Ser livre

[dropcap]H[/dropcap]á umas décadas, ser livre era coisa só de revolução. Não se falava de outra coisa. E não se admire o mais blandicioso dos leitores, se o cenário se vier a repetir, pois o diabo à solta é coisa íntima destes pobres mortais que somos todos nós. Mais recentemente, a ideia de que ser livre é, também – dir-se-ia sobretudo – um ofício aplicado de cada pessoa foi-se tornando, a pouco e pouco, permeável na nossa sociedade. Por trás de cada uma destas concepções, que as mentes mais aferradas adoram opor uma à outra, respiram desígnios com tradição e com algum mar ao fundo (nem sempre com a melhor vista para a rebentação, conceda-se).

Neste mês que tem a coloração dos prodígios, o tema apetece. Mas dissertar apetecerá muito menos, até porque as folhas já encheram as árvores da Infante Santo e os sintomas dão-se agora a ver, mais por breves acenos e sinais do que por discursos que ocupariam a parede toda do tempo. Passemos então ao contorcionismo, ou seja: passemos a drapejar alguns dos sintomas. Escolhi três: escravaturas fugazes, famílias empapadas e multidões a eito.

Primeira história: quando alguém adora ser (ou confundir-se com) a linguagem que estudou.

Uma desses ‘bons espíritos’ que coloca likes nas redes sociais antes de ler seja o que for, incluindo estas minhas crónicas (sim, o afecto é o sistema solar inteiro), perguntou-me outro dia: “Do que tratam as tuas crónicas?”. Como bom actor, fingi que nada de anormal se passava da fronteira de Badajoz para cá, e respondi: “Gosto de cogitar sobre o nosso tempo, avançando e recuando como e quando me apetece, e sobretudo sem depender de heróis, ou daquilo que geralmente se designa por formações especializadas (referência a quem diplomado em X apenas fala de X ou, pelo menos, invariavelmente com o filtro de X, sem outros esforços adjacentes). A pessoa ficou sentida. A psicologia – e a linguagem técnica da psicologia que através dela falava – era a sua casa, isto é: propriedade privada em sentido estrito. Não gostou de perceber que assim era, na sequência do nosso abrasivo diálogo. Mas convenhamos que acontece tanta vez que um discurso (psicológico, filosófico ou de outra área) sobre um tema importante se torna numa verdadeira rebarbadora, por ser construído apenas por ‘palavras de ordem’ que só têm – ou teriam – vida própria no seio da redoma em que (e para que) foram criadas. Como se não se pudesse, de modo desalinhado, indagar o mundo fora desses limites. Como dizia o Jorge Silva Melo no filme ‘Ainda Não Acabámos: Como Se Fosse Uma Carta’ (2016) – “O que interessa é o início do gesto, o gesto a abrir-se”. No entanto, grassa por aí uma infinidade de ‘bons espíritos’ para quem o mundo é uma coisa fechada, feita de concordâncias fictícias e com vista apenas para remições ilusórias. Na realidade, ser-se escravo é, também, permitir que uma linguagem qualquer se sobreponha ao que uma pessoa é, enclausurando-a numa espécie de armário calafetado de onde não se vê sequer o mundo, quanto mais um bom buraco negro.

Segunda história: quando as famílias travam a redescoberta mais íntima da liberdade.

Ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças.

A minha geração passou o tempo todo a rebelar-se contra essa “vaga sagrada que é a família”, expressão utilizada por Marina, uma das personagens que expressamente o repetiu no romance Lusitânia (1980) que Almeida Faria escreveu no final dos anos setenta. Laivos e indícios do Maio de 1968, porventura. Ainda que a família dita tradicional esteja em vias de fanico, falar deste tópico, hoje em dia, é o mesmo que lucubrar sobre os falanstérios de Charles Fourier. De qualquer modo, muito do que separa os dois países onde vivi, o nosso e a Holanda, é neste campo que se encontra. Nas terras de Vermeer, os jovens saem de casa antes dos vinte e o estado há muito que se colou à itinerância e estimula até a procissão. E pode fazê-lo, claro está. Por cá, a saída de casa já está no final dos trinta e, muitas vezes, é coisa que vai para além disso. O itinerário torna-se pegajoso e é evidente que os factores materiais acabam por selar a angústia das longas e traumáticas dependências. Estou em crer que este é um dos factores que mais amarra, em Portugal, as pessoas a formas de liberdade (muitas vezes) apenas abstractas e sem grande saída. O percurso próprio e livre, esse, é sempre o mais complicado.

Terceira história: quando as multidões e as suas furiosas causas ascendem ao vazio.

Perdemos também a liberdade, quando nos deixamos arrastar pelo vórtice, mesmo se as causas forem da maior nobreza. Aconteceu comigo. Há umas semanas, quando o tema da violência doméstica atingiu o clímax mediático, eu achei que o caso da cabeça de uma mulher encontrada na praia de Leça da Palmeira passava todas as marcas. E passava e passa, como é óbvio! Sinceramente indignado, embarquei no jorro e denunciei, dando à estampa um post em conformidade. Há semana e meia, veio a saber-se que o homicídio fora obra de uma outra mulher, devido a uma dívida e não a violência doméstica. Ir no rebanho, ainda que animado pela mais alta graça dos deuses, pode ser ruinoso para a nossa própria liberdade. O ‘Me Too’ e os seus feéricos apoiantes, lá no olimpo da sua infinita ‘magistralidade,’ têm muitas vezes caído nesta armadilha soez. No meu caso, o desacerto é e foi sobretudo da minha consciência e não teve, de certeza, consequências de maior. Seja como for, ser livre implica – deixem-me empregar palavras de Heidegger que não são propriedade privada de ninguém – não estar entregue ao “ente intramundano” e ao vazio que aprisionam e que não permitem “aceder a si mesmo”. Por outras palavras ainda: ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças. Jogo complexo, é certo, mas o único em que vale mesmo a pena acreditar (até porque um clímax mediático não é, na larga maioria das vezes, um clímax efectivo e real).

18 Abr 2019

Os bugs da maré ansiosa

[dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman).

Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas).

A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo.

Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas:

1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares.
2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares.
3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares.
4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares.
5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares.

Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes.

Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á.

Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*.

Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou.


*Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999.
*Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016.
*Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.

11 Abr 2019

Pressagiar catástrofes com amor

[dropcap]É[/dropcap] conhecido o apego romântico pelas ruínas que fez escola a partir do primeiro terço do século XVIII. Houve na época – e um pouco mais tarde – quem sacralizasse e até quem forjasse ruínas. William Gilpin (1724-1804), amante deste tipo de poética, chegou a propor a destruição parcial de algumas villas de Palladio para que o gozo do “laconismo do génio” se tornasse possível. No final desse século, o círculo dos românticos de Jena, nomeadamente Schlegel e Novalis, também não escondeu a paixão por uma estética do inacabado. Este último traduziu o encanto pelo escorço através da fórmula: “devolver ao finito uma aparência infinita”.

Nestes casos de admiração pelo não acabado, pelo informe e pelo puro fragmento está em causa aquilo que, de modos muito diversos, Freud e Agamben viriam a designar por fetichismo, ou seja, a substituição de um todo (de um corpo) por algo que o representasse com o intuito de o tornar presente e, ao mesmo tempo, de o ofuscar (em Delfos, vinte e tal séculos antes, o oráculo não fazia outra coisa). O fetichismo faz parte da fantasia com que se imagina um vaivém regular entre um objecto que se deseja e um (efabulado e bem tratado) objecto interposto que o prefigura. A publicidade, sobretudo depois dos anos cinquenta, aprendeu e interiorizou muito bem esta lição (percebendo que as ruínas também implicam a consciência de um tempo que é humano e que, portanto, não nos cai de cima, desamparado, vindo de uma qualquer graça divina).

Em 1765, o pintor Hubert Robert regressou a Paris, após uma estadia em Roma – tinha então pouco mais de trinta anos -, e viu-se subitamente recebido em festa. Os seus arcos de triunfo cobertos de ervas daninhas e os seus pórticos desabados mereceram grande aplauso. Diderot, que foi pioneiro no que se viria a chamar ‘crítica de arte’ (ao escrever sobre os Salões do Louvre), foi um dos entusiastas de Robert, tendo considerado que os seus quadros suscitavam um estranho efeito de “doce melancolia”: “Viramo-nos para nós próprios, antecipamos os efeitos da passagem do tempo… e eis assim consagrada a poética das ruínas”.

Congelemos as palavras de Diderot e reatemos a conta-corrente do nosso tempo: a humanidade ‘despeja’ todos os dias na rede um número incalculável de palavras, grafos, algarismos, pasmos, idiotias, seja o que for, enfim, que advenha do acto de teclar (e de outros tipos de inscrição que nos são familiares). Dessa quantidade de material pouco sobra ou tem utilidade uns dias depois. O que se actualiza, quase logo se desactualiza. O mais curioso é que a cultura da rede só dá realce – e em jeito de compulsão – ao ‘agora’. O que implica que se está a formar no planeta um arquivo morto, ou, se se preferir, uma imensa amálgama de ruínas. Gilpin e Robert dariam saltos de gáudio por cima das fogueiras de Santo António.

