A psicanálise da mulher vista por trás

[dropcap]N[/dropcap]um curioso artigo intitulado ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’*, R. Aston revelou dez palavras de diferentes línguas que não têm correspondência em Inglês. Isto significa que estamos perante dez conteúdos para os quais não há termos em Inglês que os consigam traduzir cabalmente. Faço desde já, notar que nenhuma deles é “Brexit”.

Entre essas dez palavras consta uma portuguesa: “desenrascanço”. De referir que o conteúdo associado a ‘desenrascanço’, que equivale a ‘sair de situações complicadas através de repentismos não calculados e geralmente improvisados’, tem na nossa língua variados sinónimos (quase todos reflexivos), entre outros, ‘desembaraçar-se’, ‘safar-se’ ou ‘livrar-se’ de perigos ou de apuros.

Esta riqueza justifica-se pela mesma razão que, em Árabe, existe uma dezena de palavras diferentes para exprimir o conteúdo associado a ‘falcão’. Na realidade, uma língua tende a desenvolver e a enriquecer no seu acervo expressivo aqueles conteúdos com que mais lida, devido, entre outras possibilidades, às configurações da natureza envolvente ou ao usos e tradições dos seus falantes. Razão pela qual existe uma enorme escolha de palavras para dizer ‘falcão’ em Árabe (uma das consoantes do alfabeto até imita a sonoridade e a forma da ave de rapina) e razão, também, pela qual o conteúdo ‘desenrascar’ tem tanta saída expressiva na língua portuguesa.

Deixo aqui as restantes nove palavras referidas por R. Aston que veiculam conteúdos que não são propriamente da intimidade dos britânicos:

a) “Shlimazl” (‘Yiddish’) – Alguém permanentemente sem sorte.

b) “Tatemae” e “Honne” (Japonês) – O que alguém deseja acreditar e aquilo em que realmente acredita.

c) “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) – Referência a alguém que interrompe uma pessoa que está a comer.

d) “Tingo” (Pascoense) – Aquele que pede emprestado bens ou dinheiro a um amigo até o deixar sem absolutamente nada.

e) “Bakku-shan” (Japonês) – Uma rapariga lindíssima, desde que vista apenas por trás.

f) “Espirit d’escalier” (Francês) – Sempre que a palavra ideal ou apropriada é descoberta, já é demasiado tarde para a usar.

g) “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) – Encontro entre duas pessoas que suscita a partilha de um desejo indizível e inexplicável.

h) “Backpfeifengesicht” (Alemão) – Um rosto que precisaria de ser trocado por outro novo.

i) “Nunchi” (Coreano) – Pessoa que age sem ter ideia alguma da situação social em que está envolvida.

Se dermos um passeio, em Português, pelos conteúdos que estas palavras veiculam, encontraremos quase sempre solução, facto que revela a nossa língua como uma boa viajante ao longo de quase todas as latitudes e longitudes do globo. No entanto, pensando em “Shlimazl” (‘Yiddish’), refira-se não há em Português um claro antónimo para “sortudo”, apesar de palavras interessantes tais como “desventuroso” ou “azarento”.

É claro que “Shlimazl” (‘Yiddish’) se aplica a qualquer fadista, forcado ou àqueles partidos políticos que, década atrás de década, se atrelam a 0,5% das intenções de voto. Já “Tatemae” e “Honne” (Japonês) andam nas proximidades do par ‘fezada vs. saudade’ ou ‘saudade vs. fezada’, sendo a respectiva ordem puramente arbitrária. A expressão “Sgiomlaireachd” (Gaélico Escocês) corresponderá, por sua vez, ao lusitaníssimo “empata”, seja o comprazimento gastronómico ou de outra natureza mais vivamente carnal.

Continuando a nossa visita guiada, “Tingo” (Pascoense) pisca o olho a ‘amigo da onça’, do mesmo modo que “Espirit d’escalier” (Francês) remete para a ideia de oportunidade perdida ou de fora de jogo existencial, embora sem grande solução portuguesa à altura. Para terminar: “Mamihlapinatapai” (‘Yaghan’) cheira a bloco central, “Backpfeifengesicht” (Alemão) acena a ‘cara de cu’, passe o plebeísmo metafísico, ao passo que “Nunchi” (Coreano) não anda longe de ‘patobravismo’.

A única palavra que não faz de todo jus ao Português é “Bakku-shan” (Japonês), a tal mulher linda de morrer, embora apenas percepcionada pelo lado de trás. Poderíamos alegar o reverso do ‘espírito de fachada’, mas estaríamos ainda muito longe.

O que faltará em Português liga-se, pois, ao tempo e ao espaço: por um lado, negligência face ao atraso da palavra certa a usar no momento também certo (embora, neste caso, se possa confirmar que os portugueses a têm sempre, fonte, naturalmente, do seu genuíno “desenrascanço”); por outro lado, negligência face à retaguarda da beleza feminina. É este último caso que mais deveria preocupar a psicanálise portuguesa.

Haverá uma razão para os portugueses terem educado sobretudo o ‘olhar para a frente’ em detrimento do ‘olhar para trás’. Repare-se que o território do nosso país é uma das finisterras que fecha a Eurásia e por isso aqui se foram acamando os povos mais diversos, durante milénios e milénios. Quem aqui ia chegando, esbarrava sempre no litoral e não podia perseguir a sua viagem, a não ser de barco. Foi por isso que os povos portucalenses se esmeraram em ficar pasmados a olhar para o mar, ou seja, para o lado da frente. Para trás ficava a saudade, esse espaço transbordante para o qual, ao modo de Orfeu, não se olha. Antes se imagina e percorre trágica e poeticamente.

Ao invés, com o imenso pacífico a leste, o Japão tem pela frente todos os continentes. Daí o hábito de olhar o mundo por trás, seguindo, aliás, o sentido do sol que, no seu itinerário de oriente para o ocidente, passa por lá todos os dias em primeiro lugar. Quem diz o mundo, diz o melhor que nele habita.

*R. Aston. ‘The 10 Coolest Foreign Words The English Language Needs’ [Em linha] April, 13 2009. Disponível em https://www.cracked.com/article_17251_the-10-coolest-foreign-words-english-language-needs.html [Consult. 28 de Fev. 2019]

Imagem: Pintura de Vilhelm Hammershøi

10 Out 2019

A computação quântica de Séneca

[dropcap]H[/dropcap]oje em dia idealizamos o passado através do culto do património e removemo-lo através da ostensão da tecnologia. Pelo meio, em jeito de retrovisor avariado, fica a angústia climática. É este o tríptico que nos é dado respirar, espécie de ‘boomerang’ no seio do qual o presente surge, ao mesmo tempo, como divindade e como derradeiro sem-abrigo da história.

As recentes referências à computação quântica ilustram estas excitações contemporâneas e confirmam-nos, se ainda fosse preciso confirmar, que a promessa do futuro reside na velocidade e não nos leitosos magmas dos programas de tipo ideológico (ou similares).

Uma das directoras de Microsoft, Julie Love, explicou há dias porquê: “Um computador quântico é capaz de fazer em 100 segundos o que o mais potente dos supercomputadores da actualidade faria em mil milhões de anos”. Por outras palavras: num computador tradicional a informação é processada em 0 e 1 (bits), enquanto num computador quântico a informação pode ser 0 e 1 ao mesmo tempo (bits quânticos ou qubits), o que aumenta de forma exponencial a capacidade de processamento.

Pode haver melancolia, miséria, degredos, degelos, supressão de direitos, migrações desesperadas, seja o que for, mas a velocidade, essa, conduzir-nos-á inevitavelmente ao trono de deus, tal como já se fazia constar nos rolos do Apocalipse de ‘Baruch’, do ‘Enoch’ Eslavo ou mesmo de Daniel. Por outro lado, o olhar para o passado será cada vez mais o da sobranceria, fazendo contrastar a ‘nossa’ celeridade quântica com o tempo da televisão linear, das cassetes de vídeo e dos jornais em papel.

Mas não se pense que esta capacidade de rir do que já foi é um exclusivo das muitas variantes do mundo moderno. Nas ‘Cartas a Lucílio’ de Séneca, mais concretamente na Carta 86, o autor informa o seu interlocutor de que se encontra instalado em vilegiatura na ‘villa’ de Cipião Africano.

Para que se contextualize a época, deve referir-se que Séneca está a escrever no início dos anos sessenta da nossa era (séc. I d.C.), enquanto Cipião Africano, o herói da última guerra púnica, viveu entre 236 e 183 a.C. (séculos III e II a.C.). A distância entre ambos é a mesma que vai de 2019 a 1769, vinte anos antes da revolução francesa.

A prosa de Séneca sobre o tempo de Cipião é pautada por uma sobranceria idêntica à que recorremos hoje, embora aliada a uma certa nostalgia que servirá de ponte para denunciar os novo-riquismos do seu tempo. Nada que não nos seja familiar, se pensarmos nas convulsões cinéticas das torres Trump.

O filósofo estóico começa por dar conta da “cisterna que daria para dessedentar um exército” e do “pequeno balneário escuro segundo a moda de antigamente”. E continua: “No balneário de Cipião não há propriamente janelas, mas apenas umas fendas estreitas que deixam entrar a luz sem pôr em causa a solidez da construção. Hoje dá-se o nome de banhos para traças aos balneários cuja construção não permite receber luz durante o dia todo por janelas enormes”. Nos tempos de Cipião, “não havia água corrente como que brotando continuamente de uma fonte quente, nem os antigos do seu tempo se preocupavam com a iluminação do espaço onde iam libertar-se da sujidade” (…) “Lavavam todos os dias as pernas e os braços, mas só tomavam banho de nove em nove dias. Nesta altura haverá certamente quem diga: que porcos eles andavam!”

Sobre o seu próprio tempo, escreve depois Séneca: “Abunda hoje quem acuse Cipião de perfeito provinciano por não ter nos seus banhos quentes largas vidraças para deixar entrar o sol, e não se deixar destilar no meio da luz à espera de fazer a digestão. Cipião não se lavava com água filtrada, frequentemente estava turva, suja”. Num passo seguinte, Séneca vai mais longe, questionando:

“Quem hoje se resignaria a tomar banho em condições semelhantes? Qualquer um se considera pobre e mesquinho se as suas paredes não resplandecerem com grandes e preciosas incrustações, se os seus mármores de Alexandria não forem decorados com mosaicos da Numídia, trabalhosamente recobertos de verniz como se de pintura se tratasse, se não tiverem uma cúpula recoberta de vidro, se o mármore de Tasos não revestir as piscinas onde metemos o corpo emaciado pelo banho de vapor, se, enfim, se a água não correr em torneiras de prata…” (…) “Que multidão de estátuas, que sem número de colunas que nada sustentam, apenas decorativa, só para exibição de riqueza! Que abundância de águas caindo ruidosamente em cascatas!”.

Percebe-se que, à computação quântica do nosso tempo, correspondia, na época de Séneca, o domínio de uma minuciosa arquitectura da luz, do vidro e do mármore.

Percebe-se ainda que os argumentos de fundo que separam as eras são, do lado de Séneca, a higiene e, do lado dos nossos contemporâneos, a velocidade.

Em comum, ressalvemos a incapacidade de o olhar flutuar para além das contingências e de se deixar pasmar com as diferenças, apesar da inevitável inquietação existencial suscitada pelo presente. Mas como diria o próprio Séneca, o presente é o território que nos assegura que jamais seremos imortais. Daí ele se nos apresentar, não apenas hoje, quer como a grande divindade (o tempo presente é tudo do que dispomos), quer como o tal derradeiro sem-abrigo – ou “escravo” na linguagem de Séneca – da história.

3 Out 2019

Perlaborar os formigueiros

[dropcap]T[/dropcap]inha vinte e poucos anos quando assisti a uma conferência de António José Saraiva. Retive na ocasião a ideia de que “os humanos não são formigas” e que, portanto, se não ousarem mudar radicalmente aquilo que são (ou julgam ser) ao longo da vida, mal vai a volta.

Pelo meu lado, tenho praticado esse anti-dogma várias vezes no correr do tempo. Razão por que abandonei muitas vezes os rituais de grupo em que me vi (ou vejo ainda) envolvido.

Alguns amigos meus – a maior parte mais novos do que eu – adora fazer provas de coerência e nem creio que dêem por isso. Talvez assim seja porque vivemos em tempos adversos a esse tipo de profissões de fé. Ou então porque os seus heróis-filósofos os satisfazem e lhes emprestam certezas inabaláveis, ou ainda porque o delírio hedonista os desenha numa (quase sempre protegida) fuga para a frente.

Por estar na moda desancar nos ‘franciunzes’ – por vezes também alinho nessa ‘gouttière’ -, passo a evocar um caso de curiosa metamorfose ligado a um senhor nascido em Versailles, meses depois do meu pai: Jean-François Lyotard.

Nove anos após ter publicado A Condição Pós-Moderna (1979) – um livro que varreu muita conversa nas duas décadas seguintes -, o autor adoptou, em O Inumano, a modalidade “reescrever a modernidade” em prejuízo do chavão “pós-moderno”, de que, aliás, se tornou bastante crítico. Nesse ensaio, justificou-se com dois argumentos para a mudança: o primeiro ligado à impossibilidade de imobilizar o tempo e o segundo ligado ao facto de não existirem narrativas plenamente relatadas.

A primeira vantagem sublinhava a futilidade de qualquer periodização da história cultural em termos de “pré” e de “pós”, e de “antes” e de “depois”, pelo simples facto de não resolver a posição do agora (do presente), a partir do qual é suposto adoptar-se uma perspectiva sobre os decursos cronológicos.

Já a segunda das vantagens, baseada no conceito de Sigmund Freud “perlaboração” (durcharbeitung), colocava em evidência o facto de uma narrativa nunca poder traduzir-se na plenitude, na medida em que existe sempre algo ‘não dito’ (ou “escondido”) num acontecimento, fazendo isso parte da sua própria constituição.

A perlaboração diz-nos que no mundo tudo está sempre a ser contado e que não existe uma única narrativa integralmente consumada. É natural que a tentação de desenterrar um dos aspectos dessa narrativa para lhe tentar descortinar a ‘essência’ – se é que isso existe – e a possível completude faça parte dos desígnios (ou das fantasias, dir-se-á) dos humanos.
Lyotard dá o exemplo de Marx e de Nietzsche, o primeiro, ao ter detectado por inefável sortilégio – o juízo é meu – “o funcionamento escondido do capitalismo”, aspecto que desenlaçaria todos os demais sentidos da história; o segundo, ao ter considerado que “não existe nenhum princípio primeiro e original” (um “ground” ou uma referência de fundo) a partir do qual uma narrativa pudesse ser pensada (caso da ‘criação do mundo’ e do ‘eschatón’ para as religiões axiais, do ‘bem’ para Platão ou do “princípio da razão suficiente” para Leibniz).

A modernidade seria, portanto, nesta acepção, um espaço de ilimitadas redescobertas e não o resultado de um desencantamento.

A atitude de “rescrever” um período que se evidenciou pelas suas características próprias tornou-se, para Jean-François Lyotard, em poucos anos, numa óbvia alternativa ao conceito “pós”. E o autor foi mesmo mais longe, ao afirmar que “o pós-moderno está já compreendido no moderno pelo facto de a modernidade” (…) “comportar em si o impulso para se exceder num estado que não é o seu”. A este dado, acrescentou ainda: “(O) que realmente se oporia à modernidade seria a idade clássica. Esta comporta um estado do tempo, digamos: um estatuto de temporalidade onde o “advir” e o “partir”, o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, englobassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido.”.

Embora Lyotard tivesse desfeito o pacto esquemático (e ultrapassado) – ‘moderno vs pós-moderno’ –, a verdade é que a sua postulação é, também ela, uma longa história que está longe de estar contada. Mas isso ficará para uma outra crónica a acompanhar com material menos dietético e cauteloso.


Jean-François Lyotard. A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
Id. O Inumano: Considerações sobre o Tempo. Lisboa: Estampa, 1990.

26 Set 2019

Design e a pele da cultura

[dropcap]H[/dropcap]á pouco mais de duas décadas D. Kerckhove caracterizou o design como a “pele da cultura”. A sua tese era simples: mais do que ser uma espécie de relações públicas da tecnologia (“embelezando os produtos e apurando a sua imagem no mercado”), o design teria essencialmente uma finalidade metafórica, traduzindo “benefícios funcionais em modalidades cognitivas e sensoriais”.

