e do outro.

O cinema é uma poderosa força construtora de mundos e do mundo.

É neste contexto que se tem de pensar a política de fundos públicos de apoio ao sector. O momento de um novo enquadramento legislativo é talvez o melhor dos tempos para, por exemplo, pensar a articulação entre fundos públicos para o cinema e política externa de Portugal. O cinema e os objectivos e necessidades estratégicas de Portugal no curto, médio e longo prazo.

A questão é, ou pelo menos a mim parece-me que deveria ser:

Que cinema serve Portugal?

Qual a legitimidade e a eficácia na decisão dos apoios públicos ao cinema?

Pode um sistema de júris exteriores à administração pública cumprir com eficácia o entendimento das políticas públicas para o cinema? Se sim, de que forma?

Apesar da chamada participação dos actores em campo, não se encontra facilmente qual seja a não legitimidade a que seja o ICA que assuma e garanta as decisões de financiamento com base no cumprimento das linhas programáticas de curto e médio prazo definidas em sede própria – o governo eleito.

A constantemente transparência enquanto valor, o chamado não dirigismo do gosto pelo poder político, com a solução dos júris vindos e representantes dos diversos sectores da actividade cinematográfica, é, ou pode ser, um pensamento bondoso, mas nada garante que seja mais do que isso

A obrigatoriedade de pensar o cinema numa visão integrada e alargada tanto às questões da comunicação de Portugal no mundo contemporâneo, como à oferta cultural em território nacional, como à diversidade estética própria da cinematografia contemporânea, não me parece que fique necessariamente melhor entregue fora do que dentro do organismo que depende da tutela do Ministério da Cultura.

Em registo de conclusão.

A velha discussão Bragança – Paris, apoia-se na irrelevante, estafada e sem fundamentação teórica credível, oposição entre cinema arte e cinema indústria, paradoxalmente, continua a legitimar o discurso e pensamento sobre o cinema que se faz e que importa fazer.

O cinema, “ o diálogo do mundo contemporâneo”, como afirmou Elia Kazan, é arte e indústria, tem a razão da sua paixão nos públicos numa ancestralidade muito anterior a si, a necessidade de narrativas que acompanha a história do homem no mundo. A discussão arte cinematográfica versus indústria é bacoca, ignorante e enganosa. O que existe são diferentes modelos de produção, e todas as possibilidade de filme conhecidas ou a conhecer. A questão dos fundos públicos, das políticas públicas para o cinema português é central e vai continuar a ser, mas nenhuma igreja tem legitimidade acrescida.

27 Fev 2017

O Porto veste cinema

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre 20 de Fevereiro e 5 Março nas ruas adjacentes ao Teatro Municipal Rivoli,  mas com franca probabilidade numa qualquer rua da cidade, centenas de pessoas vestem-se para ir ao cinema. Poucas vestem Prada ou Chanel, estão a caminho de uma das 96 sessões do 37º Festival Internacional de Cinema do Porto, e vestem heróis, ou anti-heróis do grande ecrã; “Eduardo Mãos de Tesoura”,  “Freddy Krueger”,  “Nosferatu”, “The Joker”,  “Mulher Aranha”, para referir apenas alguns exemplos do vastíssimo guarda roupa/ícone(s) do cinema.

O 37º FANTASPORTO  reafirma a sua marca, fortíssima no circuito dos Festivais de cinema de género do mundo, com a presença confirmada de 125 filmes inéditos, (ante estreia nacional, ante estreia europeia, ante estreia internacional e em ante estreia mundial)

O filme de abertura é “The Age of Shadows” de Jee-woon Kim, já passou na Selecção Oficial dos Festivais de Veneza e Toronto, teve o prémio do Melhor Filme do Festival de Filadélfia. É uma superprodução, e é o candidato aos Óscares pela Coreia do Sul,  e um êxito de bilheteira no mercado asiático.

O realizador, Jee-woon Kim, ganhou a 24ª edição FANTASPORTO (2004), com o filme “ A Tale of Two Sisters”.

Na Selecção Oficial estarão 33 países, a concurso ou fora de competição.

Todos os filmes novos abordam o modo como o real de hoje nos afecta, nomeadamente às guerras ( “Bloodlands “ da Albânia), o drama dos migrantes (“The Citizen”da Hungria), a realidade das mulheres muçulmanas face ao adultério ( “Sins of the Flesh”, do Egipto, produzido pelo celebrado Youssef Chahine) ou a realidade económica da Europa (o filme grego “Lines”). Reflexões também quanto à sustentabilidade do nosso futuro com o espanhol de ficção científica “ReAlive” ou o britânico-americano “Division 19” .

Também presente a crítica social  à burocracia com (“A Repartição do Tempo”, uma das maiores  e mais divertidas superproduções do Brasil deste ano. Destaque ainda para um dos maiores realizadores mundiais do momento, o coreano e amigo multi-premiado do Fantasporto, Kim Ki Duk com “The Net” . Também coreano, e do meste da animé Yeon Sango, “Seoul Station” vai estar no ecrã do Rivoli.

Os filmes portugueses em competição que fazem a sua estreia Mundial nesta edição do festival são as longas metragens ”A Ilha dos Cães” ,“A Floresta das Almas Perdidas”  e “Comboio de Sal e Açúcar”.

A longa-metragem “Rewind” produção suíça do português Pedro Joaquim, também tem aqui a sua ante-estreia mundial. Destaque ainda para o Prémio de Cinema Português que vai novamente escolher  o melhor filme e a melhor escola de cinema. Na programação, como é usual, fazem parte inúmeras curtas-metragens.

Nas retrospectivas o destaque vai para o CINEMA DE ACÇÃO DE TAIWAN,  organizada oficialmente pelo governo local de Taiwan, um conjunto de clássicos, muitos inéditos em Portugal.

Igual destaque merece a retrospectiva do moderno CINEMA ARGENTINO , com, entre outros, os recentes  “ El Ataud Blanco” e “ El Muerto Cuenta su Historia”.

Nesta apresentação síntese,  de referir ainda o programa especial de cruzamento com outras artes com um conjunto de conferências e workshops.

