Duarte Drumond Braga VozesLao Tsé. O livro das 5000 palavras. Porto: Porto Editora, 2025 A sinologia portuguesa nunca começou; melhor: está sempre para começar. Ou não sai nunca do seu começo. Já dizia Pessoa: somos povo de iniciadores – frutos e flores, outros os colhem. Não é porém maldição irremissível. Coisas muito boas têm saído recentemente de Macau (Mêncio, Confúcio, poesia da dinastia Tang). Espera-se que um dia saiam cá pela Grão Falar, a editora gémea da Livros do Meio, ativa naquela cidade chinesa. Vem isto a propósito da novel tradução do Tao Te Ching, ou King, de Lao Zi, ou Tse, com o inusitado título O livro das 5000 palavras. Não é a primeira vez que sai da pena do tradutor Joaquim Palma, que já havia feito versão versificada, próxima desta, mas com o título canónico: Tao Te Ching. O livro do caminho e da sabedoria (Presença, 2010). Há várias versões de língua portuguesa a partir do chinês que entre si competem, todas dignas de menção e consideração, desde os trabalhos daquele que se considera, para mal dos nossos pecados, o nosso único sinólogo, até uma versão brasileira muito digna de nota, provavelmente a melhor edição em língua portuguesa, o notável Dao De Jing (Unesp, 2016), com tradução interlinear e comentário verso a verso, por Giorgio Sinedino. Este grosso volume evidencia um conhecimento da língua chinesa e das culturas que se lhe agregam que em Portugal infelizmente quase ninguém tem. Manuel Silva Mendes, que em Macau trocara o anarquismo pelo taoísmo, essa forma mais subtil de anarquia, foi um intelectual finissecular contemporâneo de Camilo Pessanha que se fizera estudioso da China, da arte chinesa e das suas religiões. Da sua lavra temos textos pioneiros sobre budismo e taoísmo como o Excertos de filosofia taoísta (1931), que inclui traduções de Lao Zi e de Chuang Tze. Aí escreve ele a advertência seguinte: “Quem escrever sobre o taoísmo tem de tomar um destes dois caminhos: ou apresentá-lo seco, como um osso esburgado, à maneira de Lao Tse, subtil até quasi à incompreensão como Chuang Tse, em ambos os casos com a certeza de que raríssimas serão as pessoas que, começando a leitura, a levem até ao fim: ou então expô-lo amenizadamente em forma mais compreensível do que se lê nestes dois autores” (p. 276). Ora isto que o grande escritor diz pode com propriedade ser aplicado às próprias traduções do livro do Tao, umas mais secas, outras mais húmidas, para aplicar noções do próprio livro: “Os homens são frágeis e moles. E morrem rígidos e duros. As árvores começam por ser frágeis e flexíveis e morrem ressequidas e quebradiças. Assim, o que é duro e rígido acompanha a morte. O que é frágil e flexível acompanha a vida” (O livro das 5000 palavras, p. 100). Ora, o livro em apreço é de facto uma tradução “mole” no sentido de ser flexível e moldável como a água. A impressão que ela deixa na nossa mente é a de uma fluida continuidade entre os textos, como anéis que se fossem repetindo de uma pedra atirada a um lago. Por contraste, a tradução de Joaquim Guerra, jesuíta português missionário residente em Hong Kong nos anos 80, seria um bom exemplo de uma tradução seca, dura, mas também no sentido do epigrama, da concisão, da unidade doutrinal. É uma tradução afirmativa, aguda, mas também cheia de arestas. Todas as outras traduções para o português se podem conter algures nesta escala. Como bom construto textual que é em língua portuguesa –o meu total desconhecimento do chinês impede-me de me pronunciar sobre questões linguísticas e tradutórias propriamente ditas –, muda a nossa perceção do texto, construída historicamente no curso de várias leituras das várias versões dos vários livros do caminho e da virtude que são, que sejam possíveis. É uma nova e sedutora linguagem que sabe manter o mistério de um texto simultaneamente ético, moral, poético, filosófico. Joaquim Palma, o tradutor que