Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA última ópera de Verdi, mas em traje eclesiástico [dropcap]Q[/dropcap]uando o famoso compositor italiano Gioachino Rossini faleceu em 1868, Giuseppe Verdi, na época considerado o mais ilustre compositor nacionalista de Itália e um dos mais influentes do séc. XIX, sugeriu que diversos compositores italianos deveriam compor em conjunto um Requiem em homenagem ao grande mestre. Verdi deu início à empreitada com uma versão do Libera me, um responsório católico romano cantado no Ofício dos Mortos e na sua absolvição, orações ditas perante o caixão imediatamente a seguir à Missa de Requiem e antes da inumação. O texto do Libera me pede a Deus para ter piedade da pessoa falecida no Julgamento Final. No ano seguinte, uma Messa per Rossini foi compilada por treze compositores, dos quais o único conhecido actualmente é o próprio Verdi. A estreia da obra foi marcada para 13 de Novembro de 1869, primeiro aniversário da morte de Rossini. No entanto, no dia 4 de Novembro, nove dias antes da estreia, a comissão organizadora abandonou o projecto. Verdi atribuiu as culpas ao maestro que havia sido escolhido, Angelo Mariani, indicando a falta de entusiasmo de Mariani pela empreitada, o que marcou o fim da sua longa amizade. Verdi nunca perdoou a Mariani pelo ocorrido, mas continuou a rever o seu Libera me, frustrado que a comemoração da vida de Rossini agendada não se concretizaria durante a sua própria vida. Assim, a Messa per Rossini caiu no esquecimento e só foi trazida à luz em 1988, quando o maestro alemão Helmuth Rilling regeu uma versão completa da mesma em Stuttgart. Em Maio de 1873, o eminente escritor e humanista italiano Alessandro Manzoni, que contribuiu grandemente para a criação da unidade linguística em Itália, e que Verdi havia admirado durante toda a sua vida adulta, faleceu. Ao ter conhecimento da notícia da sua morte, Verdi decidiu compor um requiem – desta vez sozinho – em homenagem a Manzoni. Viajou para Paris em Junho desse ano, onde começou a trabalhar na obra, dando-lhe a forma que apresenta actualmente, e incluindo a versão do Libera me que tinha composto originalmente para Rossini. A estreia foi realizada no primeiro aniversário da morte de Manzoni, no dia 22 de Maio de 1874, na Igreja de São Marcos em Milão, regida pelo próprio Verdi, sendo solistas a soprano Teresa Stolz, a meio-soprano Maria Waldmann, o tenor Giuseppe Coppini e o baixo Ormando Maini. Stolz, Waldmann e Maini tinham todos participado na estreia europeia da sua ópera Aida, em 1872. Coppini também estava escalado para participar, mas teve de ser substituído por motivos de saúde. A obra foi concluída em 1874 e é uma adaptação musical da missa fúnebre católica romana denominada Requiem, para quatro solistas, coro duplo e orquestra. Requiem é a primeira palavra do texto da missa, cuja primeira estrofe é Requiem aeternam dona eis, Domine (“Concedei-lhes descanso eterno, Senhor”). Ao longo de toda a obra, Verdi utiliza ritmos vigorosos, melodias sublimes e contrastes dramáticos, como fazia com as suas óperas, para exprimir as poderosas emoções transmitidas pelo texto. O espantoso Dies Irae, que inicia a tradicional sequência do rito fúnebre latino, é repetido quatro vezes ao longo do requiem para transmitir um sentido de unidade. Trompetes são posicionados em torno do palco para produzir uma chamada inescapável ao Juízo Final no Tuba mirum, e a quase opressiva atmosfera do Rex tremendae cria uma sensação de desmerecimento perante o Rei de Majestade Suprema. O célebre solo para tenor, Ingemisco, irradia esperança para o pecador que pede o perdão do Senhor, e o belo Lacrimosa foi composto por Verdi a partir do dueto “Qui me rendra ce mort? Ô funèbres abîmes!”, do quarto acto da sua ópera Don Carlos. Sugestão de audição da obra: Leontyne Price, soprano Rosalind Elias, meio-soprano Jussi Bjoerling, tenor Giorgio Tozzi, baixo Singverein der Gesellschaft der Musikfreunde/ Wiener Philharmoniker, Fritz Reiner – Decca Import, 1960 (2000, audio CD)
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO mais eminente concerto para piano jamais escrito [dropcap]O[/dropcap] compositor, pianista e maestro russo Sergei Rachmaninoff (1873-1943) foi um dos últimos grandes expoentes do período Romântico na música clássica europeia e é tido como um dos pianistas mais influentes do Século XX. O total fracasso da sua Primeira Sinfonia, composta entre Janeiro e Outubro de 1895, e estreada apenas no dia 27 de Março de 1897, em S. Petersburgo, esmagou o compositor psicologicamente, causando um hiato de três anos na sua carreira de composição. A obra foi muito mal recebida pelo público e mesmo ridicularizada pela crítica, liderada pelo famoso compositor e crítico musical russo César Cui, membro do célebre Grupo dos Cinco. Pensa-se que este desastre deveu-se, em grande parte, à fraca preparação da orquestra e do seu maestro, o compositor Alexander Glazunov, conforme atestam vários testemunhos, entre os quais o de um outro compositor e maestro famoso na época, Alexander Khessin. A recepção desastrosa da sinfonia, combinada com a preocupação da objecção da Igreja Ortodoxa ao casamento com a sua prima, Natalia Satina, contribuiu para o colapso mental de Rachmaninoff, seguido de um período de profunda depressão. Rachmaninoff escreveu pouca ou quase nenhuma música nos três anos seguintes, até iniciar, em Janeiro de 1900, um tratamento de hipnotismo com o psicólogo Nikolai Dahl, um especialista de Moscovo, por coincidência músico amador, que o fez recuperar rapidamente a auto-confiança. Um importante resultado dessas sessões foi a composição do Concerto para Piano e Orquestra Nº 2 em Dó menor, Op. 18, encomendado por um empresário de Londres, que seria dedicado ao Dr. Dahl, em reconhecimento da recuperação do compositor. O Concerto foi composto entre 1900 e 1901. Durante uma viagem a Itália, Rachmaninoff completou o segundo e terceiro andamentos, que apresentou num concerto em Moscovo, com grande aclamação. Este sucesso deu-lhe confiança para concluir o primeiro andamento do concerto, que é frequentemente considerado o mais eminente concerto para piano jamais escrito. A obra foi muito bem recebida na sua estreia no dia 27 de Outubro de 1901, em Moscovo, na qual foi solista o próprio Rachmaninoff, sob a direcção do seu primo Aleksandr Ziloti. O Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 em Dó menor, Op. 18 conferiu um sólido reconhecimento e fama a Rachmaninoff como compositor. A obra veio confirmar que o compositor estava completamente recuperado da depressão clínica e do bloqueio da escrita que o tinham impedido de compor. O longo período que Rachmaninoff demorou a recuperar não foi em vão: cada frase memorável, linha bombástica de violoncelo, e acorde de piano de peso é magnificamente colocado para criar uma verdadeira obra-prima musical. Melodia gloriosa após melodia gloriosa flui do teclado; o diálogo entre a orquestra e solista é divino. A música é ao mesmo tempo virtuosística e lírica, com o piano e a orquestra revezando-se para acariciar a pesada melodia russa. Com os acordes que soam como sinos no andamento de abertura, a serenidade dos arpejos no segundo e o impulso confiante do terceiro, é fácil presumir que esta peça foi obra de um compositor seguro e confiante, enquanto a verdade era muito diferente. Após uma introdução invulgar que consiste numa série de acordes cada vez mais intensos e ricos do piano, a obra desvenda-se de maneira gratificante, cheia de maravilhosos diálogos entre piano e orquestra (sem duelos), melodias crescentes e refinadas reviravoltas de harmonias. Os compassos introdutórios do segundo andamento orientam habilmente o ouvinte da tonalidade de Dó menor do primeiro andamento para a de Mi Maior do segundo. Um nocturno nostálgico, e a introdução de duas cadências não quebra o clima reflexivo do andamento. Outra modulação hábil de Mi Maior para Dó Maior apresenta-nos o finale, um andamento que alterna entre dois temas; o primeiro, que apresenta uma dança vigorosa, e o segundo, um dos mais famosos de Rachmaninoff. A enunciação final deste tema conduz a obra ao seu glorioso final. Sugestão de audição da obra: Sequeira Costa, piano Royal Philharmonic Orchestra, Christopher Seaman – RPO Records, 1993</strong
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA Sonata que abriu as portas do futuro [dropcap]L[/dropcap]udwig van Beethoven, nascido em Bona no dia 16 de Dezembro de 1770, foi um compositor alemão do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). É considerado um dos pilares da música ocidental, pelo incontestável desenvolvimento, tanto da linguagem como do conteúdo musical demonstrado nas suas obras, permanecendo como um dos compositores mais respeitados e mais influentes de todos os tempos. “O resumo de sua obra é a liberdade”, observou o crítico musical alemão Paul Bekker (1882-1937), um dos mais influentes do séc. XX, “a liberdade política, a liberdade artística do indivíduo, a sua liberdade de escolha, de credo e a liberdade individual em todos os aspectos da vida”. Durante os seus primeiros anos de vida em Bona, esteve exposto a uma exigente formação musical por parte de um pai obcecado em convertê-lo num “novo Mozart”. Tal ambição questionável, unida a um não menos perigoso carácter ligado ao alcoolismo, teve repercussões directas na vida pessoal, académica e social do jovem Beethoven, não apenas fazendo dele um rapaz introvertido e medroso, mas também um mau estudante demasiado cansado para ir à escola depois de passar as noites a praticar piano. Em todo o caso, sem justificar os meios que aperfeiçoaram o seu talento, a realidade é que com apenas sete anos, Beethoven já era capaz de dar recitais de piano que deixavam o público boquiaberto; entre eles, ao mesmo compositor e maestro Christian Gottlob Neefe, que ficou tão impressionado com a habilidade do pequeno Beethoven, que se interessou em guiar, enriquecer e aperfeiçoar a sua formação musical. Neefe era o melhor mestre de cravo da cidade de Colónia na época. Assim, aos 10 anos abandonou a escola para dedicar-se inteiramente à música. Os seus progressos foram de tal forma notáveis que, em 1784, já era organista-assistente da Capela do Palácio Eleitoral em Bona, e pouco tempo depois, violoncelista na orquestra da corte e professor, assumindo a chefia da família, devido à doença do pai. O Conde Waldstein, um nobre de Bona, financiou-lhe uma viagem a Viena, em 1787, aos 17 anos de idade, para aprender com os melhores, de entre os quais com Mozart, que lhe previu um grande futuro e, mais tarde, com Haydn. O Arquiduque da Áustria, Maximiliano, subsidiou então os seus estudos. No entanto, pouco depois de chegar à “capital da música”, a sua mãe caiu gravemente doente e Beethoven teve que regressar a Bona. Após a morte da sua mãe, o seu pai caiu numa profunda depressão que obrigou Beethoven a tomar a cargo os seus irmãos mais novos, tocando viola e dando aulas de piano. Por sorte, não teve que fazê-lo por muito tempo, pois o seu extraordinário talento era cada vez mais conhecido e eram várias as pessoas interessadas em financiar a sua completa dedicação à música. Em 1791, com apenas 21 anos, já desfrutava de prestígio junto da nobreza dessa cidade, que não dispensava a presença do músico nas suas festas. Em 1792, Beethoven regressa a Viena, em definitivo, onde, fora algumas viagens, permaneceu o resto da vida. As cartas de apresentação que levava consigo abriram-lhe as portas da nobreza local. O Príncipe Karl Lichnowsky instalou-o no seu palácio e pagava-lhe uma pensão. Os recitais constituíam o divertimento predilecto da nobreza e as apresentações musicais limitavam-se quase a concertos nos palácios. Foi aí que teve o seu primeiro contacto com os ideais da Revolução Francesa, com o Iluminismo e com o movimento literário romântico alemão “Sturm und Drang”, do qual um dos seus melhores amigos, Friedrich Schiller, foi, juntamente com Johann Wolfgang von Goethe, dos líderes mais proeminentes, e que teria enorme influência em todos os sectores culturais na Alemanha. Beethoven fez a sua primeira apresentação pública, delirantemente aplaudida, em 1795. Em 1796, apresentou-se em Praga e em Berlim, onde cumpriu um extenso programa para a corte imperial, do qual constavam as suas Duas Sonatas para Violoncelo, Opus 5, escritas especialmente para a ocasião. Em 1797, estava com 27 anos e um prestígio crescente que atraía alunos e convites para recitais, e que lhe proporcionava desafogo financeiro. Estudou também piano com Salieri, Foerster e Albrechtsberger, tornando-se um pianista virtuoso, cultivando admiradores, muitos dos quais da aristocracia. Afirmando uma sólida reputação como pianista, compôs as suas primeiras obras-primas, as três sonatas para piano Op. 2 (1794-1795), que mostravam já a sua forte personalidade. Foi em Viena que lhe surgiram os primeiros sintomas da sua grande tragédia. Foi-lhe diagnosticada, por volta de 1796, aos 26 anos de idade, a congestão dos centros auditivos internos (que mais tarde o deixou surdo), o que lhe transtornou bastante o espírito, levando-o a isolar-se e a grandes depressões. Consultou vários médicos, inclusive o médico da corte de Viena. Fez curativos, usou cornetas acústicas, realizou balneoterapia, mudou de ares, mas os seus ouvidos permaneciam tapados. Desesperado, entrou em profunda crise depressiva, pensando mesmo em suicidar-se. Embora tenha feito muitas tentativas para se tratar, durante os anos seguintes a doença continuou a progredir e, aos 46 anos de idade (1816), estava praticamente surdo. Porém, ao contrário do que muitos pensam, Ludwig jamais perdeu a audição por completo, muito embora nos seus últimos anos de vida a tivesse perdido, condições que não o impediram de acompanhar uma apresentação musical ou de perceber nuances timbrísticas. No entanto, o seu verdadeiro génio só foi realmente reconhecido com a publicação das suas Op. 7, Op. 10, e Op. 13, entre 1796 e 1799: a Quarta e Quinta sonatas para piano, em Mi Maior e Dó menor, respectivamente, Sexta e Sétima em Fá Maior e Ré Maior, respectivamente, e Oitava em