Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasEpitácio Pais e a literatura de Goa [dropcap]D[/dropcap]ir-se-ia que os poucos goeses que escrevem em língua portuguesa após 1961 o fazem numa língua forçosamente deslocada. Ela perdeu o seu sustentáculo social, dado pelo colonialismo português, e parte dos seus referentes simbólicos, que soçobraram com a integração de Goa na União Indiana. Ao contrário das literaturas africanas escritas na mesma língua, para quem a independência foi assentamento de batismo, para a goesa o fim do colonialismo implicou no ocaso de uma longa tradição que remonta a 1556, ano da introdução da imprensa no subcontinente, via Goa. Apesar disto, de alguma forma certos temas, figuras-tipo, situações narrativas da antiga literatura chamada “indo-portuguesa” continuam de outra forma, em outras línguas, o que me leva a crer que um livro como Preia-Mar, romance inédito de Epitácio Pais publicado há poucos anos em Goa (Edição de Paul Melo e Castro e Hélder Garmes. Taleigão: Goa 1556/Golden Heart Emporium, 2016), se encontra de alguma forma em contato com essas outras tradições dentro da literatura goesa. Num mundo romanesco onde a referência portuguesa (colonial, se quisermos) já não existe, nem a comunidade católica se encontra valorizada, o autor está condenado a ser um “fala-só”, o que certamente se manifesta no contexto de produção e de circulação de Preia-Mar: um póstumo, o que diz muito sobre ele: póstumo, que rem relação à vida do autor, quer da língua em que escreveu o livro. Por outro lado, em obras goesas da atualidade escritas em inglês ou traduzidas para o português e do português para o inglês, muitas delas se vêm ainda ligadas aos significantes desse mundo “indo-português”, como no caso dos romance Skin, de Margaret Mascarenhas (falecida o ano passado), escrito em inglês, mas no qual as personagens falam português. Epitácio Pais (1924-2009) foi um excelente contista da comunidade católica – que é também a de língua portuguesa – de Goa. O seu Os Javalis de Codval (1973) já se havia publicado em Portugal (Editora Futura), por iniciativa de Manuel de Seabra. Preia-Mar é um romance também escrito nos anos 70, e que ficou anos escondido numa gaveta e que abre uma janela para um mundo perdido de língua portuguesa, ou para ela perdido, em outra perspetiva. O livro possui um tom semelhante àquele que encontramos nos contos e em ambos se sente aquele efeito de deslocamento na linguagem do autor. Por exemplo: “Imprimo à vida um rumo diferente da arqueologia que norteia a nossa grei”, pensa o protagonista na p. 68 ao desejar tornar-se pescador. Na verdade, enquanto língua literária o português de Epitácio é bem diverso das contemporâneas linguagens dos autores africanos, mas também não é o português escorreito de um José Cardoso Pires, que tende a escolher vários dos mesmos temas marginais. Pode o vocabulário ser duro e explícito, mas dentro de um estilo arrevesado próprio dos escritores goeses. De fato, o português como veículo da modernidade literária em Goa é uma questão que este romance também coloca e que a crítica terá ainda que enfrentar. Ao mesmo tempo, Preia-Mar é um romance muito contemporâneo, pela sua descrença perante os vários discursos em conflito na arena social: o discurso tradicionalista da família católica de Leo, de alta classe mas decadente; o da modernidade e da tecnologia de uma nova Índia encarnado em vários personagens com os quais Leo se relaciona e ainda o neo-espiritualismo simplista dos hippies, em busca de uma Índia milenar numa Goa mais habituada à presença de estrangeiros do que a outra Índia. O protagonista Leo – uma espécie de anti-herói pós-colonial, numa terra em que ninguém, nem mesmo ele, é modelo de virtudes – encarna bem o pessimismo do autor face à Índia sua contemporânea. Aquele pessimismo exprime-se também em uma série de casos de marginalidade, exploração e oportunismo que se desenham em torno de Leo e que sugerem ser a ideologia do livro uma espécie de neo-realismo sem marxismo, passe o absurdo. Nesta Goa pós-colonial todos são viciados em qualquer coisa ou procuram pequenos esquemas para obter dinheiro, à exceção de uma mulher-anjo quase camiliana (autor certamente lido em Goa) que acaba por redimir Leo pelo casamento, solução ex machina que resolve vários dos problemas do protagonista. Para terminar, merece ser sublinhado que a publicação em 2016, na Índia, de um romance em português é um fato extraordinário em si mesmo, a tal ponto que é possível falar deste fenómeno editorial enquanto sinédoque da condição do português em Goa. Corajoso investimento, este de um livro que, na Índia, só poderá ser lido por uma reduzida comunidade. Em 50 anos, ela