já conhecíamos de várias versões de poesia japonesa aparecidas no mercado português, consegue como que açucarar, sem abastardar em autoajuda, o mistério essencial do Tao. Olhamos, por exemplo, para a forma como resolve os 2 últimos versos ou versículos do primeiro texto: “Estas 2 verdades brotam de uma única origem; ambas têm nomes diferentes. As 2 nascem de uma escuridão profunda. O desconhecido mistura-se com mais desconhecido. E abre-se a porta para todos os mistérios” (p. 7). Compare-se com a versão adusta do padre Guerra: “Os 2 surgem ao mesmo tempo, com nomes diferentes; e ambos se chamam misteriosos. Quanto mais se perscrutam, mais misteriosos se tornam: aí desembocam os mistérios todos” (Prática da perfeição, Macau 1987, p. 123). Menos religiosa, pois esta versão tem estranhas intromissões de Deus, de um Deus criador, mas mais metafísica é a versão assumidamente apropriativa de Agostinho da Silva: certamente não traduzida diretamente do chinês, mas de qualquer maneira curiosa: “O ser e o não ser são de um fundo só, e só os nomes, um do outro os distinguem. E no fundo, no fundo, escuridão lhe chamamos. E quando a escuridão mais escura a tornamos, é que abrimos as portas, estrada, aos espantos totais” (p. 19). Os espantos de uns são os mistérios de outros. Nesta linha mais filosófica, veja-se como o já citado Silva Mendes complicou, tal como Agostinho, em tratado metafísico, as mesmas linhas: “Não era que havia, não havia que pode ser viada, que essa não é a via eterna, mas havia pela qual o vir a ser veio a ser em ato simultâneo e com o eterno com o não ser, o mistério da origem, a plenitude em coeterna e absoluta vacuidade, o mistério dos mistérios!” (p. 280). É toda uma re e hiperconceptualização que dessora o Tao, remetido ao osso do conceito. E finalmente a de Graça Abreu, equilibrada e elegante: “Ser e não ser brotam da mesma fonte, com nomes diferentes. Isto parece obscuro, obscuridade entre obscuridade, mas é o patamar para todas as maravilhas” (Vega 2021, quinta edição, Tao Te Ching. Livro da vida e virtude, p. 29). Para terminar este pequeno percurso, podemos sacar exemplo de um outro contexto cultural, uma tradução norte-americana que, com pouco ou nada a ver com o texto, funciona magnificamente como poema beatnik de auto-ajuda: “Talk if you can talk about it it ain’t Tao if it has a name it’s just another thing Tao doesn’t have a name names are for ordinary things stop wanting stuff it keeps you from seeing what’s real when you want stuff all you see are things those two sentences mean the same thing figured them out and you’ve got it made.” O prefácio de Joaquim Palma, o tradutor, enferma de um certo romantismo. Entende que o Tao Te Ching é uma essência. Na verdade, e como o próprio Tao contraditoriamente afirma, é mais um compósito, algo que conseguiu chegar até aos nossos dias, naturalmente corrompido, acrescentado, amputado, como as tiras de couro postas ao dorso dos cavalos anões que atravessavam as pradarias da China e da Mongólia interior. A viagem de um texto é a da sua corrupção: “Esta abordagem parece-nos ser aquela que nos pode levar mais perto da sua essência, evitando-se ao máximo os ruídos, ornamentações e os desvios, tendências que vemos muito presentes na escrita erudita ocidental” (p. 109). É um mau princípio justificar deste modo a retirada de notas e de outro aparato, que padece do seguinte erro: os textos não são essências, não é possível regressar a uma sua pureza original, sem acrescentos, simplesmente porque isso não existe. Os textos não são essências, são antes o tal ruído do qual o tradutor se queixa. A única coisa que sobrevive é a escrita fragmentária, cortada, interpelada, invadida por outros. Quanto às versões ocidentais, as tais cheias de ruído analítico, são afinal que o criador deste texto, como aliás o próprio parece sugerir: “A escrita formatada das 81 