Deste modo, o design contribuiria para a forma exterior visível, audível e “texturada” dos artefactos culturais, mas reflectindo sempre os sinais dos tempos e o eco dos valores em voga (ecologia, mobilidade, ubiquidade, etc.). Ou seja: de um lado, um devir de marketing, posicionando pela forma e também pelo aceno estético o produto no mercado; do outro lado, um devir que faria do produto um denominador comum da respiração global. Eis, em suma, a tese que harmoniza a funcionalidade com a feliz designação de “pele da cultura”

Em 1997, os exemplos a que o autor canadiano se socorria para ilustrar esta sua tese eram tão plausíveis como os que hoje poderíamos seleccionar, nomeadamente o aerodinamismo dos meios de transporte introduzido por Raymond Loewy (que se estendeu a uma vasta gama de produtos, incluindo frigoríficos, torradeiras e o design clássico da garrafa de Coca-Cola), a chamada ‘nouvelle cuisine’ francesa (que estendeu o efeito Bauhaus à textura e à ‘frescura’ da comida) ou ainda o funcionalismo de Dieter Rams para a linha Braun.

Esta tese de D. Kerckhove reata alguns aspectos do Barthes de Mithologies do fim dos anos cinquenta, embora substitua a obsessão ideológica pela especularidade da cultura. Seja como for, creio que o design é bem mais do que um barómetro antropológico. A razão é simples: sinalizar o estado de coisas é condição de todo o signo, ou seja, de todo o uso a que recorremos para comunicar, para significar ou para marcar o tempo. O design, tal como um bom mundial de futebol, não escapa a este fatum. Mas o que o torna diferente – e aquilo que o faz aparecer em todas as actividades e produtos no globo – é a sua capacidade de aliar a herança estética à eficácia pragmática, restaurando no quotidiano aquilo que, na Idade Média, era traduzido pela “Graça de Deus”: um ‘além’ – agora com letra pequena –, profundo, cativante e misterioso, que se mistura nas coisas do dia-a-dia.

Em era de simulações e ilusões, este ‘além’ (este ‘espírito santo techno’) vive nas malhas – ou na “pele” – da cultura, é certo. Mas, por outro lado, releva uma herança que está muito para além do contingente, na medida em que recupera, na sua morfologia e reconhecimento, aquilo que foi a senha primeira da arte e da estética, quando foram teorizadas de meados do século XVIII para cá: a sublimação do sagrado (aparentemente) perdido.

Esta herança – que foi específica da arte e da estética ao longo de oitocentos e de grande parte de novecentos – foi sendo lentamente absorvida pelo design, sobretudo devido ao modo como se foi distanciando do seu uso instrumental para passar a afirmar-se, cada vez mais, com uma autonomia própria. Hoje em dia, o importante é reconhecer que o design ‘está lá’. O importante é que o design saiba afirmar a sua própria presença e assim tornar-se reconhecível de forma imediata, como se fosse uma esperada aparição (na roupa, nos interiores, na comida, na tecnologia, na rede, nos jornais, nos objectos, nos passeios públicos, etc., etc.).

Como se o design tivesse passado a ser uma ‘referência central’ da vida, numa época que é justamente caracterizada pela ausência de valores ou de referências centrais. Neste sentido, creio que a tese de D. Kerckhove, apenas com 22 anos de vida, já é uma tese muito clássica.

19 Set 2019

Será a poesia feita de gnaisse puro?

[dropcap]N[/dropcap]em sempre Afrodite terá estado na disposição de dar vida a uma escultura para gáudio dos pigmaliões. Na ausência desse milagre e tal como afirmou Richard Rorty, no início dos anos oitenta, “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”, imaginando-se abraçados ao monte de vénus de uma Galateia de mármore. Pobres nenúfares.

A noção de texto que Rorty evoca aproxima-se da dos dogmas das religiões do ‘Livro’ que fez do mundo, durante séculos e séculos, uma iluminura escrita. Para o homem medieval, todo o sentido do universo dependia de uma harmoniosa refracção entre textos. Os modernos alteraram a pulsação das coisas, sondaram territórios, interrogaram o que é (e o que não é) o homem, mas não resistiram à tentação de voltar a transformar a palavra em mandamento. Tanto estalinezinho que se pavoneou por essa Europa e por essa Ásia fora nos últimos dois séculos, tendo como refém verbetes limados, frases redondas e suratas definitivas.

Esta obstinação de escrever e de ler o mundo como se só existissem textos tem, de facto, marca categórica, fosse a sua origem escolástica, ideológica ou académica. A plenitude que cremos herdar (obsessivamente) do império da escrita sempre trouxe consigo esquadrias rígidas. Autores como Sade, Bukowski, Genet ou Céline, que misturaram registos elevados e ditos consagradamente levianos, viram-se amiúde como filhos de uma penitência menor.

No penúltimo Livro de A República de Platão, Gláucon reconheceu que a cidade ideal, longamente descrita ao longo dos diálogos da obra, era coisa ‘só de palavras’ (“Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras, pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra” – 592b/ p. 447). O fundamental estaria fora das palavras, seria até anterior a elas e, seguramente, jamais por elas fundado.

Se contarmos para trás a mesma distância que vai de Platão até ao nosso tempo, chegamos à Epopeia de Gilgamesh. Trata-se de um texto inscrito em argilas refundidas com origem na actual região do Iraque que data de antes de meados do terceiro milénio a.C., embora existam compilações conhecidas já do final do segundo milénio a.C..

O relato é um dos primeiros registos escritos da espécie humana. Não lhe pré-existindo uma matriz rígida para replicar (haveria matrizes mitológicas orais, como a de Afrodite que deu vida a Galateia para gozo supremo de Pigmaleão, mas essas sempre foram maleáveis e, portanto, sempre se alteraram no correr dos tempos ao contrário do dogma), o texto ocupa-se das coisas essenciais e não ainda de outros textos ou de idealidades contaminadas.

É por isso que a Epopeia de Gilgamesh é uma história de heróis e de deuses com os sonhos a funcionarem como ignição primordial. O tema de fundo é o da imortalidade, claro está: Gilgamesh bem tenta aceder ao dom da vida eterna, passa por mil obstáculos para o conseguir, mas acaba por se confrontar com o nosso denominador comum mais escandaloso: a mortalidade.

O que se torna fascinante, ao longo da leitura, é pressentir a respiração genuína dos humanos de há quase cinco milénios e perceber que o essencial que está em causa é o mesmo que, hoje em dia, ainda nos permite confiar (dir-se-ia mesmo ‘acreditar’) na poesia, porventura o único tipo de texto contemporâneo que, de vez em quando, tenta escapar a outros textos refundando-se radicalmente enquanto se forma e enuncia. A grande poesia restitui à fonte o leme perdido pela palavra. Pelo menos é neste tipo de transparência glosada que eu entendo a grande poesia, mesmo quando ela parafraseia as suas merdas, pois, ao fim e ao cabo, somos todos humanos e não génios a apalpar corpos perfeitos esculpidos em gnaisse puro.

Para uma boa leitura da Epopeia de Gilgamesh, aconselho a tradução/versão assinada por Pedro Tamen (Edições António Ramos, Lisboa, 1979).

12 Set 2019

 Para emendar de vez o caos

[dropcap]O[/dropcap] caos apenas respira onde não há imagens que lhe possam dar sentido. Quando se criam imagens, a voragem tranquiliza-se. São elas que melhor induzem a um reequilíbrio, mesmo se precário. São elas que conformam e dão a ver a vida como uma flutuação imprevisível que pode ser domesticada. Um bom design tranquiliza. Um bom site embala a navegação. Um anúncio a clamar por derrame estético demove-nos (aparentemente) do mal.

As imagens confundem os nossos gestos com o mundo e, por outro lado, conotam poderosamente, dando-nos a ver o que aparece, mas também o que lá não está, saciando-nos fantasias. De um detalhe efabulamos todo um continente. Esta capacidade de simultânea apreensão e aceleração aparece reflectida em actividades humanas ancestrais ligadas à persuasão. Mas não só. A história, relativamente recente, da publicidade e do design são trunfos que sempre respiraram dentro desta jangada que nos faz a todos marinheiros de um oceano feito de espelhos esféricos sempre a rodarem.

É curioso como as marcas trabalham a partir da ideia de uma anamorfose que permanentemente se recompõe. Definidas por Al Ries e Laura Ries (e por outros gurus da área) como “percepções que o público tem de um serviço, produto, pessoa, etc.”, a verdade é que ninguém detém ou controla uma marca*. É por isso que elas deslizam para além dos sentidos que as condicionam, como se fossem modelos em permanente reactualização, compostos por “património”, o que é tangível, e pelo essencial “core”, o que o não é. A uma referência (e a uma história) cola-se sempre uma nuvem (ou uma aura). Enquanto se afirmam, as marcas preparam, sem cessar, a sua encarnação noutra e noutra catadupa de imagens. É isso que as posiciona: a reencarnação. É isso que as cola a todos nós.

Este efeito de boomerang entre factos, acenos e figurações também é típico do design que nos compõe o pano de fundo (material) dos dias. Por um lado, pelo facto de ser a maior marca do mundo (na medida em que atravessa todas as actividades, bastando o nome que o designa – o design – para definir um horizonte, um status, uma fasquia). Por outro lado, pelo facto de desmistificar o encantamento estético, enquanto o empresta aos objectos em que se realiza (seja uma t-shirt, um automóvel ou um simples teclado de computador).

Dito de outro modo: o design propõe a transformação do mundo físico num imenso sopro onde o nosso corpo desejará idealmente rever-se ou verter-se (e ser acolhido) como se fosse um vasto estuário. Tudo o que ao longo da história moderna e industrial se limitava a ser apenas instrumental – um mero revestimento – está hoje a constituir-se como um modo de o humano, ainda que involuntariamente, se cumprir.

A ritualização de objectos culturais – muito desejados – que é levada a cabo pelo design reata práticas muito antigas (lembremo-nos dos báculos megalíticos que eram, ao mesmo tempo, objectos de culto e de pastoreio), mas adquire uma novidade sem precedentes, ao reunir a ‘transcendência estética’ com a emergência do dia-a-dia. O deslumbre e o quotidiano de mãos dadas.

Como se o design existisse para se sobrepor ao caos, ou para ilusoriamente o emendar, e isso justificasse o mais importante laboratório de imagens que existe no planeta. Não é por acaso que ele surge e se enuncia ao serviço de tudo o que nos rodeia (como se fosse uma camada invisível que nos inscreve o ânimo e nos promete sentido): na medicina, na publicidade, na rede, nos objectos, na indústria, nas campanhas políticas, na arquitectura e nas mil melopeias mais vãs da comunicação.

Curar a crueldade já foi função dos mitos nas sociedades ancestrais; hoje essa expiação pertence às grandes máquinas de sedução pública. E nós nem damos por isso: uma verdadeira cirurgia sem dor.


*Ries, A./L., (2002) 2003, A Queda da publicidade e a ascensão das relações públicas, Editorial Notícias, Lisboa.

5 Set 2019

E se a Gronelândia fosse um travesti?

[dropcap]H[/dropcap]á alguns dias, andei à procura de ilações absurdas para iniciar uma crónica. Precisava desse condimento. Já veremos por que razão. O percurso seria elementar: bastava passar por notícias vindas da Arábia ou do Irão, ou entrar em algumas universidades como a de Quilmes, em Buenos Aires, cujas pesquisas científicas são sempre interessantes, nomeadamente a que provou que os hamsters recuperam melhor das mudanças de fusos horários, quando estão sob o efeito de viagra.

Mas como os humanos são seres azougados, bastou esperar umas horas para que um dos títeres do nosso tempo me proporcionasse ilações absurdas: depois de se comemorarem 152 anos sobre a compra do Alaska ao Canadá (já nem falo dos conhecidos episódios na fronteira sul pela mesma época), eis que o PR dos EUA se propôs comprar a Gronelândia à Dinamarca, um território correspondente a 26 vezes a superfície de Portugal. Um simples negócio imobiliário.

Moral da história: procurar ilações absurdas no nosso tempo é um acto absurdo. Kierkegaard e Camus, cada um a seu jeito, já se tinha encarregado do assunto e a primeira-ministra Mette Frederiksen, em Copenhaga, leitora do primeiro dos autores por razões óbvias, voltou agora a sublinhá-lo com aqueles seus olhos de iceberg verde vago. Há seis anos, já outra PM dinamarquesa, Helle Schmidt, tinha caído no goto de Obama, durante as exéquias de Mandela. As primeiras-ministras dinamarquesas e os EUA parecem, pois, para o pior e para o melhor, manter uma relação estilo Deucalião e Pirra.

Mas o assunto que me trazia para os corredores desta crónica era literário e elevado, podia lá ser outro, e prendia-se com o conto de Truman Capote ‘Uma candeia numa janela’ que pode ser assim resumido: um homem perde-se na floresta e descobre uma casa onde é bem recebido. A anfitriã é uma senhora de idade, viúva, que vive com vários gatos. O homem passa aí a noite e no outro dia descobre que o amor pelos gatos de Mrs. Kelly estava recheado de dotes faraónicos. Ao abrir a arca frigorífica, uma vasta colecção de gatos congelados comprova-o. E a dona da casa confessa a sua perdição: “Todos os meus velhos amigos. No eterno repouso. É que eu não suportava a ideia de os perder”.

O conto tocou-me, porque faço parte daquela franja da humanidade que tem um enorme fraquinho pelos gatos. Mas não sou maluco ao ponto de ir votar no PAN, pois é mais importante voltar a normalizar o Serviço Nacional de Saúde do que criar um paralelo destinado aos mais belos felinos da galáxia.

Voltando ao tema, devo referir que, por razões profissionais, procurei na rede críticas a este conto de Capote e ao livro onde ele surge publicado, ‘Música para Camaleões’. E foi então que, por acaso, encontrei um artigo científico que deixa as pesquisas da Universidade de Quilmes a um canto. Insere-se no naipe de investigações que, hoje em dia, fazem vida nos chamados ‘Estudos de Género’. O texto é da autoria de Michael P. Bibler e deixo-o aqui sem mais comentários (a tradução é minha, deixo o original em inglês em rodapé):

“Embora a história nos prepare para o facto de os gatos congelados serem símbolos ou substitutos do seu falecido marido, torna-se claro que ela ama os seus gatos literalmente enquanto gatos e nada mais. Capote leva-nos a compreender e a aceitar este amor pelos seus gatos como uma coisa em si mesma. E ao fazê-lo, ele convida-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro capaz de se ajustar a outras opções para além dos limites do casamento heterossexual, incluindo, ainda que sem se limitar a tal, a sua homossexualidade.”

Depois de ler esta preciosidade, pergunto-me se valerá a pena sequer comentá-la. Entre comprar a Gronelândia e a ideia de que os gatos congelados significam uma sexualidade de várias entradas, o que sobrará?

Sobrará talvez uma breve narrativa de teor oral que me foi contada por um amigo pintor que, por coincidência, é um apaixonado pela prosa de Truman Capote, pelos romances de Camus e pela filosofia de Kierkegaard:

‘O marido queria praticar sexo anal com a mulher, mas não sabia como pôr em prática um projecto de tal complexidade. Lembrou-se de comprar um busto de Napoleão. Colocou-o em frente à cama, ao lado da televisão. Na noite seguinte, a mulher perguntou – “O que faz ali aquele busto?” – e o marido, virando-se para ela, replicou – “qual busto, qual quê, o que tu queres sei eu”. E lá avançou como pôde, coitado’.

Esta breve narrativa, que em certos meios científicos é classificada como anedota, tem uma carga suplementar de vernáculo (diz literalmente “ir ao cu”), o que lhe confere um certo fundo antropológico. Se se convidasse o senhor Michael P. Bibler a interpretar este excurso no auditório da Gulbenkian, o que diria ele?

Diria que o marido, ao focar-se no peito de Napoleão (era essa a inexorável proeminência do busto), estaria a convidar-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro e capaz de se ajustar a outras posições e opções para além dos limites do sexo oral, competência em princípio partilhável nos mundos hetero e homossexual.