praticamente se desenvencilhou do português, trocando-o pelo inglês, como se vê pelo próprio nome da editora (Goa 1556/Golden Heart Emporium), ou pela troca das placas de rua no bairro das Fontainhas, em Pangim. Assim, neste livro se encontra resumida toda a situação dessa língua. Podemos, como Galileu, afirmar que algo ainda se move em torno dela; certamente não uma forma de “lusofonia”, antes algo que se organiza multilinguisticamente como um sistema independente, inserto em um sistema maior, o indiano. Isto significa que o português na Índia tem uma vida própria, que escapa à sistematicidade postiça da lusofonia e que, por essa razão, um brasileiro ou um português terão dificuldade em compreender. Certamente que um indiano de um outro estado não: este poderá só não compreender o que é dito na língua em si, a sua praxis. Em suma, Preia-Mar é uma janela aberta não apenas para uma tradição literária esquecida, mas também para uma Goa vista, em português, pelos próprios goeses.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasCoisas do Oriente [dropcap]O[/dropcap]riente é o particípio presente do verbo latino orior que, embora depoente, significa tão-somente levantar-se. Oriente é, portanto, o lugar onde o sol se ergue, para iniciar o seu caminho aparente no céu. Houve vários orientes para o europeu: primeiro a separação entre a Oikoumenè grega, o Mediterrâneo, e todo o resto do mundo, baptizado como Oriente, num primeiro momento que vai desde a afirmação militar perante os Persas, no séc. V antes de Cristo, até ao expansionismo de Alexandre. O segundo, de maior fortuna, seria o Islão (e durante a Era Moderna o mundo otomano), esse Oriente que tivemos por largos anos dentro do território português. Finalmente, houve e há ainda Bizâncio, sobrevivente do cisma religioso do século XIII. Na terminologia da Igreja, a palavra designa aqui as cristandades do Leste, sendo que os Balcãs e a própria Grécia, a raiz da racionalidade do Ocidente, fazem dele parte. Ou seja, não há quase lugar nenhum, nem mesmo as Américas, essas índias ocidentais, a que não tenha já sido dado ser Oriente. Como disse Raymond Schwab em A Renascença Oriental (1950), o Oriente tanta terra diferente designou que já bastou para dar a volta ao mundo. No imaginário europeu da Idade Média (e é de um imaginário que falo, não de um lugar), o Oriente tinha em si no início largas partes de África. Depois, com as expansões europeias, vai-se afastando, até ao Extremo da Eurásia, lançando o Preste João cada vez para mais longe. Deixa de ser um obscuro papa núbio para se tornar um lama tibetano, um letrado confuciano ou até um pajé dos guarani. Mas quando dizemos Oriente, onde estamos ou, mais precisamente, onde achamos que estamos? Certamente, pelo menos é o que ficou marcado na linguagem, ainda nos entendemos na Grécia, pois é esse o ponto de referência ficcionado onde quisemos crer que se separaram as largas massas de terra do mundo, cindindo-se em duas: dum lado a razão, doutra a irrazão, lembrando Roger Pol-Droit. Mas quem diz Oriente, pode realmente estar no Oriente, ou está apenas num ponto em que observa o sol a chegar desse Oriente que é sempre mais a oriente? É preciso não esquecer que o Oriente não é um lugar, é apenas uma direcção. O Oriente não existe. Uma das palavras-chave da cultura portuguesa, de acordo com António Quadros, deu o verbo orientar. Talvez levado do português a outras línguas latinas, esse orientar-se trouxe consigo naus, impérios e quejandos. Isso está tudo muito bem, ou muito mal, pois tudo isto são úteis ou até perigosas fantasias, como sabemos, ainda que bem úteis para os Huntingtons deste mundo (ou do outro, o Ocidente, para ser mais preciso), que tudo dividem em grandes blocos, dum lado os cavaleiros de barretes brancos e do outro os pérfidos persas, de tez escura. Como na recentemente estreada série Messiah, em streaming no canal Netflix, sobre a segunda vinda do Cristo (o primeiro já havia sido responsável por uma perigosa seita oriental) ao mundo. A funcionária da CIA, no café que costuma frequentar para tecer as teias do imperialismo, tem uma converseta amena com o empregado, por mero acaso um rapaz negro. Repara que ele lê para um exame The Clash of Civilizations, e diz-lhe: “Tudo o que você tem que saber é que ele estava certo. Huntington previu que o principal eixo do conflito mundial após a guerra fria seria de natureza cultural e religiosa. É exactamente o que está acontecendo na política mundial hoje”. Tudo isto me leva a crer que talvez nós, aqui nesta Cidade do Santo Nome de RAEM, não vivamos de facto no Oriente. É possível que este seja ainda mais a oriente, nalguma ilha da Samoa ou do Corvo, algures a oriente do oriente.