É possível que um ‘renascer’ da antiga tradição da poética das ruínas venha, um dia, a revelar o âmago da época em que vivemos, pois parte dela é diariamente submergida e raramente sujeita a uma reciclagem, digamos, definitiva. Talvez o teor desta futura arqueologia venha a conhecer ressonâncias parecidas com o teor dos plásticos que devoram oceanos e que estão hoje a ameaçar as espécies marinhas. De qualquer modo, o papel das ruínas sempre foi o de pressagiar a catástrofe, enquanto parte intrínseca do fôlego moderno. Mesmo quando elas são invisíveis e aparentemente pouco ruidosas, como é o caso dos destroços, dos resíduos e de todo o tipo de restos (mais ou menos) mortais que são gerados pela rede.

4 Abr 2019

Do que andamos a fazer neste planeta

[dropcap]A[/dropcap] tradição do policial é a tradição da boa gestão dos “saberes”. Há diversas receitas, todas elas abertas a grande inventividade, mas o nó górdio da teia é sempre o mesmo: o leitor só pode – ou, pelo menos, só deve – saber o que há a saber no final da narrativa. Nem sempre assim foi, apesar de haver quem diga que a Bíblia foi o primeiro grande policial que apareceu no planeta (o argumento é de policial e nem sei como é que Simenon não pôs Maigret a tratar dele: de quem foi a culpa de nós todos, mortais, termos aparecido neste canto do cosmos?).

Na maior parte das narrativas pré-modernas, as ferramentas literárias que todos interiorizámos há muito (complicação, clímax, desenlace, etc.) não passavam de coisas de extra-terrestre. As narrativas do mundo antigo e medieval eram crípticas por natureza, ambíguas, construídas de propósito para que algo de insondável se pudesse, aqui e ali, vir a revelar. Como se um segredo governasse o mundo e fosse missão do homem interpretá-lo.

O romance moderno que foi aprendendo a libertar as urdiduras com Cervantes, Diderot ou Stern e que, depois, as vincou com Stendhal, Tolstoi ou Eça, passou a democratizar o segredo: com a devida fleuma, passaram-se a conceder ingredientes ao leitor para que, ao longo do enredo, ele pudesse conjecturar e até imaginar esse segredo que, no final, e após situações mais ou menos extremadas e polidas, lhe era dado. Geralmente, não do modo como o esperava, mas tal como o desejaria. Sim: o desejo é mais forte do que as promessas de redenção.

Antes destes arrufos modernos e frágeis, tudo era realmente diferente. Tomemos como exemplo os Portenta, também considerados presságios. No fundo, eram imagens acopladas a mensagens literárias enigmáticas que, até ao limiar de setecentos, estavam associadas aos defeitos inusitados de parto, dissociando-se da maioria das monstruosidades que correspondiam sobretudo a criaturas que, segundo as mais distintas lendas, povoavam a periferia distante e desconhecida do globo.

Estamos a falar de um mundo tal como Richard of Haldingham o desenhou no século XIII, de acordo com o tradicional modelo T-O (o chamado mapa de Hereford). Ao centro do esquema de cor dourada, por cima do traço horizontal da letra T, surgia a Ásia e, por baixo desse mesmo traço, à esquerda, surgia o Nilo e, à direita, o Dom. Por sua vez, à esquerda e à direita do traço vertical da letra T (o Mediterrâneo), aparecia a Europa e a África, respectivamente. À volta do T, duas enormes circunferências davam a ver, não o que poderíamos pensar ser a atmosfera, mas sim oceano, apenas oceano sem fim. É para além desse desconhecido e vasto oceano periférico que, segundo diversas tradições, o mundo andava povoado… por criaturas monstruosas.

Para Santo Agostinho, a natureza estava, de facto, platonicamente dividida em duas partes: a da ordem e visível, que permitia ler os sinais da divindade, e a do inesperado e do incompreensível (ou do maravilhoso) que tinha uma única finalidade: mostrar aos humanos que existem diversos graus do “saber” que só a deus dizem respeito. Não é por acaso que, ainda no século XVI, a palavra curiositas* remetia, em grande medida, para um certo tom nada cordato de heresia.

Nesta história sem fim que é a história da gestão dos saberes que pululam nos relatos da tradição literária (e imagética), o segredo foi quase sempre um presente adiado. Foi-o nas versões medievais da carta do Preste João das Índias, nas imagens de Ravenna (1557), de Boaistuau (1560) e em muitas das que aparecem na Chronica mundi de Schedel (1493). O segredo só viria a ser devolvido ao comum dos mortais, quando, na alvorada do policial e do gótico (lembro-me de Os Crimes Da Rue Morgue de Poe), os crimes em ambiente lúgubre, as tramas em atmosfera soturna e nocturna e os novos labirintos urbanos passaram a conviver com um novo formato de enredo que passou a perseguir um objectivo claro: revelar, apenas no desenlace, um segredo. Mas revelá-lo. Mesmo se fosse imaculado. Mesmo que fosse comprazidamente subentendido. Entre nós, já sem falar dos segredos da (malvada) insolvência dos bancos, nem o de Fátima resistiu.

Faltará só explicar o que andamos a fazer neste planeta.


[1] Edward Peters, Libertas Inquirendi and the Vitium Curiositas in Medieval Thought in La notion de liberté au Moyen Age – Islam, Byzance, Occident, Société d´Édition Les Belles Lettres, Paris, 1985, pp. 89-98 (91).

28 Mar 2019

Um apocalipse para levar a brincar

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho amigos que têm ídolos e muitas vezes nem fazem ideia de que assim é. Numa esfera mais alargada, conheço muitíssimas pessoas que fazem depender grande parte das suas vidas de heróis. Podem esses heróis ser poetas, pensadores, pedagogos, filósofos, comunicólogos, antepassados ou até silhuetas virtuais (personagens, actores, bandas, cantores e outros seres a partir dos quais se imaginam virtudes, dotes e dons). Nem sei se os humanos conseguirão viver de outro modo, identificando-se e projectando-se, ao mesmo tempo, em existências que lhes são (em princípio) exteriores.

Na nossa época e em partes significativas do planeta, o facilitismo paródico-lúdico aliado a uma disposição desagregadora e niilista governa a nossa ‘intelligentsia’. Este tipo de poder – que funciona como um polvo de muitos tentáculos e origens – exerce-se sobretudo num movimento que oscila entre o ‘dogma’ das redes sociais (um horizonte imediato que se desactualiza logo que se actualiza) e o discurso fantasmático (o que aparece na rede – e nos rumores mediáticos – surge como imagem de imagem quase sem contexto). Um tal ziguezague social dá-se na perfeição com o reducionismo e com os limites suscitados pelas deusificações, pelos ídolos e pelo culto secreto ou desabrido de heróis.

Os autores do iluminismo vangloriaram-se com a invenção da ciência histórica, entendendo-a como um mandamento que fazia preceder o seu tempo (definido como racional e virado para o que viria a designar-se, já no século XIX, por “progresso”) de uma idade heróica e de uma outra original e selvagem (a pré-história). Essa definição de contemporaneidade baseava-se, pois, na oposição entre uma racionalidade que naquele tempo se via ao espelho como uma evidência e o culto dos heróis que teria ficado irremediavelmente para trás. Como se percebe, as utopias alimentam-se das euforias do imediato, mas, no reverso (e nas suas ressacas históricas), tornam-se distópicas porque inevitavelmente falham. O que talvez melhor caracterizará uma época são os anseios e os projectos que foram sonhados, mas que acabariam por nunca se vir a realizar (veja-se o caso dos muitos ‘plots’ da guerra fria, por exemplo, que tão bem definem a segunda metade do século XX).

Apesar de quase trezentos anos de fôlego moderno, para além das grandes guerras e dos holocaustos do século XX (não sei, sinceramente, se haverá um “para além do” holocausto), a nossa era, que se pode definir como um cocktail em que se misturam as ‘quêtes’ babyboomers, o ‘pós-moderno’ dos millenials e o aquário em rede da geração Z, criou as condições ideais para um reatar do culto dos heróis. Algo que seria muito difícil de prever há algumas décadas, quando a ‘intelligentsia’ ainda era movida a vapor por “intelectuais”, ideólogos e por outros arautos dos grandes “sujeitos sociais”. Moral da história: o que cai por terra, cai sem qualquer compaixão. E o que aparece em cena subitamente, como se fosse uma aura que viesse do nada, aparece sem quaisquer explicações. Eis o que melhor caracteriza o que é, hoje em dia, um “ídolo” (traduzido cada vez mais na linguagem corrente de um modo falacioso, através da palavra “ícone” e, ainda por cima, com a alarvidade de ser pronunciada como se não fosse uma esdrúxula). Sinal dos tempos.