secções segundo o estilo de verso e estrofe foi uma invenção ocidental do século 20″ (p. 108). Escolher retirar o ruído para se gerar um silêncio que é artificial é um engano. Eu prefiro o ruído, a nota, o comentário, afinal mais honestos, e que participam de uma forma mais explícita das histórias do texto, de qualquer texto. Neste sentido, até prefiro a versão maldita do padre Guerra, que tem sido vituperada por ter batizado às pressas o pobre Lao. Afinal é quase a única feita por um português que apresenta notas críticas, que debate, que increpa com astúcia os seus rivais. E por isso, a meu ver, é que mais se aproxima ainda hoje de uma edição científica. E se o leitor se incomoda com a estranha presença de um Deus cristão por entre os versículos do livro do caminho e da virtude, tem bom remédio para isso. Basta, em modo errata, riscar Deus por Tao. E não creia o leitor nas aleivosas sugestões de Graça de Abreu, que sugere que o padre Guerra se limitou a copiar a versão de um jesuíta espanhol seu amigo. Em conclusão, esta é uma bela versão de um livro tão plural, tão diferente entre si nas suas várias versões. É uma versão feminina: uma das novidades deste livro é esta entrada em cena do feminino que recebe e dilui, que é flexível e aberto (p. 100). Assim, como belo texto português, consegue mudar a nossa perceção talvez já ossificada do livro, – e muda-a em português.
Duarte Drumond Braga VozesMacau Boys: a micro-história da poesia em língua inglesa entre nós Há uns anos, o investigador Rogério Puga chamou a atenção para algo que poucos de nós conhecíamos: uma pequena linhagem de poetas escrevendo em inglês sobre Macau. A história começa logo no início de Hong Kong, quando se fundou essa colónia e os ingleses que cá andavam para lá foram. Já nos anos 1840, Sir John Francis Davis, um dos primeiros governadores de Hong Kong, andava por Macau a namoriscar Camões, e compôs um soneto latino, que foi publicado no Canton Repository, jornal de bretões de Cantão, e depois inscrito na própria Gruta. Décadas depois, W.H. Auden passou por cá e ficou fascinado com esta erva daninha católica. De um lado, a Hong Kong frenética dos negócios; do outro, esta Macau sonolenta onde santos barrocos seguravam o queixo de jogadores e opiómanos. Seu contemporâneo, um gordo militar britânico residente ao hotel Boa Vista, G.H. Jollie (1921-1950), pachorrentamente publicou “The Edge of the World: Translations from the Chinese and Some Additional Poems” (1949), sobre o território. Em 2006, nascia a Association of Stories in Macao (ASM), uma pequena organização que se propunha promover a escrita sobre Macau. O nome por trás da transformação era o de Kit Kelen, um australiano que decidiu fazer de Macau a sua casa literária. Durante treze anos, este poeta e professor da Universidade de Macau conduziu estoutra nau do trato. As três antologias que a ASM publicou entre 2008 e 2009 são prova disso. A primeira, I Roll the Dice, Contemporary Macau Poetry, reunido por K. Kelen e Agnes Vong, reuniu mais de cem poetas contemporâneos de língua inglesa de Macau, originais e traduzidos, que mostra como a literatura de língua inglesa é vértice oculto de uma triangulação que apenas tem o Chinês e o Português como início(s). E quem diz Inglês, não diz só ingleses e australianos. Veja-se o belíssimo “Pan Chai: a Filipino boy in Macau”, de Papa Osmubal, da mais interessante poesia que se tem publicado em inglês em Macau, justamente pela ASM Poetry, em 2011. Macau é terra de poetas, disse Kelen em outra parte. De alguma forma os temas repetem-se: o acaso, a sorte, o jogo. A ASM não parou por aqui. Criou parcerias, editou revistas online, publicou poetas chineses traduzidos para inglês. Kelen tornou-se editor da revista Poetry Macao e colaborou com publicações locais. Macau é de facto a porta, a passagem, como está inscrito no seu caligrama tão bem conhecido de nós, e que todos os dias vemos, na rua. Felizmente não apenas para as redes expatianas, passe o neologismo. Também para os filipino boys deste Macau.