Dó menor, op. 13, a famosa sonata “Pathétique”. A Sonata para Piano Nº 8 em Dó menor, Op. 13 “Pathétique”, de Ludwig van Beethoven, foi publicada em 1799, embora tenha sido escrita no ano anterior, quando o compositor tinha 27 anos de idade. Beethoven dedicou esta obra ao seu amigo, o Príncipe Karl Lichnowsky. A obra foi designada “Grande sonate pathétique” pelo editor, impressionado com as sonoridades trágicas da obra. Esta foi a primeira das sonatas para piano de Beethoven a alcançar o estatuto de cavalo de batalha. Beethoven abre esta composição em três andamentos, na tonalidade dramática de Dó menor (que mais tarde escolheria para a sua famosa Sinfonia Nº 5), com uma introdução lenta e meditativa – Grave – Allegro di molto e com brio, usando esse recurso pela primeira vez numa sonata. Aparentemente colocando uma questão, ou lutando para superar um dilema, a música busca resolução e alívio, que aparece na exposição propriamente dita, quando o andamento, impulsionado por oitavas tremulantes na mão esquerda, acelera, e o tema se transforma em enunciação profundamente ansiosa, introduzindo, mais uma vez, um humor questionador e incerto, sem excluir enunciados enérgicos, possivelmente indicando um desejo de transcender o sentimento de incerteza. Durante a breve secção de desenvolvimento, uma sensação de tensão dramática predomina, mas o tom geral muda na recapitulação, levando a uma coda, que fecha o andamento. O segundo andamento, Adagio cantabile, começa com uma melancolia calmante, lânguida e melancólica, de uma beleza outonal. Dominando todo o andamento, esse tema inicial eclipsa tanto o segundo tema moderado quanto o momento de tensão dramática na secção intermédia do andamento. O finale, Rondo (Allegro), é realmente o segundo Rondo na sonata, já que o andamento do meio possui as características estruturais dessa forma. Este andamento abre com um tema graciosamente eloquente acompanhado de figuras arpejadas tocadas pela mão esquerda. Embora o clima pareça brilhante, a música é tingida de melancolia, apesar do segundo tema lúdico. Seguindo a repetição e o desenvolvimento temático, o primeiro tema surge como simultaneamente mais ágil e mais delicado. Uma longa e brilhante coda completa o andamento. Com esta sonata, principalmente com o seu primeiro andamento, Beethoven abriu as portas para o futuro – ninguém depois de ouvir essa obra – poderia fechar os olhos às possibilidades de expressão aqui apresentadas. Sugestão de audição da obra: Beethoven Piano Sonatas – Vol. 3 Sequeira Costa, piano – Claudio Records, 1991/ No de catálogo: CB55732
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasRapsódia sobre um Tema de Paganini em Lá menor, Op. 43 [dropcap]O[/dropcap] compositor, pianista e maestro russo Sergei Rachmaninoff foi um dos últimos grandes expoentes do período Romântico na música clássica europeia e é tido como um dos pianistas mais influentes do Século XX. Sergei Vasilievich Rachmaninoff nasceu em Semyonovo, perto de Novgorod, no noroeste da Rússia, no dia 1 de Abril de 1873, no seio de família nobre descendente de tártaros, que esteve a serviço dos czares russos desde o Século XVI. Os seus pais eram ambos pianistas amadores, e o jovem Rachmaninoff teve as suas primeiras lições de piano com a sua mãe, mas os seus pais não notaram nenhum talento extraordinário no jovem. Devido a problemas financeiros, a família mudou-se para São Petersburgo, onde Rachmaninoff estudou no Conservatório da cidade antes de ir para Moscovo, para estudar piano com Nikolai Zverev e Alexander Siloti (que era seu primo e ex-aluno de Liszt). Também estudou harmonia com Anton Arensky, e contraponto com Sergei Taneyev. Deve-se observar que, no início, Rachmaninov era considerado preguiçoso, faltando muito às aulas para ir patinar. Foi o rigoroso regime da casa de Zverev (que hospedou vários músicos jovens, como Scriabin) que o disciplinou. Ainda jovem, Rachmaninoff começou a mostrar grande habilidade nas suas composições. Enquanto estudante, escreveu uma ópera em um acto, Aleko (que lhe rendeu uma medalha de ouro em composição), o seu primeiro concerto para piano, um conjunto de peças para piano, Morceaux de Fantaisie (Op. 3, 1892), compostas aos 19 anos de idade, que inclui o popular e famoso Prelúdio em Dó Sustenido menor. A sua reputação como compositor, por outro lado, tem gerado controvérsia desde a sua morte. A edição de 1954 do Grove Dictionary of Music and Musicians desprezou notoriamente a sua música como “monótona em textura… consistindo principalmente de melodias artificiais e feias” e previu o seu sucesso como “não duradouro”. No entanto, os trabalhos de Rachmaninoff não apenas se tornaram parte do repertório standard, mas também a sua popularidade, tanto entre músicos quanto entre ouvintes, tem vindo a crescer desde a segunda metade do Século XX, com algumas de suas sinfonias e trabalhos orquestrais, canções e música coral sendo reconhecidas como obras-primas ao lado dos trabalhos para piano, mais populares. As suas composições incluem, entre várias outras: quatro concertos para piano; a famosa Rapsódia sobre um tema de Paganini; três sinfonias; duas sonatas para piano; três óperas; uma sinfonia coral (The Bells, baseada no poema de Edgar Allan Poe); vinte e quatro prelúdios; dezassete études; muitas canções, sendo as mais famosas a V molchanyi nochi taynoi (No Silêncio da Noite), Lilacs e Vocalise; e o último dos seus trabalhos, as Danças Sinfónicas. A maioria das suas peças é carregada de melancolia, num estilo romântico tardio lembrando Tchaikovsky, embora com fortes influências de Chopin e Liszt. Inspirações posteriores incluem a música de Balakirev, Mussorgsky, Medtner (que considerou o maior compositor contemporâneo) e Henselt. Em “conversas” com o maestro e escritor americano Robert Craft, depois transformadas em livro, o compositor também russo Igor Stravinsky dá um depoimento um tanto anedótico e no mínimo curioso sobre Rachmaninoff: “Lembro-me das primeiras composições de Rachmaninoff. Eram ‘aguarelas’, canções e peças para piano influenciadas por Tchaikovsky. Depois, aos vinte e quatro anos, voltou-se para a ‘pintura a óleo’, e tornou-se, na verdade, um compositor velho. Não se pense, porém, que eu vá desprezá-lo por isso. Ele era, como já disse, um homem apavorante e, além do mais, há muitos outros para serem desprezados antes dele. […] E ele era o único pianista que jamais encontrei que não fazia caretas. Isto já é muito”. Este depoimento, dado por um compositor envolvido nas mudanças revolucionárias por que passa a música no século XX, traduz bem a figura de Rachmaninov no contexto musical contemporâneo: aos artistas criadores e aos musicólogos, na sua grande maioria, a sua obra não causa nem entusiasmo nem desprezo. Por outro lado, aos intérpretes e ao público em geral, ela soa atraente e desafiadora… Por vezes, mesmo comovente. É certo que a linguagem de Rachmaninoff parece ignorar os caminhos abertos por Debussy desde o final do século XIX e permanece ligada às formas tradicionais e às técnicas de composição herdadas do Romantismo. No entanto, ele foi, antes de tudo, um pianista. A parcela mais importante de sua obra, dedicada ao piano, atesta-o. Essa ligação visceral com o seu instrumento faz com que adopte uma estética ultrarromântica, que leva a graus exponenciais o tratamento pianístico, transcendendo (e às vezes superando, à sua maneira), inclusive, as grandes investidas de Liszt. À parte as pequenas peças para piano, nota-se esse “pianismo ultrarromântico” sobretudo em seus concertos para piano e na célebre Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, Op. 43 A Rapsódia Sobre um Tema de Paganini em Lá menor, Op. 43, é umas das últimas composições de Rachmaninoff. Considerada de dificílima execução, a obra foi escrita para piano e orquestra, lembrando um concerto para piano, na Villa Senar, a casa de Rachmaninoff na Suíça, de 3 de Julho a 18 de Agosto de 1934, de acordo com uma anotação na partitura. O próprio Rachmaninoff, um intérprete notável dos próprios trabalhos, tocou a obra na sua estreia na Lyric Opera House em Baltimore, no estado de Maryland, nos EUA, no dia 7 de Novembro de 1934 com a Orquestra de Filadélfia, regida pelo maestro Leopold Stokowski. A Rapsódia é um conjunto de 24 variações sobre o vigésimo quarto capricho para violino solo de Niccolò Paganini, que também serviu de inspiração para outros compositores. Embora se intitule rapsódia, a obra é na verdade construída segundo o princípio de tema e variações. Rachmaninoff encadeia vinte e quatro variações sobre o Capricho para Violino solo No 24 de Niccolò Paganini. Antes de Rachmaninoff, Johannes Brahms nas suas Variações sobre um tema de Paganini, e Franz Liszt nos seus Grandes Estudos segundo Paganini haviam já explorado esse tema. Embora a obra seja executada duma só vez, podemos dividi-la em três secções que correspondem vagamente aos três andamentos de um concerto. O que podemos considerar o primeiro andamento termina com a variação 11 e as variações 12 e 18 abrem e fecham o segundo (andamento lento), e as últimas variações compõem um finale. Ao contrário das convenções, Rachmaninoff teve a ideia de apresentar a primeira variação antes do tema. A Rapsódia é uma das sete peças de Rachmaninoff que cita a melodia do hino litúrgico Dies iræ, que alguns sugerem ser uma referência à lenda segundo a qual Paganini teria vendido a sua alma ao diabo em troca do seu virtuosismo prodigioso e o amor de uma mulher. Sugestão de audição da obra: • Sequeira Costa, piano •Royal Philharmonic Orchestra, Christopher Seaman – RPO Records, 1991
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasUma obra-prima extraordinária [dropcap]F[/dropcap]ez no dia 3 de Fevereiro 210 anos que nasceu o compositor, pianista e maestro alemão Felix Mendelssohn Bartholdy. Membro de uma família judia notável, mais tarde convertida ao cristianismo, Mendelssohn nasceu Jakob Ludwig Felix Mendelssohn Bartholdy em 1809 em Hamburgo, filho do banqueiro Abraham Mendelssohn e de Lea Salomon, e neto do filósofo judaico-alemão Moses Mendelssohn, crescendo num ambiente de intensa efervescência intelectual. As maiores mentes da Alemanha da época foram visitas frequentes da casa da sua família em Berlim, incluindo o filósofo, linguista e diplomata prussiano Wilhelm von Humboldt, fundador da Universidade Humboldt de Berlim, e o famoso geógrafo e explorador Alexander von Humboldt. A sua irmã Rebecca casou com o grande matemático belga Lejeune Dirichlet. O seu pai renunciou à religião judaica e a família mudou-se para Berlim em 1811, tentando dar a Felix, ao seu irmão Paul, e às suas irmãs Fanny e Rebeca, a melhor educação possível. Fanny tornou-se uma pianista e compositora conhecida. Felix era considerado uma criança prodígio. Começou a ter lições de piano com a sua mãe aos seis anos, sendo depois orientado por Marie Bigot, em Paris. Mais tarde, em Berlim, todos as quatro crianças estudaram piano com Ludwig Berger, que tinha sido aluno do pianista e compositor Muzio Clementi. A partir de 1817, estudou composição com Carl Friedrich Zelter em Berlim e começou a compor aos nove anos. Escreveu e publicou o seu primeiro trabalho, um quarteto com piano, aos treze anos. Mais tarde teve lições de piano com o compositor e virtuoso Ignaz Moscheles, confessando no seu diário que este tinha muito a ensinar-lhe. Moscheles foi um grande colega e amigo seu ao longo da vida. Embora não se tivesse tornado o próximo Mozart, Mendelssohn possuía um comando da sintaxe musical apenas rivalizado pelo seu eminente predecessor e, na verdade, algumas das obras da sua juventude ultrapassam as do prodígio austríaco numa idade comparável. Infelizmente, naqueles primeiros anos, Mendelssohn sofreu o escárnio de críticos e académicos pedantes que confundiram a sua graça sem esforço com mera extravagância e recusaram levar a sério as suas obras. Mesmo no séc. XX, pensava-se seriamente que faltava substância à música de Mendelssohn porque este tinha sido uma criança privilegiada. No entanto, da sua juventude emergiram duas obras-primas extraordinárias: o Concerto para Violino, Piano e Orquestra de Cordas em Ré menor, MWV 04 e o Concerto para Dois Pianos e Orquestra em Mi Maior, MWV 05, ambos produtos do génio de um adolescente de apenas 14 anos, e atingindo ambos níveis de genialidade a que a maior parte dos compositores não chegam em toda a sua vida. Além destas obras, aos 14 anos, tinha também já composto o Largo e Allegro em Ré menor para Piano e Cordas, MWV O1, o Concerto para Piano em Lá menor, MWV O2, e o Concerto para Violino em Ré menor, MWV O3. O Concerto para Dois Pianos e Orquestra em Mi Maior, MWV 05 exibe um equilíbrio inquietante entre os instrumentos de forma a que estes parecem combinar-se na perfeição mas não sem ser imediatamente óbvio que um instrumento apenas não poderia executar a obra sozinho. Elaborada como uma prenda de aniversário para a sua igualmente musicalmente precoce irmã, Fanny, a peça foi estreada pelos dois no seu aniversário, no dia 14 de Novembro de 1824. Dada a sua envergadura e dificuldade, é evidente que ambos eram executantes virtuosos para além das suas vocações criativas. Convencionalmente arranjado em três andamentos, o concerto abre com uma veia clássica e pura expressa numa introdução alargada, que Mozart podia ter escrito. Os pianos entram, um de cada vez, e segue-se um diálogo espirituoso. Mas depressa se torna evidente que Mendelssohn atravessa a linha para o Romantismo. Temas arrebatadores e surpresas cromáticas surgem e cadências surpresa e mudanças de atmosfera abundam. Em todo o andamento, os dois pianos são parceiros iguais – prova do respeito de Felix pela capacidade da sua irmã. O andamento termina com uma robusta coda que poderia ser o finale de uma obra menor. O segundo andamento é um adagio insuperavelmente elegante e Mendelssohn mais uma vez dá à orquestra o privilégio de abrir com um prelúdio extenso antes dos pianos entrarem, mais uma vez, um de cada vez, apresentando um tema hesitante, mas encantador. O andamento termina com uma longa passagem de maravilhosas tercinas de ambos os pianos de encontro a uma melodia suave e simples nas cordas. É um contraponto perfeito mas de longe demasiado inspirado para ser um mero exercício. No finale, os pianos anunciam-se eles próprios com um diálogo palpitante e o andamento rebenta num grande furacão sinfónico com ambos os pianos a serpentearem sem esforço através dele. Mendelssohn cria tensão e drama com êxito através de um motivo ascendente em ambos os solistas e na orquestra e a obra finalmente guina para uma espantosa coda plena de arrepiante pirotecnia pianística e uma conclusão abrupta. O concerto é maduro, grandioso, e convincente e em todos as acepções um verdadeiro concerto para piano Romântico. O facto de se tratar da obra de um adolescente torna-o assombroso. O Concerto, obviamente inspirado no Duplo Concerto, K. 365 de Mozart, e provavelmente inspirado pelo novo amigo de Mendelssohn, Ignaz Moscheles, mostra também como Mendessohn tinha absorvido Weber, Hummel e Field. Considerada imatura pelo próprio Mendelssohn, a obra foi posta de lado e não foi publicada, permanecendo na forma de manuscrito até 1961, quando a Leipziger Ausgabe der Werke Felix Mendelssohn Bartholdy publicou uma versão substancialmente revista por Mendelssohn e editada por Karl-Heinz Köhler. Nesta partitura, Mendelssohn lida com questões como o papel do virtuosismo, o design harmónico e as relações temáticas entre os instrumentos tutti e os solistas. A edição presente oferece um olhar sobre um ponto crucial na evolução do género concerto por um dos compositores mais importantes que escreveu para o género no início do séc. XIX. *Sugestão de audição da obra: Katia e Marielle Labèque, piano Philharmonia Orchestra, Semyon Bychkov – Philips, 1990</strong<