Quando eu era criança, os heróis corriam na BD, nos campos de futebol, numa ou noutra música e sobretudo nos livros de história. Na nossa era, os heróis começam no quarto entre mochilas, bonecos, carrinhos, penicos e um outro livro juvenil ou infantil caído no chão. É nos terminais tecnológicos que aparecem os primeiros heróis, os chamados youtubers que contam com vários milhões de subscritores. É o Wuant que brinca ao titanic, é o Feromonas que brinca com pacotes de leite aos gritinhos, é o Dark Frame que se dá a ver a dançar, enquanto visiona jogos de vídeo violentos, e é Sir Kazzio que aparece numa espécie de cabeleireiro com bolos e  chantili a cobrir-lhe a cabeça. O registo do cómico está ao nível dos concursos de peidos que eu fazia com o meu irmão, quando tinha cinco ou seis anos de idade. Não tenho nada  (dogmaticamente falando) contra a infantilização da sociedade. Seja como for, aqui corre dinheiro, muito dinheiro, e o modelo tende a exportar-se para outros patamares. As praxes nas universidades, por exemplo, são parentes íntimas desta espectacularização da idiotice radical e, em muitos casos, ameaçam durar quase um ano inteiro. Há meio século, as crianças eram vestidas (ou fardadas) como pequenos adultos; hoje a orwellização tecnológica está eufórica com este estado de perdição da infantilidade. Faz muito, mesmo muito jeitinho às receitas (de alguns). A vida ainda se há-de transformar num videojogo. Coisa lúdica. Um apocalipse para levar a brincar.

21 Mar 2019

Geração Z: inocências e tentações

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras são nuvens que desarrumam o pano de fundo. Ao trabalhar com elas, talvez o mais importante seja a arte de saber mergulhar na própria desarrumação, do mesmo modo que, ao entrar na rebentação das ondas, há sempre um caudal que nos arrasta e um outro que nos faz seguir e olhar em frente. D. de Kerckhove escreveu há duas décadas uma frase lapidar sobre esta entrada no oceano: “Os gregos inventaram o teatro para recuperar a proximidade que tinha sido estilhaçada pelo alfabeto”*. Por outras palavras: as escritas clássicas, todas elas (incluindo as escritas do corpo), ensinaram-nos a separar as águas e a cativar, ao mesmo tempo, a distância e a solidão.

Ao invés, as escritas digitais deixaram de desarrumar, pois elas são o próprio pano de fundo: céu táctil onde deslizam os dedos e a mente no seu todo sem grande preocupação de ‘inscrever’ e sobretudo de singularizar, mas antes de reduplicar formatos que são já tendencialmente dados em fluxo e/ou gerados pelos sistemas algorítmicos. Uma revolução neural que domestica (cada vez mais) os dispositivos na sua relação com o corpo, quase inviabilizando aquela ideia milenar de que os humanos, sendo sociais, sabem estar a sós consigo mesmos.

Esta impossibilidade de se ser a sós no quotidiano do mundo digital (e de entrever uma distância, ainda que ilusória, entre si e o mundo – apanágio de ouro dos modernos) parece aflitiva. Seja como for, estou certo de que ela se irá tornar de tal modo corrente que a própria percepção da aflição (que hoje alimentamos) irá evoluir muito rapidamente para uma nova noção de normalidade. Questão de tempo.

Em O Fantasma sai de cena (2007), P. Roth atirou o seu protagonista de maneira abrupta para as ruas de Nova Iorque, dando assim conta da estranheza (profunda) que era ver toda aquela gente agarrada ao novo suplemento da mente chamado “smartphone”. Ninguém era capaz de estar consigo mesmo: ou se projectavam nas imagens digitais, ou falavam com outrem. Fluxo puro. E isto aconteceu há apenas uma dúzia de anos.

Era a fase do pasmo. Uma década depois, vemo-nos a cair (e com prazer, curiosamente) para dentro do aquário digital de tal modo que quase deixou de existir um espaço ‘de fora’ (que permitisse observar com distância, tal como acontecia no romance do Roth) e um espaço ‘de dentro’. Todo o mundo como que submergiu e se transformou na água do fantasmático agora-já-aqui, o novo deus sem forma e movido pelo espírito santo da IA. A geração pós-millenial – a geração Z – encarna como ninguém este aquário supremo e, para ela, a grande aflição seria poder imaginar um mundo sem os dispositivos que permitissem a alucinação, mas uma alucinação desprovida das peias, das vanguardas e das rockadas dos avós babyboomers.

Estamos a viver uma (belíssima) transição meteórica de que conhecemos razoavelmente os pontos (plurais) de partida, mas de que temos particular dificuldade em perceber a natureza dos pontos de chegada. Tudo à nossa volta é um indefinido batimento de claras em castelo: uma progressão enigmática ‘in media res’. Dir-se-á que estaremos a viver um novo Iluminismo (no sentido de uma ponte inorgânica entre mundos muito distintos), mas com uma carga cinética, convulsiva e de velocidade tal que supera todas as capacidades de o poder imobilizar, para depois sobre ele reflectir. Não, não haverá mais Kants.

Giambattista Vico em Scienza Nuova (1725) dividiu a humanidade em três grandes fases e na primeira os seres humanos eram vistos como meras “substâncias animadas por deuses”.  Nos dias de hoje e nos tempos que se seguirão, estou em crer que este tipo de passividade animada (agora pelas divindades da virtualidade) se irá expandir cada vez mais. Novos tipos de patologias e novas formas de propriocepção estarão a caminho. Uma nova antropologia e uma nova cultura que abandonará as linguagens com que aprendemos a trocar o desconhecido pelo conhecido e a significar a experiência estarão a caminho.

Este suave vórtice que se prenuncia tem um lado virtuoso que é o de perceber, até que ponto, tudo o que a espécie imaginou e desejou, ao longo de milénios (nos mitos, na literatura, no cinema, etc.), corresponderá a algo, ainda que em parte, concretizável. Os desejos potenciais do humano, pondo de lado a imortalidade (embora esteja hoje em voga o novo mito da juventude eterna; basta espreitar para dentro dos ginásios para o compreender), irão debater-se com novos e inovadores patamares de ‘realidade’. Veremos o que resultará desses novos interfaces. Provavelmente já não estaremos neste planeta para o aferir e verificar em pleno. Mas deverá ser um exercício fascinante. Assim será, pelo menos para quem, talvez de forma inocente, ainda cultiva alguns restos de optimismo. É o meu caso.


*Kerckhove,D., A Expo e os princípios @ (Entrevista) Indy – O Independente, Lisboa,18-09-1998, pp. 13.17.

14 Mar 2019

A tasquinha do senhor Osório

[dropcap]N[/dropcap]o início do século, Peter Sloterdijk, no seu Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária*, considerou que os media e especialmente a televisão constituíam a última técnica de “meditação da humanidade”, depois da era das grandes receitas (ideologias) e das “religiões regionais”. Deste modo, a televisão teria sido a primeira das redenções a libertar verdadeiramente os humanos. Uma teoria extraordinária que encontra nos fluxos suscitados pelos plasmas e pela pele dos monitores uma paz que teria sido apenas sonhada pelas muitas espiritualidades das escatologias. Leiamos o texto original:

(finalmente), “na televisão, a história da redenção da humanidade chega ao seu termo” (…) “a televisão informa-nos sobre o facto de, no fundo, tudo ser apenas imagens” (…) “Qual a diferença entre um televisor ligado e um televisor desligado?” (…) “não há diferença nenhuma, é só ritmo, tam-tam, som-pausa, ligado-desligado, é o mundo tal como o conhecemos. Olhar, não olhar, acontecimento, não acontecimento, imagens, não imagens” (…) “A televisão é a última técnica de meditação da humanidade na era que se segue às altas religiões regionais” (…) “Este (redentor), a televisão, é o primeiro que nos deixa realmente livres” (…) “os indivíduos querem que os deixem em paz; e esta tranquilidade é uma coisa que agora podem ter de uma vez por todas”.

Quase duas décadas depois, há quem pense que as coisas se alteraram radicalmente. O argumento é do tipo self-service. Ou seja: dantes as televisões providenciavam uma ementa certa e os espectadores, na sua passividade, podiam encontrar um lugar para ancorar o corpo e deixar-se ir; enquanto hoje os canais de ‘streaming’, fugindo à programação tradicional, deixam ao utilizador a escolha livre do que ver e quando ver. Se se mostrar a dimensão do self-service, o argumento parece até um pouco convicente (Netflix, Amazon Prime Video, Nos Play, Filmin, Hulu, Fox Play, Mubi, YouTube premium, Meo go, Disney+ e mesmo a RTP Play).

No entanto, pensando bem, aquilo que mudou foi a pilotagem: passou-se da fase do piloto automático, baseada numa cronologia que visava essencialmente o serão, para uma aparente auto-gestão (lembro-me, em criança, de que havia um dia para o teatro, outro para um filme, outro para as “variedades”, etc, e, mais tarde, logo a seguir à revolução, veio a telenovela e depois os concursos enquanto matrizes orientadoras do tempo televisivo). A chegada das televisões privadas e depois do cabo dividiram as águas e compartimentaram os temas e as escolhas possíveis. A era do self-service viria a entregar, por sua vez, o leme e a pilotagem a quem “consome” (cito o verbo “consumir” a partir do vocabulário da actual ministra da cultura, pois temos que ir aprendendo alguma coisa ao longo na vida).