Acrescentaria ainda em jeito de conclusão: como os humanos não conhecem o género a que pertencem e precisam de aulas para o descobrir (por causa do dilúvio, Deucalião e Pirra ainda estão na lista de espera), se se tratasse do busto de Trump, tornar-se-ia necessário descongelar os gatos de Mrs. Kelly e a Gronelândia inteira e, depois de tudo derretido, tal como aconteceu com os hamsters de Quilmes, logo se veria para que fuso pendiam as coisas. Só então se podia, com propriedade, falar em negócio imobiliário.


Capote, Truman, Música para Camaleões, trad. paulo Faria, Livros do Brasil, Porto, 2015 pp.35-38 [Em linha]. (S/D.) https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829044.pdf [Consult. 3 Ago. 2019].

“Although the story prepares us to expect that the frozen cats could be symbols or surrogates for her dead husband, it becomes clear that she loves her cats literally as cats and nothing more. Capote pushes us to acknowledge and accept this love for her cats just as it is. And by doing so, he invites us to imagine a more hospitable world in which we accommodate other kinds of object-choice beyond the confines of heterosexual marriage, including but certainly not limited to his own homosexuality.”. In Michael P. Bibler,  Capotes´s Frozen Cats – Sexuality, Hospitality, Civil Rights, Journal Angelaki, Journal of theoretical humanities. [Em linha]. (Volume 23, 2018 – Issue 1 / Queer Objects. Issue Editors: Guy Davidson and Monique Rooney) https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969725X.2018.1435387?journalCode=cang20 [Consult. 3 Ago. 2019].

29 Ago 2019

Os novos misticismos

[dropcap]T[/dropcap]entar explicar uma realidade que não caiba nas palavras (ou nas possibilidades mais vastas da linguagem humana) pode conduzir a dizer, não o que ela é, mas aquilo que ela não é. Por outras palavras: em vez de o raciocínio avançar com as características que seriam próprias dessa realidade (e com analogias várias que a sugerissem), prefere antes enumerar o que ela certamente não é (negando e interrogando, ao mesmo tempo). Aplicado a deus, este método denomina-se teologia negativa; na retórica recebeu a feliz designação de apófase.

O ‘Cântico Negro’ de José Régio popularizou a fórmula com versos que se tornaram famosos, o que não deixa de ter a sua graça: “Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. São Tomás de Aquino também recorreu abundantemente a esta prática, mas ela acabou sobretudo por ficar conotada com a tradição mística, caso de Johannes Scheffler (1624-1677), por exemplo.

O Verão, redundantemente apelidado de “silly season”, é um período associado a uma menor densidade de carga informativa. Trata-se de um fenómeno recente que não se adequaria, com toda a certeza, à era de quase ininterrupta devastação que ligou duas das datas fundamentais do século passado: 1918 a 1945. Antes do assassinato de Sarajevo, a alegada “agenda informativa” não tinha o peso, nem o significado de pedra angular que adquiriu dos anos sessenta para cá. De forma que o tráfico comunicacional da expressão “silly season” é filha do presente imediato e seria incompreensível fora das fronteiras da nossa época.

Por vezes, penso na sorte tremenda que é ter vivido, até hoje, sem me ter cruzado com uma guerra (ou com os seus efeitos directos na pele). Por vezes, penso como é frágil pronunciar e comunicar expressões como é o caso dessa idiota “silly season”.

Uma tal expressão quer essencialmente dizer que, entre Julho e Agosto, o mundo deve ser esquecido, removido, desclassificado. A anestesia a que os veraneantes são convidados coloca as greves como um pano de fundo divertido, as mortes no Mediterrâneo como lance para extraterrestres e as quedas nas bolsas enquanto episódios para esquecer a meio do hipnótico ‘zapping’ diário. Por outras palavras: a “silly season” é uma teologia negativa, porque é um modo prático e chão de dizer o mundo pelo que ele não é.

Há contudo algo que não bate certo. A teologia negativa só existe na medida em que os humanos se encontram face a uma realidade que não conseguem traduzir (que não cabe nas possibilidades da linguagem). Quando se traduz, intenta-se uma aproximação entre dois registos, pratica-se amizade. Quando nem se consegue traduzir, é porque estamos face a qualquer coisa de que não sentimos proximidade e que se torna, portanto, inexplicável, distante. A pergunta é: qual é ‘essa coisa’ que os veraneantes não conseguem entender e que os leva em massa para esta espécie de profana e elementar teologia negativa?

A resposta parece-me clara: a turba afirma claramente e sem complexos que não entende, nem pretende entender o mundo e por isso o apaga neste recente ritual dos meses de verão.

Na larga maior parte da história dos humanos, sempre houve grandes perguntas e grandes respostas, isto é: valores óbvios, referenciais. Foi por isso que surgiu a filosofia e foi por isso que surgiram mil e um mandamentos religiosos ou ideológicos, pelo menos desde que, no alvor do mundo moderno, o homem (e não a transcendência) se colocou como objecto por excelência a ser investigado pelos saberes. O nosso tempo saiu dessa fornada de aflições carregadas de sentimento de dever. Os veraneantes querem é que não os chateiem, querem é que os deixem em paz a arrastarem os carros pelas auto-estradas, querem é que os deixem em paz nas procissões pelo deus-património, querem é que os deixem em paz entre o iphone, o fato de banho e o shopping.

Este dissociar do mundo, que se tornou crónico, passou a ter o seu clímax massificado nesta altura do ano (enfim, no hemisfério norte do planeta). Duvido que seja um período de franca realização, é-o muito mais de fluxo, de repetição, de reconstrução das rotinas diárias num novo contexto em que a irracionalidade – como acontecia nas antigas tradições do carnaval – pode dar-se ao luxo de dar uns passos de dança em falso, mas, desta feita, sem temer atropelar o outro. Os meios esquecem-se e os fins cingem-se amiúde às gargalhadas frugais do indígena (a amizade e a ideia de ‘outro’ escapam-se facilmente à voragem).

Para explicar uma realidade que não cabe nas possibilidades das expressões humanas, bastará, pois, colocar à solta um leme negativo. Repetir o que ela não é. Se os místicos o faziam com poemas particularmente elaborados (e muitas vezes foram conotados com ateísmo, refira-se), os humanos de hoje escrevem-nos através das indústrias do lúdico como se elas fossem a redenção de uma qualquer divindade ausente, irremissível e jamais superável.

O misticismo está a renovar-se, como se vê. Para o provar, deixo em baixo dois poemas: o primeiro é um original de Johannes Scheffler, o segundo é de minha autoria, embora literalmente baseado na rescrita do primeiro:

“O Deus Desconhecido.
O que é Deus, não o sabemos: ele não é luz.
Não é espírito.
Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é
Aquilo que chamamos divindade:
Não é sabedoria, não é intelecto, não é amor nem
Querer nem bondade.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Uma essência, não é um coração:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
Criatura
Antes de ter-se tornado naquilo que Ele é, jamais
Conhecemos.”*

O Mundo Desconhecido.
O que é o mundo, não o sabemos: ele não é uma prancha de surf.
Não é hora de ponta.
Não é androide, nem sindicato das matérias perigosas, nem CGTP, ele não é
Aquilo que chamamos ginásio ou solário:
Não é charter, não é low cost, não é bandeira verde nem
Vilamoura nem festival no passeio marítimo de Algés.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Um fio dental, não é um alojamento local:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
criatura
Antes de ter-se tornado aquilo que o mundo é, jamais
Conhecemos.


*Tradução Nícia Bonnati em Derrida J, Salvo o nome, Papirus Editora, Campinas, 1995, pp.32/33.

22 Ago 2019

Catch, o Trumputin e o kitsch histórico

[dropcap]M[/dropcap]al abriu em Junho passado a cimeira do G20 em Osaka, logo Trump apareceu, no seu jeito de incontido prestidigitador, a pedir a Putin para não interferir nas eleições americanas de 2020. Um teatro assim, produzido debaixo da mesa dos matraquilhos, tem o humor ao nível dos irmãos metralha. Até porque toda a gente já aprendeu a reconhecer os desviços penianos do marionetista nos acenos da marioneta. O tosco domínio da imaginação faz lembrar aquele delicioso texto de Barthes sobre o facto de o catch (texto que em 1957 abria Mythologies; wrestling na tradução inglesa) não ser um desporto, mas antes um espectáculo.

Tal como o strip-tease, que sugere o apimentado palpite do sexo sem o ser, o wrestling sugere a avidez do desporto embora não passe de uma táctica espectacular ao serviço de um (tão perverso quanto) tácito empate. Aqui a manobra é a mesma: falar como se estivéssemos à mesa do café ou no FB a exercitar a imbecilidade natural, mas com o objectivo de dissuadir a ferida, de sacudir a mouche e de ludibriar as borbulhas às tabuadas.

Quando eu era criança, qualquer futuro era melhor do que tudo aquilo que se passava à minha volta. Logo que a revolução cruzou o país, o futuro parecia querer emergir das pedras da calçada como uma corça que não sabe bem em que direcção correr. Mais tarde, chegou o tempo dos cartazes que diziam – aliás gritavam – “Europa Connosco” e o futuro começou a cheirar a croissants, a rendimento mínimo mas também às enviesadas cartilhas do FMI. Nos alvores da década de oitenta, o futuro soube ainda sorrir por cima da agonia comunista e olhou com desusada esperança para a rosácea do federalismo.

Quando a última década do século passado se encontrou com o 11 de Setembro, o futuro libertou um cheiro amargo a paiol. Mas nada que fizesse temer um bom mortal lusitano, sobretudo se tivesse escutado a virilidade do Padre António Vieira a pregar que “uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal” (Sermão da Sexagésima, IX), adágio que prenunciou o afundamento (ou a crise, se se preferir) dos idos de 2008 a 2011.

Fosse como fosse, apesar dos Obamas, das utopias federalistas com que Kant tanto sonhou e do coração de ouro de Steve Jobs, o boom das tecnologias não foi capaz de acossar nacionalismos, migrações humilhadas e hackers qb. e foi por isso que o final da segunda década deste século acabou por trazer consigo, entre muitos outras, as encenações Trump, Brexit e Bolsonaro. Um verdadeiro tufão que teve – e continua a ter – como base um enorme fastio e o esgotamento das soluções políticas clássicas. Poucos conseguirão definir com clareza o tempo que estamos a viver – o sorriso de Xi Jinping parece levitar sobre essa perdição – e muitos chegam a arder nas palavras com que o tentam. Ou, dito de outro modo bem mais avisado, pois um padre impõe sempre o seu respeitinho – “O definir-se foi declarar a sua essência: o arder foi provar a definição” (Sermão do Mandato).

Quando há dias ouvi Trump a pedir a Putin para não se meter (onde já se meteu e atascou até ao pescoço), ocorreram-me aqueles cenários caóticos que, ao fim e ao cabo, fazem parte de um mundo arrumadinho (em que as regras entre senhorio e inquilinos estão escritas em contrato bem escondido num cofre sem quaisquer segredos). Desde os anos oitenta que retenho o que Kundera escreveu acerca do kitsch em A Insustentável Leveza do Ser (1984). Há coisas que a memória guarda, outras não. O primeiro de Maio soviético ou a música de fundo de um restaurante de luxo (suíço) eram exemplos romanescos que o autor dava para explicar essas simetrias açucaradas, onde tudo aparecia arrumadinho apenas na fachada: sem pó e sem grandes distracções.

O pior é se, um dia, este tipo de catch ou de wrestling, que é o trampolim do verdadeiro e perigoso kitsch, se transforma em pólvora e a desarrumação no Golfo Pérsico vence os tapumes, as paredes de água e as frases sensaboronas. Com as devidas diferenças, há qualquer coisa na boçalidade de Trump que evoca a tibiez de Arthur Chamberlain, recém-chegado de Munique em Setembro de 1938, quando levantava no ar o papel de um (ilusório) tratado de paz. Já Nietzsche avisara, em Para Além de Bem e Mal (1886, §262) que os “incuráveis medíocres” aparecem e subsistem aos “pontos de viragem da história” enquanto – compreenda-se a “ironia” – porta-vozes da “única moral que poderia ainda ter algum sentido”.

Esta prática de catch ou de wrestling é perigosa. Se é verdade que todas as actividades humanas, ao perderem a sua função mais imediata, se podem transformar em jogo, caso do uso da linguagem, da guerra, da caça ou do amor, não é menos verdade que um jogo não se força ou simula por muito tempo, pois, ao fim e ao cabo, depende sempre de regras muito claras e não da ventilação assistida aos irmãos metralha.

15 Ago 2019

A poesia não é um lamento

[dropcap]O[/dropcap] que é a poesia? Para esta pergunta, eu sei que há sacerdotes a sorrir e a guardar para si o sumo do mistério, mas também sei que há uma turba de poetinhas a pavonearem palavras e palavrinhas. Deixemos, pois, de lado os ‘jardins dos poetas’ e os guardiões do tesouro e falemos de lapso. Sim, a poesia é um lapso, uma inflexão incurável, um modo de descompensar as anamorfoses do mundo. Através da poesia, os humanos recorrem à roleta russa: disparam e por vezes a bala atravessa a linguagem e consegue emendar a morte. Um lapso de ouro.

Num jogo de xadrez, é possível viver esse momento-chave: o jogador levanta a peça no ar e ainda não a pousou. O poeta aprendeu há muito a manter o braço no ar (nessa suspensão infinda) e a movimentar as peças da linguagem entre variados campos semânticos. E é no movimento e não na escolha – essa morte súbita – que se lhe reconhece a pulsão essencial. O poeta tem setas movidas e moventes que imitam a luz, fonte de vida.

O desempenho inicial da linguagem é de natureza poética. É esse o seu cariz de “númen”. Hans Blumenberg situou o “absolutismo da realidade” nos primeiros estádios da caminhada humana – a chamada “vorverganggenheit” – desenvolvendo-se a comunicação nos antípodas das actuais convicções de realismo, ou seja, naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. O númen, embora concreto como a areia que o mar amassou, designa um enigma que instaura algo ou que o faz viver e reviver.  Na obra que abre o romantismo em Portugal, Camões (1825), Garrett recorre justamente à figura do númen para se aproximar dos sortilégios da saudade: “Misterioso númen que aviventas/ Corações que estalaram, e gotejam/ Não já sangue da vida, mas delgado/ Soro de estanques lágrimas – Saudade!”.

O númen mostra e oculta ao mesmo tempo. Num conhecido fragmento (o nº93) atribuído a Heraclito por Plutarco, pode ler-se: “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais”. Os impactos desta bitola reversível que circula entre o conhecido e o desconhecido (e entre o visível e o invisível) sempre suscitaram disrupções emotivas e fóricas. Razão por que, quer na casa da filosofia (livro X de A República de Platão), quer nas narrativas axiais (caso do Alcorão por exemplo, em suratas como a 21,5, a 26,223, a 69,41-42 ou a 31,5), a poesia, enquanto registo, e os poetas, enquanto performers, foram amiúde mal vistos e até perseguidos. No entanto, G. Steiner, em A Poesia do Pensamento (2011), confirmou que a voz poética é também um númen que pensa e que, portanto, ao fim e ao cabo, nada seminalmente a distingue do ‘telos’ da filosofia. A não ser, estar muito para além dos modelos e das alfaias técnicas e metodológicas que a delimitam.

No início da Poética, Aristóteles afirma que a poesia é “uma arte que até hoje permaneceu inominada”. Desde então, durante mais de duas dezenas de séculos, a poesia foi fortemente dissecada e gramaticalizada, mas sem nunca perder, enquanto vestígio de fundo, a pulsão de númen. Daí a sua persistente incógnita. Borges bem avisou nas “Palestras Norton” (1967), referindo-se a Stevenson, que a poesia mais não faz do que devolver a linguagem à sua fonte. Com a passagem do tempo, os jogos de linguagem foram-se tornando num aquário opaco em que tudo – nas suas muitas camadas – se diluiu. Teriam, pois, que ser os românticos a redescobrir na singularidade da poesia o poder de desvelar o ser e o cosmos, no momento em que as grandes escatologias começavam a ceder o seu papel dominador a novas formas modernas de codificar o mundo.