Duarte Drumond Braga VozesRaul Brandão, os Açores e Macau Raul Brandão (1867-1930), já tocado de uma certa fama pelos seu “Os Pescadores”, visitou os Açores e a Madeira em 1924 e esteve mesmo para partir num cruzeiro às colónias portuguesas da África ocidental. E se esse barco tivesse chegado a Goa, ou a Macau? Contudo, o escritor morreu apenas cinco anos após a sua viagem aos arquipélagos atlânticos, ditos adjacentes, e nem a Angola chegou a ir, muito menos a Cantão. Seria difícil imaginar em que termos leríamos um diário de viagem desse contemplador de almas ao sul da China, que um outro seu contemporâneo, no mesmo ano nascido, Camilo Pessanha, descreveu como a terra do mal. Sobretudo face às outras, as ilhas felizes da Macaronésia. Jorge Arrimar (n. 1953), poeta angolano que nos anos 80 dirigiu a Biblioteca Central de Macau, após ter passado pelos Açores, reflete sobre essa duplicação ou triangulação insular em “Viagem à Memória das Ilhas” (2002). No fundo, Macau também é uma ilha, desdobra a peninsularidade na insularidade. Ora, os Açores e Macau mantêm ligações antigas, onde o peso da humidade não é o único denominador comum. Houve uma época em que, dizia-se, apenas açorianos e os transmontanos se aventuravam até estas paragens, daí o número vultuoso de nascidos em Freixo de Espada à Cinta ou das Velas, de São Jorge, que se encontravam ao largo do Senado. É o caso do Padre Teixeira e de José Silveira Machado, que aqui chegaram na mesma leva. Este último, açoriano que se tornou cidadão de Macau, é um dos exemplos de alguém que contribuiu para a literatura, jornalismo e educação desta península e duas ilhas ao longo de cerca de setenta anos. Por seu turno, Rodrigo Leal de Carvalho (n. 1932) — terceirense da Praia da Vitória, que desempenhou altas funções na magistratura de Macau durante várias décadas — dedicou-se também à escrita, documentando nemesianamente a vida destes outros arquipelágicos. Já a tradição açoriana em fornecer o “Mundo Português” de hierarquia eclesiástica teve os seus pináculos em duas figuras: D. João Paulino de Azevedo e Castro (1852-1918), natural das Lajes do Pico, que foi o 19.º bispo de Macau, entre 1902 e 1918. Fundou este em 1903 o longevo “Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau” e pastoreou não só em Macau, mas em toda a vasta área do sueste asiático, algumas boas ovelhas. D. José da Costa Nunes (1880-1976), nascido na Candelária do Pico, acompanhou D. João Paulino como secretário em 1903, sendo posteriormente bispo de Macau (1920-1940), arcebispo de Goa e patriarca das Índias Orientais, chegando a receber barrete de cardeal em 1962. Costa Nunes é também escritor de monta, de quem um dia aqui falarei. A este respeito, li recentemente o volume do investigador açorianófilo Vasco Rosa (n. 1958), publicado em 2019, sobre a recepção crítica da obra brandoneana sobre os Açores, “Raul Brandão e os Açores” (da Companhia das Ilhas, sedeada no Pico), e deparei-me com um livro que embora seja heuristicamente muito competente (quer dizer, pelo levantamento de fontes que promove, sobretudo fontes esquecidas dos jornais, esse vasto necrotério das ideias), revela-se, contudo, analiticamente insuficiente. Apresenta exaustivamente todo o contexto de recensão d’”As Ilhas Desconhecidas” (1926) de Raul Brandão, tanto nos Açores quanto no continente. Identifica os escritores contemporâneos que também se debruçaram sobre os Açores, distinguindo os partidários dos detratores do escritor nortenho. Todavia, poderia ter estabelecido comparações mais aprofundadas entre Brandão e os demais autores, demonstrando inclusivamente como o próprio Brandão provavelmente se inspirou nessas outras fontes. Rosa prefere apresentar o autor