Esta entrega parece semelhante a outras que têm ganho ‘fôlego viral’ nos últimos anos: hipermercados em vez de mercearias, redes sociais e informação cruzada na rede em vez de jornais impressos e telejornais a horas certas, trivagos e congéneres em vez de agências de viagens; uber, chauffeur, cabify ou taxify em vez de táxis; formações em rede em vez de ensino por correspondência, compra online de livros em vez de encomenda nas livrarias clássicas, etc, etc. Na realidade, do hipermercado posso trazer o mesmo sabonete, mas a possibilidade de escolha é incomparável; da rede posso trazer as mesmas notícias, pois o aumento de informação não se traduz pelo aumento da tipologia de acontecimentos que ocorrem no mundo, mas a rapidez de acesso é incomparável; das viagens posso trazer as mesmas paisagens, mas com mais agilidade nos ingressos; das formações posso recolher idênticos frutos, mas a possibilidade de diálogo ininterrupto é incomparável; das livrarias online posso encomendar qualquer obra sem ter que depender das existências e dos stocks locais.

No caso da televisão, parece-me óbvio que continuamos ‘sempre a ver o mesmo filme’. Como escreveu Sloterdijk, estamos inevitavelmente a maturar “o mesmo ritmo, o mesmo tam-tam, o mesmo som-pausa”. É claro que me refiro àquele formato de sequência (ou de ‘filme perceptivo’) que a escritora Patrícia Melo caracterizou, um dia, como “transcendência fácil”. Recorrendo a linguagem de treinador de futebol: liga-se o chip, esticam-se as pernas, chupa-se uma pipoca e com um olho na acção e outro no facebook, passa-se um tempo do diabo. Umberto Eco na sua generosidade apocalíptica e integrada pousou a mão na consciência e disse que não havia mal nenhum em um gajo roncar a ver Visconti ou elevar o pingarelho glosando as entrevistas de Cristina Ferreira. As coisas convivem melhor do que se pensa. Mas não deixa de ser verdade que uma pessoa atravessa o self-service de lés a lés e dá sempre com os mesmos guerreiros a disparar bala, com os mesmos cadáveres fumegantes, com os mesmos polícias jovens e imortais, com os mesmos hospitais melosos, com os mesmos efeitos especiais a excitar a medula e com a mesma sonoridade tipo cuduro para bandarilhar a delicadeza dos tímpanos. Uma pessoa liga o cartão de crédito ao streaming – a tal “outra forma de ver televisão” – e sai do outro lado do self-service em forma de apagão.

Poderá voltar a questionar-se, por fim: mas o que muda realmente, se e quando salto da uber para o glovo e do trivago para o airbnb, antes de ligar o computador para aterrar na netflix e ficar impermeabilizado durante uma série de horas? O que muda é tão-só a perspectiva com que a ilusão toma conta de cada um de nós. Ao fim e ao cabo, a ilusão do tempo ‘que não era o meu’ transformou-se na ilusão do tempo que ‘passou a ser feito só para mim e à minha medida’. É realmente diferente conviver com um tempo que recebemos do ‘altíssimo’ e convivermos, depois, com um outro tempo que faz de nós a simulação do próprio ‘altíssimo’. No entanto, a carne é fraca em ambos os casos, pois, como escreveu Sloterdijk, “os indivíduos querem que os deixem em paz; e esta tranquilidade é uma coisa que agora podem ter de uma vez por todas”. Seja no self-service ou seja na tasquinha do senhor Osório que, nos tempos livres, continua a ser um apaixonado pelos remansos do velho cinematógrafo, pelas entranhas do crackdown 3 e pelo afã dos ‘colporteurs’ da lanterna mágica.


*Peter Sloterdijk. Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária. Lisboa: Fenda, 2001, p. 132.

7 Mar 2019

Manuela Ribeiro e a medula do tempo

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xistem liturgias: são escritas que irrompem do gelo do quotidiano, suspendendo-o. Por vezes, detêm a locomoção do ramerrame mais trivial, refreiam o trânsito das palavras e disfarçam-se daqueles fossos de orquestra onde se imaginam melopeias ainda por compor. São instantes movidos pela intensidade, podem durar anos, mas passam-se apenas em horas. O jogo dos dias esfuma-se nos raros momentos em que essas florestas compactas se estendem na palma da mão e nos brindam. E nos surpreendem.

Na passada sexta-feira, Hélia Correia afirmava, nas Correntes d´Escritas, que o entusiasmo é um dom que nos é dado pelo deus. A frase (e os seus constituintes, um a um) deverá ser entendida como um ser vivo que se move num território de encantamento e que habitará apenas no ‘passado do passado’: a vorverganggenheit, tal como Blumenberg soletraria. Esse território, que é a ‘Grécia da Hélia’, consiste num mundo líquido que precede o lajeado do pensamento organizado, mesmo aquele que, na etimologia de Platão (no diálogo ‘Íon’), faz equivaler a palavra a “ser tomado pelo deus” (“En+theos” – com a devida assessoria do meu mano António de Castro Caeiro). De lá se resgata a água dos rios perdidos, de lá afloram novos rostos e cumplicidades, de lá se conserta até a complacência da perda.

Em vinte anos de Correntes d´Escritas, passei pelo doce labirinto apenas quatro vezes, mas três nos últimos três anos. Em 2017, foi lá que me imaginei a fechar a porta à morte do meu pai (sim, a morte tem portas: condutas que arrastam a imortalidade para aquele tipo de máscaras que se evaporam na face, achincalhando-a). O ano passado, percebi que os amigos de infância se podem engendrar de um âmago para outro. Este ano, confesso que o portento foi mais terreno, mas fez-me confundir a precisão dos teodolitos com a vaga ideia de que o mundo é um guindaste invisível que nos capta, que nos murmura e que nos captura em segredo (João, o Baptista, pregava no deserto, mas era ouvido e era essa a pujança da coisa).

Não me passa pela cabeça sacralizar a literatura e até creio que a sua força, hoje em dia, decorre do estado de nicho (meio exilado e meio desterrado) a que chegou. E concordo, há muitos muitos anos, com a verdade de que a poesia é mesmo a linha da frente. Vou ainda mais longe: estou em crer que o ‘produto livro’ é cada vez mais um lodo cheio de bacilos nefastos. A única coisa que a poesia e a literatura têm em comum com esse lodo é que encarnam num corpo em forma de livro. Por uma questão de nitidez, adoraria que a poesia e a literatura encarnassem noutra configuração e noutros formatos. E que se vendessem, não em livrarias, mas em poerias e em literarias. Mas isso só seria possível numa espécie de ‘Grécia da Hélia’. Ser contemporâneo (mesmo dos mais íntimos) é desafiar as vagas do poente num mesmo arco do tempo. É essa a inevitabilidade da nossa vida, mesmo para os adoradores da pureza que se imaginam no ar, lançados por catapultas.

Após uma semana de Correntes d´Escritas, voltei a perceber que o entusiasmo é realmente um dom. Eu explico: sabemos que a ciência dos dias tem atrelados de todo o tipo e que a maior parte das carruagens se perde pelo caminho. Esta operação, que é a operação de existir, torna-se ainda mais vincada nestas calendas digitais em que o presente insiste em ser uma ‘black box’ que apaga todos os vestígios à sua volta. Pouco sobra. De qualquer modo, é nestas paisagens de quase desolação que, inesperadamente, se erguem as liturgias. São arquipélagos sem oceano à volta: traços salientes no meio da brancura que permitem decifrar tudo o que afinal é branco. Eu explico melhor ainda: descobri um poeta nas Correntes, chama-se José Rui Teixeira e acaba de ser publicado na colecção ‘Elogio da Sombra’, dirigida pelo Valter Hugo Mãe (‘Autópsia’ – poesia reunida). Trata-se de uma poesia que já se domiciliava no ‘passado do passado’, naquele mundo de liquidez que felizmente subsiste para nos tramar as modas e as vogas… e eu é que lhe cheguei já tarde (ora leia-se e releia-se: “O inferno é uma colecção de borboletas,/ onde domestico cruelmente a beleza/ e exercito pacientemente o escrúpulo”).

Descobrir um poeta é também uma metáfora de muitas outras circum-navegações, é claro. Poderia falar, durante horas, de muitos outros que me tocaram especialmente, mas permitam-me a ênfase para o João Rios (‘Reter o amor do gancho do talho’) e para o José Anjos (‘Uma fotografia apontada à cabeça’), ambos editados pela Abysmo. No restante do vasto descobrimento, testemunhei muitas outras vozes e tentações, ao longo da longa semana em que contracenei com as (vigésimas) Correntes d´Escritas. Uma polifonia de fundo para sacudir os dias: foi um prazer ter trabalhado com dezenas de professores bibliotecários ao lado de um equipa de luxo (Ana Margarida de Carvaho, Filipa Melo, Henrique Correia, Isabel Bezelga, Margarida Fonseca Santos e Paulo Faria); foi um prazer ter levado as Sessões Ícone da EC.ON – Escola de Escritas às Correntes d´Escritas e foi ainda um grande prazer ter apresentado um livro (‘Primeira Linha de Fogo’ de Ana Margarida Carvalho) e ter visto um outro meu (‘Ficcionalidades de Prata’) – ambos com a chancela da Nova Mymosa – ser tão bem apresentado por essa alma antiga que é a Marta Bernardes.