Foi por isso que Shelley, em  Defense of Poetry (1821), se aventurou a dizer que “o poeta participa do eterno, do infinito e do uno”, acentuando no ofício uma perspectiva gnosiológica. Desligada de finalidades práticas e aberta a partilhas fluidas, a poesia surge em Kant (na Crítica da Faculdade do Juízo, 1790) entre as “artes elocutivas”. Na mesma época Schlegel, em Lucinda (1799), agradecia às entidades ‘superiores’ a novíssima revelação da ‘poiesis’: “Estamos contentes e gratos para com a vontade dos deuses, estamos satisfeitos e agradecidos com o que eles nos indicaram tão claramente nas Sagradas Escrituras da bela Natureza.”. Na mesma obra, a poesia afirmava radicalmente toda a sua autonomia e recusava a instrumentalização a que tanta vez fora votada: “Há poemas na antiga religião que, em si próprios, possuem uma beleza, uma santidade e uma delicadeza únicas. A poesia formando-os e transformando-os, deu-lhes tanta riqueza e tanta fineza que a significação deles, já de si tão bela, ficou imprecisa e permite interpretações e formações sempre novas”.

Entrávamos, logo a seguir, na esquadria do chamado ‘nosso tempo’ com a poesia, por vezes, a querer diagnosticar o que nunca lhe coube, nem caberia diagnosticar. É essa a doença dos realismos e dos artificialismos sem fim que persistem no seu cego jogging. Verdade seja dita que poucos ainda hoje agarram o animal pelo númen da roleta russa, ensaiando a abertura aos territórios onde o maior dos lapsos permitiu a Hilda Hilst escrever: “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra da sua própria sombra?/ Sim. Em sonhos via/ Prateado de guizos”.

Não, a poesia não é um lamento, nem é uma representação seja do que for, mas confirma na plenitude o que Píndaro deixou escrito na sua oitava Ode: “O humano é o sonho de uma sombra”.

A poesia pode não nos ensinar nada, mas pelo menos proporciona ao nada o espanto que o realiza.


Blumenberg, H. Work on Myth. Cambridge; Massachusetts; London. The MIT Press, 1985, p. 57.
Garrett. A. Camões. Editorial Comunicação, Lisboa. 1986, p. 55.
Hilst, H. Poema XVII/Via Espessa  em Da Poesia. Companhia das Letras, S. Paulo, 2017, p. 460.
Kirk, G.; Raven, J.; Schofield M. Dos Oráculos da Pitonisa – 11/604A em Os filósofos pré-socráticos, F.C.G. Lisboa, 1994, pp. 217-218.
Píndaro, Odes, trad. António de Castro Caeiro. Quetzal. 2010, p. 64.
Schlegel, F. Lucinda. Guimarães Editores, Lisboa. 1988, pp. 133-134.
Shelley P. A Defense of Poetry, Shelley´s Poetry and Prose. New York, Norton. 1977, p. 478-479.

8 Ago 2019

A literatura não é um divertimento

[dropcap]U[/dropcap]m autor que se sobrevive é como se tivesse escrito a sua obra num tempo a que já não pertence”, escreveu Vergílio Ferreira no seu volume ‘Pensar’ (1992). É verdade que o tempo é cada um de nós a erguer o dia-a-dia, embora o dia-a-dia no-lo devolva através de uma síntese geralmente disfórica que não convida à identificação. O que construímos parece transformar-se numa simples gota de orvalho que se esvai no meio do temporal (o vórtice da duração).

Razão por que, quando se fala de literatura, é de erguer o tempo que deveria falar-se e não do eco massivo e passivo do mundo que se abate sobre nós. Colocar de lado todo esse manancial constituído por linguagens abrasivas (um caudal que se espalha via enxurrada de net e tv) é, ao mesmo tempo, olhar para o palco vazio e, de repente, sem circunspecções, observar a nudez que sobra.

Encaro essa nudez como um corpo no meio da rebentação das ondas e ainda assim de pé, hirto. Um corpo que não se revê no tempo, seja em que tempo for. Desse modo persistirá: num lugar em que é possível não pertencer a absolutamente nada. Tal como Mallarmé escreveu no seu poema ‘Salut’: “Uma embriaguez me faz arauto,/ Sem medo ao jogo do mar alto,/ Para erguer, de pé, este brinde”. Sem se suspenderem as conexões práticas e imediatas, ou seja, todo o discorrer em fluxo do que é emergente e momentâneo, creio que esse corpo se iria transformar de modo passivo na própria água do mar, isto é: limitar-se-ia a ecoar e repetir outras linguagens, perdendo esse ardil (próprio dos infinitésimos) chamado identidade.

Quem diz linguagem diz formas de poder, policiamento discursivo, repetição de esquemas, de matrizes, de palavras de ordem, reprodução social pura. Creio que a actividade literária começa no preciso momento em que temos a consciência de poder deter todo o oceano e de conseguirmos ser, na vertical, um corpo que se afirma, tentando rasgar e moldar a grande massa líquida da linguagem, de acordo com uma dada intencionalidade. Nem que seja por instantes (instantes em que deixamos de pertencer a essa malha de armadura que separa o que se diz ser realidade dos olhos que a contemplarão).

Deter o oceano é escrever e escrever não é apenas teclar e estar fora de todas as maratonas que outra coisa não fazem do que reproduzir-se sem qualquer novidade; escrever é sobretudo mergulhar em si e não limitar o esforço de olhar para onde nunca se olha, o esforço de escutar o que nunca se escuta, o esforço de tocar com a linguagem onde dificilmente ela tocará. Penetrar no inominável será escrever a primeira das letras.

É por isso que a literatura corresponde a uma parte ínfima da voragem de livros que hoje se escrevem e publicam. Para ser literatura, para além da poesia que é a pérola inicial (“tout brûle dans l´heure fauve”*), há duas categorias básicas: sulcar e reinventar a linguagem, por um lado, e, por outro, dizer o imprevisto, o incomparável, aquilo que salta inventivamente para um patamar em que o ser se altera, se redescobre e sobretudo problematiza. Sem estas duas categorias, que são categorias de esforço e não de facilitismo, não entendo que haja literatura (e nela, claro, consigo incluir o ensaio que herda do tempo dos irmãos Schlegel, especialmente de Friedrich, o epíteto de “desdobramento criativo”). Um livro aprazível, modelado com toda a gramaticalidade e com um enredo situado nos limites do provável, não é literatura; é divertimento. No meu caso, para me divertir prefiro desenhar cidades, circular pelos passeios, comer um bom caril ou saborear o lúpulo das cervejas Trevo da Caparica.

Vivemos hoje num mundo que substituiu o essencial da reflexão e do dever-ser (quer do que se levantava para as divindades pré-modernas, quer do que se levantava para os altares civis da esfera moderna) por um fluxo razoavelmente controlado de trilhos privados. Este sublimar generalizado – que todos vemos nas nossas cidades – fez o ‘ethos’ sair de cena em nome das grandes absorções individualistas: o consumo pelo consumo, o espectáculo pelo espectáculo, as viagens pelas viagens, a praia pela praia, o ginásio pelo ginásio, a rede pela rede, a informação pela informação, os festivais pelos festivais e o livro-divertimento pelo livro-divertimento.

Prezando muito um universo plural em que o conhecimento e o prazer podem ser uma escolha e não uma fatalidade cega, penso que a literatura e outras artes têm, hoje em dia, uma responsabilidade única: a de os sujeitos se conseguirem conectar consigo próprios, respeitando, por outro lado, aquilo que os legitima: a intersubjectividade. Precisamente o oposto de quem vive e respira colado à máquina, mortificado antes de tempo face a face ao iphone, deslizando num ‘deixa andar’ de melopeias e auriculares que rema a sós contra a turba, ou que se cinge a copiar gestos, a reiterar  sombras vazias e a purgar as infinitas azias de existir.

A literatura é um repto importante, mas não é uma vaca sagrada. Todavia, no seu nicho, que já não é felizmente um nicho de famosos (hoje circunscrito a fantasmas em estado de ‘zapping’ que aparecem e desaparecem nos media), estar de pé contra as ondas e levedar uma respiração singularizada torna-se num dever maior. É isso, afinal, que devia fazer a literatura ser o que ela na sua essência é.


‘Salut’ e ‘L´Aprés-Midi d´un faune’ em Mallarmé, S., Poésies, Bookking Internationale, Paris, 1993, pp. 13 e 48.

25 Jul 2019

Verão viciado, bonifaciado e sem saída

[dropcap]Q[/dropcap]uando chega o mês de Outubro e o ano termina em 17, a tendência para as revoluções é coisa de levar a sério. Em 1517, a que foi desencadeada por Lutero teve mais consequências do que os acontecimentos russos quatro séculos depois. O ponto de partida foi a denúncia da venda de indulgências. No último dia do mês, estava já muito frio, Lutero afixou nas portas da igreja do castelo de Wittemberg as suas 95 teses. Entre elas figuravam textos como – “Se o Papa soubesse dos métodos de extorsão usados pelos pregadores de indulgências, preferiria ver a Basílica de São Pedro a afundar-se em cinzas a edificá-la à custa da pele…” ou “Deve-se ensinar aos cristãos que age melhor quem dá esmola ao pobre do que quem compra indulgências.” – ou ainda – “…o Papa (devia estar) disposto a vender a Basílica de São Pedro para dar do seu próprio dinheiro a muitos a quem alguns pregadores o tiram.”*.

Os tempos passaram, mas o tópico persiste inabalável. Não apenas nas seitas religiosas – o Brasil que o diga -, mas também na área da justiça que, com toda a naturalidade, considera que o dinheiro (e quem o tenha) se constitui como argumento para a ‘salvação’. Neste caso, não se trata de salvação celestial, mas da terrena. Seja como for, o horizonte é precisamente o mesmo. Para o Sr. Salgado tanto faz, mas, para quem não tem dinheiro para trocar a prisão pela liberdade, faz toda a diferença. Nos dias que correm, a existência destas vendas justicialistas de indulgências é um dos maiores argumentos que se pode dar aos populistas e, para além disso, não deixa de ser uma prática inqualificável que eu – do alto da minha ignorância – julgo estar nos antípodas da democracia. A igualdade de oportunidades, princípio constitucional, deveria anular, de modo taxativo, estas indulgências contemporâneas.

O mais curioso é o facto de, ao fixar o montante da caução, o juiz tomar antes “em consideração os fins a que se destina, a gravidade do crime imputado, o dano que este causou e a condição socioeconómica do arguido”. Depois, “o arguido pode prestar caução mediante depósito, penhor, hipoteca, fiança bancária ou fiança. Esta medida pode acumularse com qualquer outra, excepto a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação”. Pois é: paga, sorri e salva-se da prisão. Lutero, se soubesse disto, tinha criado uma 96ª tese e tê-la-ia exposto nos grandes portões do castelo de Wittemberg com uma selfie que enviaria ao Sr. Salgado.

Salvar: eis, pois, um verbo de muitas e variadas matizes que nunca se desactualiza. Se não for por dinheiro, haverá sempre outras vias, acreditem-me. Vinicius escreveu numa crónica de 1946 que “só a poesia pode salvar o mundo de amanhã”, mas isso foi em tempos de pós-guerra, quando a inocência projectava novos devires. Numa era em que tudo é comunicação e em que o ruído de fundo da rede cala as vozes individuais, ainda que todas se aprestem a gritar (por vezes a berrar), uma pessoa só se consegue ouvir e salvar – trata-se de uma nova maneira de se salvar – de duas maneiras: ou seguindo os princípios clássicos do “lateral thinking”, teorizados por Edward Bono há quase meio século, ou então baptiza-se com o nome de Bonifácio. São os novos modos de salvação da contemporaneidade: ter alguma atenção e visibilidade, ainda que por pouco tempo. Era assim que deus dantes aparecia aos místicos: um súbito clarão que os içava para a remissão eterna e os iluminava, salvando-os.

O “Lateral Thinking” baseia-se na oposição entre a arrumação “vertical” da mente (uma morfologia baseada na “construção de padrões”) e o teor de mensagens desconcertantes que a consigam pôr em causa. As imagens lançadas pela Benetton nos anos noventa constituíram um exemplo pioneiro deste tipo de desmontagem metalógica que obriga as pessoas a suspender a padronização das suas mentes, dando atenção a uma mensagem específica que aparece no meio da voragem. A “viralidade” é o nome que a rede consagra para esta apetência (tão estudada que é nos meios da publicidade): criar algo de tal forma inusitado que dê nas vistas e que seja muito visto e partilhado. Geralmente estamos a falar de idiotices parolas e de uma vulgaridade rasa (e não de clarões etéreos ou de estética surreal).

Para além deste princípio clássico, existe uma segunda maneira de uma pessoa se ‘salvar’, leia-se: tornar-se notada com uma lança envenenada entre os dedos, de forma a ser contemplada e comentada intensamente por meio mundo. É o modelo Bonifácio que tem precedentes mitológicos.

Bonifácio não quis defender um determinado ponto, preferiu antes falar de coisas irreais (o seu chamado “nosso mundo” ou a sua chamada “Cristandade”) para depois abordar, de modo totalmente desajustado, alguns temas que mereceriam reflexão séria: a integração num mundo plural e a possibilidade de cotas. Pelo meio não se esqueceu de estigmatizar, de ofender e de escancarar as portas ao racismo.

A viralidade de Bonifácio acabou por dar origem a um sem fim de respostas, a maior parte das quais correspondeu a discursos quase simétricos, aqui e ali (assustadoramente) intolerantes. Poucos foram os textos, ao cabo da rápida polémica, que tentaram desmontar com argumentos saudáveis o raciocínio cavernoso de Bonifácio. A polémica, se o foi, veio sobretudo mostrar-nos que vivemos num espaço público cada vez mais feito de barricadas estanques em que o diálogo é anulado à partida. Tal como na guerra, o ‘Outro’ não passa de uma brevíssima silhueta a eliminar.

Bonifácio sabia disto e praticou-o de modo implacável (é, afinal, o que se passa no dia-a-dia nas redes sociais). No seu silêncio de esfinge, terá ficado a rir das teses de Lutero. Para quê dinheiro, se a salvação pode ser comprada através da linguagem? (quase o mesmo diriam os quatro ou cinco grandes escritórios de advogados da nossa praça, cuja actividade fundamental é a compra e venda das ‘suas’ indulgências – aqui mais com dinheiro do que com jactâncias – nos adros da justiça).

Lembremo-nos que Medeia matou o irmão Apsirto, esquartejou-o e atirou depois os restos mortais pelo caminho, sabendo que o pai os iria recolher para poder dar uma sepultura ao filho. Bonifácio também disparou e espalhou o fel pelo caminho sabendo que os recolectores exigiriam vingança e redenção. O que sobrou foram as inúmeras partilhas ao texto de Bonifácio e as ‘pesquisas’ para saber quem ela afinal é.

Creio que, do cimo das torres do seu castelo de Wittemberg, Bonifácio ainda se saiu melhor do que Medeia. E se a levarem para tribunal, a trama ainda mais se viciará. Barthes bem avisou no seu tempo: “…sendo linguagem, a ideia de saída acaba por se ajustar à exclusão de qualquer saída”.


Borges. Anselmo. Lutero: a fé e as indulgências em DN, edição de 17/11/17.(cons.:11/07/19)
Portal da Fundação Francisco Manuel dos Santos / Direitos e Deveres dos Cidadãos.(cons.: 11/07/19).

Barthes, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso, Edições 70, Lisboa, (1977) 2018, p. 227.

18 Jul 2019

Os editores do NYT e o monstro de Ravenna

[dropcap]N[/dropcap]o início da década de 90, quando estava a terminar o meu doutoramento, descobri em Washington DC um livro que tinha na capa uma figura com escamas na perna e um único olho no ventre*. Tratava-se da terrível e ao mesmo tempo sublime imagem do monstro de Ravenna.

Há várias fontes relativas ao aparecimento deste monstro. Uma delas é a interessante descrição do farmacêutico florentino Luca Landucci que, no seu diário de 1512, dá conta do monstro de Ravenna como um facto real. Como se a personagem de carne e osso tivesse nascido na cidade das duas pombas e vagueasse perigosamente entre o Veneto e as cidades da Emília Romana.