Michel Reis VozesMorreu Sequeira Costa, um dos maiores pianistas portugueses [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] pianista e pedagogo português José Carlos Sequeira Costa faleceu no passado dia 21 de Fevereiro em Olathe, Kansas City, aos 89 anos de idade. O último pianista português de uma linhagem que remontava ao Romantismo, fundamentada não só no estudo profundo das obras e da técnica pianística, mas também no conhecimento do contexto social, cultural, artístico e político em que os compositores viveram, Sequeira Costa foi, no seu tempo áureo, o maior pianista português, gozando de grande reconhecimento internacional e de um repertório muito vasto. Desde a sua infância, passada em África, onde nasceu, mais precisamente em Luanda no dia 18 de Julho de 1929, Sequeira Costa recebeu formação musical ao mais alto nível. O seu primeiro mestre, o pianista português José Vianna da Motta, com quem começou a estudar aos 8 anos de idade após mudar-se para Lisboa, foi um dos últimos alunos do eminente Franz Liszt e ainda do famoso maestro, compositor e virtuoso do piano Hans von Bülow. Transportando consigo esta importante herança musical, Sequeira Costa expandiu o seu conhecimento estilístico, estudando as escolas alemã e francesa do piano com Mark Hamburg, também aluno de Liszt, Edwin Fischer, Marguerite Long e Jacques Février. Desta forma, não é de estranhar que as suas interpretações do repertório romântico, nomeadamente de Chopin e Rachmaninov, sejam frequentemente descritas como verdadeiramente autênticas. Ao longo de uma extraordinária carreira que percorreu mais de seis décadas, o alcance expansivo da variação no seu timbre e da coloração concederam-lhe o primado da autoridade em qualquer estilo, durante as quais dominou as audiências pelas qualidades do seu sedoso fraseado e pelo seu som cristalino. Em 1951, Sequeira Costa recebeu o Grand Prix de Paris no prestigiado Concurso Internacional Marguerite Long. Desde então, desempenhou um papel de relevo nos círculos pianísticos internacionais, tendo fundado em Lisboa em 1957, aos 27 anos de idade, o Concurso Internacional de Piano Vianna da Motta. No ano seguinte, foi convidado por Dmitri Shostakovitch para integrar o júri do 1º Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscovo, ao lado de “monstros” como Sviatoslav Richter, Dmitri Kabalevsky, Aram Khachaturian e Emil Gilels, tendo regressado sete vezes a este prestigiado concurso, do qual chegou a ser Vice-presidente. Como o mais jovem membro do júri na história da competição, era apenas alguns anos mais velho do que o famoso vencedor do primeiro certame, o recentemente falecido pianista americano Van Cliburn. A 17.a e última edição do Concurso Internacional Vianna da Motta, a que presidiu, teve lugar em Lisboa no Verão de 2010. A 12.ª e 13.ª edições deste Concurso realizaram-se em Macau em 1997 e 1999, respectivamente. O concurso tinha uma exigência enorme, o que fez com que várias edições não tivessem um primeiro classificado. Sequeira Costa estabeleceu também amizades com grandes pianistas internacionais, tais como Arturo Benedetti Michelangeli, Sviatoslav Richter, Heinrich Neuhaus e Emil Gilels. Apresentou-se em palco com os célebres violinistas Henryk Szeryng, Itzhak Perlman, Elmar Oliveira, Pavel Kogan, Jean Pierre Wallez e Igor Oistrach, com o violoncelista Janos Starker e com os maestros Paul Kletzki, Joseph Keilberth, Tibor Pesek, Eduardo Mata, Christopher Seaman, David Zinman, Walter Susskind e Maxim Shostakovitch, entre muitos outros. Apresentou-se com todas as orquestras da BBC, London Symphony Orchestra, Royal Philharmonic Orchestra, Philharmonia Orchestra, Orquestra Filarmónica de Moscovo, Oquestra Filarmónica de Leningrado, Sinfónica de Praga, Bamberger Symphoniker, Filarmónica do Japão, Metropolitana de Tóquio, Sydney Symphony Orchestra e Orquestra Gulbenkian, entre outras. Em 1976, vendo com amargura a impossibilidade de uma boa formação ou o desenvolvimento de uma carreira em Portugal e conhecendo bem as lacunas que o país sentia na segunda metade do século passado, resolve partir e aceitar a cátedra “Cordelia Brown Murphy Distinguished Professor of Piano” na Universidade do Kansas, nos Estados Unidos da América, tendo vários dos seus alunos, entre os quais se contam os pianistas portugueses Pedro Burmester e Artur Pizarro, recebido primeiros prémios em concursos internacionais de piano. As suas aparições em Portugal passaram a resumir-se praticamente à temporada de música da Gulbenkian, a recitais esporádicos no Orpheon Portuense e no Círculo de Cultura Musical, aos Cursos de Interpretação do Estoril e ao Festival Internacional da Póvoa de Varzim, o qual fundou e ao qual presidiu, e que no ano passado assinalou a sua 40ª edição. A relação de Sequeira Costa com Macau remonta a 1953, ano em que deu dois recitais no Teatro Dom Pedro V, a convite de um membro destacado da elite macaense da altura, o Dr. Pedro José Lobo, um importante empresário, político, filantropo, funcionário público, músico, dirigente associativo e dinamizador cultural de Macau, de quem o pianista foi muito amigo. Em 1980, regressou ao território com a Orquestra Gulbenkian, como solista, com a qual tocou o Concerto para Piano e Orquestra N.o 1 em Dó Maior, op. 15, de Beethoven. Na mesma ocasião, apresentou-se também com a Orquestra Gulbenkian em Hong Kong. Em 1995, interpretou os cinco concertos para piano e orquestra de Beethoven com a Orquestra Sinfónica de Xangai e a Orquestra Filarmónica de Hong Kong no IX Festival Internacional de Música de Macau. O pianista fez ainda amizade no território com o renomeado músico e compositor P. Áureo de Castro, fundador e director da Academia de Música D. Pio X e da Orquestra de Câmara de Macau. A sua última actuação no território ocorreu em 2013 por proposta do autor deste artigo à Casa de Portugal em Macau, tendo aqui realizado um recital intitulado “O Regresso do Mestre”, por ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e das comemorações dos 500 Anos do Encontro Luso-Chinês, com o patrocínio da Fundação Macau, Hotel Grand Lapa Macau, Oulala Flower, Xcessu Lda. e em parceria com o Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong Kong e o Instituto Português do Oriente, recital no qual interpretou brilhantemente, aos 83 anos de idade, obras de Bach, Beethoven, Vianna da Motta, Áureo de Castro e Chopin, entre outras. Orientou ainda uma série de master classes na Hong Kong Academy for the Performing Arts. Nos últimos vinte anos da sua vida, continuou a realizar digressões e a actuar nos mais importantes palcos internacionais, a orientar cursos de aperfeiçoamento e a integrar os júris de prestigiados concursos internacionais, como Chopin, Rubinstein, Leeds, Marguerite Long, e Montreal. Em Junho de 2005, fez parte do júri do 1.º Concurso Internacional Sviatoslav Richter, que teve lugar em Moscovo, pianista do qual foi amigo pessoal desde 1958 e a quem convidou a visitar Portugal, pela primeira vez, em 1969. A discografia de Sequeira Costa inclui a música para piano solo de Ravel, Chopin, Schumann, Albéniz, Bach/Busoni, Vianna da Motta e Rachmaninov e um CD dedicado a uma selecção de 23 encores, intitulado A Musical Snuffbox, na editora Camerata. Gravou também as obras completas para piano e orquestra de Schumann, Rachmaninov e Chopin e concluiu em 2006, em Londres, as gravações integrais das Sonatas para Piano de Beethoven, em 10 volumes (VMF Records). Em 2013, a editora inglesa Claudio Records lançou as suas gravações da integral das Sonatas para Piano de Beethoven em 10 volumes, assim como da integral dos concertos para piano e da Rapsódia Sobre Um Tema de Paganini de Rachmaninov. No dia seguinte ao seu falecimento, a Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Isabel Mota, afirmou em comunicado o seguinte: “A morte de José Carlos Sequeira Costa representa a perda de um dos maiores intérpretes musicais portugueses do século XX e, no momento da sua morte, a Fundação Calouste Gulbenkian presta sentida homenagem a um grande artista e a um colaborador fundamental na história da intervenção da instituição no campo das Artes”. Sequeira Costa actuou no Grande Auditório da Fundação pela última vez nos dias 7 e 8 de Abril de 2011, interpretando o Concerto para Piano e Orquestra nº 1, em Fá sustenido menor, op. 1, de Sergei Rachmaninov, com a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção da maestrina Joana Carneiro. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa nota publicada no site da presidência, refere que “Sequeira Costa será lembrado certamente como um dos maiores pianistas clássicos de Portugal e pela forma como inspirou gerações de tantos jovens músicos, alunos, ouvintes, espectadores, apaixonados pela música clássica e rendidos ao seu raríssimo talento”. Contactado pelo jornal Observador, o maestro António Victorino de Almeida considera que Sequeira Costa “faz parte dos melhores pianistas do século XX e XXI a nível mundial”, destacando ainda o facto de ter “tocado até muito tarde”. Para Victorino de Almeida, “a música de Sequeira Costa não tem décadas nem séculos. Ele é uma figura histórica”, o que o levou a passar vários anos fora de Portugal, “porque nunca poderia estar no mesmo país graças à dimensão que atingiu. Sequeira Costa passou muito tempo fora, não pelas dificuldades do país, mas pela dimensão artística, que determinou que estivesse muito tempo em viagem, na sequência dos convites que recebeu de grandes universidades e escolas de música mundiais. É um pianista de grande carreira lá fora, mas também em Portugal”, conclui o maestro. Sequeira Costa, inegavelmente um dos maiores vultos portugueses do piano, conferia a cada actuação um vasto leque de timbres e um virtuosismo espantoso, mas também uma sensibilidade aos desejos do compositor, raramente conseguida por uma nova geração de virtuosos. Estas características, aliadas ao seu fraseado sedoso e tom cristalino, tornaram-no uma autêntica lenda do piano. Não restam dúvidas que o mundo ficou mais pobre com o seu desaparecimento.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasBienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira comemora 20ª edição com homenagem a Cruzeiro Seixas [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]20ª edição da Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira foi inaugurada no dia 10 de Agosto no fórum cultural daquela vila do distrito de Viana do Castelo, numa sessão presidida pelo ministro da Educação de Portugal, Tiago Brandão Rodrigues. Organizada pela Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC), esta edição da bienal, subordinada ao tema “Artes Plásticas Tradicionais e Artes Digitais – O Discurso da (Des)ordem”, homenageia também o pintor Cruzeiro Seixas, um dos expoentes máximos do surrealismo português, com uma mostra retrospectiva da sua obra plástica e poética. Segundo a organização da bienal, o pintor manifestou-se muito agradado com este tributo, considerando fundamental a organização de exposições sobre os artistas da sua geração que, num tempo de ditadura, foram impulsores da implementação de novas ideias. Segundo a organização, a bienal, que decorre até ao dia 23 de Setembro, “mantém o formato adoptado desde a primeira edição, em 1978, afirmando-se como um local de encontro, debate e investigação de arte contemporânea, num programa concertado com o ensino superior das artes a nível europeu”. Através das obras em exposição, provenientes de colecções públicas e privadas, a organização sustenta que “é proposta ao público uma nova reflexão sobre o movimento artístico”. De acordo com dados da FBAC, a bienal de arte “mais antiga do país e da Península Ibérica, contou, nesta edição, com a inscrição de 437 candidaturas e 717 obras de artistas oriundos de 43 países, sendo, no total, seleccionados 162 trabalhos de 143 artistas, maioritariamente provenientes de países como Portugal, Brasil, Espanha, Peru e Rússia, apresentados ao público no Castelo de Cerveira”. Aquelas obras foram seleccionadas pelo júri do concurso internacional da 20ª Bienal Internacional de Arte de Cerveira, que foi composto por artistas, investigadores e professores do ensino superior da área da arte contemporânea, entre eles, Albuquerque Mendes, António Olaio, Cabral Pinto, Jaime Silva, Ignacio Barcia Rodríguez, Miguel Carvalhais e Sandra Vieira Jürgens. Representados estão artistas