O filme de encerramento, deste 37º festival Internacional de Cinema do Porto,  actualmente  classificado como um dos 10 melhores festivais independentes no mundo, ainda não está anunciado.

O Festival vive de uma programação objecto de grande atenção, de uma cidade e de um público muito particular. Um público de festival que vive intensamente a alegria partilhada de ver cinema na sala escura, exuberante, capaz de gritos, berros, falas para o ecrã, na melhor tradição dos afectos do grande público ao grande ecrã.

Nas edições anteriores do festival foram muitos os nomes com destaque na cinematografia mundial presentes na cidade do Porto, aqui ficam alguns; Ben Kingsley, Luc Besson, David Lynch, Neil Jordan, Max von Sydow, Rosana Arquette, Danny Boyle, Serguei Paradjanov , Anthony Minguela, John Hurt,  Pedro Almodóvar, Paul Anderson, Danny Boyle, James Cameron, Nick Cassavetes, Joel Coen, David Cronenberg, John Carpenter, Roland Emmerich, David Fincher, Terry Gilliam, Peter Greenaway, Michael Haneke, Peter Jackson, Takashi Miike, Anthony Minghella, Vincenzo Natali, Tim Robbins, Roberto Rodriguez, Ridley Scott, Quentin Tarantino, Guillermo del Toro, Lars von Trier ou Larry Wachowski.

E muitas as retrospectivas, Jean Cocteau a Orson Welles,  Vivente Aranda, Juan Luis Bunuel, Brian de Palma, Bigas Luna, Dario Argento, George Mélies, André Delvaux, Mario Bava, Terence Fisher, David Cronenberg, René Laloux, Tobe Hooper, Georges Franju, Luis Bunuel, Andrzej Zulawski, Paul Verhoeven, Harry Kumel, René Clair, Marcel Carné, John Waters, Andy Warhol, Leni Riefenstahl, Michele Soavi, David Lynch, Walt Disney, Alfred Hitchcock, , Mojica Marins, Nelson Pereira dos Santos, Jesus Franco, Alex Cox, Julien Temple, Oswaldo Caldeira, Hershell Gordon Lewis, Lucio Fulci, Christpher Lee, Takashi Miike, Sabu, Shynia Tsukamoto, Jean Renoir, Ed Wood , António de Macedo, José Fonseca e Costa, Fernando Lopes, não citando todas.

É fácil perceber o prazer da cidade neste Festival que, com o património edificado e simbólico e o mundialmente conhecido vinho e rio Douro, que aqui a si mesmo se esquece no sal Atlântico, afirma de forma brilhante o Porto no mundo contemporâneo.

24 Jan 2017

ZEUS, Manuel Teixeira Gomes no grande ecrã

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] RADICAL DESEJO DE FELICIDADE, não é, mas podia ser, o título do filme ZEUS que nesta quinta feira de inicio de 2017, é distribuído pela NÓS em Portugal e tem, na mesma quinta-feira dia 5 de Janeiro, ante-estreia na Cinemateca Portuguesa.

O filme acompanha a vida do herói, herói relutante, esse tipo de herói que modernidade ocidental inventou e que no caso tem nome próprio, Manuel Teixeira Gomes.

Quem foi este homem, político, diplomata, escritor, que se demite a si mesmo do cargo de presidente da República Portuguesa, e decide viver os últimos anos da sua vida num exílio por ele próprio decidido, na cidade de Bougie, Argélia, margem sul do mediterrâneo? É o que se espera melhor conhecer quando a projecção termina. O filme cumpre essa natural expectativa.

Vivemos um tempo em que é comum títulos de jornal sobre o uso da coisa pública em proveito próprio. Nenhum título nos fala do abandono, da recusa do exercício do Poder.

O que dizer de alguém que, tendo o poder da presidência de República, a abandona por vontade própria e se auto exila entre outras terras e gentes?

Este foi o caso do sétimo presidente da República Portuguesa, Manuel Teixeira Gomes, com fortuna herdada e construída pelo próprio, eleito a 6 de Agosto de 1923 presidente da ainda adolescente República Portuguesa, cargo de que se demite em 1925, para o acaso o instalar na cidade já referida.

Norberto Lopes, no prefácio de “O Exilado de Bougie”, compara Manuel Teixeira Gomes a um grego do século de Péricles e/ ou príncipe florentino da renascença, há quem dele fale evocando a personagem Corto Maltese de Hugo Pratt.

O cargo era grande ou pequeno demais para o homem Manuel Teixeira Gomes?

ZEUS, é o nome do Filme de Paulo Filipe Monteiro, e o do cargueiro, onde o personagem principal desta ficção biográfica embarca 5 dias depois ao abandono das funções de Estado. Com 65 anos, muda de vida.

A história real, desconhecida para a grande maioria dos portugueses, é trazida a filme pelo argumentista e realizador, Paulo Filipe Monteiro.

O filme integra, de forma ficcional e sem acentuados dramatismos os acontecimentos políticos que antecederam a implantação da ditadura e, centra-se sobretudo, nesse tempo do exílio desejado, onde um confortável anonimato permite o prazer sensorial e a disponibilidade para a alteridade, para o encontro com a existência do outro.

De alguma forma o filme também é uma fala sobre o colonialismo, neste caso o da França, sobre essa arrogância que se apresenta a si mesma como factor de civilização.

Formalmente o filme assume uma montagem elíptica, por blocos, com citações não inteiramente conseguidas ao expressionismo alemão e ao mestre Murnau. Trabalha a luz e a sua ausência, é Paulo Filipe Monteiro quem afirma: “ Zeus é um filme sobre a luz. Outros em Portugal filmaram, e tão bem, a escuridão, a tal soturnidade, a tal melancolia, “um desejo absurdo de sofrer”. Eu gosto da luz nas pessoas e das pessoas que procuram a luz”.

O filme trabalha com situações e frases verdadeiras, que permitem um olhar cinematográfico sobre a vida de um homem de espírito, livre, original.

Estruturado em três blocos, cada um com o seu director de fotografia e o seu director de som, esses blocos vão alternando, o que torna a linguagem narrativa mais contemporânea, embora dando a mão ao espectador para que ele não se perca.