A autora do livro, Otavia Niccoli, deu o exemplo desta imagem como prova da rápida circulação de figurações deste tipo na época (em duas semanas apenas terá chegado de Ravenna a Valladolid). As guerras itálicas – envolvendo espanhóis e franceses – e o pano de fundo da colisão otomano-cristã eram território fértil para a utilização (dir-se-ia hoje em dia mediática) desta cativante literatura profética, muita dela carregada de imagens com funções de aviso, dissimulação, criação de alarme e, também, naturalmente, de catarse.

Há alguns anos, em viagem, fiz propositadamente um desvio para visitar a cidade de Ravenna. Confesso que, ao contrário de muitas outras cidades da região, Ravenna sempre me motivou apenas por causa da singularíssima imagem do monstro. Curiosamente, ao percorrer as ruas, não encontrei a imagem do monstro de Ravenna em nenhum símbolo, ícone ou logotipo do município ou das empresas locais. Estranhei imenso. No posto turismo, uma senhora (academicamente formada) e que sabia imenso da história local nunca tinha ouvido falar da imagem do monstro. Pasmei. Era domingo e, para além da variadíssima literatura sobre a cidade que enchia as prateleiras do posto de turismo, eu apenas dispunha de um recurso para poder provar à senhora que o monstro de Ravenna tinha efectivamente existido: o Google. Ao fim de dois cliques, claro, a senhora maravilhou-se.

Pena tive eu de não poder ter feito o mesmo, há um mês, aos editores do New York Times. Ter-lhes-ia mostrado o monstro de Ravenna e, depois, lia-lhes ao ouvido este breve trecho – “Vi um carneiro que estava ali de pé com dois chifres compridos e o último a nascer era o mais comprido dos dois. O carneiro dava marradas para ocidente, para o norte e para o sul.”. Após a leitura, referia-lhes a fonte (Antigo Testamento – Daniel,8) e explicava que o carneiro correspondia ao reino Meda-Persa que, logo a seguir na narrativa, contracena com um “bode” identificado com Alexandre-o-magno. Este tipo de relatos, continuaria eu de modo paciente, era normalíssimo no mundo antigo e medieval: animais simulando impérios, bestialidades denotando submissões, enfim, monstros exagerados – como o de Ravenna – dando a ver dominações.

Mesmo sem ponderar o fundamental, o uso da liberdade, com um mínimo de conhecimento destas nossas genealogias simbólicas, jamais os editores do The New York Times teriam tomado a decisão de acabar com a publicação de ‘cartoons’ na sua edição internacional. Atribuir a significação literal de anti-semitismo a uma crítica política óbvia, baseada numa tradição fabular que vem de tão longe, como aconteceu com o agora já famoso cartoon de António (António Moreira Antunes), é, sem dúvida alguma, um acto de assustadora cegueira.

Quando foi anunciada a proibição, o editor James Bennet reafirmou que o NYT continuaria “a investir em formatos de jornalismo opinativo, incluindo jornalismo visual” que expressasse “nuance, complexidade e vozes fortes a partir de uma diversidade de perspectivas”. Por mais que esta cegueira se ponha a pensar em voz alta, atirando areia e correcção aos olhos dos leitores, é óbvio que ela funciona bem mais por pressão do que pelo entendimento de um legado de liberdade e de pluralidade, sem esquecer a ignorância simbólica de que adora dar mostras.

Ignorar, obliterar ou esquecer a presença de símbolos é coisa triste. Mesmo numa cidade como Ravenna que já morreu por duas vezes (uma vez no ano mil e outra vez, no século XVI, devido à mortandade imposta pelos franceses), a ignorância dos símbolos não deixa de ser um curiosíssimo sinal destes tempos de alojamento local, mochilas e consumo tecnológico de douradinhos. A perda de memória colectiva, aliada a vórtices primários, a pressões e a correcções de todo o tipo dá nisto: a disneylandização do mundo que se entrega de mão beijada à intolerância dos pobres de espírito. Talvez assim consigam desnavegar com o capitão igloo até ao reino dos céus. Putacuspariu.


Prophecy and People in Renaissance Italy, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1990; original: Profeti E Popolo Nell’Italia Del Renascimento, GIUS, Laterza & Figli SPA, Roma-Bari, 1987.

11 Jul 2019

A internet de Aquilino Ribeiro

[dropcap]S[/dropcap]erão três os atributos a que os arqueólogos do futuro irão recorrer para descrever o nosso tempo, neste local onde hoje vivemos e respiramos: a ilusão de poder estar em todo o lado ao mesmo tempo, a ilusão de poder aceder – seja ao que for – de modo instantâneo e a ilusão de poder saborear um tempo lúdico e marcado pelo desígnio da juventude eterna.

Quando lemos ‘As Terras do Demo’ de Aquilino Ribeiro – e devo referir que tenho na minha frente a segunda edição centenária (1919, Ed. Livraria Aillaud e Bertrand, capa dura) -, vemos que os personagens metem mão à terra e fazem mil coisas ao mesmo tempo (“Era bem ela – a Glórinhas -, por maré de acaso tangendo as vacas para o lameiro, cesta das rendas enfiada no braço, chibata na mão.”), acedendo quase a coisas impossíveis (“Nela, o que mais o detinha era a fábula inesgotável que ao espírito se lhe antepunha”), embora tudo decorra num espaço que, para aqueles personagens, se confundia com o planeta (e até com o universo) inteiro. Uma espécie de aquário telúrico que, para além das suas paredes de vidro, reluzia algo de infinito, o que era uma evidência no quadro humano retratado por Aquilino: “Na serra, não havia mimos e o dinheiro andava caro; embora, o salvador do mundo acolhesse os serranos, sorridente, como se cada um lhe levasse todo o oiro, incenso e mirra dos magos do Egipto” (…) “O carujo vinha descendo dos picotos, e os ladridos dos cães, nos rebanhos, soavam de longe, que nem do cabo do mundo”.

A internet de Aquilino e a nossa são realmente muito diferentes. A primeira era vocabular, irradiava um prazer imenso em criar mundos e trepava pela língua como um animal genialmente amestrado (“Gozoso, elevava e derribava seus morouços, e estendia-os em linhas paralelas, obrigados a uma relação de valor e de simetria. Ao mais leve rumor, deitava-se de bôrco sôbre seu haver, sem respirar, sem latejar. Mas nas horas confiadas, sua voluptuosidade expandia-se num trejeitado variado de orate.”). A segunda vale-se de bordões linguísticos e de euforias virais, vive do prazer em reduplicar experiências e trepa por novas linguagens valendo-se de 845 emojis e de palavras de ordem “em modo de” bala tracejada. Nenhuma destas internets é melhor do que a outra. São matérias de natureza tão diversa que nunca se encontrarão (e muito menos se tocarão) no concerto das galáxias.

O curioso é que entre estas duas fórmulas de espantar a linguagem passaram apenas cerca de cem anos. Repare-se, por exemplo, que entre a Odisseia atribuída a Homero ou os textos do Primeiro Isaías e O Paraíso Perdido de John Milton (1667) passou um período vinte e cinco vezes maior e a diferença de linguagem, de construção e de tópicos é muitíssimo menor. Entre Alexandre, o Grande que morreu há 2.342 anos (foi a 10 de Junho de 323 a.C.*) e as datas de uma série de textos que continuaram sempre a dá-lo como um ser vivo passaram-se 20 séculos (aconteceu até ao séc. XVI). Foi o caso, entre muitíssimos outros, da Sibila Tiburtina (380 d.C.*) em que Alexandre se converte em figura de imperador-salvador dos últimos dias e foi também o caso, em terras iraquianas, durante o reinado do quinto califa abássida, Harún ar-Rashíd (764-809), do Apocalipse de Bahíra*, texto atribuído a um monge cristão que colocava Alexandre em cena para pôr cobro à emergência islâmica.

Na escala humana, sempre foi possível reconhecer nas grandes amplitudes temporais algumas constantes e alguma estabilidade, razão para a existência dos chamados “cânones”, recorrendo à terminologia de Harold Bloom. Ora, a nossa época escapa radicalmente a esta regra, pois faz passar milénios em poucos anos. Nem toda a gente dá por isso, do mesmo modo que ninguém repara que o planeta executa a sua translação ao sol numa velocidade próxima dos 30 quilómetros por segundo.

Andamos exaltadíssimos com os vigores da tecnologia, mas tudo o que inalamos é simulado e ilusório. Não damos conta, de facto, do que se passa à nossa volta. Os três atributos com que os arqueólogos do futuro nos revisitarão falam por si a este respeito: (1) imaginamo-nos omnipresentes na rede, (2) acedermos instantaneamente a hemisférios virtuais e (3) vivermos a ilusão lúdica da juventude eterna. Uma era baseada em simulações é, pois, uma era cega para descobrir hipocrisias (relativações sem fim incluídas), falsidades (‘fake news’ incluídas) e traições (o que se difunde metamorfoseia-se logo).

Neste aspecto específico, a internet de Aquilino mostrou-se bem mais eficaz no seu tempo, já que foi justamente com a descoberta de uma traição que o romance ‘Terras do Demo’ encontrou o seu desenlace: “Empurrou-a dum alancão e seus olhos presenciaram a monstruosidade: o João Bispo, o homúnculo hediondo, sob seu corpo semi-nu subjugava o corpo semi-nu de Glòrinhas. Bocados de formusura divina confundiam-se com luaceiros de disformidade imunda. Ela debatia-se, o monstro que com uma das mãos lhe tapava a bôca, com a outra tenteava seu lance”. O herói, ou anti-herói, Inácio Miôma, não era um “farçola de varapau”, apesar de ter caído na desonra de “saborear um tal sainete”. Virtual, o tanas, salafrário!


*Liparotti, Renan Marques; Plutarco: A fortuna ou a virtude de Alexandre Magno, Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume Editora, http://hdl.handle.net/10316.2/43219 (Cons. 5-Jun-2019 12:00:31).
*Profecia do fim do século IV, provavelmente redigida na sequência da derrota militar romana em Adrianople (378). A partir do original grego, variadíssimas traduções permitiram a sua reactualização até ao século XVI (B.McGinn, Visions of End-Apocalyptic Traditions in the Middle Ages, Columbia Un. Press, New York,1983, pp. 53-54).
*Abel, Armand, Réflexions comparatives sur la sensibilité médiévale autour de la Méditerranée aux XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII, 1960, pp.23-42.

4 Jul 2019

A história da caverna negra

[dropcap]A[/dropcap] 6 de Dezembro de 1947, Jorge Luís Borges deu em Harvard uma conferência no contexto das “Palestras Norton”, intitulada “Contar o conto”. A passagem mais significativa do texto compara a épica com a tradição moderna do romance. Referia o autor que a diferença não se situa “entre verso e prosa”, nem “entre cantar uma coisa e dizer uma coisa”.

A diferença de fundo era outra. Cito: “O que é importante no poema épico é um herói – um homem que sirva de modelo a todos os homens. Ao passo que a essência da maior parte dos romances está na falência de um homem, na degenerescência do carácter. Hoje, quando as pessoas pensam em final feliz, pensam-no como concessão ao público ou pensam-no como estratagema comercial. Contudo, durante séculos os homens puderam muito sinceramente acreditar na felicidade e na vitória, embora sentissem a dignidade essencial da derrota.”

Pode resumir-se esta duplicidade, aliás já bastante estudada, do seguinte modo: ao imaginar-se o homem a dialogar e a respirar no meio dos deuses, é natural que os relatos tendam a elevá-lo quase a deus. Por seu turno, ao imaginar-se o homem livre e capaz de tomar conta de si próprio, é natural que os relatos tendam a dar conta da sua queda. As histórias de Ulisses, Jesus, Gilgamesh, Alexandre ou Sindbad nada têm que ver com as personagens presentes nos enredos criados por Kafka, Poe, Roth, Rubem Fonseca ou Houellebecq. O mundo antigo e o mundo moderno chocam, de facto, neste ponto seminal.

O caso fez-me relembrar um romance de Ernesto Sabato, O Túnel, escrito quase na mesma altura em que Borges esteve em Harvard (1948).

O livro começa por anunciar do que trata logo no início: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne”. Aparentemente, o leitor é imediatamente lançado contra a parede. Nas páginas que se seguem, a ficção abre-se ao jeito de um desdobrável, dando conta da inauguração de uma exposição de pintura (o Salão da Primavera de Buenos Aires de 1946) em que uma mulher, Maria Iribarne, se apaixona por um pequeníssimo detalhe de um dos quadros expostos (uma janela de milímetros inscrita no fundo de um óleo onde contracenam uma mãe e um filho).

Este facto viria a mudar a vida do pintor Castel. Apesar de ter observado a mulher verdadeiramente extasiada apenas durante alguns minutos, nos meses que se seguiriam – cito – “só pensei nela, na possibilidade de a voltar a ver. E de certo modo só a pintei a ela. Foi como se a pequena cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha obra”.

O ponto de viragem é habilmente explorado por Sabato, pois dá origem a uma série de contingências mais ou menos inesperadas que conduz ao encontro dos dois e à sua inevitável (e fatal) atracção. Há cartas, telefonemas, idas de comboio a uma casa de campo, ciúme e toda uma encenação fantasmática que transformará a aventura em tragédia.

No final, a regra cumpre-se. Diz o protagonista: “Quando me entreguei, na esquadra, eram quase seis horas. Através da janelita do meu calabouço, vi como nascia um novo dia, como um céu sem nuvens. Pensei que muitos homens e mulheres começariam a acordar e logo tomariam o pequeno-almoço e leriam o jornal e iriam ao emprego, ou dariam de comer aos filhos e ao gato, ou comentariam o filme da noite anterior. Senti que uma caverna negra ia aumentando dentro do meu corpo”.

Percebe-se que a literatura visa uma simples brecha ou um lapso premeditado. Talvez nos queira só ensinar a morrer, nobre tarefa que enche toda a história da filosofia. A janela de Maria Iribane terá sido o simples pretexto para que um ponto de viragem pudesse dar acesso à “caverna negra”, ou à queda, que tanto atraiu os modernos e que tanto continua a cativar os contemporâneos.

Borges fez o diagnóstico elementar e Sabato cumpriu-o com um plot inventivo. A Argentina é um país maravilhoso, claro está. Mas estávamos ainda no plano dos livros, objectos que se abrem e fecham, quando viajamos de comboio no primeiro dia de verão, sabendo que antes contaram com editores, críticos, leitores devotados, filtros qb.

Há quatro anos, neste mesmo mês de Junho, Umberto Eco esteve em Turim para um doutoramento ‘honoris causa’ e testemunhou o desígnio da actual “caverna negra” com as seguintes palavras: “No nosso tempo, as redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas (mesmo com romances debaixo dos braço), apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade”.

Se os humanos nunca se habituaram a viver fora de mediações razoavelmente restritivas, fossem elas proféticas, épicas, jornalísticas, científicas ou literárias, o actual cenário parece estar a recuar para um tempo pré-mitológico, dir-se-ia mesmo primitivo, e, portanto, anterior à noção de herói, configurando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. Mas este recuo alia-se ao poder da tecnologia, o que significa que o seu impacto poderá ser letal.

Sem alardes de pessimismo, parece claro que a “falência do homem” e a “degenerescência do carácter”, realçadas por Borges, estão prestes ou, pelo menos, caminham no sentido de atingir uma espécie de cume. Esperemos, contudo, que seja um cume de Sísifo.

27 Jun 2019

Terá deus os carimbos em dia?

[dropcap]N[/dropcap]a escola primária aprendi a escrever a palavra “História” com maiúscula. Era uma questão de respeito, creio eu. A letra levada até quase ao tecto da página dava a sensação de tocar no céu. E sentia-se um calafrio, por vezes até um pouco de bafo divino que logo iluminava todo o tampo da carteira.

Nesse tempo, os sopros do presente ainda não se sobrepunham ao peso da longa cadeia de heróis que eu decorava com a devida altivez, a par dos caminhos de ferro de Angola. Nem seria preciso recorrer à farda impoluta e bem vincada de Mouzinho de Albuquerque, bastava abrir cartapácios um pouco mais antigos para o entender. Repare-se como um texto com quase três mil anos soa praticamente do mesmo modo que um outro – por baixo – apenas com cerca de quatro séculos:

“Tal como quando aos marinheiros aparece a chama/ do fogo ardente, que arde no alto de uma montanha/ num ermo redil, mas as rajadas à sua revelia os levam/ sobre o mar piscoso para longe dos que lhes são queridos – assim do escudo de Aquiles a chama chegou ao céu, escudo belo…” (Ilíada, canto XIX/ vs. 375-380*).