como Graça Morais, Silvestre Pestana, Ana Vidigal, entre muitos outros como a mais recente vencedora do prémio Novo Banco Revelação, Maria Trabulo. Os trabalhos dos concorrentes, juntamente com outras obras de artistas convidados, estarão sujeitos aos Prémios Câmara Municipal (aquisição), num total de 20 mil euros, refere ainda a FBAC. A cumprir 40 anos de existência, o evento volta a alargar o seu âmbito expositivo. A vila transmontana de Alfândega da Fé, no distrito de Bragança, é, nesta 20ª edição, um dos pólos expositivos da Bienal Internacional de Arte de Cerveira com a mostra “XX Artistas na Casa”, assim como a de Monção, no Alto Minho. No final do ano, o Camões – Centro Cultural Português, em Vigo, na Galiza, acolherá também uma mostra da bienal. Entre 2 e 23 de Setembro, a bienal pode ser visitada à Segunda, Terça, Quarta e Quinta-feira das 14h30 às 20h00, à Sexta-feira das 14h30 às 22h30, ao Sábado das 10h30 às 22h30 e ao Domingo as 10h30 às 20h00. Até Setembro, decorrerão acções espontâneas de artistas e performances, tanto no interior do fórum cultural de Cerveira como no espaço público, cujo conteúdo será desenhado de uma forma interventiva e em interacção com os visitantes. A história da Bienal de Cerveira e a experiência adquirida em 25 anos constituem argumento e, concomitantemente, alavanca na prossecução de uma programação cultural complementar e sustentada pela Fundação Bienal de Cerveira. Neste âmbito, está a ser implementado um plano de estudo, preservação e divulgação das obras que integram o acervo do Museu da Bienal de Cerveira construído ao longo de 35 anos, organizando um ciclo de exposições, com carácter periódico, por forma a partilhar com o público as mais de 400 obras de arte. A apresentação é faseada e definida de acordo com os critérios dos respectivos comissários de exposição. O projecto Museu Bienal de Cerveira pretende ser um repositório da arte contemporânea nacional e internacional das últimas três décadas, reunido num espólio representativo da maioria dos grandes artistas portugueses e alguns estrangeiros, permitindo ao simples visitante tomar conhecimento da evolução das artes plásticas nos últimos 35 anos.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasRecuperação urgente dos carrilhões de Mafra prestes a começar [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi publicada no dia 14 de Março de 2018 em Diário da República a portaria de extensão de encargos conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério das Finanças do Governo de Portugal que desbloqueia os 1,5 milhões de euros destinados ao restauro dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra, ficando a Direcção Geral do Património Cultural autorizada a celebrar contrato no valor máximo de Euro 1.549.025,33, através do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinado à operação de restauro dos carrilhões, encargos repartidos pelos anos económicos de 2018 e 2019. No passado dia 18 de Abril, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, afirmou no parlamento que “há luz verde” para que se inicie a empreitada de recuperação “urgente” dos carrilhões de Mafra, após a obtenção do visto do Tribunal de Contas, marcando o fim de um impasse de 14 anos, iniciado em 2004, quando se procedeu ao escoramento dos sinos. O ministro falava aos deputados da Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, na qual estava a ser ouvido no quadro de uma audição regimental, para apreciação da política geral do Ministério da Cultura. Desde Maio de 2014 que os carrilhões e sinos do Palácio Nacional de Mafra, que, no seu conjunto, constituem o maior carrilhão do século XVIII sobrevivente na Europa e um conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo, figuram entre os sete monumentos mais ameaçados do continente europeu, segundo o movimento Europa Nostra (www.europanostra.org), o principal movimento de cidadãos europeus para a protecção do património cultural e natural europeu. O Europa Nostra, liderado pelo tenor e maestro Plácido Domingo, com o apoio do Banco Europeu de Investimento, veio alertar para a urgência das obras e mobilizar entidades públicas e privadas a nível nacional e internacional para se encontrar o financiamento necessário para uma rápida intervenção em Mafra. Os conjuntos sineiros apenas se têm mantido por estarem sustentados em sucessivas intervenções de escoramento. Apesar da maioria dos sinos de maior dimensão estarem escorados, as estruturas de suporte de madeira apresentam apodrecimento generalizado e as suas ligações de entalhe há muito que se encontram fragilizadas ou mesmo desaparecidas pela perda de material lenhoso. Existem cabeçalhos que, pela degradação da madeira e dos elementos metálicos, se encontram em perigo de queda, verificando-se, inclusivamente, deformações dos escoramentos em consequência do assentamento contínuo de estruturas e sinos, encontrando-se, frequentemente, peças, tanto de madeira como metálicas, ferragens e ligações, nos pavimentos das torres e nos terraços contíguos onde são visíveis danos no revestimento de cobre pelo impacto da queda de peças dos carrilhões. O Palácio Nacional de Mafra, mandado construir pelo Rei D. João V de Portugal “o Magnânimo”, no início do séc. XVIII, alberga o maior conjunto sineiro do mundo – composto por dois carrilhões e 119 sinos afinados musicalmente entre si (divididos em sinos de horas, litúrgicos e de carrilhão), encomendados na Flandres a dois fundidores de sinos diferentes e pesando o maior 12 toneladas, num total de 217 toneladas. Estes constituem – a par do único conjunto conhecido de seis órgãos de tubos concebidos para utilização simultânea, instalado na basílica do palácio, encomendados por D. João VI no final do séc. XVIII para substituir os primitivos que estavam degradados, e da biblioteca – o património mais importante do palácio. O carrilhão da torre norte nunca foi alterado e constitui, por conseguinte, um exemplo raro do som de sinos no seu estado original de afinação. O restauro dos seis órgãos, concluído em 2010 pelo mestre Dinarte Machado, foi distinguido em 2012 com o Prémio Europa Nostra. Um carrilhão é um instrumento musical de percussão formado por um teclado e por um conjunto de sinos de tamanhos variados, controlados pelo teclado. Os carrilhões são normalmente alojados em torres de igrejas ou conventos e são um dos maiores instrumentos do mundo. Os carrilhões de Mafra são instrumentos musicais notáveis, cobrindo cada um deles uma amplitude de quatro oitavas e sendo, por isso, considerados carrilhões de concerto. Foram executados por dois fundidores de sinos dos Países Baixos: Willem Witlockx, um dos mais respeitados fundidores de sinos em Antuérpia e Nicolas Levache, um fundidor de Liége responsável por diversos carrilhões e que deixou efectivamente em Portugal uma tradição de fundição que perdurou por mais de um século após a conclusão do trabalho em Mafra. Este património único inclui também o maior conjunto conhecido de sistemas de relógios e de cilindros de melodia automática, possuindo ambas as torres de Mafra mecanismos automáticos de toque. Este é um marco mundial para o estudo, quer da música automática, quer da relojoaria. Estes complexos engenhos são capazes de tocar de modo intermutável de entre cerca de dezasseis diferentes e complexas peças de música, em qualquer momento. Os cilindros melódicos de Mafra foram executados pelo famoso relojoeiro de Liège da primeira metade do século XVIII, Gilles de Beefe. A Câmara Municipal de Mafra congratula-se pelo início dos trabalhos de restauro dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra. A intervenção tem a duração prevista de 450 dias, devendo estar concluída em Setembro de 2019. O restauro dos carrilhões constitui um ponto importante na valorização do património identitário do Concelho, assegurando a sua transmissão às gerações futuras, permitindo reforçar o papel único do Real Edifício de Mafra no campo dos instrumentos musicais integrados no património arquitectónico, inscrevendo-o nos principais circuitos internacionais. Na mesma ocasião, o ministro sublinhou que a tutela “tem um projecto” para Mafra, que é a transferência do Museu da Música, sobre o qual já estabeleceu acordo com a autarquia local para instalar os instrumentos em dois pisos do Palácio Nacional de Mafra. O Museu Nacional da Música encontra-se instalado num espaço provisório desde 1994, disponibilizado pelo Metropolitano de Lisboa, na estação do Alto dos Moinhos. O Museu detém “uma das colecções mais ricas da Europa”, de acordo com a sua apresentação, contando com cerca de 1400 instrumentos, entre os quais o cravo de Joaquim José Antunes (1758), o cravo de Pascal Taskin (1782), o piano Boisselot et Fils, que o compositor e pianista Franz Liszt trouxe para Portugal, e que documenta a sua passagem por Lisboa em 1845, e o violoncelo Antonio Stradivari, que pertenceu ao rei D. Luís. Espólios documentais, acervos fonográficos e iconográficos, como os de Alfredo Keil, autor do Hino Nacional português, fazem igualmente parte do Museu da Música.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasApresentado estudo pioneiro sobre o valor económico e social do património arquitectónico português [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Nova School of Business & Economics e a Spira – agência de revitalização patrimonial, com o mecenato exclusivo da Fundação Millennium BCP, promovem o estudo pioneiro “Património Cultural em Portugal: Avaliação do Valor Económico e Social”. O estudo conta ainda com o Observatório do Património como parceiro, com o apoio da Portugal Heritage e com a patrimonio.pt como media partner. Em torno do projecto estão José Tavares, da Nova School of Business & Economics, Catarina Valença Gonçalves, da Spira, e José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, apoiados pela Fundação Millennium BCP. A Nova SBE é uma das faculdades da Universidade Nova de Lisboa e a mais prestigiada escola de negócios em Portugal e uma das mais importantes na Europa, e a Spira é uma empresa especializada na concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial. O estudo, que decorre durante o ano de 2018, foi apresentado no passado dia 18 de Abril, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, na Fundação Millennium, numa sessão que visou também recolher opiniões, sugestões, críticas e advertências que a comunidade possa trazer a este instrumento de trabalho, e incluir essas recomendações. Está ainda prevista uma apresentação preliminar para a edição deste ano da AR&PA – Bienal Ibérica do Património Cultural, a decorrer em Valladolid, em Novembro; e uma apresentação final no mês de Dezembro, na sede da Fundação Millennium BCP. Os autores do estudo consideram que, perante a tendência evidente de estruturação do sector, abordagem estratégica e ganho de escala e amplitude de representação e actuação de agentes, importa, por um lado, analisar o momento em que o país se encontra do ponto de vista de organização do sistema da gestão patrimonial, confrontando essa análise com a leitura de casos internacionais de destaque; assim como importa aferir economicamente o valor do recurso endógeno transversal ao território do país que é o património cultural. O cruzamento destes dados permitirá identificar modelos de gestão, linhas de actuação, prioridades, critérios, isto é, uma estratégia de longo prazo para o melhor retorno, sustentabilidade e partilha do património cultural de Portugal. O estudo, inédito em muitos aspectos, inventaria e sistematiza exaustivamente, pela primeira vez, todo o património edificado em território nacional, composto por cerca de 30.000 monumentos classificados, um trabalho que tem sido feito, mas que nunca foi devidamente organizado pelas várias instituições, acabando resultar num inventário do património não uniformizado. Antecipa-se a relevância do património como recurso endógeno que pode contribuir de forma decisiva para um desenvolvimento harmonioso do país pela sua equitativa dispersão geográfica e diversidade tipológica. Catarina Valença Gonçalves, directora-geral da Spira e historiadora de arte, que coordena o projecto, considera que o património cultural pode ser gerador de formação qualificada, de uma maior estabilização da população no interior do país, de criação de emprego e de criação de inovação. Considera que esta dinamização económica das regiões irá trazer, entre outros factores, a fixação das pessoas, a criação de riqueza e tornar os territórios apelativos para visitar e para a fixação de mais pessoas. Tendo em conta a população residente, as regiões do Alentejo, da Beira Interior, uma parte de Trás-os-Montes e do Alto Minho têm a maior concentração de património por habitante do país, até mais elevada que Lisboa e Porto. Porém, em termos de visitantes, a maior concentração encontra-se em Lisboa e Porto, cerca de 40%, sendo muito evidente, através duma análise dos números, que há uma disparidade (no território nacional), e um desperdício da potencialidade da atractividade, nomeadamente turística, do conjunto de património monumental que todos herdámos, e que está nas regiões. A historiadora entende, assim, que o país não precisa de construir nada, nem o `shopping`, nem o castelo nem as igrejas porque já lá estão, tendo essa enorme vantagem, e há é que activar tudo isto, económica e socialmente. Além disso, a historiadora considera que “a distribuição no país do património cultural edificado é muito equilibrada, quer do ponto de vista de quantidade, quer do de qualidade e de atractividade, mas não há nesses territórios a adaptação a este recurso. É necessário criar nas diferentes regiões as condições necessárias, como formar um olhar e uma perspectiva económica sobre esse património. A questão que coloca é, com o fluxo de turismo que já se aproxima do excesso em Lisboa e no Porto, porque não aproveitar este recurso em todo o país? A ideia parece óbvia mas não se põe mãos à obra sem primeiro estudar o terreno.” Neste sentido, Catarina Valença Gonçalves sublinhou que “qualquer valorização do património cultural do ponto