As atmosferas perduram bem mais do que os factos, diz-se. Mas não serão elas que conservam a medula do tempo. Quem o faz é, provavelmente, o tal dom de que nos possuímos através do deus que se desoculta, quando menos esperamos. Mas há uma pessoa, por trás dos cenários mais ínvios, que, há anos e anos, mantém um jeito de ligação directa com esta ventura. O seu nome é Manuela Ribeiro.

28 Fev 2019

Ay, Carmela! Ay, Carmela!

[dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que a experiência do mito é a experiência do indubitável. Não lhe atribuir sentido seria insensato e atribuir-lho – como se atribui geralmente às coisas simples – seria redundante. Digo isto porque o mito não é apenas a memória invisível das sociedades, é-o também das comunidades e existências mais insignificantes. Uma evocação familiar como a que se segue (e que teve a sua origem em relatos que me foram amiúde contados durante a infância) partilha o mesmo excesso de sentido que povoa o mito: cria também o seu firmamento próprio por cima do horizonte, deixando em frente um lugar de ouro para que o olhar o possa daí observar e nele infinitamente crer. Passemos então ao coração da história que teve lugar há um século:

Estou a vê-lo já cansado da poeira e do selim da bicicleta, pois há quase uma hora que segue de Évora na direcção da vila do Redondo, corre o ano de 1918 e o armistício de Compiègne que porá fim à Primeira Grande Guerra Mundial ainda está por vir. Traz consigo alguma bagagem e um remoinho de memórias difícil de contar e de conter. Ao fim e ao cabo, antes mesmo de chegar são e salvo a casa, já foi rezada missa pela sua alma e, apenas por sensatez, é que não terá levado a cabo o sonho de fazer uma grande surpresa e… aparecer, sem mais, perante os seus, quando estes já o consideravam a viver noutro mundo.

A aventura tinha começado meses antes, no próprio cais de embarque dessa Lisboa ainda a cheirar a Odes pessoanas e ao fado castiço dos Boqueirões. Por ordens superiores, afastara-se durante algum tempo da azáfama dos dois grandes navios, já de vapores ao rubro e com escadas quase içadas, para ir cambiar dinheiro. De regresso, verificou que apenas o barco reservado à cavalaria permanecia ainda encostado ao cais. O outro, onde devia viajar, deslocara-se, entretanto, na direcção da barra para evitar uma iminente revolta a bordo. Seguir-se-ia a travessia no barco errado, embora, segundo ditam as crónicas, tivesse sido calma e muito mais rápida do que o previsto.

No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que ia do sul de Lille, ocupada pelos alemães, até Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma irremediável.

Na galeria dos feridos, por artes de sortilégio, o destino troca o código das macas e ele acaba por seguir, na sua mudez involuntária, para o hospital dos ingleses. É muito bem tratado nesse território onde o ‘não dito’ supera tudo aquilo que se poderia augurar, ou tão-só dizer. E é apenas quando recupera a lucidez da voz que, finalmente esclarecido o novo sentido dos acasos, ele acaba por regressar aos cuidados, aliás escassos, do exército luso. Durante este tempo todo, em Portugal, é dado como desaparecido, mas, num fim-de-semana de sortilégios (que nunca me foram revelados totalmente), com a preciosa ajuda de um general, consegue finalmente obter a autorização de regresso a casa.

Anda pela Paris de Abel Gance e de Louis Delluc, galanteia uma loura de echarpes magrebinas no consulado português, provavelmente amiga de Colette, desce no Sud Express até à terra que Buñuel ainda não havia trocado pela França e, por fim, reentra no país pobre e sidonista que é o seu. Em Lisboa, decide enviar um telegrama para o Redondo a anunciar que está de volta (ou seja: da morte imaginária para a vida). E de vez. Parte do Terreiro do Paço para Évora e daí, numa bicicleta de que desconheço a origem, atinge, entre negrumes e solilóquios perdidos, a sua vila natal. O feitiço de pródigo andarilho levá-lo-á, não muito tempo depois, a Vila-Viçosa. E é aí que começa parte de uma outra história que é, hoje em dia, também a minha.

Diga-se que este foi – e é ainda – um dos mil enleios aventurosos do único avô que não cheguei a conhecer em vida, de seu nome José Carmelo, primo, entre outros, do tenor e também viajante Tomás Aquino Carmelo Alcaide que, três anos mais tarde, poria igualmente fim à vida militar para abraçar uma singular carreira no mundo da ópera.

21 Fev 2019

A ilusão e as asas da perdiz

[dropcap]A[/dropcap] brincadeira de excelência da minha gata tem o nome dos predadores: coloca as patas da frente em posição de recolher a presa e depois marca os dentes. Não magoa nada, mas passa o tempo nesta ribaldaria. Ela sabe quem é (e ao que vem) e raramente se ilude, mesmo quando anda atrás de um lápis e o coloca em imparável movimento sobre o soalho. Nós, humanos, somos diferentes. Gostamos mais daquilo que não somos e andamos uma vida inteira a tentar perceber quem somos. O desejo profundo de nos iludirmos, o afinco pelo ‘trompe l’oeil’, a entrega àquilo que não somos ficam-se sobretudo a dever ao facto de conhecermos a nossa condição de mortais, facto que inexoravelmente escapa à minha gatinha.

Da ilusão provém quase tudo o que carregamos no nosso marsúpio existencial: deus, cinema, net, televisão, futebol, literatura, games, fantasias, meta-ocorrências e, às vezes, até as amizades. Estas astúcias que adoram misturar ‘aquilo que é’ com ‘aquilo que não é’ fazem os embriões mais profundos da nossa espécie rejubilar. Nascemos convencidos de que uma árvore pode ser uma ideia e de que o bater de asas de uma perdiz pode ser um sinal.

Curiosamente, no mundo pré-moderno, as sociedades viam-se ao espelho através de uma única imagem. As palavras de ordem convergiam e o altar das nações providenciava deveres estritos e claros. A ilusão gravava o rosto do imperador, a crucificação de cristo ou uma imagem da “História” muito bem cimentada e o sentido das coisas ficava assim inscrito. Todos nós provimos deste tipo de mundos. As genealogias ficam registadas na pele. Em criança foi nestas atmosferas que vivi e não foi assim há tanto tempo. Por lá habitava quase tudo o que hoje condenamos e consideramos desprezível, enquanto comunidade.

Nas sociedades abertas da actualidade não há mais espaço para diagnósticos únicos. A visão que uma sociedade tem de si baseia-se em inúmeras imagens não sobreponíveis, por vezes incongruentes, e não numa uniformidade ideal. O que resultará desta liberdade é fabuloso, mas o que decorre da imprecisão remete, por vezes, para o teor da fábula (entendendo-se por fábula uma história possível que apenas existe na minha cabeça em estado volátil, contrapondo-se à ideia de uma narrativa bem definida que poderíamos designar por enredo).

Nesta transição de mundos, a idealidade foi perdendo espaço, mas o mundo da fábula e da errância ganhou terreno (os meus alunos, em fim de licenciatura bolonhesa, mal sabem distinguir a primeira da segunda grande guerra mundial). Em alternativa, também se poderá dizer que a idealidade foi adquirindo novas formas, transpondo-se da imagem única que antes era dada a partir do vértice (damos como exemplo a exposição do mundo português de 1940) para uma espécie de ziguezague, ou de zapping, que tenta preencher os muitos vazios deixados pelo caminho. É por isso que, nas últimas três décadas, surgiram formas de agir totalmente novas que passaram a integrar o mundo quase como uma norma (ou seja; surgiram e trouxeram consigo uma adenda de ‘dever ser’): o mundo dos ginásios, os corpos perfeitos, as utopias ecologistas, os hábitos alimentares, o culto do património, as correcções do género e dos costumes, a perdição da instantaneidade, o mito da interacção, o consumo pelo consumo, os caprichos do chamado “tempo real”, etc., etc.

Neste volte-face em que se perderam referências (os media passaram a reduzir as escalas de tempo à medida dos acontecimentos frugais) e formas de dever rigorosas, ganhou-se em pluralidade e em individualidade, mas nem sempre em subjectividade, pois a formatação e o fluxo permaneceram enquanto medida. Se lermos os romances que integram a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, escritos entre o início dos anos sessenta e o início dos anos oitenta (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), percebemos como os grandes acontecimentos nunca saíam de cena (eram realmente referências), apesar de serem sempre desafiados pelos pequenos acontecimentos do dia-a-dia. Esta tensão, no nosso tempo, quase se eclipsou, apesar de o acesso (aparente) aos acontecimentos que escapam à nossa experiência pessoal ter aumentado imenso no último século. Em contrapartida, a natureza dos acontecimentos pouco variou em proporção.