Vejamos agora este passo de um texto profético de autor anónimo, escrito na região de Aragão na segunda metade do século XVI (e encontrado, no séc. XIX, dentro da parede de um ‘pueblo’):

“Na Bretanha, fazer-se-á ouvir um novo David por argúcia do Encoberto (Encubi(y)erto) (investido) com alto e cristianíssimo poder*, para que todos os agarenhos saiam de Espanha, limpos (linpi(y)ados) com os hebreus, e lagostas, e lobos roubadores esfomeados e gatos religiosos; todos padecerão (junto) com os agarenhos e virá o encoberto com os da linhagem de Etor e limpará as tumbas (ku(w)evas) e a cidade de Hércules e dar-se-á (volverse á) grande guerra entre os lobos e os raposos com os gatos religiosos que são os conversos, e (ke) será tão grande e tanto o sangue que se derramará até próximo da fonte do ferro, e (ke) chegará à cintura dos cavalos, e (ke) será grande dor de (lo) o ver” (Ms.774 B.N.Paris- Fol 299v-300v*).

Em ambos os textos temos heróis a construir a sina da humanidade, seja Aquiles no primeiro caso, seja David e o Encoberto (é um outro, não é o do Bandarra, não) no segundo caso. Nos dois textos, é ainda patente uma ideia de salvação ou de completude que remete para transcendências, aliás diversas. Este mundo de ‘ligações perigosas’, em que a legitimidade andava de mãos dadas com a expiração desastrada dos deuses e dos seus simpáticos silabários, ainda foi o mundo que eu respirei em criança, imagine-se.

Vem este rememorar duma suave tarde de Junho a propósito do romance ‘Às Cegas’* de Claudio Magris que acabei de ler na passada semana. Ao longo do enredo (que mistura períodos diferentes da “História” com um relato biográfico situado numa experiência limite), deparei-me com diversas asserções sobre essa barra pesada que fazia do tempo uma espécie de guilhotina amestrada. Deixo quatro exemplos curiosos que falam por si:

“A História é uma câmara de reanimação e é fácil errar nas doses e mandar desta para melhor os pacientes que se queria salvar” (p.24).

“A História é um telescópio encostado ao olho vendado” (p.76).
“A História é uma mesa operatória para cirurgiões de pulso firme” (p.151).
“A História é como a mesa de jogo, primeiro ganha-se depois perde-se, alguém faz uma aposta em Austerlitz a dobrar, mas na vez seguinte calha Waterloo” (pp.177/8).

Sinal dos tempos: a “História” com maiúscula surge no livro de Magris parodiada, enquanto “câmara de reanimação” que soterra e faz desaparecer, deixando à mostra apenas o que interessa a quem a confecciona (os tais “cirurgiões de pulso firme”) e, por isso, terá sempre cavalgado de olhos vendados, transformando-se numa lotaria prestes a ser ‘bem’ orientada.
Impelida por dogmas e pela gesta dos territórios, a “História” quase se esvaiu, de um momento para o outro, enquanto mochila obrigatória. Isso aconteceu no momento em que as sociedades massificadas pelos media e pela rede nos condenaram àquela aparente leveza de ‘self-service’ que só tem razão de ser no coração (instantâneo) do presente. E lá se foi o “H” grande da minha escola primária em menos de três décadas. Com um grelo se colhem com um grelo se esmoem, diz (ou devia dizer) o povo.

Conviria então perguntar: O que existirá hoje em vez da ‘História com letra grande’ que desapareceu literalmente do mapa? E o que existirá hoje em vez da salvação que também se esvaiu do horizonte em três tempos?

Talvez não tenha sido a “História” que acabou, foi antes o auscultá-la com réguas e tabuadas cheias de medidas e guinadas precisas que se finou. E talvez não tenha sido a salvação que se esvaiu de vez, mas antes as bizarras criações que imaginámos, durante séculos e séculos, a ritualizá-la e a realizá-la.

O que não quer dizer que tenhamos atingido já o ponto-ómega. Bem pelo contrário. O que se atingiu no nosso tempo foi apenas um ‘pasodoble’ de irrequieta descrença. Ficámos sozinhos no palco, de um momento para o outro, a gritar que ‘aquilo’ afinal já não era teatro.

Terá toda a razão Claudio Magris, quando escreve na derradeira página do romance: “O cibernauta naufragou, acabou na boca dos peixes, mastigado, digerido, evacuado, cessou de existir.” (…) “Deus está em toda a parte, em lugar nenhum, o certificado de suposto óbito tem os carimbos em dia e fará vacilar todos os que desejam ansiosamente tomá-lo como válido” (p. 300).


*Homero, ‘Ilíada’ (Tradução: Frederico Lourenço) Cotovia, Lisboa, 2007, p. 396.
*Sánchez Alvarez, Mercedes, ‘El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París’, Gredos,  Madrid, 1982. Tradução Portuguesa: Carmelo, L. ‘La Représentation du Réel dans des Textes Prophétiques’, Universidade de Utreque, Utreque, 1995.
*Magris, C.. ‘Às Cegas’, Quetzal, Lisboa,  (2005) 2012, pp. 24, 76,151, 177/8 e 300.
20 Jun 2019

Quando me pus a semear lebres

[dropcap]C[/dropcap]omeço a crónica de hoje com o depoimento de Inácio Crespim, antigo acarretador de São Romão (Vila Viçosa), entrevistado nos anos de 1994-1995 por Luís Silva para um livro que foi publicado em Maio do ano passado, intitulado ‘Os Moinhos e os moleiros do rio Guadiana’*.

“O meu pai nunca abalava do moinho, só estando doente é que não dormia lá.” (…) “Tinha uma tarimba lá dentro do moinho” (…) “era ali a tarimba, era ali que ele dormia e encantado da vida. A cama era uma esteira de buinho [com] uma manta ali em cima da esteira. Em ouvindo o chocalho, lá se levantava para encher a moega. Enchia, punha a argola do chocalho na cegonha e, depois, ficava descansado até que se acabasse aquele trigo na moega”.

A vida dos seareiros, moleiros, farineiros, atafoneiros e acarretadores (ou maquilões) é hoje totalmente desconhecida. A ignorância avança ao lado dos cultos do saber. Eram vidas muito duras e particularmente solitárias. Antes de a indústria da moagem se ter desenvolvido, era dentro dos moinhos que o cereal se moía, produzindo-se a farinha que é essencial para o pão. A água dos rios era a fonte de energia e o resto equivalia a um intenso episódio braçal, claustrofóbico, quase místico.

Em 1786, três anos antes da revolução francesa, um “Código de Posturas” publicado em Mourão dava conta das restrições a que a actividade dos moleiros (e dos atafoneiros) estava sujeita:

“Os moleiros e atafoneiros serão examinados com juramento de fazerem verdade, e os moleiros e atafoneiros tomarão também juramento de fazerem verdade e ninguém poderá ver moleiro em moinho ou acenha, ou atafona sua… nem terão suas molheres nas ditas moendas, nem ainda em taes fazendas que tragão arrendadas, nem terão cão, nem galinhas, nem porco, nem cavalgadura sua nas ditas moendas, nem ao redor dellas, nem em suas casas. E terão gato ou gata para os ratos, e terão alqueire de.., meio alqueire de pão, e maquieiro e meio maquieiro e tudo aferido e affillado pello aferidor do Concelho nos primeiros oito dias de Janeiro e Julho de cada anno, de que tirarão sequestro, e terão sempre panais postos nas moendas e… de farinhas, e nas moendas andarão descalços, e no principio de cada anno darão fiança sob pena de pagarem por qualquer desttas couzas não cumpridas quinhentos reis e sob a mesma pena não comprarão vinho aos vinhateiros que forem aos moinhos, e nelles não venderão trigo nem farinha a pessoa alguma com pena de mil reis, e salvo emprazadores e senhorios dos moinhos, que tomem conhecimento do tal trigo e farinha que venderem, e duitamente do seu ganho”.

É curioso como esta actividade estava sob juramento. Além do carácter votivo, não havia direito à sexualidade, ao vinho e à companhia de animais. Os gatos eram a excepção, o que se ficava a dever às exigências de higiene (onde se incluía, também, o uso de panos sobre a moenda – ou pedra mó – e a obrigação de não usar calçado). A fiscalização e a vigilância externas incidiam nas medidas a usar, na proibição de venda directa (a não ser com conhecimento dos donos dos moinhos) e ainda na caução a que os moleiros estavam obrigados (e cujos montantes eram subtraídos em caso de incumprimento).

É difícil encontrar nos dias de hoje um contrato de trabalho com estas condições, a começar logo pelo juramento. No entanto, o triângulo aqui presente – baseado no cariz solitário da actividade, nas imposições de ‘higiene’ (que definiam o meio) e na vigilância externa – não é assim tão estranho às patologias, passe a metáfora, da vida contemporânea.

Pensemos no modo como o mundo em rede, aparentemente um esteio de partilhas, é sobretudo um mundo solitário que se move ao jeito de um vaivém impessoal entre a perdição do olhar e os ecrãs tecnológicos. Trata-se de uma patologia a que ninguém consegue deixar de aderir (e até com a devida pulsão eufórica).

Pensemos, por outro lado, na correcção que visa codificar a nossa vida através de regras rígidas (a maior parte não escritas) que liofilizam e ‘veganizam’ a higiene e o meio em que vivemos: nada de fumo, nada de gorduras, nada de touradas, nada de tabernas manhosas que dispensem as asaes.

Trata-se de uma patologia a que o ‘mainstream’ tende a aderir com o apego das antigas ‘grandes causas’ (hoje parte das novas arqueologias).

Pensemos, por fim, no modo como a tecnologia nos vigia e nos espia, tema, aliás, de uma das últimas crónicas aqui publicadas (“Lavadeiras, privacidade e ameaças”**). Trata-se de uma patologia que tudo e todos tendem a fingir que não existe.

Não estamos assim tão longe de Mourão dos idos 1786. As clausuras do nosso tempo pós-Orwell caracterizam-se (vistas de cima com a ajuda de um drone) por uma correria paradoxal: os passeios enchem-se de multidões a correrem desenfreadamente sem saberem bem porquê e para onde.

De tal modo assim é que, como dizia o antigo acarretador Inácio Crespim, ninguém parece ficar “descansado até que se acabe todo o trigo na moega”. Só que, hoje em dia, o trigo é imaterial e, quer o pão, quer os hamburguers já completos (e higiénicos até à medula), aparecem nas nossas mesas fresquinhos, como se tivessem acabado de sair da árvore do quintal. Eu, ao pé da minha, até costumo semear lebres – para não ter que as matar com uma boa estocada – e depois misturo-lhes alho, cebola, louro, alecrim, cravinho, chouriço (com muito sangue), nabo, 6 dl de vinho da Pêra-manca e, claro está, um belo arroz carolino, pois o integral – disse-me o senhor Crespim – faz mal às artroses.

Bons feriados!


*Silva, Luís,  ‘Os Moinhos e os moleiros do rio Guadiana – Uma visão antropológica’. Colibri, 2018, Lisboa. [Em linha]. (s/d). Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/50442/1/Livro_completo.pdf [Consult. 07-06-2019].
**Carmelo, Luís, ‘Lavadeiras,  privacidade e ameaças’ em Hoje Macau. 23/05/2019. [Em linha]. (23-05-2019. Disponível em https://hojemacau.com.mo/2019/05/23/lavadeiras-privacidade-e-ameacas/ [Consult. 07-06-2019].

13 Jun 2019

E o que é a normalidade?

[dropcap]P[/dropcap]erceber no nosso tempo onde começa e acaba o território da normalidade é como separar o vinho da água num mesmo copo. Nem sempre foi assim. O. Niccoli relembrou que, em finais do quattrocento e no século seguinte, a palavra “segno” – não confundir com signo, nas suas variadíssimas acepções – traduzia a ideia de tudo aquilo que escapava ao “curso natural das coisas”. O “segno” definia, pois, a fronteira entre o que se impunha como normalidade e o vasto reino das coisas desavindas e seguramente condenáveis.

O diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências da natureza, uma parte significativa das práticas sexuais, os textos (hoje ditos) seculares, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos não catalogáveis, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou no imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse negro e nefasto mundo do “segno”.

No entanto, para que o “segno” pudesse tornar-se reconhecível, era necessária a existência de uma ordem bem definida que permitisse distinguir o seu mundo de trevas do mundo caracterizado como normal. Sem esse crivo, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, os símbolos dissociados da tradição, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.

Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que irromperam um e outro – com experiências e naturezas diversas – no século XIX, acabaram por trazer consigo, nas geografias do ocidente cristão, a antiga marca das civilizações escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno, do mesmo modo que a natureza racional do dogma substituiu o “Livro” divino e a luta “por um mundo melhor” passou a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.

Nesta nova geometria, o “segno” adquiriu outras formas e soube adequar-se ao modo estanque com que a modernidade se passou a organizar, na medida em que as mais variadas esferas de actividade se autonomizaram a partir do final do século XVIII (fosse a esfera jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. etc.). Em todas estas esferas, a racionalidade moderna instituiu contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade.

Pode mesmo dizer-se que a antiga tradição do “segno” acabou por persistir, mas agora tornando-se numa peça de polémica e arremesso em pleno espaço público.

Em cada uma das áreas da sociabilidade moderna, os contrários passaram a digladiar-se com alguma violência, tentando definir do outro lado o campo do “segno” (foi assim nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc., etc.). Esta sistemática metodologia de oposições trouxe o “segno” para dentro da vida social, libertando-o da sua génese divina, cujas finalidades escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros).

Deste modo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo (cristão) moderno, ainda que com matizes diversas, a separação entre a ordem do “segno” e a ordem do “não-segno” foi preservada. Uma tal continuidade impediu a banalização de valores e de apologias entre visões que sempre se haviam digladiado. Ora o que mudou abruptamente no Ocidente, no final do século XX e no início do século XXI, foi precisamente este aspecto.

A grande mudança dos últimos trinta e poucos anos ficou a dever-se a dois factos: por um lado, a diluição e perda de eficácia (e até de sentido) das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessou domínios muito distintos e não se circunscreveu apenas ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, a entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um nova morfologia de espaço público aberto, livre e não regulável (ou de difícil regulação).

A nossa era, cada vez mais policentrada, tem-se vindo a revelar através de um apagar gradual dessa fronteira que sempre havia distinguido o “segno” do “não-segno”. Para o bem ou para o mal, uma relativização galopante invadiu todos os debates contemporâneos. Mais: a separação entre “segno” e “não-segno” não só adquiriu novos sentidos como deixou de ser uma questão (ou um problema), da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional começou a ser baptizada sob o desígnio da hiper-realidade.

Os efeitos desta transição meteórica estão ainda por determinar. Sem uma distância face ao presente é difícil avaliá-los. Todavia há aspectos que se destacam a olhos vistos, tais como a banalização do mal, as várias faces do hiperterrorismo, as manipulações genéticas ou as pesquisas que nos estão a conduzir ao pós-humano.

A correctness tem sido uma das fugas para a frente que as nossas sociedades inventaram para suprir os muitos vazios de sentido em que vamos vivendo. Fora da arena da correcção, tudo, ou quase tudo parece sair da sua órbita: veja-se o mandato Trump, veja-se a linguagem de Bolsonaro, vejam-se os impactos do Brexit, veja-se a vacuidade doutrinal dos nacionalismos europeus, veja-se o modo como a questão climática é globalmente negligenciada (seremos dez mil milhões de pessoas no final do presente século). Fernando Pessoa ou, se se preferir, Ricardo Reis, parece ter compreendido tudo isto muito antes: “Basta-me que me baste, e o resto gire/ Na órbita prevista, em que até os deuses/ Giram, sois centros servos/ De um movimento externo.”


Niccoli, Ottavia. Prophecy and People in Renaissance Italy. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1990, p. 31. Tít. orig. Profeti e Popolo nell’Italia del Renascimento. Roma; Bari: GIUS, Laterza & Figli SPA, 1987.
Pessoa, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.