Transcreve-se uma conversa breve com o realizador:

ZEUS, é o nome do cargueiro holandês em que o herói viaja quando abandona o exercício do cargo de Presidente da República e procura outra alteridade. ZEUS, o filme, inscreve-se no género ficção histórica, tem como personagem principal Manuel Teixeira Gomes, escritor, diplomata, burguês com fortuna pessoal herdada e construída pelo próprio, eleito a 6 de Agosto de 1923 presidente da adolescente República Portuguesa, cargo de que se demite em 1925. É a partida, a viagem, depois do abandonar o cargo de P.R.P. o que te levou ao filme?
Sim, o meu interesse por essa figura extraordinária e tão desconhecida dos portugueses começou por esse gesto inaudito de coragem e de liberdade: renunciar à Presidência e, aos 65 anos, mudar completamente de vida. Um homem com aquela importância, Presidente da República, ex Vice-Presidente da Sociedade das Nações (antecessora da ONU), sempre tão chic, grande coleccionador de arte, decide largar tudo e partir no primeiro barco que saia de Lisboa, mesmo sendo um cargueiro, não lhe interessa o destino. Passado um tempo está a viver com os nómadas no deserto…

O filme procura resposta sobre o que faltou, ou esteve em excesso, em Manuel Teixeira Gomes, que o levou a abdicar do exercício do Poder?

O que o levou a partir foram um conjunto de questões políticas e pessoais (a instabilidade, o avanço dos militares e dos fascistas, a lucidez de saber que o poder ia cair nas mãos dos militares, o pouco poder constitucional do presidente para travar isso, o desejo de não ser ele a entregar o poder aos militares, a morte do irmão, o escândalo Alves dos Reis, etc.), que o desgostavam de cá estar. Mas também a atracção de sempre pelas viagens, o fascínio pelo anonimato, a admiração antiga pela cultura árabe.

Norberto Lopes, no prefácio de “O Exilado de Bougie”, compara Manuel Teixeira Gomes a um grego do século de Péricles e príncipe florentino da renascença, também há quem fale da personagem Corto Maltese de Hugo Pratt. Como foi o teu processo de casting? Procuras-te o actor, aquele que tem, sensibilidade e técnica, a capacidade da metamorfose, ou o actor que serve o papel por encaixe através de características antropomórficas, cor de olhos, estatura, modos de estar?
Havia actores mais parecidos de cara e corpo com Teixeira Gomes. Mas apostei no Sinde Filipe, que tem a enorme inteligência, elegância e sensibilidade. Foi uma aposta ganha, encarnou completamente a personagem. Ainda só fomos a dois festivais e em ambos ganhou o prémio de melhor actor (em Mombai e em Coimbra).

Filmar época é sempre um problema acrescido, obriga a um investimento ainda mais cuidado nos décores, guarda-roupa, até mesmo na direcção de actores, esta condição limitou, ou a procura dessa materialidade, resgatou o tempo da narrativa da prisão cronológica?
Sim, é preciso mais cuidado, tempo e dinheiro. Creio que conseguimos. O João Torres é um fabuloso director de arte, conseguiu milagres. A Sílvia Grabovski, como sempre, a ganhar o prémio de melhor guarda-roupa. Os actores a tornarem-se pessoas daquele tempo, mas seres vivos, não empoados. Só a música não é de época, achei que seria demais.

ZEUS, chega às salas nacionais a 5 de Janeiro de 2017. Quanto tempo demorou o processo, quando pensaste pela primeira vez fazer este filme ?

Estou há oito anos a trabalhar neste projecto! Exigiu muita investigação, em Portugal e na Argélia, e cuidadosa preparação. É uma grande alegria ele agora chegar às pessoas.

Em quantos ecrãs o filme vai estrear? Como está a ser o circuito dos Festivais, o filme foi proposta a festivais classe A? A distribuição internacional é feita por quem ?
Vai estrear em vinte salas, o que é raríssimo em Portugal, mesmo com grandes filmes estrangeiros. Para já estamos concentrados nisso, depois trabalharemos na saída internacional do filme.

O projecto ZEUS esteve nas primeiras obras, ou conseguiste o quase milagre de teres dois filmes ficção de longa metragem no teu CV, sem passar pelas primeiras obras do ICA?
Eu não realizei duas longas. Fui actor em 10 longas-metragens, portuguesas e estrangeiras. Como guionista, escrevi sete longas para outros realizadores. Como realizador, só fiz Amor Cego, de 25 minutos, e agora Zeus, apoiado pelo ICA no concurso de primeiras obras.

Já sabes qual vai ser o teu próximo filme ?
Anda a fervilhar na minha cabeça. Não julguem que vou continuar a fazer sempre filmes de época: o próximo é bem contemporâneo.

ZEUS é a primeira longa metragem que Paulo Filipe Monteiro assina, no entanto o cinema é central na sua produção teórica e profissional, prova-o a sua tese de doutoramento em 1995, orientada pelo ilustríssimo Eduardo Lourenço “Autos da alma: os guiões de ficção do cinema português entre 1961 e 1990”.

Como estamos neste início de ano, espero que não se oponham a que expresse votos de excelente ano de 2017 para a cinematografia Portuguesa.

5 Jan 2017

A morte dos deuses é a morte da humanidade

17 DE DEZEMBRO DE 2016, LISBOA

[dropcap]O[/dropcap] céu de chuva dos dias anteriores afastou-se e o dia chega com sol e no mar ondas vigorosas, alguém, em redacção de jornal prepara notas laudatórias para cronologias de morte anunciadas. A cidade vive nesta tarde uma morte profunda, inevitável como todas, por isso absolutamente inaceitável, marcada com o ferro de cronos, irremovível, doentia, miseravelmente fútil. Acresce que ao incontornável aperto do tempo, a companhia viu-se sujeita a contornos orçamentais que, no seu entendimento, não permitem a continuidade do seu projecto, “a intenção de construir um teatro de reflexão com uma função activa na realidade cultural portuguesa”. Ainda talvez incerto, torna-se provável que a Companhia Cornucópia tenha terminado nesta tarde a sua longa, única, brilhante, e inestimável carreira. Em actividade desde 1973, levou a cena, 126 criações, cerca de 5. 100 representações, algumas estreias mundiais, encenadores convidados, co-produções, dezenas de actores em palco. Entre outros escritores dramaturgos, William Shakespeare, Tchekov, Moliére, Genet, Pasolini, Strindberg, Holderlin, Brecht, Garcia Lorca, Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, António José da Silva, Botho Strauss, Samuel Beckett, Heiner Müller, Raul Brandão, Edward Bond, Rui Belo, Rainer Werner Fassbinder, Arthur Schnitzler, Johann Wolfgang von Goethe, Aristófanes, Diderot, Voltaire, Marquês de Sade.