de vista turístico – tendo em conta o que são as tendências do turismo, em que as pessoas procuram autenticidade e contacto com a população local -, obriga a que o próprio território seja o cicerone desses turistas, enfatizando que tem de haver pessoas da região a receber os turistas. Defendeu a necessidade de formação na área do turismo cultural dando, desta forma, uma carreira profissional aos jovens, que podem, assim, criar empresas locais e criar valor e, deste modo, contribuir para uma melhor e mais harmoniosa distribuição da população pelo país”. A responsável afastou qualquer “perspectiva capitalista ou meramente económica” deste projecto, mas antes “adicionar um olhar económico-social ao olhar cultural”. Referiu ainda que “o património cultural raramente é visto como um activo estratégico do ponto de vista do desenvolvimento económico e social. Nunca foi feito um levantamento do que existe e muito menos foi feita uma análise do que isso pode significar”. E é por aí que o estudo vai começar a ser feito. Um levantamento exaustivo das igrejas, capelas, túmulos, sítios arqueológicos, castelos, fortalezas, e e outro património, que existem de norte a sul do país e que têm o seu valor simbólico por analisar e o seu verdadeiro potencial económico por aferir. Uma segunda etapa será a distribuição geográfica desses monumentos, e tentar perceber qual a incidência de património classificado ao longo do território. O propósito deste estudo é olhar também para os 308 concelhos nacionais e perceber quantos mosteiros ou igrejas existem per capita, ou seja, que “activos patrimoniais há por habitante”. Catarina Valença Gonçalves diz que “este é o melhor negócio que podemos ter visto que a infra-estrutura já lá está, sendo só preciso animá-la, aplicar o nosso conhecimento para saber como animá-la e usá-la. Até as auto-estradas já existem!” Será ainda levado a cabo um inquérito com vista a identificar uma base de cerca de 350 elementos do parque patrimonial, que, pelo número de visitantes, empregos associados e receitas directas, permita qualificar um número de visitantes para cada concelho do país de forma mais correcta. Além disso, depois de feito esse inquérito, será realizada a caracterização do sistema de gestão em uso pela Direcção-geral do Património Cultural, a entidade estatal que gere o património, e para as políticas culturais nesta área dos últimos 44 anos. Catarina Valença Gonçalves referiu que “a ideia é fazer recomendações estratégicas para o sector com base numa análise crítica dos números, comparar o nosso sistema de gestão com outros modelos europeus, perceber o que funciona ou não e o que é possível fazer em Portugal. Esta abordagem nacional, que pela primeira vez inclui as ilhas, é uma espécie de ‘começar de novo’, apoiado na premissa de que todos os territórios são iguais e de que é preciso ‘olhar para o que temos’ para a partir daí recriar dinâmicas locais.” Portugal tem uma das mais baixas taxas europeias de visitantes nacionais a monumentos e museus, estimando-se que cada estrangeiro que veio a Portugal em 2017 (um número que se aproxima dos 12,6 milhões) tenha visitado, em média, um monumento durante a sua estada, sendo o património cultural, amiúde, a principal motivação da sua vinda a Portugal. Porém, existem 4300 imóveis classificados – 15 detêm a classificação da UNESCO de Património da Humanidade – e 30 mil bens patrimoniais imóveis inventariados, lista a que acresce o património intangível já classificado também pela UNESCO: chocalhos e olaria preta de Bisalhães, cante alentejano, fado e bonecos de Estremoz, e ainda, em conjunto com outros países, a dieta mediterrânica e a falcoaria. José Tavares, da Nova SBE, explicou que, apesar disso, quando falamos em monumentos mais visitados, falamos sempre dos mesmos dez, aqueles cujo investimento turístico é mais forte, onde os meios de transporte mais chegam, onde existem mais agentes económicos, mais hotelaria e mais operadoras, e dá um exemplo: há três milhões de visitantes nos Parques de Sintra, um fluxo excessivamente orientado para os mesmos locais. Logo, a assimetria económica não corresponde à assimetria patrimonial. Outro exemplo é a Rota do Românico, em Lousada, que compreende 12 municípios e mais de 30 monumentos. A articulação entre eles teve como resultado o sucesso do número de visitantes, êxito na educação patrimonial, recuperação e criação de emprego. Depois de fechada a análise a nível nacional, proceder-se-á ao cruzamento de dados com os existentes nas entidades públicas como a DGPC, o INE, e o monumentos.pt e ver se há incongruências. Tudo isto envolve dados geográficos, demográficos, descrição, localização e distâncias entre monumentos. No entanto, a base para inferir o valor económico e social do património cultural é deduzida a partir de três grandes factores associados: o emprego gerado, a receita (de bilheteira) e o número de visitantes de cada monumento. José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, referiu a este propósito que “cruzando todos os dados se podem determinar quais são os factores mais importantes para cada município.” O passo seguinte é descrever o modelo de gestão que existe e propor o modelo que maior rentabilidade dá. A isto chamam os criadores do estudo “potenciar o impacto económico e social do património cultural”. Uma metodologia que vai pela primeira vez ser aplicada. José Tavares explicou que “os dados são para ser interpretados através do princípio da história e técnicas estatísticas para inferir qual é o potencial valor, gerar uma estimativa município a município, para que os atores políticos e privados possam dizer o que vão fazer a mais.” O retrato à escala nacional tem objectivos tácticos e estratégicos: avaliar o potencial de distribuição do tráfego turístico, nomeadamente para o interior do país — potencial esse que ainda não foi nem avaliado nem devidamente explorado —, contribuindo, desta forma, para que o património cultural seja reconhecido como parte integrante da agenda estratégica económica e social do país. Note-se que são poucos ou nulos os intervenientes privados na gestão do património cultural português, representando este a maior fatia do Orçamento de Estado para a Cultura e executando-se principalmente em obra física nos monumentos, esquecendo-se quase sempre a fruição do mesmo. Nas suas recomendações estratégicas, de resto, os elementos que realizam o estudo propõem avaliar a criação de modelos de parcerias interinstituições a nível nacional e regional, a criação também de modelos de parcerias público-privadas e a concretização de uma nova mecânica de financiamento dos recursos considerados activos estratégicos, que conte já com o apoio do Turismo 2027 e do Portugal 2020 e futuro quadro comunitário. O estudo não deixa de lado a vontade de mostrar a capacidade dos vários territórios de fixar gente, apresentando-se como um caminho para a sustentabilidade e regeneração do interior e “para uma nova abordagem às políticas dessa região”. O estudo estará disponível online em versão portuguesa e inglesa (www.valordopatrimonio.pt), bem como será editada uma versão portuguesa do estudo completo. O acompanhamento do estudo e de alguns dos dados alcançados à medida do seu desenvolvimento serão divulgados de forma periódica na plataforma patrimonio.pt.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasEuropa celebra pela primeira vez o Ano Europeu do Património Cultural [dropcap style=’circle’]P [/dropcap] or iniciativa da Comissão Europeia celebra-se pela primeira vez este ano o Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), enquadrado pelos grandes objectivos da promoção da diversidade, do diálogo intercultural e da coesão social, visando chamar a atenção para a importância da preservação e transmissão do património às gerações futuras, para o papel do património no desenvolvimento social e económico e nas relações externas da União Europeia, e ainda motivar os cidadãos para os valores comuns europeus. Sob o lema “Património: onde o passado encontra o futuro”, o Ano Europeu do Património Cultural pretende incentivar mais pessoas a descobrir e explorar o património cultural da Europa e reforçar o sentimento de pertença a um espaço europeu comum. Ao longo do ano, terão lugar por toda a Europa uma série de iniciativas e eventos que permitirão às pessoas aproximarem-se do património cultural e desempenharem um papel mais activo nas questões que lhe dizem respeito. O património cultural influencia a identidade e a vida quotidiana dos povos, tanto o material, o imaterial, o natural como o digital. Rodeia-os nas aldeias, vilas e cidades, nas paisagens naturais, nos monumentos, nos museus, palácios e sítios arqueológicos… O património cultural não só está presente na literatura, na arte e nos objectos expostos nos museus, mas está igualmente presente nas técnicas que se aprendem com os antepassados, nos ofícios tradicionais, na música, no teatro, nos ambientes e no espírito dos lugares, na gastronomia e no cinema. O AEPC 2018 pretende dar a conhecer ainda melhor a diversidade e a riqueza dos valores das diferentes nacionalidades e ultrapassar fronteiras. O AEPC constitui uma importante oportunidade para a realização de iniciativas em diferentes níveis – europeu, nacional, regional e local – envolvendo os cidadãos, organizações, entidades públicas e privadas, que contribuirão para uma maior visibilidade da cultura e do património e para o reconhecimento da sua importância e do seu carácter transversal em todos os sectores da sociedade. O AEPC convida todas as entidades e organizações, públicas e privadas, municípios, investigadores, escolas, comunidades, universidades, associações, ONGs, a preparar projectos e actividades que, enquadrados nos objectivos do Ano Europeu, promovam a reflexão e o debate sobre a actualidade e o futuro do património, a sua importância vital para as pessoas e para as comunidades e o seu valor no desenvolvimento social e económico equilibrado, contribuindo para o desenho de um futuro melhor para todos. Cada país da UE designou um coordenador nacional responsável pelas comemorações e pela coordenação dos eventos e projectos a nível local, regional e nacional. A Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, bem como o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social organizarão eventos para comemorar o Ano Europeu e lançarão actividades que porão em destaque o património cultural. Além disso, a UE financiará projectos de apoio ao património cultural. No âmbito do programa Europa Criativa, foi lançado um convite específico à apresentação de propostas de projectos de cooperação relacionados com o Ano Europeu. Uma grande variedade de outras oportunidades estarão disponíveis ao abrigo dos programas Erasmus+, Europa dos Cidadãos, Horizonte 2020 e de outros programas da UE. Para garantir que os efeitos destes esforços se farão sentir para além de 2018, a Comissão, em colaboração com o Conselho da Europa, a UNESCO e outros parceiros, lançou dez projectos com impacto a longo prazo, incluindo actividades com escolas, investigação sobre soluções inovadoras para a reutilização de edifícios históricos e a luta contra o tráfico ilícito de bens culturais. O objectivo é ajudar a desencadear um processo de mudanças efectivas no modo como usufruímos, protegemos e promovemos o património, assegurando que o Ano Europeu terá benefícios para os cidadãos a longo prazo. A página electrónica do Ano Europeu do Património Cultural em Portugal, lançada pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) para congregar e divulgar as iniciativas que, por todo o país, e ao longo deste ano, se proponham contribuir para reforçar a ligação das comunidades com o seu património, lista já mais de 750 actividades. Uma das funcionalidades que o sítio oferece é um calendário de 2018 no qual se pode escolher um dia do ano e ficar a saber todas as iniciativas previstas para essa data. Uma lista em constante actualização, já que a página continuará a aceitar inscrições até ao final do ano. Pouco mais de três meses desde a abertura deste Ano Europeu do Património Cultural (AEPC), as 750 iniciativas já registadas, promovidas por entidades públicas e privadas, têm origem em 74 municípios de todo o país, incluindo os Açores e a Madeira, e poderão abranger, segundo estimativa da DGPC, cerca de 240 mil pessoas. As visitas e rotas patrimoniais são o tipo de actividade mais comum, com 232 iniciativas previstas, mas há programas para todos os gostos, de congressos e outros encontros a exposições, oficinas, espectáculos de artes performativas, animações de rua, recriações históricas, exibição de documentários, sessões de leitura ou concursos, para citar apenas alguns. Cerca de um quinto das realizações programadas até ao momento (incluindo as já realizadas desde o início do ano) partiram dos próprios organismos tutelados pelo Ministério da Cultura, sobretudo da DGPC e das várias Direcções Regionais de Cultura, que no seu conjunto promoveram 105 actividades, mas também, entre outras, da Direcção-Geral das Artes, do Instituto do Cinema e Audiovisual, do Centro Cultural de Belém, da Biblioteca Nacional ou dos teatros nacionais D. Maria II e São João.