6 Jun 2019

Odisseia nos espaços

[dropcap]R[/dropcap]evi ‘2001: Odisseia no Espaço’ há não muito tempo. A contracenar com a proto-lenda dos hominídeos, uma nave dirige-se para a estação espacial que Kubrick imaginou com a forma de uma dupla roda giratória. A banda sonora que acompanha a parte inicial da saga cósmica, a famosa valsa ‘Danúbio Azul’ de Johann Strauss II, suscitou-me profunda arrelia há quatro décadas e, desta vez, a coisa não passou de uma enigmática compaixão. À pulsão inicial (renhida) sucedeu uma quase insípida indiferença. E, no entanto, a fita era a mesma e a música replicava na perfeição a melodia estreada no carnaval de 1867 em Viena. Sou eu que hoje sou um outro.

Esta experiência de degustação existencial não é inédita. A música é uma excelente anfitriã para estes saltos no escuro, mas as cidades (ou os microcosmos) que já habitámos também o são. A ‘minha Évora’, a ‘minha Tomar’, a ‘minha Amesterdão’, o ‘meu Campo de Ourique’, para dar só alguns exemplos, são territórios que não existem para mais ninguém. São-me exclusivos e eu não saberia traduzi-los para uma outra pessoa. Trata-se de atmosferas (fóricas) que têm tornado permeável o meu face a face com o planeta (a nossa vida tem a sua ‘Route 66’ que se deixa ramificar por uma ilimitada rede de capilares).

Poder-se-ia dizer que estamos sempre em queda gravitacional, tendo como referência diversos centros, a maior parte deles instáveis, imprevisíveis. Mas essa queda vive em estado de perdição nos dois sentidos que a palavra oferece (as palavras são oferendas): seja na acepção de perda, seja na acepção do fascínio. Daí que a degustação de experiências passadas, que parecem domesticadas, não passe de puro funambulismo. Na verdade, caminhamos sempre em cima de uma estreita corda entre terraços de arranha-céus como o de Babel e a vulnerabilidade à vertigem e sobretudo ao desconhecido (com a idade, passa-se a dar ao desconhecimento um deslumbre especial) é ruidosa, no sentido de um sinal que é aleatório. E confirmamos então, se não o havíamos já feito antes por mera euforia, que tudo é intimamente transitório e que a perenidade (ou a eternidade) não passa de uma bela ideia dos humanos. Apenas isso.

Nas inúmeras teses sobre o tema (que alimentam a atracção por aquilo que não somos e que desejaríamos ser), há uma teoria dos estóicos que me agrada especialmente. Para essa corrente que habitou o Mediterrâneo durante quase meio milénio, dos idos de Zenão de Chipre a Marco Aurélio ou a Séneca, há dois princípios que constituem o cosmos: um activo, o “logos” ou “fogo inteligente” (a razão que estrutura o mundo), e um outro passivo que corresponde à matéria inerte (terra e água). Os elementos activos (fogo e ar) combinam-se para produzir a “pneuma”, ou força vital, que atravessa e sustém todos os corpos do universo, através de um duplo movimento: para dentro, unificando-os, e para fora, conferindo-lhes as qualidades. A pneuma, ou respiração universal, é, pois, uma espécie de escudo invisível e perene (isto é: que preserva e que se preserva eternamente).

Revelada a paixão estóica, devo referir que, para me aperceber de diferenças (o ‘Danúbio Azul’ escolhido por Kubrick é um óptimo exemplo), é preciso que se pise terra firme. Por outro lado, são as diferenças entre tudo o que se desencadeia diante de nós que nos permitem atribuir sentido à vida e ao que nela acontece. Se tudo se propagasse igual a si próprio e fora do tempo – seria assim a eternidade – não haveria sentido, nem necessidade de terra firme para colocar o corpo de pé e nele sentir a imprevista comoção suscitada por ‘2001: Odisseia no Espaço’.

A ‘terra firme’ a que metaforicamente me refiro deverá, de alguma maneira, corresponder à “pneuma” dos estóicos. Sem esse escudo, ou sem essa âncora que nos permite focar e objectivar os diversos passos do mundo, gravitaríamos sem consciência fosse do que fosse, tal como um protozoário unicelular cuja utopia maior passaria por poder tornar-se visível a olho nu, num futuro muito, muito longínquo (cumprindo, para novíssimos patamares, a famosa profecia dos “15 minutos de fama” de Andy Warhol).

30 Mai 2019

Lavadeiras, privacidade e ameaças

[dropcap]P[/dropcap]or ter vivido em tempos particularmente conturbados, John Locke defendeu, no segundo ‘Tratado sobre o Governo Civil’, escrito em 1689 depois de ter regressado da Holanda a Inglaterra, que “o grande e principal fim de os homens se unirem em sociedade” (…) “é a preservação da propriedade privada”. Esta concepção de propriedade, independentemente de se aplicar a bens naturais, a instituições políticas ou a noções morais, reflecte a ideia de que a subjectividade humana é criadora e que é ela, por isso mesmo, que está na base de todos os valores (económicos, políticos, conceptuais, etc.). Apesar de outros antecedentes, esta declaração marca o início simbólico do ‘culto’ moderno da privacidade no Ocidente.

Este salto para os afãs da privacidade nunca foi linear. Em certas comunidades e bairros, a ‘sala de estar’ continuou a ser a rua. Filmes tão diversos como ‘Lisboa’ de Ray Milland (1956), ‘Canção de Lisboa’ de José Cottinelli Telmo (1933) ou ‘Amarcord’ (1973) e ‘La Strada’ (1954) de Fellini comprovam-no à saciedade. Foi Z. Bauman quem defendeu que uma comunidade não necessita de definir uma dada identidade, pois ela brota dos eflúvios que se encontram em permanência nos espaços de vizinhança. Nos bairros populares, de onde hoje em dia se está brutalmente a expulsar a memória de gerações e gerações, à custa da gula dos senhorios e do alojamento local, os remansos da vida privada sempre foram metafísica sem grande sentido.

Houve outras dimensões em que a vida moderna não deixou de provocar alergias severas aos quesitos da privacidade. Dando continuidade à ‘vida como mero trânsito’ (era essa a expressão dos místicos medievais), os monges do nosso tempo – muitos deles amantes de um cândido ‘offshore’ nas ilhas Caimão ou nas Bermudas – sempre insistiram na pertença a um deus e não a si mesmos, enquanto, noutros dogmas e catecismos, a apropriação colectiva já fez furores de multidão; nunca me sai da cabeça aquele momento do filme ‘Torrebela’ (1977), realizado por Thomas Harlan, em que um dos guias da revolução explica a um pobre proletário que a enxada deveria pertencer, a partir daquela gloriosa hora, ao povo e não apenas a ele.

À parte estes extravios aos pântanos da ‘normalidade’, é óbvio que a privacidade também teve – e tem – os seus comprimentos de onda. O mundo de cultura católica tende a ser muito mais confessional do que aquilo que acontece nas sociedades de matriz protestante. A individualização nos universos calvinistas contrasta com a roda viva dos cafés latinos onde tudo se desabafa, desoprime e muitas vezes inquina. Um bom português está sempre prestes a confessar aos amigos um impropério ou um crime. Um bom holandês prefere sofrer e monologar ao ‘seu deus’, de modo directo e sem mediações tramadas. Na realidade, o sentido de privacidade no norte da Europa nada tem que ver com a airada ‘opera buffa’ do sul. Locke deverá ter-se apercebido desta vicissitude, quando se demorou por Montpellier, década e meia antes de ter escrito os dois famosos ‘Tratados sobre o Governo Civil’.

Nos nossos tempos, muitas são as polémicas em torno da longa tradição da cultura da privacidade. Uma delas teve a sua origem na recente mediatização da violência doméstica, facto que contribuiu para que fossem transpostos – e bem – para o domínio público os crimes levados a cabo em atmosferas privadas (remando contra a antiga névoa proverbial que incitava a orações, tais como “Entre marido e mulher não se mete a colher”). Mas a mais temerária das polémicas é a que opõe a sociedade digital às imaginárias quietudes do nosso mundo. São conhecidas as denúncias dos sistemas 5G oriundos da China como são conhecidas práticas do tipo Cambridge Analytica (empresa que usou indevidamente dados de utilizadores do Facebook, tendo exposto quase 90 milhões de pessoas). Além disso, todos sabemos que basta ter um smartphone para que os nossos passos possam ser seguidos nos antípodas do planeta.

Miguel Pupo Correia escreveu há algumas semanas[1] sobre estes temas e sublinhou o facto de muitas das chamadas TV “inteligentes” – com o consentimento involuntário dos utilizadores (dando luz verde aos “termos e condições”) – recorrerem a tecnologias que capturam os sons à sua volta, para além de recolherem informação sobre os hábitos de visualização[2]. No momento em que estou a escrever esta crónica, é bem possível que alguém esteja a “atacar” a câmara do meu computador e a filmar-me, sem que disso eu me aperceba. Por estas e por outras, o autor chegou a defender a existência de dispositivos mecânicos simples (“um interruptor físico” que possa ser ligado “sem ajuda de software”[3]) e até de legislação que os conseguisse generalizar de modo a “garantir mais segurança”[4].

Locke percebeu no seu tempo a importância da salvaguarda da subjectividade e da privacidade. Os discursos sobre estes temas ‘construíram-nos’ ao longo do promissor limbo da era moderna. De repente, tudo ameaça esvair-se, vazar. Tal como as lavadeiras, que Joyce inventou em Finnegans Wake, deitavam fora a água suja da roupa que lavavam nas margens do rio Liffey. Mas é a ameaça, e não tanto o que se perde, que faz o nosso tempo. O que já foi o peso do pecado noutras eras, é hoje o peso quase apocalíptico de nos limitarmos a estar aqui de pé a olhar para a janela. Ou a olhar para o nada.



[1]Pupo Correia, Miguel. Os Big Brothers que se seguem em Público (06/05/19; 07/05/19 – 17h37)
https://www.publico.pt/2019/05/06/tecnologia/analise/big-brothers-seguem-1871532
[2] https://www.buzzfeednews.com/article/nicolenguyen/here-arethe-privacy-settings-you-shouldlook-at-if-you-have (06/05/19; 07/05/19 – 17h41)
[3] https://larrysanger. org/2019/04/vendors-must-startadding-physical-on-oè-switches-todevices-that-can-spy-on-us/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h50)
[4] https://puri.sm/learn/ hardware-kill-switches/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h56)

23 Mai 2019

Perniola e a sensologia de Marcelo

[dropcap]H[/dropcap]á dez anos, mais concretamente entre Setembro e Novembro de 2009, escrevi no Expresso uma série de textos que analisavam a potencialidade dos líderes políticos para poderem aspirar a ser personagens romanescos. Foram sete os textos, devotados, respectivamente, a Santana Lopes, António Costa, Jerónimo de Sousa, Louçã, Paulo Portas, Manuela Ferreira Leite e Sócrates (ver em rodapé o link*). Marcelo teria, no ano seguinte, um texto que lhe foi dedicado, quando ainda não era claro se se candidataria, ou não, a dirigente máximo do PSD (“Marcelo e a Rodagem do homem invisível”*). Ao contrário dos demais, Marcelo era caracterizado nessa crónica em tons “amenos de baunilha”: “Marcelo é um doce. Um típico doce português, algo conventual. Há anos e anos que respira nas nossas casas. Há anos e anos que sopra a lenta fogueira da nossa labareda política. Há anos e anos que todos lhe auguram o altar maior do poder.”

As duas qualidades viriam a confirmar-se com o tempo: o formato da doçura, embora menos conventual e mais itinerante, e o primeiro lugar no pódio da república. Sendo económico, creio que, hoje em dia, Marcelo é o paladino de um certo Portugal que, por vezes, para o bem ou para o mal, se converte em ‘commedia dell’arte’, libertando-se das aragens garbosas de Soares e do bafo cavaquista de figura de cera. Com uma omnipresença rara, mesmo quando recorre ao silêncio, Marcelo domestica como ninguém o carnaval dos media, aliando-o àquilo que o ensaísta Mario Perniola caracterizou, há década e meia, através do conceito de sensologia, ou seja, cito, a “transformação da ideologia numa nova forma de poder que dá por adquirido o consenso plebiscitário baseado em factores afectivos e sensoriais”.

É óbvio que fazer política no terreno à força de abraços, sorrisos e selfies não teria sido possível na tirania dos mundos de ‘classe contra classe’ (à anos trinta do século XX) ou em limbos governados por títeres ideológicos ou religiosos (infelizmente, muito abundantes no globo). A ‘probabilidade Marcelo’ apenas podia ter acontecido à boleia de um estado de coisas que o ensaísta italiano caracterizou como fundado no “estilo contestativo”. A designação nada tem que ver com as irredutíveis e tradicionais oposições que são próprias da esfera do político. Ela significa antes um conjunto de efeitos de reversibilidade, entre opiniões, decisões e acusações no espaço público, de tal forma que o inimigo de ontem é amigo amanhã e assim sucessivamente, numa lógica acentrada e não de carga dogmática fixa (“o estilo contestativo não é violento, mas apenas pedagógico: ele acredita na infinita maleabilidade do homem.”).

Esta curiosa noção de ‘contestação maleável’ articula o utopismo com o irenismo, o mesmo é dizer que conjuga duas formas de imaginar: por um lado, dá ênfase transitória a situações e a horizontes que se desejariam ideais; por outro lado, dá primazia à descoberta de uma racionalidade capaz de encontrar laços comuns entre apologias diferentes. É por esta razão que a “contestação”, na acepção de Perniola, tem tendência a estender-se “a todos aqueles espaços que lhe estariam tradicionalmente vedados: não só às relações económicas e às de trabalho; mas sobretudo às privadas e às científicas” que se tornarão, portanto, “objecto de crítica radical” (contestar significa essencialmente “abrir um debate público sem fim”, domesticando as rupturas e redescobrindo novos caminhos possíveis). Só neste tipo de encruzilhadas, que configuram o habitat aberto do político e não o da sua anulação (o que ocorre em casos da guerra ou de terrorismo), é que a sensologia poderia dar-se ares tão pró-activos de governação. Marcelo interpreta-a quase na perfeição e, por isso mesmo, navega amiúde, nem sempre, ao sabor da mornidão do seu tempo.

Escrevi “mornidão” na medida em que a sensologia e o chamado “estilo contestativo” favorecem um outro fenómeno do nosso tempo: a “correctness”. Como se sabe, a correcção visa virtualmente a inclusão, mas, ao fazê-lo, tem-se transformado (demasiadas vezes) numa prática hipócrita de dissimulação. Fingir que não existem problemas e dar à linguagem esse tom, quando toda a gente vê que o rei vai literalmente nu, eis no que tem resultado, em muitos casos, a retórica da “correctness”. A sensologia adapta-se a este tipo de prestidigitações, vive delas, recria-se a partir delas. Poderá até afirmar-se que a noção de crise, na sua escala doméstica de disrupção ao mesmo tempo retórica e de prática reversível (como acontece com certas gabardinas) é um dos rostos da sensologia de Perniola. Daí que o convívio entre o que se diz e desdiz (os famosos recuos de opinião à ‘Rio/Cristas’) sejam capacidades nativas destas atmosferas em que perigosamente vivemos, ora agrestes, ora tão férteis em selfies e abraços de terna compaixão.


*Carmelo, Luís. Personagem Romanesco em Expresso. Last Updated: September 28 – November 15, 2009. Disponível aqui [Consul. 27 Abr. 2019].
*Carmelo, Luís. Marcelo e a Rodagem do homem invisível em Expresso. Release Date: March 8, 2010. [Consul. 27 Abr. 2019]< *Perniola, Mario . Contra a comunicação, Teorema, Lisboa, (2004) 2005, pp12 e 52-54.

16 Mai 2019

Afrodite, Sena e o ipiranga do corpo

[dropcap]H[/dropcap]á alturas em que é preciso bater no fundo, deixar o mar recuar de vez e observar o que sempre esteve lá por baixo. Por vezes, é preciso despovoar a história, reduzir a zero o inventário da felicidade imaginária e os ovos moles do tempo. Jorge de Sena fê-lo na sua época contra tudo e contra todos. O testemunho de Marcello Duarte Mathias, no segundo dos cinco volumes do seu diário, fala por si quando se refere a Sena como “praguejante e gesticulatório despovoando tudo e todos à sua volta da mesma santíssima fúria homicida: o Brasil, e os Estados Unidos, o Estado Novo e o 25 de Abril, os intelectuais e os que o não são, incluindo o próprio Pessoa que também não escapa à sua ira redentora (coitado, não há maneira de o deixarem em paz!) – ninguém e coisa nenhuma merece graça aos seus olhos.”. Diga-se o que se disser, o país – qualquer país – precisa, de tempos a tempos, de seres abrasivos e lancinantes, que originem depois estes prantos e queixumes tão tardios quanto inúteis.