Luís Miguel Cintra, visivelmente cansado e doente, é um gigante da cultura portuguesa do último quarto do século XX e deste início de do XXI. Actor com presença magnética, de profunda sensibilidade e investigador da alma humana, foi e é presença referencial na cinematografia de Manuel de Oliveira, e marco na investigação estética do teatro contemporâneo.

A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro, ou mesmo aqueles que conhecendo, ou pensando conhecer, estão contra este teatro que nunca quis ser de efeito comercial fácil e alegria tautológica à construção da imbecilidade humana.

“A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro.”

São várias as vozes que pululam nos comentários nas redes sociais à notícia do fim da companhia, com afirmações tão esclarecidas como certamente quem as produz, de que se a companhia não consegue viver com o subsídio que lhe foi atribuído e com as receitas de bilheteira, deve fechar a porta, também ficam a perder a possibilidade de mais facilmente vir alguma a perceber qual a dimensão deste projecto na elevação do pensamento arcaico ao civilizacional, a relevância da cultura nas sociedades e nas relações entre povos e países.

Entretanto, há outras vozes, sem dúvida mais sábias, e igualmente neste sábado 17 de Dezembro, surge a possibilidade de, talvez, a companhia poder resistir algum tempo mais, a possibilidade de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis ( que há dezenas de anos assina o espaço cénico das sucessivas criações) se mantenham em actividade.

Uma conversa em palco, improvisada, sem prévio ensaio, inesperada, e talvez auspiciosa. O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rabelo de Sousa decidiu ir a palco, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, também o faz, é um texto em cada um é autor próprio. Luís Miguel Cintra tem esta conversa talvez anteriormente imaginada, mas não programada. Prova-o o cancelamento da visita agendada a Castelo Branco do Ministro da Cultura.

Talvez que o problema do financiamento possa ser ultrapassada favoravelmente à continuação do teatro do Bairro Alto em função criativa, dando continuidade ao que tão brilhantemente tem feito; interrogar o homem sobre os seus anseios, medos, sonhos, fragilidades, grandezas. Ajudar-nos a perceber o que é a final estar vivo em sociedade, o que somos e o que podemos ser.

Talvez Lisboa não tenha cado irremediavelmente mais pobre neste dia, ainda que seja breve e efémero, também o tempo dos mestres, todos ganhávamos com o esforço empenha- do e consistente da tutela no anular, ou avançar no tempo, a perda.

21 Dez 2016

Sim, o cinema português existe

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara quem tivesse dúvida, a exposição de cartazes do cinema português no mês de Novembro no salão da sociedade nacional de belas artes, edifício fronteiro à cinemateca onde ficou instalado o núcleo temático referente ao cinema mudo, afirmou essa impossibilidade. A exposição, com curadoria do presidente da Academia Portuguesa de Cinema, Paulo Trancoso, teve um terceiro núcleo com cartaz / mupis referente ao cinema contemporâneo, na Avenida da Liberdade em frente ao hotel Tivoli, hotel convocado a espaço expositivo de um núcleo dedicado ao realizador Fonseca e Costa ( Angola 1933-Lisboa 2015).

Escasso, de produção incerta, por vezes querido dos públicos ou da crítica, outras indiferente, o certo é que existe e, essa existência, data do tempo da própria invenção do cinematógrafo. Foi em 1896 que Aurélio da Paz dos Reis, realizou a “Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança” com estreia no teatro Sá da Bandeira, Porto, a 12 de Novembro desse ano. Convém relembrar que tinha sido a 22 de Março de 1895 que Auguste e Louis Lumière, tinham exibido “La Sortie de L’usine a Lyon”, que ficou como o primeiro filme doc. da história do cinema.

É de querer que vasto trabalho de arquivo esteja por identificar mas bastante tem vindo a ser feito na actividade do ANIM ( Arquivo Nacional das Imagens em Movimento ) – Cinemateca Portuguesa.

A série de cartazes exposta permite verificar a relação do cinema com o tempo contextual do país quando cada filme é pensado e realizado. Temas, relações entre o cinema português e literatura, relações entre realizadores e artistas plásticos e designers, relações entre cinema e o contexto social e político em que os filmes aconteceram, tornam-se visíveis. Para além da relação gráfica, imediata, que cada cartaz estabelece entre o filme e o design gráfico, é esta possibilidade de construir uma, das muitas possíveis, histórias do cinema português, o que torna a exposição um acontecimento de superior interesse.

Entre muitos outros, Almada Negreiros, artista maior, o português sem mestre, é quem assina o cartaz de um dos filmes ícones nacionais “ A Canção de Lisboa”.

Quando se pensa esta exposição de cartazes de cinema com um olhar que tendo origem nos estudos fílmicos se cruza com as ciências sociais, estudos culturais, historiografia, literatura; facilmente se percebe que se está perante uma história estética e representacional, não só do cinema, mas do país. Coincidente ou não com uma percepção do imaginário colectivo, é dado a ver relações do cinema com as sucessivas ideias do real que vão alicerçando as dinâmicas sociais e culturais ao longo do séc. XX e, este século XXI, prestes a entrar na idade juridicamente adulta. Olhar o cinema no tempo histórico é ver as representações culturais de uma sociedade. Todo o filme enforma, consciente ou inconscientemente, valores estético-ideológicos. “As nossas construções não são diferentes interpretações ou explicações de um mundo pré-existente e independente delas… construções e mundo são uma e mesma coisa”1

Torna-se claro, pelos temas abordados; Fado, Touros, Império, Ribatejo, Canções Populares, mas também Camões, Frei Luís de Sousa, Júlio Dinis, entre outros aspectos, como os carimbos da censura presentes com a palavra “aprovado” nos cartazes expostos ao público, que o cinema sob o Estado Novo teve esforço legitimador para uma ideia de nação nacionalista trabalhada através dos meios de comunicação de massa. No entanto, é também neste período, que o cinema novo começa em Portugal, um cinema movido por outras ambições, e ainda anterior a este movimento, o do Neo-realismo, no cinema português.