Ainda que, felizmente, as nossas sociedades tenham desistido de caminhar no sentido de um clímax ou de um ponto ómega da “História”, o desejo profundo de nos iludirmos terá praticamente atingido o seu auge. A nossa condição de mortais, a tal condição que escapará à minha gatinha, parece hoje viver apenas na net e na televisão, lá onde têm lugar as guerras, seja noutras áreas reais do planeta real, seja sobretudo nas séries ficcionais mais aplaudidas. Como se tudo fosse feito da mesma massa. A felicidade é, muitas vezes, uma ilusão generosa que é vivida até aos limites sem que estes se dêem claramente a ver. Antes isso, pois a felicidade absoluta, tal como os gatos com asas de perdiz, é coisa que não existe. Nem nunca existirá.

31 Jan 2019

Ler e escrever foram invenções tramadas

[dropcap]A[/dropcap] escrita e a leitura são episódios recentes. São invenções que conheceram os seus inícios em meados do quarto milénio a.C.. Ocupam menos de 2 por cento de toda a história do ‘Homo sapiens’ que conta já com cerca de 350 mil anos de vida. A neurocientista Maryanne Wolf escreveu sobre o tema e sublinhou, há uma década, que estas aquisições se ficaram a dever ao uso de potencialidades genéticas originalmente destinadas a processos de outra natureza. A história da escrita e da leitura é, portanto, também, a história do hábil aproveitamento de certas aptidões em benefício de práticas inesperadas. Ler e escrever ter-se-iam transformado, nesta linha de ideias, em dispositivos eminentemente artificiais que, ao contrário da visão, por exemplo, requerem aprendizagens e monitorizações individuais.

Maryanne Wolf, directora do ‘Center for Reading and Language Research’ da Tufts University (Boston) tem trabalhado ao longo dos anos com leitores de todas as idades, especialmente com leitores disléxicos, condição que, segundo a autora (em obras de 2007 e de 2018*), comprova que os nossos cérebros nunca foram geneticamente preparados para o acto de ler. Para o conseguir com o sucesso que todos conhecemos, foi necessário fazer uso da extrema plasticidade da mente humana que é capaz de forjar ligações inopinadas, visando sempre novos desafios. Somos, pois, seres geneticamente permeáveis às rupturas e dispomos de uma capacidade ímpar de alterar o que nos é dado por natureza. Daí, também, talvez, termos alcançado o comprovado epíteto de maior predador do planeta.

Há, no entanto, uma estranheza nesta descrição de M. Wolf que decorre do facto de uma transformação tão artificial ter acontecido em todo o globo em fracções temporais relativamente próximas. Bastará recordar que as mais distintas culturas e linguagens naturais geraram formas de escrita bem diversas, tendo cada uma delas mobilizado conexões neurais próprias (escritas verticais com vaivéns diferenciados ou escritas horizontais, movendo a atenção da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda). O alcance desta plasticidade foi assim levado aos limites em todo o mundo com uma eficácia estonteante como se existisse, de facto, uma aptidão universal que o justificasse.

A questão não deixa de ser fascinante e entronca na discussão sobre os nomes que Platão pôs em marcha entre Crátilo e Hermógenes, o primeiro reivindicando uma origem natural para os nomes e o segundo reivindicando um legado puramente artificial. No caso da escrita e da leitura, as provas que M. Wolf sustenta para demonstrar um cariz artificial falam por si, embora a sua aplicação universal nos faça pensar que a propensão genética para as incorporar não fosse, afinal, tão desconforme.

A intimidade e a co-naturalidade entre os humanos e a escrita foi tal que, praticamente em todas as culturas humanas, ela veio substituir as mediações da transcendência que existiam até então. No mundo semítico, a escrita e a leitura proporcionaram aos deuses (ou a um deus único) um discurso próprio e atribuíram-lhe até o papel de emissor e de criador do “verbo”. A escrita e a leitura possibilitaram a normalização da imagem da transcendência e possibilitaram que a memória abandonasse o seu nomadismo no tempo (um ‘passa-palavra’ irregular) para se fixar ou sedentarizar com uma outra regularidade de tipo orgânico. Não deixa de ser curioso que, no mundo judaico, por exemplo, a fixação por escrito do grosso da tradição oral só tenha tido lugar, de maneira sistemática, após o exílio (538 a.C.), ou seja, depois de uma prova de nomadismo forçado.

O nosso tempo está vertiginosamente a abandonar toda esta herança. A tecnologia tem-nos fornecido novas aproximações e captações (no tempo e no espaço) e também novas escritas. Se a imagem móvel do século XX vivia da conjunção entre o princípio de persistência retiniana e a ideia de projecção, as imagens digitais, baseando-se em algoritmos e não em originais reduplicados, implicam uma plasticidade sem fim que se aproxima do modo como a mente processa as suas imagens. Esta virtualidade sacraliza a tecnologia, dilui a função clássica da memória orgânica (histórica) e faz do futuro um continente a ser vivido no agora-aqui (sem grande idealidade para os chamados fins últimos). A redenção na nossa era passa pela invenção de capacidades genéticas (tendo o cyborg, para já, como meta) que se adaptem às novas escritas e não o contrário, tal como sucedeu há 5.500 anos.

Quando, em 1974, Barry Leiner e Vinton Cerf criaram o protocolo TCP/IP, pouca gente se apercebeu da dimensão histórica do facto. Como Cerf referiria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso”**. O alcance deste protocolo foi, e é ainda hoje, radical e os seus impactos podem ser resumidos em três grandes linhas: proeminência à mobilidade dos dados, garantindo liberdade aos conteúdos e às escritas; dissociação da rede (e das suas escritas) da ideia de propriedade e, por fim, adopção da rede enquanto espaço auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, imprevisível e não-regulado. Estas três linhas persistiram nas transformações que o mundo foi conhecendo nas últimas décadas: a superação das dicotomias ideológicas nos anos oitenta, o optimismo tecnológico dos anos noventa, a ‘quebra de vertigem’ na primeira década do século XXI e a imersão definitiva dos ‘pós-millenials’ no aquário da rede já nesta segunda década. Daí que as futuras gerações vão, com toda a certeza, deixar de se baralhar com a diferença entre escritas naturais e artificiais e ‘lerão’ as investigações de Maryanne Wolf como um estimulante testemunho arqueológico. O que já não seria nada mau.


*Vale a pena recorrer às ciberlivrarias para encomendar os dois livros de Maryanne Wolf. O mais conhecido é Proust and The Squid. The Story and Science of The Reading Brain (Harper, New York, 2007) e o mais recente, escrito cerca de uma década depois, é: Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World (Harper, New York, 2018).
**V.G. Cerf and P.T. Kirstein: Issues in Packet Network Interconnection. IEEE Proceedings, Vol.66, No. 11, November 1978, pp. 1386-1408. /30/ L. Evenchick.

24 Jan 2019

A agenda extasia os servos

[dropcap]O[/dropcap]s seres humanos não conseguem lucubrar sobre tudo. Há limites. É por isso que existe a poesia, é por isso que se criaram as religiões, é por isso que houve necessidade de se inventar a filosofia e outros modos de perceber e de questionar.

Imaginemos, no entanto, uma peça de teatro em que o princípio activo fosse esse: dez ou vinte personagens em cena a falarem sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Seria uma coreografia sobre o que não existe, uma verdadeira panóplia para loucos, na medida em que “tudo” não passa de um pronome indefinido e invariável, logo algo que faz pela vida apenas na imaginação das pessoas e não na realidade, digamos, tangível (Shakesepeare jamais podia ter comparado a linha avançada do West Ham com a do Leicester).

O normal – sim, falemos de coisas normais – é a existência de escolhas, de opções, de alinhamentos (como escreveu o semiótico dinamarquês L. Hjlemslev, os humanos recortam do continuum as suas opções, embora esse recorte obedeça a linhas de resistência, tal como os pintores na pré-história permitiam que os seus traços se orientassem pelas linhas da rocha). Ao escolhermos, a nossa soberania é sempre uma soberania orientada, prescrita, definida.

Durante praticamente toda a história dos humanos, as proibições facilitaram as escolhas possíveis. Sempre foi proibido falar de muitas coisas, por razões políticas, espirituais, históricas, tabus, etc, etc. No ocidente moderno, a ideia de liberdade (enquanto possibilidade) foi, entretanto, escrevendo a sua própria história. E o que sempre limitou a liberdade acabou, também, por ser o que melhor a caracteriza.

Hoje em dia, sentimo-nos livres quando se designa por agenda aquilo de que se fala. A agenda é a sucedânea das antigas linhas da rocha que orientavam os pintores pré-históricos. A agenda é o novo sinaleiro tectónico que nos diz sobre o que lucubrar e quando.