Lembro-me de Eugénio Lisboa me ter dito, há muitos anos, em Londres, que as grandes transformações da língua literária portuguesa tinham tido lugar nas diásporas. O filão ligava entre outros, Camões a Padre António Vieira, Francisco Manuel de Melo a Garrett e, naturalmente, Pessoa a Sena. Não é altura de me precipitar numa análise à escrita do autor, pois, nesta circunstância, dele interessa-me bem mais o vulcão insaciado, a personagem acrobata e inconformada e a figura do guerreiro, por vezes cego, que fez da contenda um móbil constante de afirmação, apesar do ‘mau jeito’ que causou a muitos dos seus solícitos contemporâneos.

Há quase seis décadas, mais propriamente no dia 7 de Agosto de 1959, Sena chegava ao Brasil dando início a um exílio voluntário. O autor, então com 39 anos, viveria logo a seguir uma fase de escrita particularmente fértil. São da sua lavra, na altura, muitos dos poemas de Metamorfoses, parte dos poemas de Arte de Música, praticamente todo o romance Sinais de Fogo (que viria se ser publicado postumamente), O Físico Prodigioso e ainda alguns ensaios sobre Camões.

Recuemos até esse longínquo ano de 1959 para ver o estado do rectângulozinho a que Sena escapara. Logo no início do ano, Humberto Delgado refugiou-se na Embaixada do Brasil em Lisboa e pediu asilo político. Em Março, um movimento revolucionário contra o regime salazarista em que Sena se envolveu, denominado “Revolta da Sé”, acabaria por ser desmantelado pela PIDE.

Dois meses depois, o Cristo-Rei em Almada, projecto quadrado de Francisco Franco, era inaugurado, enquanto Henrique Galvão partia para a Argentina na qualidade de exilado político.

Nos primeiros dias de Agosto, teve lugar o massacre de Pidjiguiti na Guiné (uma greve dos estivadores do porto de Bissau que acabaria selvaticamente com mais de cinquenta mortos). No Outono desse ano em que surgiu Aparição de Vergílio Ferreira, um outro romance, Quando os lobos uivam de Aquilino Ribeiro, era apreendido e, depois, viria mesmo a ser alvo de um processo judicial.

Enquanto esta miserável melopeia avançava em Portugal e a guerra colonial estava prestes a iniciar-se, Jorge de Sena soube distanciar-se do pântano e construiu mundo. Talvez o sinal mais simbólico dessa viragem radical (ou desse corte umbilical) se encontre nos famosos quatro sonetos a Afrodite Anadiómena que foram publicados em 1961 na revista Invenção de São Paulo, sendo posteriormente inseridos em Metamorfoses. O próprio poeta explicou o sentido desta escrita única: “O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem.” (…) “creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo.”.

Para gáudio dos leitores, deixo aqui em baixo transcritos os dois primeiros desses quatro sonetos. Eles representam, não apenas a ruptura total com a sofreguidão lusitana da época, mas também, tal como se referiu no início desta breve crónica, a postura de quem sabe que é urgente bater no fundo e fazer reaparecer o que é de todos: o corpo, o corpo livre, o corpo desamarrado com que, mais tarde, as Novas Cartas Portuguesas viriam a selar este longuíssimo ipiranga, gritado contra a moralidade da pátria salazarenga (que persiste ainda em muitos e inauditos lugares do nosso tempo).

Cruz, Gastão. Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou a arte de ser moderno em Portugal. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.
Mathias, Marcello Duarte. Os Dias e os Anos – Diário 1970-1993, D. Quixote, Lisboa, 2010, p.379.
Sena, Jorge, Quatro sonetos a Afrodite. Last Updated: Setembro 21 de Março, 2008. Disponível em http://antoniocicero.blogspot.com/2008/03/jorge-de-sena-quatro-sonetos-afrodite.html [Consul. 28 Abr. 2019].

 

I

PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
Lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.

II

ANÓSIA

Que marinais sob tão pora luva
de esbanforida pel retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai, que estamineta cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinais dulcífima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!…
Que marinais, tão pora luva, todo…

9 Mai 2019

“Think small” e a comunicação via tweet

[dropcap]H[/dropcap]á sete décadas, a fórmula “Think small” resultou num grande sucesso no campo da publicidade. Foi essa ideia que coroou a entrada em cena e em força da Volkswagen nos EUA. Mais tarde, já nos anos sessenta, a campanha “Lemon” aprofundou o mesmo minimalismo, aliás contemporâneo da Pop Art. O design destas campanhas foi particularmente revolucionário na época. A economia da fórmula falava por si: as imagens isolavam num espaço branco uma pequena fotografia de um automóvel novo que contrastava radicalmente com a dimensão e a escala da tradição de Detroit, dotada com o fulgor quase fáustico do pós-guerra.

A carreira do ‘minúsculo’ no campo do design não passou pelos melhores dias nos anos setenta e no revivalismo intenso e paródico dos eighties. Foi preciso chegarmos ao mundo dos chips, no ‘turn’ dos anos noventa do século passado, para que ela voltasse a aflorar. Hoje em dia, tudo é ‘nano’, tudo é fragmento, tudo é descontínuo: é esse o apelo expressivo que a tecnologia e o cibermundo passaram a veicular à nossa própria expressão do dia-a-dia. Na primeira década do século, a blogosfera reflectiu esse espírito comunicacional. Desde o final dessa mesma década, ferramentas como o Facebook o Twitter e, a seu modo, o Instagram, têm estado a traduzir este renovado design baseado na fórmula vintage “Think small” (enfim, o verbo ‘pensar’ é francamente excessivo para o uso que nestes apressados hiatos da rede lhe é dado).

Atentemos à realidade Twitter que, nos últimos anos, passou a galvanizar a comunicação da política mundial, sobretudo desde o início da era Trump. Destacaria três aspectos para este novo artesanado do ápice e do minúsculo.

Em primeiro lugar, parece óbvio que os tweets estão a deslocar a urgência da actualidade para um outro espaço. Podemos chamar-lhe o espaço do aceno que se caracteriza por um efémero flash (quase devorado antes da devoração) que não chega sequer a ganhar corpo. Nele não há tempo para contextos, nem para pré-avisos: apenas iminência e resposta de tipo fugaz. Nada fica por reflectir e para saborear. É a chamada ‘iminência do coelho’.

Em segundo lugar, os tweets sofrem de remissão obsessiva (os links e os índices presentes na mensagem apontam quase apenas para outros links e índices). No tempo das narrativas orgânicas, tudo apontava para âncoras fixas e claramente posicionadas. Agora, os signos constróem-se através de pontes muito frágeis entre continentes que mal se distinguem. A ideia é mesmo essa: dar a ver a onda através da sugestão do seu contorno (necessariamente) fluido. Para quem tem muito pouco a dizer – o que se adequa na perfeição ao modo como a política hoje se apresenta diante de todos nós – é o modelo ideal.

Em terceiro lugar, o universo twitter baseia-se na elipse e na – chamemos-lhe – irradiação metonímica. Por outras palavras: aquilo que é transmitido permite conjecturar territórios próximos e contíguos. O olhar como que desliza para onde (não) é chamado, sem muitas vezes dar por isso. Nessa medida, o twitter pode ser muito eficaz na sua economia própria. Devido a esta extrema economia, os tweets requerem, portanto, menos ‘dito’ e mais ‘não dito’ (mesmo se não intencionado). Chegam, por isso mesmo, quase a aproximar-se da ideia de fractal: uma unidade mínima e discreta que convive em sistemas diversos, com rostos variados e flutuações intermitentes. Surf e liquidez errante, obviamente.

Concluindo, poderíamos afirmar que o Twitter se converteu, hoje em dia, na versão expressiva e social do “Think small” de há pouco mais de meio século. O desígnio e o design são similares à partida, embora a encarnação da fórmula na nossa era seja, de facto, radicalmente outra. Nos anos cinquenta do século XX, gerava uma atmosfera de fascínio devido ao contraste que exprimia; no nosso tempo, está a gerar aquele impacto fugidio que é próprio da actividade da consciência nuclear.

Repare-se no modo como os efeitos de sentido realmente se alteraram: do contraste do “Think small” dos anos cinquenta  – que tinha o seu tempo próprio e era sempre susceptível de uma dada ponderação sensorial (não foi por acaso que a pintura romântica abraçou sempre os grandes contrastes) – passou-se para uma gramática de acenos flagrantes (ou, adoptando a palavra “flagrante”, não como adjectivo, mas enquanto substantivo abstracto,  dir-se-ia que se passou para uma gramática do flagrante que visa tão-só o flagrante, sem qualquer preocupação em deixar vestígios para arqueologias futuras).

Talvez o “Think small” tenha sido a última aparição moderna do romantismo. O contraste cromático que Caspar David Friedrich registou, em 1818, na sua obra ‘O Peregrino sobre o mar da névoa’ não deixa dúvidas sobre o tempo que é reservado à contemplação dos sentidos (que se realiza sobretudo através da figura do contraste). Um tweet, por outro lado, recebe todo o seu pasmo ao diluir-se nessa mesma reserva temporal: o que dele sobra é sempre e só o espaço para um outro tweet. O que nós passámos e vivemos, enquanto espécie, para, de novo, nos vermos forçados a inventar o jogo do pingue-pongue.

6 Mai 2019

O que a Notre Dame fez chorar!

[dropcap]C[/dropcap]om o incêndio da Notre Dame que pôs meio mundo a chorar (e a rememorar fotografias), lá se foi a tragédia de Moçambique. Depois veio a greve dos motoristas de matérias perigosas, o pessoal andou à pancada (até numa pacata bomba de gasolina de Campo de Ourique) e lá se dissipou o imenso pranto pela Île de la Cité. Parece que os media dão conta do que passa e não do que fica. Mas haverá algum tipo de registo que dê conta apenas do que fica? E o que é que fica, para além das lágrimas ao vento e das imagens parisienses (vento muito forte que seca todas as gárgulas que afloram no enfiamento das grandes comoções)?

Perseguir uma realidade perene e não efémera sempre foi desígnio (e desejo) dos humanos, é verdade. Aristóteles imaginou um mundo sobrelunar que resistiria à corruptibilidade, enquanto a “metempsicose” que Platão apresentou no Fedon traduz a ideia da imortalidade da alma e da reencarnação. As religiões do livro e as orientais (que se baseiam também na reencarnação) secundam a tradição. Os mitos, da antiguidade aos nossos dias, estão cheios de personagens que resistem à lei da morte. Até nas possíveis respostas ao famoso livro de Calvino “Porquê ler os clássicos?” ou no conceito de “cânone”, defendido por Harold Bloom, se pressente a mesma necessidade de resistir aos dons do efémero.

O mundo moderno, ciente de que os paraísos ‘só’ poderiam existir neste planeta, soube harmonizar habilmente a lei da vida (“A morte é a curva da estrada”, já dizia Pessoa) com um ímpeto de totalidade. Por outras palavras: os humanos acreditaram que haviam de domar o mundo e dar conta de tudo à sua volta. Para domesticar o tempo, nada melhor do que inventar uma ciência que radiografasse o passado e uma outra que ‘ideologizasse’ o futuro. Ficava tudo resolvido. É por isso que, a partir de meados do séc. XVIII, foram aparecendo narrativas que desenhavam, país a país, a sua própria história. Vico terá sido o anjo da anunciação (com Ciência Nova, 1725) e, logo a seguir, em todos os cantos da Europa, pôs-se em marcha um ininterrupto culto da memória, fosse através da criação de museus, fosse através da criação de novos saberes (arqueologia, antropologia, etnologia, etc.), fosse através da redacção de ‘Histórias’ nacionais e universais (com letra grande para sugerir a ilusão moderna de objectividade). De E. Gibbon (1737-1794) a A. Herculano (1810-1877) e de Marquês de Condorcet (1743-1794) a J.Michelet (1798-1874), os ‘grandes factos’ são desocultados e colocados em perspectiva, de modo a dar sentido ao presente e às comunidades que os enunciam, como se cada uma fosse o centro do mundo.

Este frisson de obsessivamente recriar o passado (cada qual a seu gosto) fez-se através de cuidadas montagens e selecções (as Tordesilhas da história portuguesa não seriam nunca as Tordesilhas da história castelhana, por exemplo), razão pela qual a objectividade – que ainda hoje permite que se creia na existência duma ciência histórica – é tão irrealista como o é o personagem que Borges criou em Funes o Memorioso*. Funes projectou uma nova língua que dispusesse de vocábulos para cada folha das árvores ou para cada pedra das montanhas, pois a sua memória era prodigiosa e abrangia todos os detalhes com que em vida se debatera. Como a tarefa era árdua, decidiu resumir o projecto a ‘apenas’ setenta mil lembranças. No final, desistiu por achar que o trabalho era infindável e inútil. Os historiadores foram mais inteligentes do que Funes, na medida em que recorreram a montagens subtis, antecipando-se à lógica das gramáticas com que Griffith e Eisenstein haveriam de glorificar o cinema.

Se as ideologias no seu design oitocentista são hoje matéria de manuscrito (com o é a Ilíada, por exemplo), este culto moderno e sistemático do passado foi-se perdendo no meio da amnésia colectiva que a era tecnológica arrastou consigo. Razão por que, hoje em dia, a representação do passado se faz mais através de práticas em fluxo centradas no que se passou a designar por “património” do que através da interiorização de uma determinada narrativa orgânica e saturada de coerências (como aconteceu na minha escola primária e nas aulas de história do liceu). Os objectos falantes – monumentos, sítios reconhecidos pela unesco, paisagens protegidas, etc. – são hoje o porta-voz dos nossos legados, daí terem-se convertido num turismo global de massas que mete a um canto as antigas peregrinações a Jerusalém.

É por esta razão que o incêndio da Notre Dame pôs o povo a chorar com glamour patrimonial. Juntemos a esse pesar os ingredientes fotográficos com que cada sofredor expôs ao cosmos a sua própria ópera interior. Quando no fim da Comuna de Paris, os derrotados pegaram fogo a meia Paris, ainda não existiam os sacos lacrimais da contemporaneidade. E ninguém, na altura, os teria entendido. Para os communards, a primeira internacional, as barbas cerradas de Marx e de Engels e o invasor prussiano eram as referências pesadas. O passado bem podia esperar nos mais-do-que-sagrados livros de ideologia e de “História” e ainda naqueles que levaram Adolphe Thiers a mandar executar mais de vinte mil almas (facto que a então jovem fotografia documentou sem quaisquer filtros e reservas, num contraste absoluto com a vacuidade narcísica e idiota das actuais selfies).

O empenho moderno pela “totalidade”, baseado em receitas racionais que dariam respostas a todas as ‘grandes’ perguntas, sucessor, aliás, do apego clássico pelas realidades perenes (com a imortalidade na fila da frente), é hoje um produto datado. Um genérico fora do prazo de qualquer prazo validade.

Esgotadas as crenças no ilimitado, o que nos sobrará? Pela frente, leia-se, como cenário de futuro, resta-nos o frémito dos gigabytes; para trás, leia-se, como cenário do passado, resta-nos a síndrome do património e os seus mil trivagos com direito a sorrisos e a selfies, tendo como cenário a acqua alta de S. Marcos, as cores avermelhadas da Petra jordana ou o pináculo da Notre Dame a cair no meio do fogo. De facto, tanto faz. E uma lagriminha no olho para coroar a emoção não ficará mal a ninguém, pois, logo a seguir a Paris, virá a greve dos motoristas e depois, e depois, e depois. Haverá sempre um depois para suster o que fica e para levar para o panteão, lado a lado, com Amália, tudo aquilo que passa, como se fosse, e é afinal, uma “estranha forma de vida”.


*Borges, Jorge Luis; Funes, el Memorioso em Ficciones – Prosa Completa, Volumen I, Narradores de Hoy – Bruguera, Barcelona (1944) 1980, pp. 383-390.

25 Abr 2019