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasAs Ilhas do Ouro Branco A arte que o açúcar da Madeira comprou em exposição no Museu Nacional de Arte Antiga [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] antecipar o arranque do programa de Comemorações dos 600 anos do Descobrimento da Madeira e do Porto Santo, que se assinalará em 2019 de forma intensa, o Governo Regional da Madeira, em conjunto com o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) de Portugal, apresenta a excepcional exposição “As Ilhas do Ouro Branco – Encomenda Artística na Madeira (séculos XV-XVI)”, inaugurada no passado dia 15 de Novembro. Em Lisboa, estão reunidas 86 peças provenientes do Museu de Arte Sacra da Diocese do Funchal, de colecções privadas e um retábulo do espólio do Museu. Se a importância desta exposição é inegável no âmbito da história da arte, não é menos relevante no que concerne à museografia. Comissariada por Fernando António Baptista Pereira e Francisco Clode de Sousa, historiadores de arte e museólogos, com reconhecida investigação no âmbito do património madeirense, a narrativa expositiva flui numa lógica coerente e articulada, facilmente perceptível pelo visitante. A abrir a exposição, que apresenta obras de pintura, escultura e ourivesaria, algumas delas restauradas para a ocasião, está um grande ecrã onde é projectado um filme que mostra a Madeira e a sua natureza em bruto, tal como terá sido encontrada pelos primeiros navegadores, e “que estão na base do encantamento que a ilha da Madeira provocou”, salientou Francisco Clode de Sousa na apresentação à imprensa, para quem esta mostra revela também a história da Madeira, a ilha “onde Portugal se ensaiou fora de si próprio”, referiu. Sublinhou ainda que “a Madeira é uma espécie de balão de ensaio do que viria a ser o Portugal da expansão, primeiro atlântica e depois no Índico.” Ao longo de uma narrativa que parte do espanto dos primeiros navegadores perante o novo território e prossegue com a evocação do esforço do povoamento e da implantação de estruturas económicas e administrativas no arquipélago, esta exposição dá a conhecer as elites comitentes locais através das suas encomendas – obras de pintura, escultura e ourivesaria – provenientes da Flandres, do continente ou até do Oriente. A narrativa expositiva constrói-se em quatro núcleos: “O açúcar no paraíso”; “Organizando a terra virgem”; “A arte que o açúcar comprou”; “Um reino dentro do reino” Numa última sala, expõem-se as mais destacadas obras-primas encomendadas, sintetizando, com particular brilho, a riqueza do património madeirense dos séculos XV e XVI, resultante do esplendor cultural proporcionado pelo ciclo económico do “ouro branco”. Proveniente da Ásia, a cana-de-açúcar terá começado a ser importada da Sicília pelo Infante D. Henrique, que introduziu o seu cultivo na Madeira nos finais da primeira metade do século XV, um projecto de rápida expansão. O desenvolvimento da produção de açúcar em larga escala permitiram a sua exportação para os portos da Flandres, primeiro através de Lisboa, e depois directamente. O consumo do “ouro branco” aumentou, assim, por toda a Europa, alterando hábitos alimentares e algumas práticas medicinais no mundo. Em paralelo, os mercadores que levavam o açúcar para Bruges e Antuérpia, entre outras cidades da Flandres, regressavam regularmente à Madeira com bens, nomeadamente obras de arte, sobretudo de carácter religioso, destinadas a satisfazer as devoções e a definir o estatuto social dos novos grupos populacionais constituídos à sombra dos canaviais e da economia açucareira, nomeadamente de pinturas das oficinas de Gérard David, Dick Bouts, Joos Van Cleve e Jean Gossaert, de escultura das oficinas de Malines, Antuérpia e Bruxelas, artes decorativas e ainda ourivesaria, também provenientes do continente e até do Oriente. A maioria das igrejas matrizes fundadas ou reformuladas durante o reinado manuelino foi dotada de imagens e retábulos flamengos, entre os quais se destaca o magnífico retábulo da Sé do Funchal, único no mundo, inspirando a encomenda de peças idênticas por particulares. Com um pé na economia açucareira, eram feitas encomendas artísticas que geraram “uma economia da salvação”, explicou Fernando António Baptista Pereira na apresentação à imprensa. Nas palavras deste historiador de arte, as peças expostas resultavam “da oferta à igreja de obras de arte que eram compradas com os excedentes económicos para remissão dos pecados”. Recordou ainda que foram os cereais o primeiro ciclo económico do arquipélago, só depois substituídos pelo açúcar. Foi este “ouro branco” escoado para os mercados europeus, numa altura em que o açúcar ainda era raro e caro, que proporcionou um enorme desenvolvimento local na Madeira. É perceptível o gosto dos senhores locais pela arte flamenga, onde frequentemente se faziam representar e cuja posse lhes sublinhava o prestígio. Tal como se regista a mudança de gosto que, a partir de meados do século XVI, passa a privilegiar as oficinas de Lisboa, nas expressões da Renascença ao Maneirismo. Muita da “arte que o açúcar comprou” pode ser vista nesta exposição que constitui, seguramente, uma oportunidade de excepção para ver em Lisboa algumas das obras mais notáveis de pintura, escultura e ourivesaria do património artístico português, incluindo: Santiago Maior, de finais do século XV e atribuído a Dieric Bouts; a Virgem com o Menino, São Bento e São Bernardo, de c. 1515 e atribuído a Francisco Henriques; o Retábulo dos Reis Magos, com o corpo central relevado em madeira dourada e policromada e volantes laterais pintados com a representação dos doadores, de oficina de Antuérpia, datado de c. de 1530; o Tríptico da Descida da Cruz, de cerca de 1518-1527 e atribuído a Gérard David (Bruges); o Tríptico de Santiago Menor e de S. Filipe, datado de c.1527-1531 e atribuído a Pieter Coecke van Aelst (Antuérpia); o Tríptico da Virgem da Misericórdia, de Jan Provoost (Bruges e Antuérpia), datado de 1529, com Nossa Senhora da Misericórdia ao centro, ladeada pelos santos Cristóvão, Paulo, Pedro e Sebastião; duas pinturas (Apresentação do Menino no Templo e Ressurreição) do retábulo da igreja de São Brás, no Arco da Calheta, de c. 1550-1560 e atribuído ao Mestre de Abrantes; quatro pinturas (Anunciação, Adoração dos Pastores, Adoração dos Magos e Ressurreição, de oficina portuguesa e datadas de c. 1550-1560; ou as extraordinárias esculturas de S. Sebastião, fragmento, de oficina coimbrã, atribuída a Diogo Pires, o Moço, e da Imaculada Conceição, dita Virgem de D. Manuel, trabalho flamengo, possível oficina de Malines, ambas datadas do início do século XVI; a imponente cruz processional, com iconografia da Paixão e a representação, no reverso, da figura em vulto de Cristo Redentor Mundi, e com decoração e heráldica manuelina, em prata dourada, do primeiro quartel do século XVI, para além de obras do anónimo conhecido como “Mestre da Lourinhã”, de Michiel Coxcie (Malines), e Joos van Cleve (Antuérpia). E estas são apenas algumas de entre as 86 peças que se encontram expostas e que podem ser vistas no MNAA, de terça a domingo das 10h00 às 18h00, até 18 de Março de 2018.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasMafra minha [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s maiores carrilhões do séc. XVIII existentes no mundo são portugueses e vão ser recuperados. Fez no dia 17 de Novembro 300 anos que foi lançada a primeira pedra do Palácio Real de Mafra, uma obra maior do Barroco, em Portugal e na Europa, e o mais importante monumento representante deste estilo em Portugal, nomeadamente do barroco joanino, mandado construir pelo Rei D. João V “o Magnânimo” (1689-1750). Edificado em pedra lioz da região, o edifício colossal ocupa uma área de perto de quatro hectares (37.790 m2), compreendendo 1200 divisões, mais de 4700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. A sua construção empregou 52 mil trabalhadores. O monumento é uma referência do pensamento urbanístico, arquitectónico e natural da civilização ocidental, quer enquanto unidade, congregando um paço real, uma basílica, um convento, um hospital monástico, um jardim e uma tapada, quer devido aos seus equipamentos de prestígio, entre os quais se conta uma das mais notáveis e ricas bibliotecas europeias do século XVIII, abrangendo todas as áreas de estudo; a mais importante colecção de escultura barroca em Portugal e fora de Itália, da autoria de mestres italianos e portugueses da época; dois carrilhões – o maior conjunto sineiro do mundo – com 119 sinos afinados musicalmente entre si (divididos em sinos de horas, litúrgicos e de carrilhão), encomendados na Flandres a dois fundidores de sinos diferentes e pesando o maior 12 toneladas, num total de 217 toneladas, que constituem – a par do único conjunto conhecido de seis órgãos de tubos concebidos para utilização simultânea, instalado na basílica, encomendados por D. João VI no final do séc. XVIII para substituir os primitivos que estavam degradados, e da biblioteca – o património mais importante do palácio. O carrilhão da torre norte nunca foi alterado e constitui, por conseguinte, um exemplo raro do som de sinos no seu estado original de afinação. Um carrilhão é um instrumento musical de percussão formado por um teclado e por um conjunto de sinos de tamanhos variados, controlados pelo teclado. Os carrilhões são normalmente alojados em torres de igrejas ou conventos e são um dos maiores instrumentos do mundo. Os carrilhões de Mafra são instrumentos musicais notáveis, cobrindo cada um deles uma amplitude de quatro oitavas e sendo, por isso, considerados carrilhões de concerto. Foram executados por dois fundidores de sinos dos Países Baixos: Willem Witlockx, um dos mais respeitados fundidores de sinos em Antuérpia e Nicolas Levache, um fundidor de Liége responsável por diversos carrilhões e que deixou efectivamente em Portugal uma tradição de fundição que perdurou por mais de um século após a conclusão do trabalho em Mafra. Este património único inclui também o maior conjunto conhecido de sistemas de relógios e de cilindros de melodia automática, possuindo ambas as torres de Mafra mecanismos automáticos de toque. Este é um marco mundial para o estudo, quer da música automática, quer da relojoaria. Estes complexos engenhos são capazes de tocar de modo intermutável de entre cerca de dezasseis diferentes e complexas peças de música, em qualquer momento. Os cilindros melódicos de Mafra foram executados pelo famoso relojoeiro de Liège da primeira metade do século XVIII, Gilles de Beefe. Desde Maio de 2014 que os carrilhões e sinos do Palácio Nacional de Mafra, que, no seu conjunto, constituem o maior carrilhão do século XVIII sobrevivente na Europa e um conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo, figuram entre os sete monumentos mais ameaçados do continente europeu, uma atribuição do principal movimento de cidadãos europeus para a protecção do património cultural e natural europeu, Europa Nostra, liderada pelo tenor e maestro Plácido Domingo, com o apoio do Banco Europeu de Investimento, que veio alertar para a urgência das obras e mobilizar entidades públicas e privadas a nível nacional e internacional, para se encontrar o financiamento necessário para uma rápida intervenção. Em Outubro de 2014, especialistas internacionais ligados ao restauro de monumentos e à organização Europa Nostra deslocaram-se a Mafra para conhecerem o estado de degradação daquele conjunto, tendo alertado na ocasião para a urgência de uma intervenção, não só porque os sinos estão seguros por andaimes, como também para impedir que algum possa cair, dada a deterioração visível das estruturas de apoio. Embora tenha sido levado a cabo um trabalho contínuo de emergência de estabilização das estruturas, são necessários peritos transnacionais e apoio financeiro para salvar estas jóias do património tangível e intangível. A recuperação dos carrilhões merece especial consideração científica, tratando-se de sinos que devem ser tratados com cuidadosos métodos de restauro. A afinação deve ser não-destrutiva e cumprir critérios científicos nas áreas da acústica musical e da musicologia. O governo português reconheceu, na altura, que os carrilhões e as torres sineiras do Palácio Nacional de Mafra constituem um conjunto histórico de valor patrimonial único no Mundo, pelo que esta intervenção se reveste da maior importância, contribuindo para a notoriedade deste conjunto monumental, para a salvaguarda do património cultural português e para um aumento da fruição cultural dos públicos portugueses e estrangeiros. A recuperação tornava-se também fundamental para o Estado e a Câmara de Mafra candidatarem o monumento a património mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o que aconteceu no início do corrente ano. Por Portaria publicada no Diário da República em 17 de Setembro de 2015, o Governo de Portugal autorizou a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) a celebrar contrato destinado à operação de Reabilitação dos Carrilhões e Torres Sineiras do Palácio Nacional de Mafra, repartindo pelos Orçamentos de Estado de 2015, 2016 e 2017 as verbas que autorizou para a empreitada de recuperação dos carrilhões e sinos do Palácio de Mafra, orçadas em 2,3 milhões de euros, prevendo na altura que o período de execução das obras decorresse entre 2015 e 2017 e concluída no final de 2017, data coincidente com as comemorações dos 300 anos sobre o lançamento da primeira pedra do monumento. Na portaria, o Governo justifica as obras ao reconhecer que se trata de um “conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo” e que carece de “reabilitação urgente face ao avançado estado de degradação”, que acarreta “riscos de segurança não só para o património, como para utentes do imóvel e os transeuntes da via pública”. Ainda em 2015, a DGPC lançou o concurso público, no valor referido, para as obras de restauro dos carrilhões e sinos do monumento. Oriundos de financiamento estatal, por via do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinado a financiar medidas de protecção em imóveis classificados em risco de destruição, foram inscritos 1,2 milhões de euros no Orçamento de Estado de 2016 e 695 mil euros no de 2017, depois de o de 2015 prever uma verba inicial de cinco mil euros para os procedimentos inerentes ao lançamento do concurso público internacional, em Setembro de 2015, do qual já é conhecida a empresa vencedora. Embora as obras de recuperação dos sinos e dos carrilhões de Mafra devessem ter começado no princípio do segundo semestre do ano passado, foi necessário aguardar a autorização do Ministério das Finanças para a transição do saldo do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, o que só aconteceu em meados do corrente ano e, seguidamente, o visto prévio do Tribunal de Contas antes da empreitada ser adjudicada, o qual ainda se continua a aguardar. Quanto tempo mais poderão os carrilhões esperar pela sua urgente recuperação?