A agenda selecciona alguns tópicos que se vão abrindo e fechando ao longo dos dias. Esses tópicos surgem com o formato das ondas: erguem-se no alto, rebentam, espumam (por vezes muito) e logo desaparecem. O vestígio e a patine que ficam deste exercício são constituídos por gases raros. Um nada que se forma como uma nuvem de Verão: chamemos-lhe memória (ou o que dela ainda resta).

Quase tudo o que a agenda viabilizava há 24 ou há 36 meses já não existe hoje no debate diário. Do mesmo modo que a agenda dos últimos dias, tão vociferada nos teclados, irá em breve esvair-se. Perdemos o dom da ritualização e adquirimos o propósito do fluxo. Estou a referir-me ao escritor que disse que não se atirava a mulheres com mais de 50 anos, às expectativas dos estudos ambientais em torno do aeroporto do Montijo, às vicissitudes do muro de Trump, às entrevistas a fascistas na TV, à rapariga saudita em fuga pelo sudeste asiático, às greves de sectores da função (naturalmente) pública, aos políticos na justiça dando a ideia de que são perseguidos, aos pobres globos de ouro, à vaga de gripe, aos treinadores de futebol que saem e que entram, aos migrantes sem porto para desembarcarem e à Tesla que se está a instalar em Xangai.

Os tópicos da agenda começam geralmente por um facto e, depois, inflamam, degeneram e tornam-se em ziguezagues palavrosos que se acirram. Mais de noventa e cinco por cento das pessoas que ‘dão opinião’ (nesse novo polígrafo do julgamento divino chamado redes sociais) é o que fazem: pescam um tema da agenda e depois assanham-se, inebriam-se ou registam aquilo que imaginam advogar como se fosse algo único, ímpar, fundador do mundo. Virada a página do dia ou da semana, é como brincar às escondidas: lá se removeu todo o miolo da convicção, lá se foi toda a massa do pão da madrugada passada para que possa amassar sempre a do dia seguinte.

Na verdade, nunca ninguém está presente. O vazio da véspera é o já o vazio do próprio dia. Razão pela qual o ‘feed’ das redes sociais é um fio-de-prumo sem qualquer arquitectura para habitar. E o mais maravilhoso é que a nossa era vive precisamente desta beleza sideral: o que não faz parte, nem nunca fará da agenda (aquilo para onde ninguém olha, por outras palavras) é o que melhor a definirá. Da mesma maneira que a fotografia se pode definir, nos nossos dias, como aquilo que ainda não foi fotografado, tal é a hemorragia com que as imagens, sendo o que são, se estão a transformar em coisa nenhuma (um ‘sample’ que é repetido até ao torpor). Não deixa de ser verdade meus amigos: a fotografia é aquela parte de mim ainda por fotografar.

Sabendo que, na verdade, nunca ninguém está presente, pergunto-me, por vezes, por que razão continuo ainda a pagar a assinatura do cabo, já que em todos os canais, com raras excepções (mesmo na, por muitos adorada, neflix), se vê sempre o mesmo filme. A agenda é matreira e consegue espalhar eflúvios de aparente felicidade nos povos do globo! Mas eu sei por que continuo a pagar: tenho que estar dentro da rede, nos calores da infosfera. Fora da gruta, ‘liberto’ das opções impostas, eu seria um desalojado e sentiria graves problemas de sobrevivência. As presas de caça dos neandartais são hoje megas gigas teras petas. Assim é. Pouco mudámos, já se vê.

Assim é. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que conseguimos falar sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que está tudo à nossa mão e de que somos livres a fazer as nossas opções. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que é ‘bluff’ pensar numa agenda que nos tende a escravizar.

Os novos escravos têm diante de si o espelho e o teclado da normalidade e deixam o seu traço no mundo, interiorizando a ideia de que são os personagens mais autónomos do planisfério. Por vezes usam maiúsculas, repetem clichés, imaginam-se na ponta do charuto de Churchill e cantam fora da banheira como se fossem Plácido Domingo. Ao fundo da rua, ouço tantas, tantas vezes Nietzsche a rir à gargalhada.

17 Jan 2019

As gerações são um gelado ao sol

[dropcap]O[/dropcap] poder é como a polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma zoada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana, ou seja: eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que estão muito para além da galáxia política ou das (muitas) redomas dos costumes. Até esta crónica é um pequeno apêndice de poder. Até os periquitos do Jardim da Estrela são adições de poder (já me têm subjugado a meio dos meus passeios matinais).

Num tempo secular em que a rigidez dos costumes começou a pouco a pouco a fluir, o que aconteceu gradativamente depois da segunda grande guerra mundial, as gerações passaram a constituir-se, cada vez mais, como agentes de poder (de muitos poderes). Não é por acaso que, hoje em dia, a publicidade visa targets cada vez mais jovens: dos adolescentes aos pré-adolescentes, tal é o poder que estas franjas passaram a conquistar dentro do que ainda resta do conceito clássico de família.

Tão longe destas encenações próprias do nosso tempo, João de Salisbúria escrevia, há 859 anos, socorrendo-se de uma imagem semelhante à que acompanha este texto: “os modernos (neste caso, as pessoas do seu tempo) são como que anões aos ombros de gigantes que vêem mais e melhor do que os seus predecessores, não porque possuam uma visão mais apurada mas porque se encontram numa posição mais elevada, suportada pelos gigantes”. O adágio, atribuído a Bernardo de Chartres, dava a entender que o esclarecimento do mundo vinha sempre e inevitavelmente de trás; só a partir da ‘Querela dos Antigos e dos Modernos’, oito séculos depois, é que esta relação se começou a alterar. Desde então, e com acelerações brutais até aos nossos dias, foi emergindo a ‘consciência do nosso tempo’ e a ideia de que é no presente, e só no presente, que se encontram os gigantes, os génios, os chavalões e, figuradamente, ‘os imortais’.

Cada geração com que convivemos nos nossos dias imagina-se sempre no cume da história, numa espécie de clímax ou de vórtice mergulhado em chantili festivo. A desmobilização das ideologias que iluminavam o futuro e domesticavam o passado, a par dos poderes encantatórios da tecnologia que nos devolvem a instantaneidade do agora como único tempo possível e fruível, sublinham a patologia. Escrevi “patologia” pois nunca houve um tempo tão desligado da história, quer no sentido antigo (da pertença escatológica), quer no sentido dos modernos (que recriaram a escala do humano após o Iluminismo). As gerações são hoje a graça divina animada pela juventude eterna dos ginásios, pelos likes no FB enquanto inscrição existencial, pela aceleração e mediação das imagens, enfim, por uma espécie de autismo social de tipo ahistórico. Um papagaio de peito feito a quem os deuses deram vida perpétua.

O presente basta-se, desta forma, a si próprio nos nossos dias. É até possível que tal venha a configurar a primeira grande utopia que se realiza enquanto se vive (será esse o segredo conjugado do virtual, do hiperespaço e da telemática). De qualquer modo, só se entende bem o que é uma geração, quando se sai da vaga. Isto é: ao cruzarmos as primeiras cinco ou seis décadas de vida, o olhar retrospectivo permite ver e rever de fora a emergência de uma nova geração a ocupar os seus poderes, os mais diversos e em todas as esferas (mesmo nas que parecem mais inofensivas como a literária, por exemplo). Tudo o que ela afirma e inscreve funciona como se tudo estivesse a acontecer pela primeira vez. Já nem está em causa a amnésia ou a vaguez dos horizontes. O culto vira-se sobretudo para hiatos de linguagem (como “os novos”, “a neo-”, o “retro”, os “primeiros”) que são indícios, ainda que involuntários, de uma auto-celebração que se vai tornando pouco inclusiva. Sinal dos tempos.

Quando o que se celebrava era um feito luminoso do passado que ritualizava efectivamente o presente, os ‘culpados’ éramos todos nós. Razão tinha Barthes no seu diagnóstico dos poderes (os tais discursos que “engendravam a culpa”). Hoje em dia, celebramo-nos a nós próprios, ou, por outras palavras, cada geração celebra-se a si mesma, fazendo dessa ‘correcção’ um modo eficaz de nos desculpabilizarmos. Nunca os poderes foram, portanto, tão invisíveis e, ao mesmo tempo, tão actuantes e arredados do ‘dever ser’ tradicional. A ‘correcção’ e a sua colmeia onanista de ditames (amante de uma imagem turva da liberdade) é filha desta saga que gosta, ao espelho, de se confessar como sendo fracturante. Não haverá maior devaneio.

A consciência de se ser geração é uma coisa recente e corresponde a um modo de caracterizar mutações sobre as quais deixou de haver controlo. O que realmente fractura é a quase ausência de leme no fluxo de acontecimentos que fazem o mundo e não tanto o que possa decorrer desse agente fantasmático que, há poucas décadas, se passou a designar por geração.