como um génio absoluto — não o questiono — desprovido de influências, apenas gerador de discípulos. Teria sido mais enriquecedor situar a sua obra no contexto de um diálogo com outros escritores, continentais e insulares, abandonando a conceção de um livro isolado, um livro-ilha. Paradoxalmente, apesar de todas as evidências que Vasco Rosa apresenta, sugerindo precisamente que não se trata de uma obra única no panorama literário, essa dimensão permaneceu por explorar no seu, apesar de tudo, bem útil livro. Macau também foi objeto de inúmeros relatos de viagem, de descoberta com ou sem fascínio, e todos se citam, se reescrevem uns outros. É assim que funciona. As autoridades textuais repetem-se, surgem novas, desaparecem outras, mas muita coisa é citação. Os seus nomes ficarão para próxima crónica, mas podemos perguntar-nos porque razão não funcionaria assim o belo volume de Brandão sobre as ilhas por conhecer.
Duarte Drumond Braga VozesA cama quente O texto O que é o Neo abjecionismo foi publicado pela primeira vez em 1967, em Textos Locais e, mais tarde, em 1971, em Exercícios de Estilo. Mas já em 1963 tinha sido lido por Mário Cesariny na Casa da Imprensa. O que é mais importante não é tanto Luiz Pacheco deixar claro, nessa performance-confissão, que pediu sem devolver – que pediu sabendo que não ia devolver –, mas que tentou ser livre sozinho e não conseguiu. Precisou do outro, nem que fosse para lhe pedir esmola. Na verdade, o que estava em causa na mão que pede esmola é justamente a necessidade de haver um outro. Penso que a escrita de Luiz Pacheco se dirige muito a esse outro, é como essa cama já suada por outrem onde temos que nos deitar. E como ser livre sendo pobre?, eis a questão. Ele diz que consegue, que é mesmo “intensamente livre, livre até ser libertino, que é uma forma real e corporal de liberdade; livre até à abjeção, que é o resultado de querer ser livre em português”. E que nos interessa isso, a nós e aos nossos belos salários de Macau, que ainda teimam em resistir? Em 2025, Portugal prepara-se para pedir a Luiz Pacheco que, em troca, nos dê sem que tenhamos que lhe devolver. Se eu fosse um mau cronista diria que este nato a 7 de maio de 1925 foi o enfant terrible das letras portuguesas, um homem que escolheu viver nas margens da sociedade, ou outra parvoíce assim qualquer. O projeto “Luiz Pacheco Passeia por Todo o Papel”, delineado a propósito do seu centenário, promete fazer jus ao homenageado, sem cair em semelhantes clichês. Não haverá públicos peditórios ou muito gente a dormir na mesma cama (as famosas camas quentes de Macau?), como no inesquecível Comunidade. Não nos interessa se Pacheco seria ou não contra este aparato académico, que na verdade vai muito além do académico, pois possui forte dimensão de intervenção cultural, coisas que juntas se acham raramente, e ainda por cima por todo o território nacional. Como diria o próprio: “um cadáver nunca terá razão, mesmo que a tivesse tido antes”. Nos só conseguimos olhar com os olhos dos vivos, com os olhos dos presentes. Nunca conseguiremos olhar com os olhos dos mortos. O projeto “Luiz Pacheco Passeia por Todo o Papel” é o eixo central destas comemorações, reunindo instituições académicas e culturais num esforço coordenado para tornar mais presente e Luiz Pacheco. Organizado pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o programa estende-se até 2026. A Comissão Organizadora, coordenada por Rui Sousa, preparou um programa que pretende abranger as múltiplas facetas da vida e obra do autor, editor e crítico. Através da editora Contraponto, fundada em 1950, Luiz Pacheco foi responsável pela publicação de nomes que se tornaram essenciais nas letras portuguesas, como Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Natália Correia, Herberto Helder e Vergílio Ferreira. Como autor, Pacheco criou uma obra que possui dimensão