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasPalácio Nacional de Mafra – 300 anos do lançamento da primeira pedra [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez no passado dia 17 de Novembro 300 anos que foi lançada a primeira pedra do Palácio Nacional de Mafra (PNM). As entidades com responsabilidades na gestão deste notável conjunto patrimonial organizaram um vasto programa comemorativo, que teve início há um ano, no dia 17 de Novembro de 2016, e culminou com a inauguração da Exposição “Do Tratado à Obra – Génese da Arte e da Arquitectura no Palácio de Mafra” no dia 17 de Novembro de 2017, seguida do concerto de encerramento das comemorações. No mesmo dia, foi ainda lançado o 35º número da revista Monumentos, uma edição da Direcção-Geral do Património Mundial, dedicada ao palácio. No início do corrente mês de Novembro, foi reaberta ao público a Sala do Trono do palácio, após obras de restauro das pinturas neoclássicas que revestem o tecto e as paredes da sala (graças ao mecenato da Fundação BCP), da autoria de Cirilo Volkmar Machado e Domingos Sequeira. O Palácio Nacional de Mafra é uma obra maior do Barroco, em Portugal e na Europa, e o mais importante monumento representante deste estilo em Portugal, nomeadamente do barroco joanino. Foi mandado construir pelo Rei D. João V em cumprimento de um voto para obter sucessão do seu casamento com D. Maria Ana Josefa, Arquiduquesa da Áustria ou, há quem diga, a cura de uma doença de que sofria, e inclui uma basílica de grandes dimensões, um convento, um palácio real, uma magnífica biblioteca com mais de 40 mil volumes, e outras instalações. O instrumentário da basílica inclui o único conjunto conhecido de seis órgãos construídos para execução simultânea, bem como dois carrilhões, ambos do século XVIII (torres Norte e Sul), fabricados na Flandres, os maiores do mundo. A Exposição “Do Tratado à Obra – Génese da Arte e da Arquitectura no Palácio de Mafra”, curada por Sandra Vaz Costa (historiadora de arte da Direcção Geral do Património Cultural – DGPC), Sérgio Gorjão (museólogo do PNM/DGPC) e Paulo Pereira (professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa) e com design de José Dias, comemora os 300 anos do lançamento da primeira pedra do imponente edifício barroco mandado erguer pelo Rei D. João V. Espalhada ao longo de várias salas do palácio, foca-se na construção do monumento, mais propriamente no trabalho do alemão Johann Friedrich Ludwig, conhecido em Portugal como João Frederico Ludovice, o arquitecto principal, também autor, entre outros, do projecto da Capela de S. João Baptista da Igreja de S. Roque, mas também de outros arquitectos que contribuíram para a sua edificação. Inclui gravuras, materiais e instrumentos de construção, modelos de estátuas e vários objectos, de pesos a cabrestantes e compassos a moitões, contando com uma parceria com a Faculdade de Arquitectura de Lisboa, que, segundo a directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, fez um varrimento de laser 3D que foi aproveitado para uma maqueta de madeira do palácio que ainda não está disponível, mas fará em breve parte da exposição. Trata-se de uma mostra inédita que, tal como o seu catálogo, envolve as mais recentes investigações de reputados especialistas sobre a génese do pensamento e da cultura artística e arquitectónica barroca. A mostra ficará patente ao público português até 31 de Maio de 2018, seguindo-se uma itinerância na Baviera, na Alemanha, país de origem do arquitecto régio João Frederico Ludovice, que se viria a naturalizar português, a quem João V confiou a concepção deste monumental conjunto arquitectónico. Uma mostra em processo Segundo declarou Paulo Pereira ao jornal Público, a mostra era para ser apenas uma exposição de módulos informativos relativos a Ludovice, mas foi ganhando peso a hipótese de mostrar muitas das peças que fazem parte das reservas do palácio, que têm um valor imenso e raramente foram expostas. Este curador realçou também o foco na “materialidade da obra” e o facto de a mostra incluir tratados de arquitectura do século XVIII, vindos da biblioteca do PNM, que dão uma ideia das técnicas e conhecimentos que foram necessários para criar a obra. E ainda a envergadura dos trabalhos, que, na recta final da construção, envolveram cerca de 45 mil homens, após um mandato do rei a obrigar todos os operários do reino a irem para Mafra – que levou a que houvesse um período em que no resto do país não tivesse havido reparações nem novas obras. Referiu ainda que o objectivo é que esta recolha e investigação dêem origem a algo mais permanente, havendo a intenção de constituir um museu da obra, que pode reunir muitos dos materiais que se podem ver na exposição. Numa organização conjunta da Direcção Geral do Património Cultural/ Palácio Nacional de Mafra, Câmara Municipal de Mafra, Escola das Armas, Paróquia de Mafra e Tapada Nacional de Mafra, o programa comemorativo dos 300 anos, pautado pelas palavras-chave “qualificar” e “conhecer”, pretendeu dar a conhecer o diversificado conjunto patrimonial, candidato a Património Mundial da UNESCO, através da promoção de iniciativas como conferências, exposições, recriações históricas, lançamento de livros, concertos, espectáculos piro-musicais ou videomapping. Ao mesmo tempo, estas comemorações são sinónimo de investimento na qualificação dos espaços e dos mais singulares equipamentos, destacando-se a recuperação dos notáveis carrilhões do Palácio (cujo processo de concurso se encontra em fase de conclusão) e das pinturas murais da sala do trono, inaugurada no início do mês, assim como a melhoria das acessibilidades físicas e de comunicação (elevador, acesso à Basílica, nova sinalética e tabelas nas salas, e instalação de áudio-guias).
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasMosteiro de Santa Maria de Pombeiro Órgão de tubos do volta a fazer-se ouvir após mais de 200 anos de silêncio [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 25 de Maio de 2017, após mais de 200 anos de inactividade, o órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, em Felgueiras, no distrito do Porto, em Portugal, voltou a fazer-se ouvir, ecoando os sons celestiais da Avé Maria de Bach/ Gounod, dando início ao 4.o Fórum Internacional do Património Arquitectónico Portugal/ Brasil. O restauro do instrumento representou um investimento de 255.000 euros, co-financiado em 80% pelo ON.2 – O Novo Norte (Programa Operacional Regional do Norte) e pelo Quadro de Referência Estratégica Nacional, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, e em 20% pelo Município de Felgueiras. A obra de restauro foi executada pelo consórcio luso-espanhol Acitores-Samthiago, constituído pelas empresas Atelier Samthiago Conservação e Restauro (Viana do Castelo) e Taller de Organería Acitores de Torquemada (Palencia), também responsável pela recuperação recente dos dois órgãos da Igreja dos Clérigos, no Porto, um dos mais importantes conjuntos de órgãos gémeos da Península Ibérica, e do órgão de tubos da Igreja Matriz de Torre de Moncorvo. Destaca-se a cooperação que este consórcio vem desenvolvendo deste 2010 no âmbito da restauração patrimonial e em concreto na protecção e conservação de órgãos de tubos, que para além dos citados, incluem ainda os restauros do órgão da igreja de San Martín de Valdeiglesias em Madrid e do órgão da ermida de Nuestra Señora en Tiedra (Valladolid), e ainda do órgão do Convento de San Quirce de Valladolid, em Espanha. O órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, datado de 1766, é obra do organeiro galego radicado em Portugal, Dom Francisco António Solla, facto comprovado por uma inscrição existente no interior do instrumento. Este organeiro representa a ligação mais paradigmática da vinculação da organeria galaico-portuguesa, que se integra na definição genérica de “órgão ibérico”. O autor das caixas – em talha dourada e fundos policromados imitando mármores, de estilo barroco ibérico com elementos das escolas galega, castelhana e portuguesa – encontra-se por determinar mas, possivelmente, será o escultor beneditino Frei José de Santo António Ferreira Vilaça, artista polifacetado e autor de numerosas obras de arquitectura, escultura, talha, mobiliário, pintura, estuque e ferro forjado, incluindo a decoração da igreja do Mosteiro de Pombeiros. O instrumento está localizado no coro alto da igreja, do lado do Evangelho. Do lado da Epístola, na procura de simetria e por razões estéticas, foi colocado um outro semelhante, mas falso ou mudo. O órgão, após mais de dois séculos de inactividade, apresentava-se em muito mau estado de conservação, para o qual contribuíram, em grande parte, as Invasões Francesas em Portugal e, logo a seguir, a extinção das ordens religiosas, em 1834, na sequência da qual o coro alto e o respectivo espólio integrado entraram, progressivamente, em ruína. Em 1930 deu-se o roubo da canaria dos órgãos. Em 1994, no contexto da recuperação do Mosteiro, o órgão foi alvo de uma intervenção ao nível do suporte e do revestimento cromático. Posteriormente, todas as peças constituintes da máquina, bem como alguns elementos com talha pertencentes à caixa, foram desmontados por uma empresa da especialidade, tendo então sido feito um inventário e um levantamento rigoroso das existências. No âmbito da presente recuperação, o estudo dos elementos do instrumento, cuja construção está documentada nos Estados de Pombeiro, relatórios trienais elaborados pelos respectivos Abades, relativos ao triénio de 1764-1767, permitiu conhecer a autoria e a composição de registos e comprovar que, apesar da deterioração, se conservavam elementos mecânicos. Procedeu-se ao estudo minucioso de outros órgãos do autor para replicar a tubagem segundo os mesmos parâmetros de construção, e procedeu-se a uma análise exaustiva do material dos escassos tubos preservados. Tudo isto, em conjunto com a harmonização posterior, permitiu recuperar não apenas a sua materialidade mas também a sua particular sonoridade, que em última instância é o elemento patrimonial mais importante a conservar no restauro de um órgão. O Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro está incluído no projecto turístico-cultural Rota do Românico, gerido pela Associação de Municípios do Vale do Sousa (VALSOUSA). Este projecto está ancorado num conjunto de 58 monumentos de grande valor e de excepcionais particularidades. Esta Rota pretende assumir um papel de excelência no âmbito do turismo cultural e paisagístico, capaz de posicionar a região como um destino de referência do românico, estilo arquitectónico que perdurou entre os séculos XI e XIV. A Direcção-Geral de Cultura do Norte, organismo que tutela o Mosteiro de Pombeiro, considera que as igrejas podem também desempenhar um papel cada vez mais reforçado no domínio da activação cultural da região, estando-se a fazer, por toda a região norte, um grande esforço e revitalização de órgãos de tubos em várias estruturas patrimoniais, desde Trás-os-Montes ao Minho, passando pelo Douro Litoral. Este esforço vai permitir criar pequenos ou grandes circuitos de concertos mediante as especificidades de cada tipo de órgão, sendo possível, desta maneira, uma rentabilização de recursos financeiros e de um conjunto de músicos que possam vir, por exemplo, de Itália, França, Alemanha, ou mesmo portugueses, e um enriquecimento cultural da oferta de toda a região. Este importante restauro, um anseio antigo dos felgueirenses, vem ainda valorizar a magnífica igreja monástica do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, sem dúvida, um dos mais importantes edifícios religiosos de Portugal, testemunha de desvairados gostos e variados estilos desde o período medieval, românico-gótico ao barroco. A igreja de Pombeiro pode mesmo classificar-se como a jóia da arte de Fr. José de Santo António Ferreira Vilaça – “das obras que tenho feito, a milhor” – como ele próprio diz. A inauguração da recuperação do órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro marca o culminar de uma importante etapa de projectos de recuperação patrimonial e colaboração institucional realizados entre a Associação de Municípios de Vale do Sousa e a Direcção Regional de Cultura do Norte. Com este investimento foi possível devolver à região uma peça sem igual no panorama cultural e patrimonial, que irá permitir ao Mosteiro desenvolver com regularidade a organização de concertos e até integrar ciclos de música sacra da grande região do Porto. O projecto de recuperação do órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro foi um dos oito finalistas do Prémio Internacional AR&PA (Bienal de Restauração e Gestão do Património) de Intervenção no Património Cultural, em Espanha, em Novembro de 2016.