“Todavia não é fácil opor cinema convencional e cinema de resistência; eles não são campos opostos; ao contrário, são focos diferentes dirigidos sobre a sociedade, pontos de vista e estéticas diferenciadas, mas não são essencialmente distintos na descrição do mundo que constroem enquanto representação social”2

A “escola Portuguesa”, tem movimento embrionário na geração do cinema novo, em particular António da Cunha Telles, Paulo Rocha, Fernando Lopes, Manuel de Oliveira, entre outros, no contexto por um lado do movimento do cinema europeu independente e próximo da política de autores e, por outro, o real contemporâneo e a memória permanente de um país que sempre procurou outros espaços territoriais muito para além do seu lugar periférico no mapa territorial europeu, como matéria do cinema.

Esta condição não é pacifica nem tem igual entendimento nos diferentes actores do cinema em Portugal, e continua a merecer debate aberto sobre qual a prioridade, a existir, do cinema produzido com fundos públicos, ou seja, 99% dos filmes com capacidade de existir no mercado dos festivais e salas, produzidos em Portugal.

João Maria Mendes,  numa das suas sempre muito interessantes lições, diz sobre a escola portuguesa: “ O conceito de “escola portuguesa”, frequentemente usado para definir o que caracteriza o cinema de autor feito em Portugal, é uma expressão heurística que alude a obras cinematográficas e aos modos de as realizar sem definir com rigor o que lhes dá características idiossincráticas. Está associado à simpatia ou empatia de uma fileira da recepção internacional com “um certo cinema português” e esboçou-se entre scholars e no discurso crítico dos media a partir dos anos 80 do séc. XX, que assistiram à consagração internacional de cineastas como Manoel de Oliveira e António Reis e a uma menorização “política” de outros que defendiam um cinema mais comercial e feito para o entertainment de públicos mais vastos.

Em Portugal, a expressão socializou-se sobretudo a partir da publicação de Histórias do Cinema, de João Bénard da Costa, em 1991.

Paulo Rocha costumava dizer que existe um partido filo-português na crítica cinematográfica internacional, constituído por uma “elite” de cinéfilos atenta aos filmes de autor feitos em Portugal e que vê neles a persistência de uma “escola”. Tal “escola” não é facilmente reconhecida pelos cineastas nacionais, que privilegiam a diversidade de caminhos trilhados por cada um. Mas ao mesmo tempo esses cineastas percebem que a persistência da alusão a essa “escola” os favorece, por criar uma atmosfera internacional favorável às suas criações. De que ideia de cinema é esse interesse sintoma? A que “procura” ou a que “falta” respondem, nas cinematografias actuais, os filmes portugueses valorizados por tais críticos?

Seria Jacques Lemière quem viria a esboçar uma caracterização mais objectiva da “escola portuguesa”, sugerindo que ela é identificável por três tópicos:

 “1. Invenção formal e inscrição do cinema numa nova etapa da modernidade cinematográfica

2. Afirmação da liberdade do cineasta e procura constante dos meios dessa liberdade contra toda a norma industrial

3. Primado da reflexão da questão nacional”.

O primeiro tópico de Lemière remete para 1967 e para o “novo cinema”, quando 15 realizadores portugueses levaram à Fundação Calouste Gulbenkian, então percepcionada como Ministério da Cultura alternativo, o documento “O ofício do cinema em Portugal”, que estará na origem, dois anos mais tarde, da cooperativa Centro Português de Cinema, financiada pela fundação. O segundo tópico remete para a recorrente defesa cultural e política da arte cinematográfica e do cinema de autor contra as normalizações de formatos, géneros e gostos promovidos pelo financiamento, produção, distribuição e exibição de inspiração industrial/comercial. O terceiro tópico refere-se à persistência da reflexão poético/ideológica sobre “o problema português” ou da “sobrevivência nacional” nos realizadores e seus filmes: discussão de equívocos no imaginário histórico do país, sua fantasmática pobre mas imperial, herança complexa da vocação marítima, da longa síndrome salazarista e da guerra colonial, mescla de leituras da abertura gerada pelo pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 e pelo processo revolucionário a que ele deu origem, bem como da normalização política que levou à adesão de Portugal à CEE em 1985. São temas abordados ora em evocações históricas, ora em alegorias poéticas, ora, mais raramente, em filmes-ensaio.” 3

A exposição de cartazes organizada pela Academia de Cinema Portuguesa foi/é, mais uma excelente oportunidade para reflectir sobre o cinema Português.

1 Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, pág. 5 – prefácio de Carmo D’Orey, Porto, ASA 1995

2 Leonor Areal, Cinema Português Um País Imaginado Vol. 1 –Antes de 1974, Edições 70, pág. 17  ( edição com o apoio da FCT)

3 João Maria Mendes é Presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema e professor coordenador no seu Departamento de Cinema. Preside à Comissão Técnico-Científica do Mestrado em Desenvolvimento de Projecto Cinematográfico da ESTC e lecciona no Doutoramento em Artes Performativas e das Imagens em Movimento criado em parceria pela Universidade de Lisboa e pelo Instituto Politécnico de Lisboa. Foi co-fundador e é investigador integrado do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), criado em 2008 pela ESTC e a Universidade do Algarve. Antes de assumir a presidência da ESTC, foi também Professor Associado na Universidade Autónoma de Lisboa e jornalista. É licenciado pela Universidade Católica de Lovaina e doutorado pela Universidade Nova de Lisboa.

12 Dez 2016

O cinema em Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo contemporâneo vive numa afirmação dupla, por vezes paradoxal, entre local e global.  O cinema mais localizado do que local é a indústria-arte do séc. XXI. Desde sempre viu a difusão internacional como o território de excelência sem esquecer  a dimensão doméstica, ou dito de outra forma, o reconhecimento afectivo por parte do público do país de origem.

