João Salaviza e Gonçalo Galvão Teles ganham 1ª obra no ICA

[dropcap style≠’circle’]”O[/dropcap] Fim da Terra” e “ Verdes Campos Aka Amanhã não é Hoje”, nos ecrãs do mundo em 2018/2019.

Antes de tudo assinalo-me como parte interessada em todos estes processos, por razões de trabalho no exercício da prática cinematográfica e da investigação em contexto académico.

São conhecidos os resultados do concurso do Instituto do Cinema e Audiovisual de apoio à produção das 1ª obras de 2017. O ICA, é o instituto público, com autonomia administrativa e financeira sob a tutela do Ministério da Cultura, que tem a responsabilidade sobre as políticas culturais públicas do cinema em Portugal.

Estiveram no concurso 61 candidaturas instruídas com argumento, sinopse, declaração de intenções do realizador, orçamento, e outros elementos de análise que cada candidatura entendeu apresentar, indicação casting, cartas de apoio, etc.  Como se percebe, um dossier de candidatura é trabalho de vários meses, ou até anos.

Desde a abertura do concurso que era conhecido o número de obras a apoiar; duas, dois filmes vão ter quinhentos mil euros e, a partir de agora têm as condições suficientes para iniciar os trabalhos de produção, desde logo a facilidade acrescida para encontrar novos financiamentos.

A correr normal, dois novos filmes vão poder ter a sua estreia num dos festivais de cinema classe A em finais de 2018 inicio de 2019.

Se o trabalho, a sorte, o talento, o permitirem, vão ser obras fílmicas notadas no circuito no mundial de festivais, e ter exibição nacional e internacional em circuito de sala de cinema.  É uma espécie de ganhar na lotaria, mas aqui sempre em processo de trabalho, e onde o nome de Portugal está sempre presente.

“ O Fim da Terra” é o filme apoiado, de João Salaviza,  “ a filmar na Aldeia Branca, território dos índios Krahô, Brasil, utilizando a língua nativa e recorrendo ao envolvimento dos próprios índios como atores do filme”,  lê-se na ata assinada pelo júri. João Salavisa é licenciado em cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema, com muito considerável sucesso da crítica em filmes anteriores, as curtas; Arena, Cerro Negro, Rafa, e a longa metragem Montanha, filmes  apoiados financeiramente pelo ICA. Ganhou o Urso de Ouro na Berlinale, o Ingmar Bergman Award em Uppsala e a Palma de Ouro em Cannes .

“Verdes Campos Aka Amanhã não é Hoje”,  filme de Gonçalo Galvão Telles, e argumento de Luís Filipe Rocha, é outro filme que consegue o objectivo a que se candidatou.

Escreveu o júri, ou transcreveu do dossier entregue, não importa. “ Híbrido de drama intimista e social, inspirado no suicídio conjunto de três jovens em 1996, que aborda a crise, a falta de empregos no horizonte, bem como o contraste da vida no campo e na cidade. Embora os temas e a abordagem não sejam inteiramente originais, a narrativa é alicerçada num guião muito sólido, assente em diálogos cuidados e nos silêncios e no não dito, que assegura potencial de circulação e garante relevância cultural. Estrutura de produção sólida já com coprodutores assegurados e um contrato de distribuição internacional assinado.”

Gonçalo Galvão Teles, é um cineasta com filmes anteriormente apoiados pelo ICA, com alguns prémios internacionais, e lecciona a cadeira de argumento na licenciatura e mestrado em Cinema na Lusófona.

Os restantes 59 filmes, ficam por fazer, dado que filmar sem ICA, num país onde os produtores de cinema não tem capacidade financeira e a banca olha o cinema como qualquer coisa de fantasmático (que também é, mas de outra forma) , pelo que o segmento do capital de risco não tem conhecimento, nem parece querer ter, da realidade deste mercado, é tarefa tão difícil e de tal estoicismo que o bom senso aconselha a evitar. Aliás, o bom senso do senso comum, aconselha a que neste país, salvo condições muito particulares conhecidas à partida, se evite fazer cinema.

Não há, não parece haver, qualquer questão com a decisão de estes dois projectos serem apoiados.  O problema identificado é desde logo os montantes disponíveis, claramente insuficientes, caso se considere relevante a atividade do cinema. Pode-se também perguntar se é necessário um júri exterior ao ICA para fundamentar as decisões produzidas.

Nos 59 filmes propostos encontramos filmes que assumem trabalhar o género ; policial, filme negro, drama, comédia, cinema reflexivo, etc. Pode uma mesma grelha de análise comparar filmes de géneros diferentes ? É possível comparar com a mesma grelha de análise um filme auto-reflexivo que trabalha a etnicidade, com uma comédia? Um filme que na sua proposta estética avança claramente para a situação híbrida e plasticidade de género e um filme assumidamente do género policial?

Levantará seguramente grandes dificuldades.

Encontramos também realizadores que tiveram obras anteriormente apoiadas pelo ICA e portanto condições de produção suficientes para os filmes que fizeram, e cineastas com cinematografia produzida sem orçamento, mas que ainda assim existem.

Faz sentido olhar as obras produzidas sem olhar às condições de produção?   

Dito de outra forma, é possível, expectável, que um filme que teve um orçamento entre seiscentos mil a um milhão de euros, tenha a mesma capacidade de se impor, de chegar a públicos, festivais e mercados, que um filme que teve cinco mil euros na sua produção?

É expectável que filmes sem as condições mínimas de produção, comunicação, cheguem a Veneza, Berlin, ou Cannes, ou Locarno?

No entanto essa cinematografia existe, vai a festivais ( não de classe A ), e por vezes chega a sala de cinema, mesmo sem a possibilidade de campanhas de comunicação.

É claro que o CV de um cineasta com filmes em festivais classe A tem mais pontuação do que o de um que não tenha esses festivais no seu CV.

Se essas presenças resultam de obras anteriormente apoiadas com fundos públicos, produzidas com as condições suficientes consideradas “standart” podem ser comparados, num concurso de primeiras obras, com com outros que nunca o não foram?

Por outro lado, numa abordagem mais foucaultiana, coloca-se a interrogação sobre como é possível legitimar e esperar que um grupo de pessoas, um júri, com  visões e expectativas determinadas, as suas, sobre cinema – júris que variam no tempo de uma mesma legislação, tempo de ação de um governo -,  se articulam com os objectivos plasmas na lei e afirmados no discurso governativo. Se a legitimação do quadro de apoio é a conferida na legislação produzida para o cinema, qual a necessidade de um júri externo ao ministério ou ao instituto da tutela?

Ou se quisermos, pode-se inverter a pergunta, na condição de uma cinematografia produzida em Portugal que resulta de as decisões de um júri externo, para que serve o ICA ?

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