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasBussaco candidato a Património Mundial da UNESCO [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] candidatura do “Deserto dos Carmelitas Descalços e Conjunto Edificado do Palace do Bussaco” à classificação de Património Mundial da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) foi apresentada na Bolsa de Turismo de Lisboa no passado dia 16 de Março pelo Presidente da Câmara da Mealhada, Rui Marqueiro, que vaticinou que a elevação do Bussaco a Património Mundial permitirá duplicar em três anos o número de visitantes, registando-se ainda uma subida de 15 por cento no número de alojamentos e 30 por cento em dormidas, garantindo a auto-sustentabilidade financeira da Fundação que gere a Mata Nacional (Fundação Mata do Bussaco). Num espaço de dez anos, a previsão aponta para números ainda mais impressionantes: 300 por cento no número de visitantes (250 mil em 2016), 100 por cento nas dormidas e 50 por cento em alojamentos. Segundo o presidente da Câmara da Mealhada, este é o projecto mais importante da autarquia dada a sua grandiosidade, e o objectivo final deste investimento é fazer da Mata do Buçaco e do concelho um local não só de visita rápida, mas onde os turistas permaneçam mais tempo. Para o autarca, fazer parte da rede de património mundial será um atractivo para chamar pessoas e turistas. O Deserto dos Carmelitas Descalços e Conjunto Edificado do Palace do Bussaco congregam um património de incomensurável valor cultural, histórico, patrimonial, religioso, militar e natural. A Mata Nacional do Bussaco situa-se no extremo noroeste da Serra do Bussaco, no concelho da Mealhada. Com 549 metros de altitude, a sua localização geográfica confere-lhe um microclima muito particular, com temperaturas amenas, elevada precipitação e frequentes nevoeiros matinais, que favorecem uma elevada biodiversidade. Nas encostas expostas a sul sobressai uma vegetação tipicamente mediterrânica e nas encostas mais a norte uma vegetação característica de clima temperado. Com 105 hectares, a Mata Nacional do Bussaco foi plantada pela Ordem dos Carmelitas Descalços no século XVII, encontrando-se delimitada por muros erguidos pela ordem para limitar o acesso. Possui uma das melhores colecções dendrológicas da Europa, com cerca de 250 espécies de árvores e arbustos com exemplares notáveis. É uma das Matas Nacionais mais ricas em património natural, arquitectónico e cultural, podendo ser dividida em quatro unidades de paisagem: Arboreto, Jardins e Vale dos Fetos, Floresta Relíquia e Pinhal do Marquês. A Mata Nacional do Bussaco encerra uma vasta diversidade de animais que, muitas vezes silenciosa, passa despercebida. Rodeada de monoculturas de pinheiro-bravo e eucalipto, a Mata providencia alimento, abrigo e refúgio para mais de centena e meia de espécies de vertebrados, entre as quais, algumas de grande valor conservacionista, como endemismos ibéricos ou espécies protegidas. A Fundação Mata do Buçaco (FMB) tem à disposição do público uma oferta base de visitas e trilhos temáticos, com percursos distintos orientados por monitores da Fundação. São quatro os trilhos que podem ser percorridos: Trilho Floresta Relíquia, Trilho Militar, Trilho Via-sacra, Trilho da Água. As visitas são orientadas por monitores da Fundação e disponíveis em português, inglês, espanhol e francês. Actualmente classificado como Imóvel de Interesse Público, o conjunto monumental do Bussaco apresenta um núcleo central formado pelo Palace Hotel do Bussaco (instalado desde 1917 num pavilhão de caça dos últimos reis de Portugal) e pelo Convento de Santa Cruz, a que se juntam as ermidas de habitação, as capelas de devoção e os Passos que compõem a Via-Sacra, a Cerca com as Portas, o Museu Militar e o monumento comemorativo da Batalha do Buçaco. O edifício onde se encontra instalado o Palace Hotel foi projectado no último quartel do século XIX pelo arquitecto italiano Luigi Manini, cenógrafo do Teatro Nacional de São Carlos, trazido para Portugal pela Rainha Maria Pia de Sabóia, mulher do Rei D. Luís I. Contou ainda com intervenções, em diferentes fases, dos arquitectos Nicola Bigaglia, Manuel Joaquim Norte Júnior e José Alexandre Soares. Encontra-se classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1996. O edifício, em estilo neo-manuelino, exibe perfis da Torre de Belém lavrados em pedra de Ançã, motivos do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, alguns arabescos e florescências do Convento de Cristo, alegando um gótico florido com episódios românticos em contraste com uma austera severidade monacal. No seu interior, destacam-se notáveis obras de arte de grandes mestres portugueses da época, desde a colecção de painéis de azulejos do mestre Jorge Colaço, evocando a Epopeia dos Descobrimentos Portugueses, nomeadamente Os Lusíadas, os Autos de Gil Vicente e a Guerra Peninsular, graciosas esculturas de António Gonçalves e de Costa Mota, telas de João Vaz ilustrando versos da epopeia marítima de Luís Vaz de Camões, frescos de António Ramalho e pinturas de Carlos Reis. O mobiliário inclui peças portuguesas, indo-portuguesas e chinesas, realçadas por faustosas tapeçarias. Destaque ainda para o tecto mourisco, o notável soalho executado com madeiras exóticas e a galeria real. Os jardins e parque envolvente, o Convento de Santa Cruz do Buçaco, o Deserto monacal, o Sacromonte simbolizando Jerusalém e a paixão de Cristo, com os seus passos da Via Sacra, a Cruz Alta, as inúmeras ermidas e capelas, constituem o mais vasto conjunto arquitectónico edificado pela Ordem dos Carmelitas Descalços; o Vale dos Fetos e seus lagos, a Fonte Fria com a cascata artificial, de forte influência italiana pela mão de Maria Pia, e os miradouros românticos, são outras atracções. Complementarmente, o Museu Militar do Buçaco convida a uma incursão no historial da Guerra Peninsular, com destaque para a batalha do Bussaco na qual, em 1810, as tropas anglo-lusas, lideradas pelo Duque de Wellington, derrotaram o exército napoleónico. A empresa que gere a candidatura da Mata situada no concelho da Mealhada destaca vantagens de quatro tipos na classificação como Património Mundial da UNESCO: demográficas, ambientais, socioeconómicas e turísticas. O aumento de visitantes é o impacto mais evidente, seguindo-se a “geração de valor identitário” das populações à volta da Mata e o crescimento da mobilidade e envolvimento das comunidades locais no eixo Luso-Buçaco-Mealhada. As vantagens ambientais passam pelo aumento da capacidade de preservação da riqueza florestal dos 105 hectares da Mata, pelo reforço das iniciativas de investigação, por uma maior capacidade na gestão dos recursos hídricos locais e pela potenciação da consciencialização ambiental. No processo de candidatura, é ainda destacada a capacidade de atracção que a Mata constituirá para a região, gerando riqueza através do consumo de produtos locais, fixando jovens com formação académica e profissional especializada e atraindo novos residentes e empreendedores. Por outro lado, a distinção da UNESCO vai contribuir para reforçar a posição da entidade regional Turismo Centro de Portugal, que hoje já conta com Coimbra, Batalha, Alcobaça e Tomar como membros da lista de Património Mundial da Humanidade. Estes tesouros culturais incluem o conjunto Universidade de Coimbra -Alta e Sofia, o Mosteiro da Batalha, o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Cristo, em Tomar. A autarquia da Mealhada é actualmente o principal sustento financeiro da Fundação Mata do Buçaco, que mantém o seu orçamento equilibrado através das receitas de bilheteira e do financiamento comunitário de projectos de requalificação do património e espaço arborizado. As regras de candidatura a património mundial da UNESCO obrigam à criação de uma comissão que avalie o conhecimento e os projectos da Fundação Mata do Buçaco, estrutura que, segundo o seu Presidente, António Gravato, deverá ser criada em Julho e que envolverá as várias entidades que estão presentes no Conselho Consultivo da FMB. Apesar do lançamento da candidatura a Património Mundial, a Mata do Buçaco continua a aguardar a aprovação do diploma de elevação a Monumento Nacional, que ficou pronto ainda durante a passagem de João Soares pelo Ministério da Cultura e que aguarda homologação em Conselho de Ministros, mas já se encontra inscrita, desde 2004, numa lista nominativa da UNESCO para efeitos de candidatura a património mundial. Em Junho de 2015, a FMB e a Câmara da Mealhada anunciaram que iriam aproveitar os fundos comunitários do Quadro Portugal 2020 para recuperar e restaurar o património edificado da mata nacional com a intenção de preparar a candidatura a património mundial da UNESCO, que agora foi apresentada. De acordo com estudos existentes, a execução desses projectos terá um custo a rondar os 9 milhões de euros e o Programa Operacional do Centro obriga a entidade a assumir os encargos da componente nacional do projecto numa percentagem de 15% do valor global, verba essa que será assumida pela autarquia da Mealhada. Na altura, o presidente da FMB, frisou que as intervenções prioritárias serão no Convento de Santa Cruz (2,2 milhões) e na Via Sacra (1,7 milhões), confirmando ainda a conclusão do Plano de Gestão Florestal, fundamental para a elegibilidade das candidaturas.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasBotticelli reimaginado no Victoria and Albert Museum [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]extraordinária visão artística de Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi, muito melhor conhecido como Sandro Boticelli, foi injustamente negligenciada durante três séculos antes de ser redescoberta no séc. XIX. Desde aí, o pintor italiano tem sido considerado um dos artistas mais importantes de hoje, cuja imagética do séc. XV ditou os padrões das interpretações da beleza clássica e penetrou em todas as esferas da vida contemporânea. Como tal, influenciou e inspirou um grande número de artistas e designers, que responderam ao notável legado eterno do artista, reimaginando Boticelli. Mais de 50 obras originais de Boticelli, e cerca de 100 criadas por talentos ao longo de 500 anos estão agora em exibição no Museu Victoria and Albert em Londres, numa exposição que representa uma homenagem incrível em todos os sentidos da palavra. Botticelli Reimagined (Boticelli Reimaginado), a maior exposição do artista no Reino Unido desde 1930, visa demonstrar como a sua imagética icónica penetrou e se fixou permanentemente na memória colectiva da sociedade e nos seus aspectos visuais. Mostra a arte de Boticelli como um fenómeno de design que se tornou parte integrante de tantas obras de arte desde a sua morte em 1510. Artistas como Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones, William Morris, René Magritte, Elsa Schiaparelli, Andy Warhol e Cindy Sherman exibem a suas próprias reinterpretações da Renascença de Boticelli, acrescentando-lhe o reflexo dos tempos em que foram criadas, através de obras de pintura, moda, cinema, desenho, fotografia, tapeçaria, escultura e gravura. A exposição esta dividida em três secções principais: “Gobal, Moderno, Contemporâneo”, que mostra como a imagística de Boticelli alcançou o nível actual de aclamação, é dominada por umas das obras mais famosas de Boticelli, O Nascimento de Vénus (de meados da década de 1480). A famosa imagem de uma Vénus emergindo de uma concha à beira mar (que não pode deixar a sua exibição permanente na Galeria Uffizi em Florença), tem sido revisitada e reimaginada por uma série de artistas contemporâneos, como David LaChapelle, em Renascimento de Vénus (2009), na qual aplicou a sua imagem de marca, a saturação e a superficialidade, ou Rineke Dijkstra e os seus Beach Portraits de 1992. Detalhes de Pinturas da Renascença (Sandro Boticelli, Nascimento de Vénus, 1482) (1984) de Andy Warhol acomoda o rosto e o cabelo solto do ícone de Boticelli no seu estilo liso e palete ousada, enquanto Vénus Segundo Boticelli (2008) de Yin Xin reinterpreta Vénus com uma aparência chinesa. A influência de Boticelli no cinema inclui a sequência de Ursula Andress a emergir do mar abraçada a uma concha no filme “Dr. No” (1962) e um excerto do filme “As Aventuras do Barão Munchausen” (1988) no qual Uma Thurman reconstitui O Nascimento de Vénus. Funcionando como os enormes frescos que estudou em Itália, Going Forth by Day de Bill Viola é um ciclo de imagens digitais inspirado nas invenções de Boticelli. Esta secção, entre outras obras, inclui ainda a obra trompe l’oeil de Tamara de Lempicka Painting with Boticelli (1946) que apresenta o pintor com o a chave para a arte, assim como obras chave de Robert Rauschenberg, René Magritte and Maurice Denis. Na secção “Redescoberta”, podem ver-se uma selecção de obras de arte criadas por Edgar Degas, Gustace Moreauand e John Ruskin, entre outros, que traçam o impacto da arte de Boticelli no círculo pré-Rafaelita em medos do séc. XIX. Dante Gabriel Rossetti, John Ruskin e Edward Burne-Jones, todos coleccionaram obras de Boticelli. E a sua estética foi reinterpretada em La Ghirlandata (1873) de Rossetti e em The Mill: Girls Dancing to Music by a River (1870-82) de Burne-Jones. A célebre Primavera do mestre florentino assombra esta secção, como é demonstrado por The Orchard (1890) de William Morris, uma tapeçaria que retrata senhoras medievais num cenário magnânimo, por Flora (1894) de Evelyn De Morgan, ilustrando uma ninfa de flores, e pelo único filme sobrevivente de Isadora Duncan a dançar. Cópias de O Nascimento de Vénus de Edgar Degas e Gustave Moreau (1859) assim como de Duas Mulheres a copiar o fresco de Botticelli de Vénus as Graças (1894) de Etienne Azambre, demonstram a popularidade de copiar a sua obra. A influência europeia de Boticelli é manifesta em pinturas importantes de Jean-Auguste-Dominique Ingres, Arnold Böcklin e Giulio Aristide Sartorio. Finalmente, “Boticelli no seu Próprio Tempo” mostra o artista tanto como um criador extremamente dotado como um designer de génio que dirigiu um atelier extremamente bem sucedido, incluindo a sua única pintura assinada e datada A Natividade Mística (1500), três retratos supostamente da beldade lendária Simonetta Vespucci, e a requintadamente detalhada Pallas e o Centauro (1482), que viaja para Londres pela primeira vez. Um número de variações sobre a temática da Virgem e do Menino em diferentes formatos ilustra a criatividade de Boticelli enquanto designer, enquanto um grupo espectacular do seu raro corpo gráfico, incluindo cinco dos seus desenhos da Divina Comédia de Dante, reflectem a sua técnica como desenhador. A mostra encerra com duas pinturas monumentais de corpo inteiro de Vénus, repetindo a heroína de O Nascimento de Vénus, e ainda o Retrato de Uma Senhora conhecido por Smeralda Bandinelli (c. 1470-5), do V&A, que pertenceu a Rossetti, restaurado especialmente para esta exposição, entre muitas outras obras. A exposição Botticelli Reimagined, em parceria com a Gemäldegalerie – Staatliche Museen zu Berlin e com o patrocínio da Société Générale, está patente no Victoria and Albert Museum em Londres, de 5 de Março a 3 de Julho de 2016.