autobiográfica e crítica, em textos como “O Libertino Passeia por Braga”, “Comunidade”, “Os Namorados” e “O Teodolito”. Ter que ser escritor, crítico, revisor, editor, até censor, tudo ao mesmo tempo, não é uma graça dada pelo talento, é o percurso obrigatório de um Ulisses que atravessa o bas-fond do fascismo, agora pelos vistos reaparecente. As comemorações incluem congressos internacionais (dois!), exposições, performances teatrais e ainda a publicação das suas obras completas. Cidades como Lisboa, Setúbal, Palmela e Braga – lugares por onde o libertino passeou – serão palco de eventos diversos. O ponto alto das celebrações será o “Congresso Internacional Luiz Pacheco”, nos dias 22 e 23 de outubro em Setúbal e Palmela, que será acompanhada pela inauguração de uma exposição a partir do espólio do autor, em posse do filho Paulo Pacheco, o Paulocas de Comunidade, no dia 23, e por uma leitura encenada de textos, em Setúbal, a 24. A partir de 2026, Luiz Pacheco passeará também além fronteiras, com uma exposição itinerante que, depois de ter passado pelas cidades do seu mapa íntimo, estará também em diferentes países, do Brasil e da Colômbia a Itália, Espanha e Polónia. Na Sertã, no início de julho, a Maratona de leituras ser-lhe-á dedicada. E na Casa da Liberdade Mário Cesariny e Perve Galeria, em Lisboa, está, até final do ano, uma exposição dos seus materiais éditos e inéditos. Também com o apoio do Instituto Politécnico de Santarém, estará patente uma exposição na biblioteca Brancaamp Freire. O texto “O que é o neo-abjecionismo” – a ele voltamos por ser a chave duma obra – procura, precisamente pela ideia de liberdade, transformar em escolha radical certas circunstâncias, antes de mais uma circunstância de 48 anos, é certo, e que toda a gente sabe qual é. Não é fácil. Só se consegue quem tem uma feia cara de gente. E o libertino, não vem passear pelo Fai Chi Kei?
Duarte Drumond Braga Via do MeioMaria Ondina China Presa ao mito duma princesa oriental, longilínea e distante, parecia curtir um impalpável ressentimento. Metade Lispector, metade Pearl Buck, havia tomara ainda jovem o barco do império. Foi ainda mais além. Voltou depois para chá com tristeza em Benfica. Braga foi a sua primeira China, Macau a segunda, a China nenhuma. Mas os lusos não perdoam a quem é diferente. Não tinha cara nem de Quinta do Lago, nem de Moimenta da Beira. Vestia uma cabaia ruça, com botões verdes. Lembrava uma farda da revolução cultural. Assim, como queria que se lhe identificasse classe e proveniência imediatamente? Em Braga, não haveria nenhuma outra China a vestir? Ninguém: ; a literatura portuguesa dos 50 aos 80: desinteressantes ficções sem referência depois de desinteressantes ficções com referências. Ah, muito telúricas, com torres, casas e outros totens. Mau tempo no, a torre de, a casa de. Entretanto, todas as lutas da mulher, o conhecimento do outro, o palpar do si – tudo já está nela, diante de nós, à espera de ser encontrado. Chegamos quase às identidades contemporâneas et alii. Tão distante da pastelosa Agustina com sua pataratice de Entre Douro e Minho (esse Terreiro do Paço mais a norte) e tão mais perto de autores que parecem provincianos mas não o são nada, como o Pascoaes. Entretanto, os livros de Ondina apanham pó na biblioteca. As chaves para conhecer a China ou para conhecer o mundo (quase a mesma coisa) ficam no chaveiro. E quanta pedagogia da China (um cinto, uma estrada, um arredondamento de volta do mundo que também poderíamos nós outros formar) não nos poderia dar, quanto outro mundo? E porque não leem também Wenceslau de Moraes? Aqui não há a desculpa de ser mulher. É por falar no Japão? Seria melhor falar de Telheiras? Mas não é o Japão, ou talvez o Tibete, o verdadeiro sentido da cultura portuguesa? Para morrer o mundo? Pode ser. Para quando uma Ondina tibetana, um Wenceslau malaio? As pessoas gostam é que se fale dos seus Terreiros do Paço mentais: o de Lisboa, ou o de Times Square. O verdadeiro, por estes dias, nunca vão querer conhecer, senão daqui a largos anos – e aí já será tarde demais. É sempre longe demais, já dizia a Xana dos Rádio Macau. Et pour cause.