10 Jan 2019

O futebol é uma moreia para os amigos

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] aquela altura em que a imaginação se transforma numa moreia a surfar nas guerras púnicas. Tudo começa pelas nuvens de pó, pelos cascos dos cavalos da GNR a bater na lama, pela enxurrada sensorial a que a retina é sujeita – vozes sobrepostas nos altifalantes, mastros e bandeiras na movida, gajos a mijar contra o muro, filas impenetráveis de vultos indiferentes à chuva, semblantes encenados por coros, enfim, um colorido raro a invadir o cinzentismo do mundo que agora recordo.

Nestes nossos dias liofilizados em que pegou moda começar frases com o infinitivo impessoal (“Dizer que está aqui um ambiente propício a…”) ou com um simples advérbio temporal (“Quando estás à espera do autocarro da equipa e te cai em cima um…”) ou com um deítico (“Aquele dia em que te sentes varado e atiras…”), melhor ainda me sinto a cantarolar os acordes das marchas militares e revejo as matilhas de cães vadios a cruzarem o oceano de guarda-chuvas negros. Uma fumarada danada e os cartagineses a escarrarem para o lado, a par dos pregões e das cascas de banana a traírem a diagonal do peão, agora acossada por brados e caralhadas que vasculham os profundos da relva.

A cal traça ângulos rectos e concebe o círculo central e a grande área. Por cima, a borrasca instiga os seus compassos aéreos à Miró e é por entre os respingos do dilúvio que o povo se estica e digladia (como elásticos) para rever, ao longe, as joelheiras, os equipamentos, as fintas e as botas dos jogadores ensopadas no rectângulo ideal. A bola de ‘catchum’ é atirada pelo guarda-redes, cruza mais de meio canto e embate em duas ou três cabeças que içam as alturas do mundo. Ressaltará para a lateral e perde-se depois pela linha final. É assim também a vida.

Tinha seis anos e o futebol transformou-se na primeira imagem que me fez sair de mim. Sair de mim: desdobrar-me num episódio simbólico e passar a ser parte de qualquer coisa que não apenas o imediato: a família, a casa, os avós, os retratos que evocavam origens, os cheiros da compota, a escola primária, o Cavaleiro Andante, o major Vidal que era explicador de matemática e os torresmos do senhor Simões que me levou de táxi até aos picos de Monsaraz, era Inverno e os meus prazeres púnicos e guerreiros amanheciam. Por que terá acontecido tudo isto?

Em primeiro lugar, as massas fazem chorar. Para uma criança é coisa mitológica e tem o dobro da força de gravidade. Uma corrente que pode ser imparável com o tempo.

Em segundo lugar, os heróis. Sim, mal a cor das camisolas se desvendava no túnel de acesso ao relvado, os jogadores que, na realidade, nunca tinham feito um único feito no mundo, simulavam ser Cipião e Aníbal. E o povo glorificava essa verdade que não é coisa exclusiva da massa cinzenta das moreias. Diga-se, em abono da verdade, que o futebol fora inventado em Inglaterra, entre 1848 e 1863, num tempo em que, como escreveu Stephanie Barczewski (curiosamente um historiador americano), se verificava “…a uniquely British tendency to take a perverse (and sometimes tragicomic) pleasure in glorious defeat and self-sacrifice”. Ou seja: coisas preparadinhas para um bom plot.

Em terceiro lugar, a festa, mas com aquilo que a ‘fiesta’ – hoje perseguida pelos avaliadores das mais perfeitas premissas púnicas (as PPPs) – também comporta: tudo, mas tudo mesmo pode vir a acontecer. Sim, pode magoar e pode mesmo matar. É o lado da narrativa literária, do relato shakespeariano, do encadeamento e do sangue (coisa viril, mas com a sua arte, diria Homero para não escrevinhar Hemingway, não venha o presbiteriano Will Hays ou até o Me Too acusar-me de “Hola, al final tú eras también aficionado”). Por vezes, o espaço no futebol é um trompe-l´oeuil constante. E já se sabe que a qualidade de um trompe-l´oeuil não reside tanto na eficácia da ilusão criada, mas sobretudo na graciosidade da encenação. É um tropo que surfa mal para burro, mas que sabe interligar os momentos do jogo a qualquer outra coisa (aparentemente superior) que não é óbvia. A fé precisa da sua fábrica. A fé é para sorver o corpo todo nos lances de bola parada. A fé gosta de uma equipa que troque bem a bola, mas, por vezes, esquece-se de que o que é preciso ‘é metê-lo lá dentro’.

Em quarto lugar, a pertença. Que bela questão! Por que se escolhe uma equipa e o que é uma equipa? Prefiro o que ouvi, uma ou duas vezes, dizer ao António Mega Ferreira: é a beleza das coisas que não têm explicação. Sim, a seta vermelha. Inevitavelmente.

Em quinto lugar, para desfibrilar a imaginação dos cartagineses: aconselhava a todos os programas sobre futebol que grassam nas TVs lusitanas, há cerca de uma década, o mesmo destino que a terceira e última guerra púnica conheceu. Era acabar com aquilo de vez. Ou com quase tudo. E então teríamos um mundo melhor para comermos moreia à mão todos juntos, como dantes. Eu, o Germano, o Águas pai, o Carvalho, o Vital e o Matateu.

11 Out 2018

O maior dos tabus

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que melhor define as pessoas são os projectos que um dia tiveram na cabeça, mas que nunca chegaram a realizar. São limbos que ficam estacionados na sua própria sombra. Mas são eles que desenham afinal os limites, os contornos da silhueta, o espaço potencial da nossa afirmação. Ao fim e ao cabo, são como o rabo de fora deixado por esse felino espantoso chamado mistério.

Deixo alguns exemplos: Renée Falconetti que, em 1928, fez de Joana d’Arc no conhecido filme de Dreyer, La Passion de Jeanne d’Arc, quis transformar-se na menina de Orléans e deu em louca. Jesus Cristo, imagino eu com alguma carga teológica, fez da imortalidade um projecto e acabou maltratado pelo veredicto de Pilatos. Da Vinci, ao invés de Sísifo, desejou voar e isso definiu-o. Ribas quis expor Mapplethorpe em Serralves e tramou-se. Cavaco Silva também terá tido um projecto de vida irresistível que nunca chegou a cumprir: ser proprietário de uma bomba de gasolina.

Pondo de lado estes exemplos de génios e de criadores, é igualmente verdade que o projecto das montanhas é transformarem-se em planaltos e depois em planícies e, no entanto, vemo-las estáticas como se não fossem contaminadas por essa bactéria a que chamamos tempo. Mas o que as faz ser (tal como as entendemos) é o trajecto em que vivem no seu mutismo absoluto, ignorando tudo o que os humanos dizem sobre elas. Mesmo quando os filósofos lhes atribuem a categoria das coisas sublimes (a grandiosidade das montanhas apequena-nos, mas a virtude da nossa espécie é poder pensá-las, concebê-las, explicá-las até e, depois, dizer – “eu sei”, “eu sei”).

O que sabemos e o que somos não é apenas linguagem. Um papagaio vindo dos trópicos não alça a perna como um cão, mas imita palavras articuladas pelos humanos. Nós também não conseguimos imitar uma montanha, apesar das mialgias do zen, mas desvendamos e imitamos factos que nos são exteriores (o biomimetismo das asas de um avião é engenharia inspirada biologicamente).

Como escreveu Jakobson, as linguagens definem-se menos por aquilo que permitem dizer e mais por aquilo que obrigam a dizer. Há coisas que conseguimos pensar, perguntar e dizer, outras não. E há projectos que realizamos, outros não. É nessa fronteira que deixamos o rabo de fora, porventura, para que, quando os humanos desaparecerem deste planeta, alguém nos venha a fazer a devida arqueologia. O que sabemos e o que somos não é apenas linguagem, mas o que nela há de fronteira. E de perda.

Vem isto a propósito do episódio mais intrigante com que me confrontei (nos muitos anos) em que tenho dado aulas. Estava a dar a uma turma o Lector in Fabula, um famoso livro de U. Eco, quando, na análise do ‘fragamento 8’ de The Tooth Merchant de Cyrus A. Sulzberger, surgiram estas linhas: “…dalla fica grande quanto la misericordia di Allah” (“…com uma cona grande como a misericórdia de Alá”). E o autor escreveu: “Fragmento que não submeteremos a análise, não por pudor, mas porque põe em jogo mecanismos de hipercodificação retórica e quadros intertextuais demasiado complexos… blá, blá…blá, blá…” (1).

Ainda que numa dimensão minúscula, eis um projecto incumprido que nos disse bastante, na altura, sobre quem seria U. Eco. Lembro-me que a aula também se incumpriu, pois passámos o resto do tempo a escrever esta crónica (quem diria, pois foi há mais de 20 anos!): falámos de Falconetti, de Dreyer, de Cristo, de Sísifo, do senhor Silva e de como a misericórdia é um projecto tão inacabado quanto sublime… que nada mesmo o define ou metaforiza (nem mesmo a nobreza de uma cona que é, ao mesmo tempo, o maior tabu da humanidade, mas também o seu ponto luminoso de aparição na Terra).

(1) Eco, Umberto. Leitura do Texto Literário. Lisboa: Presença, (orig.:1979) 1983, pp. 202-206.

4 Out 2018