A produção cinematográfica exige sempre técnicos, actores, realizadores e escritores especialistas de argumento nos países, ou locais, de produção. Mas exige também, por diferentes razões de decisores públicos, políticas próprias, pensamento institucional.

Arte moderna por excelência,  o cinema nasceu com a modernidade, seja enquanto meio de narração, seja enquanto território de experimentação, seja documental, ou cinema de publicidade, o cinema foi e é construtor de visões,  comportamentos, atitudes, de formas de olhar o eu e o outro.

Diz Deleuze, seguindo uma tradição que remonta a Ovídio nas “Metamorfoses”, que as imagens não são duplos das coisas mas as coisas em si mesmas. As imagens são propriamente as coisas do mundo, e se assim é, o cinema não é o nome de uma arte-indústria, “ é nome do mundo”

É certo que o mundo não precisa cinema, ( o cinema tem 122 anos, é recente na sociedade humana), mas o homem precisa, a construção de narrativas, é determinante e necessária na construção do mundo humano.

Macau, é actualmente um dos laboratórios de ensaio dos rápidos processos de mudança  social que são vividos na grande China inventora do mais novo regime de organização política do Estado, que se consagra na formulação “um país, dois sistemas”. Por razões de identidade que resultam da sua particular história, é plataforma escolhido pela RPC para o desenvolvimento das relações económicas, políticas e culturais com os países do mundo lusofonia.

Desde sempre Macau foi uma cidade porto, lugar de chegada, partida e abrigo, de duas zonas do mundo culturalmente diferenciados, a Europa e o Oriente. Em particular foi e é o lugar de excelência para encontro e conhecimento entre Portugal e a China. Esta característica é fundadora da identidade da cidade e continua relevante hoje, neste tempo de novas configurações das Dinâmicas Sociais Económicas e Geopolíticas.

Vem isto a propósito dos continuados ensaios que são visíveis na direcção da construção de instrumentos que visam posicionar Macau enquanto cidade criativa, em que o cinema tem necessariamente um lugar a desempenhar.

Também na actividade cinematográfica Macau pode desempenhar um lugar único em que Ocidente e Oriente se cruzam, misturam, recriam. O já próximo Festival Internacional de Cinema de Macau começa com alguma turbulência com o abandono do consagrado director Marco Muller, no entanto, é de prever que o Festival se afirme relevante no quadro competitivo dos Festivais Internacionais de Cinema classe A.

Contribuirá em muito para visibilidade internacional do território. Quanto ao seu impute no desenvolvimento da indústria cinematográfica em Macau terá também obviamente relevância, no entanto, olhando os quadros de apoio ao cinema actualmente desenhados, verifica-se a ausência de legislação pensada para a co-produção, seja com os países da Lusofonia ou de outras geografias. Os concursos públicos existentes têm a obrigatoriedade do estatuto difícil da residência na RAEM, se por um lado este fechamento parece não corresponder à especificidade de Macau enquanto lugar de encontro e abertura aos diferentes mundos do mundo, também não está de acordo com o que o desenvolvimento da indústria cinematográfica no modelo de produção independente precisa, instrumentos facilitadores à co-produção. A co-produção, e talvez importe referir que há várias possibilidades de regular no interesse do desenvolvimento do cinema no território esses mecanismos, é seguramente uma das formas que mais pode contribuir para o desenvolvimento da actividade cinematográfica no território. Paralelamente parece igualmente interessante e possível a criação de uma licenciatura, embrionária de uma futura escola de cinema, na Universidade de Macau. São medidas estruturantes que cabem a quem pensa as estratégias de desenvolvimento da cidade, neste tempo que, como afirmou Elia  Kazan em 1986, “os filmes são o diálogo do mundo de hoje”.

21 Nov 2016

Terror e Beleza em Godard

1. “WEEKEND”

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Lisbon & Estoril Film Festival ’16 a retrospectiva de Godard avança e, no ecrã do teatro da Trindade, foi possível ser público de um dos filmes mais perturbadores da história do cinema, tem como título “Weekend”. Teve estreia em Paris em Dezembro de 1967, mas está longe de ser um filme de Natal. A experiência da sua visão, imagem e som, é, uma imersão no abismo. Uma visão da falência da classe média e da sua construção burguesa, ou da sua aproximação aos ideias internacionais proletários. Com uma estrutura narrativa com poucas concessões à lógica mais imediata da continuidade, este filme terrível, mais do que antecipar o movimento dos estudantes e operários do icónico Maio de 68, visto hoje, em 2016, surge como uma visão pictórica, cinematográfica, de um real que ultrapassa em dimensão e barbárie a que filme vive e anuncia.

Quase sempre os mais terríveis abismos do humano nos chegam em curtos fragmentos, mediados pelo electrodoméstico da comunicação de todos os lares e cozinhas a que chamamos televisão, com aquela previsibilidade e rotina de boletim de meteorologia onde sempre é de querer que em alguma parte do mundo a severidade climática seja mais intensa, pouco ou nada já incomoda, transforma.

Em 2016, já todos vimos em sucessivos telejornais dezenas de carros incendiados na noite dos bairros periféricos de Paris, atentados e massacres em cidades da Europa, Américas, Ásia, África, e ao que parece a vacina da indiferença cumpre a possibilidade de sentir somente o aconselhado pelo termómetro do emocional esperado.

Não é o caso do “Weekend”, aqui a experiência de imersão cinematográfica, mesmo que distanciada – o filme é neste sentido brechtiano -, é de permanente espanto pela expressão cinematográfica, pictórica, do abismo, neste filme que ultrapassa todas as convenções formais anteriores a si próprio. Com inicio no interior confortável de um apartamento o filme precipita-se para um dos mais inquietantes planos sequencia da história do cinema, um travelling continuo lateral a uma estrada no campo, onde um engarrafamento de trânsito tem dimensão hiper, e obriga-nos a um confronto com uma imagem em espelho que não queremos olhar. Se o engarrafamento é ultrapassado, o confronto com um ecrã espelho catártico da barbárie presente neste nosso tempo civilizacional, não. “Weekend” é um filme impossível, Godard sabe-o, o filme termina anunciando o fim do cinema.

Maio de 68 foi anúncio a um tempo novo onde o axioma foi; é proibido proibir. “Weekend” visto em 2016, parece-me um urgente e difícil aviso à Barbárie que somos porque nos habita.

2. “LE MÉPRIS”, França/Itália 1963 (ou a morte de Penélope)

A 5ª longa metragem de Jean- Luc Godard é uma superprodução internacional com a estrela Brigitte Bardot, capaz de iluminar qualquer ecrã, e é também, na primeira parte da obra do autor, o filme mais reflexivo sobre a história do cinema e o seu futuro. Adapta Alberto Moravia, e põe em cena um produtor americano e um cineasta/autor.

Jack Palance permite a Godard ligar Jeremy Prokosch à galeria de produtores hollywoodianos que se comporta como um imperador romano, assina cheques nas costas do seu escravo e líquida os últimos vestígios do humanismo europeu.

Ao ir ter Fritz Lang para interpretar o realizador, Godard relaciona o cinema de “nouvelle vague” e o cinema estúdio de forma aberta enquanto linha narrativa. Lang é o artista que recusou todos os compromissos, resistido tanto à ditadura nazi como à maquinaria hollywoodiana. Encarna a figura do Sábio, cita Dante, Holderlin, Brecht e Corneille.

Godard faz coexistir, ao longo do filme, e muitas das vezes na mesma cena, diferentes tempos. Na segunda cena de abertura do filme, que é a terceira dado que o genérico inicial é também uma cena introdutória e situacionista do posicionamento formal do filme; por um lado através da utilização da voz-off, indica a autoria artística e técnica e, simultaneamente, pela materialidade do filmado e pela forma como faz, o posicionamento, o lugar que o filme quer ocupar no vasto território do cinema. É afirmado que se está num cinema reflexivo, autoral, e numa co-produção entre França e Itália

Na cena seguinte, Camille e Paul, na cama, uma das mais memoráveis cenas eróticas do cinema, estamos em simultâneo no tempo da vida banal e no tempo ficcional. A materialidade dos corpos percorridos lentamente, em particular o corpo de Camille, na situação do banal quotidiano na vida dos afectos de um casal, com um trabalho plástico que distancia e aproxima, que afirmam o lugar do filme enquanto matéria própria. “ …então gostas de mim completamente” pergunta Camille, responde Paul “…sim, Amo-te completamente, ternamente, tragicamente” responde Camille “ Eu também Paul”.

Se a cena se inscreve no tempo da vida banal, é também uma cena que vai permitir o desenvolvimento da linha narrativa do filme que vive na tensão entre possibilidade ou impossibilidade do amor vivido. Permite o confronto do amor icónico de Penélope e Ulisses, e os resíduos desejos e impossibilidade, desse amor, icónico no contemporâneo.

Na cena seguinte, que se decompõe em três cenas, duas exteriores e uma interior, todos os plots do filme ficam em definitivo lançados. Todas as personagens conhecidas e identificadas. Toda a proposição narrativa é conhecida.

No exterior de uma Cinecitá que se aproxima sem possibilidade de retorno do um espaço ruína, afirmando a dimensão narrativa do espaço/décor, conhecemos o produtor “americano”, conhecimento construído de forma fílmica, num continuado discurso e acção, e não de forma meramente informativa/descritiva. Na sala de projecção, assistimos ao visionamento de imagens do filme que é rodado dentro do filme, o plot principal da narrativa.

Diferentes tempos no tempo da materialidade do filme. Um tempo civilizacional, um tempo ficcional. O conflito entre autor e produtor, o detentor das condições de produção, leia-se o dinheiro necessário para o exercício do cinema, é instalado. O poder do produtor é afirmado numa imagem de total expressividade, ao assinar um cheque nas costas dobradas da assistente, a servir de mesa.

O exercício de domínio e submissão continua no exterior quando, instalado ao volante do descapotável, o jogo de captura e sedução a Camille se instala, com a submissão de Paul, marido e escritor contratado, empregado, do produtor. O filme está lançado, materializado na matéria fílmica.

A morte de Penélope. “ O cinema, diz André Bazin, substitui o nosso olhar sobre o mundo que foge aos nossos desejos, Le Mépris é a história desse mundo.”

A morte de Penélope é a impossibilidade do regresso a casa. Quem morre é Camille, mas são as múltiplas leituras tornam o filme notável, magnifico.

O jogo entre o agora “herói relutante” versus o herói guerreiro e de vontade determinada, a impossibilidade da permanência do amor e o amor incondicional, definitivo, atravessa a obra numa contaminação direta com fenomenologia do real, das relações concretas das práticas do social e do cinema.

O homem contemporâneo vive uma orfandade que o assusta e que deseja, e a casa, esse lugar doméstico que pode apaziguar o mundo é um lugar perdido, vivido de forma intermitente, perante a dureza da operacionalidade do mundo e da perda da inocência.

Morre o Produtor e Penélope, mas Ítaca, onde fica?

14 Nov 2016

Godart em retrospectiva integral

[vc_row][vc_column][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]idade ecrã, é nome escolhido para este espaço de escrita sobre cinema que aqui hoje começa. Parece com interesse explicitar o porquê do nome. Trata-se de indicar a cartografia assumida, a assunção de que o cinema, em que a definição das fronteiras estéticas, identitárias, temáticas, que respondem à pergunta feita por André Bazin em 1958 “Qu´est-ce le cinema? “, não se fecham, e não se querem fechadas, entendendo-se que a definição de fronteiras fixas enquanto cartografia do território cinema é por definição uma impossibilidade e um caminho do não-cinema.

Não se trata de um espaço que trabalha a relação particular do cinema com a arquitectura, embora também o posso ser. A “cidade” de que aqui se fala tem origem na “polis” grega mas trabalha o tempo contemporâneo. Este nosso tempo de cidade planetária, paradoxal, receosa, ciosa e orgulhosa da sua identidade mas também cosmopolita, aberta e desejosa de mundos. Cidade de contaminação permanente, fluxos constantes, em que o cinema, a língua das imagens em movimento nos múltiplos suportes ecrã, contamina e é contaminado por comportamentos, percepções, desejos, visões, medos e vontades, na construção continuada da cidade. O território do cinema na cidade ecrã é esta relação permanente de transgressão de fronteiras que o cinema é e de que se alimenta. Um cinema que tem por objecto o real sabendo-se cinema. Se se quiser, um cinema que é sempre uma instalação do mundo.

Lisbon & Estoril Film Festival ’16

  1. Ser eterno e depois morrer, Jean-Luc Godard

Feita a breve nota explicativa do título destas crónicas críticas, género jornalístico difuso, onde a reportagem com pretensões de objectividade e a reflexão sobre o que se olha se cruza de forma assumida, avancemos directo para o enorme acontecimento cinematográfico que é o Lisbon & Estoril Film Festival ’16.

De 4 a 13 de Novembro os ecrãs dos Cinemas Monumental, Nimas, Casino Estoril, Casa das Histórias Paula Rego, Cinemas Cascais Shoping, Teatro da Trindade, Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional D. Maria II, são ocupados com a programação desta 10ª edição que reconfirma a relevância e afirmação deste festival que tem este ano na retrospectiva integral da obra de Jean-Luc Godart, um dos grandes acontecimentos cinematográficos mundiais de 2016, é a primeira vez que uma retrospectiva integral da obra do cineasta fundador da “nouvelle vague” acontece no mundo.

Não. Godard, não está morto, em breve fará 87 anos, está activo no cinema à 57 anos e é de esperar que o seu fazer cinematográfico não tenha terminado.

O festival tem identidade desenhada no seu director, o produtor Paulo Branco, e no director adjunto António Costa (o assistente de Manuel Oliveira, que mais contribuiu para a obra do Mestre).

Os nomes do comité de selecção são Michel Demopoulos, Roberto Turigliatto e o já referido António Costa.

A retrospectiva de Godard é só por si um acontecimento cinematográfico. O movimento “ Nouvelle Vague” configura a relação epidérmica do cinema com os contextos sociais culturais e tecnológicos, relação mais do que epidérmica, todo um sistema orgânico, abusando da biologia sem excesso de falta de pudor porque é afinal do humano e da falência da máquina antropológica, se quisermos seguir o pensamento de Giorgo Agamben, a que este movimento dá fala e corpo cinema.

As pesadas máquinas de cinema, na década de 50/60, são objectos tecnológicos do passado, torna-se possível filmar fora do estúdio com equipas mais reduzidas, este processo foi ainda mais radical com a chegada do vídeo e do digital, que tão bem conhecemos em décadas posteriores. Socialmente nos países do capitalismo avançado como a França, uma nova geração tem acesso ao ensino superior e está culturalmente preparada para uma relação mais exigente com o cinema, porque também é essa a sua exigência com o mundo em que vive, mundo onde é ainda possível a visão de duas construções possíveis, a da sociedade capitalista e da sociedade socialista. O movimento da crítica cinematográfica francês, fortemente politizado, tem a sua expressão maior nos “cahiers du cinema” revista fundada em 1951, entre outros por André Bazin , revista que no seu movimento originário “Revue du Cinéma” tem nomes como Cocteau, Bresson, Astruc ou Éric Rohmer. Jean-Luc Godard é um dos nomes maiores deste movimento que se pode denominar como cinema de autor, em oposição ao dominante cinema estúdio americano, no qual quando um filme entra em rodagem, nada, ou muito pouco do que já pré-determinado pode, tem espaço, para ser alterado. Este movimento, e particularmente Jean-Luc Godard, tem exactamente na fenomenologia, na abertura ao real no momento preciso da sua fixação na obra no suporte cinematográfico a, então radical, metodologia de trabalho. Não se trata de o realizador não saber o que pretende com a obra, mas de a criar numa abertura constante com a materialidade que esta fixa, o tempo e o movimento, o corpo e a dinâmica dos actores.

Não se trata de recusar o cinema americano, nem sequer o cinema narrativo, mas de ousar novos caminhos em que novos temas e exercícios formais são matéria fílmica.

A retrospectiva começou com O Acossado – A Bout de Soufle, título original, primeira longa metragem do Godard, e foi recebida com enorme entusiasmo na sala cheia do Nimas, longa metragem de 1959, protagonizada por Jean-Paul Belmonte e Jean Seberg. Neste filme, é revisitado o universo do “film noir”, mas toda a operacionalização da narrativa vivem de uma nova estética com recurso a citações; literatura, pintura e, claro, o próprio cinema. A montagem do filme recusa a linearidade, obrigando a uma nova relação do espectador com a narrativa na tela. Reinventa signos, como o do polegar a roçar o lábio, hoje icónico do glamour em atitude irreverente comercialmente usado em publicidade, caso da publicidade ao Martini. É todo um novo retrato da vida urbana de uma capital cosmopolita, Paris, que tem aqui uma singular nova voz, em que irreverência, marginalidade e juventude se cruzam, num mundo onde o afecto é fragmentado e sujeito ao acaso e modelos de sobrevivência, em que a liberdade ainda se sonha possível. É deste filme, a fala Jean-Pierre Melville, à protagonista na sua condição de repórter, o que importa é : ser eterno e depois morrer.

[/vc_column_text][vc_cta h2=”Ficha Técnica” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:700%20bold%20regular%3A700%3Anormal” h4=”Título original: “À Bout de Souffle“” shape=”square” use_custom_fonts_h2=”true”]Realização: Jean-Luc Godard
Guião: Jean-Luc Godard, baseado numa história de François Truffaut
Género: Policial
Tempo de Duração: 86 minutos
Ano de Lançamento: 1959 (França)
Estúdio: Impéria / Société Nouvelle de Cinématographie / Les Films Georges de Beauregard
Distribuição: Impéria
Produção: Georges de Beauregard
Música: Martial Solal
Fotografia: Raoul Coutard
Desenho de Produção: Claude Chabrol
Montagem: Cécile Decugis e Lila Herman[/vc_cta][/vc_column][/vc_row]

9 Nov 2016