Duarte Drumond Braga VozesDaniel Pires, editor de Pessanha O evento que aconteceu no início deste ano na Biblioteca Nacional, Daniel Pires, mestre de investigadores celebrou um percurso discreto, muito ligado a Macau. Não apenas por isso, mas poucos nomes estão tão ligados à figura de Camilo Pessanha quanto o de Daniel Pires, que se tornou, ao longo de décadas, mais do que um leitor e um editor, o generoso construtor de ferramentas com que outros puderam ler o poeta. Quem já leu autores, com vontade de os estudar, sabe o quão precioso é haver em final de livros um índice onomástico. Do reino do papel, quase defunto, foi substituído por outras coisas. Mas diria eu que a principal atividade de Daniel Pires, em torno de Camilo Pessanha, é, sobretudo, a criação de instrumentos de investigação, a exemplo de um índice onomástico. Não são visíveis, não são vistosos, não são sequer autorais muitas vezes, e no entanto são fulcrais. As suas atividades em torno da obra de Pessanha não se encontram encerradas, sempre in fieri. Assim, não diremos “foram”, pois continuam: organizar e editar a prosa, construir uma cronologia da vida e da obra, reunir e catalogar a biblioteca privada do poeta, editar a correspondência. Por exemplo, o trabalho de reconstituição da biblioteca pessoal do poeta, publicado no volume Clepsydra 1920-2020 – Estudos e Revisões (Documenta, 2020), organizado por Catarina Nunes de Almeida, e de que versões prévias haviam saído em outros locais. Já a cronologia da vida e da obra de Pessanha segue um percurso paralelo, iniciado com a Exposição Biobibliográfica Itinerante (1991), organizada por Pires em Macau, onde se publicou o seu catálogo, e aprofundada ao longo dos anos em vários outros suportes, culminando numa versão amadurecida no volume Correspondência, Dedicatória e Outros Textos (BNP, 2012). Essa cronologia — longe de ser uma repetição das que saíram nas edições anteriores —é, na verdade, uma versão cada vez mais alentada. O retrato do poeta que, graças a Daniel Pires, se afastou da figura abúlica com que a crítica tantas vezes nos deixou. Hoje sabemos, com documentos na mão, que Pessanha participou ativamente na vida cívica de Macau, envolveu-se em comissões, foi professor, juiz, tradutor, membro da Sociedade de Geografia (sócio nº 4421, como descobriu o próprio Pires), e manteve uma rede de relações profissionais e políticas que fazem dele um agente do seu tempo. A correspondência editada em 2012 revela, com clareza, o patriotismo republicano e laico de quem denunciou o desinteresse do Estado português por Macau e procurou melhorar o funcionamento do sistema judiciário e pedagógico local. Importa também notar o valor das dedicatórias do poeta, cuidadosamente reunidas por Pires nesse mesmo volume. Num autor de escrita tão contida, essas breves ofertas manuscritas de livro são documentos que ampliam a espessura da obra, revelando muito das redes pessoais e intelectuais de Pessanha. A intervenção de Daniel Pires no domínio editorial inclui ainda a coletânea Homenagem a Camilo Pessanha (1991), organizada com o Instituto Português do Oriente e o Instituto Cultural de Macau, e sobretudo Camilo Pessanha, Prosador e Tradutor (1993), também publicado no território, onde pela primeira vez se reúne de forma sistemática a prosa e as traduções do poeta. Esta edição permanece, ainda hoje, a recolha de referência da prosa de Pessanha — uma obra que merecia ter conhecido edição em Portugal, o que, inexplicavelmente, nunca aconteceu. Apenas os textos sobre a China foram republicados pela Vega, também em 1993, numa edição intitulada “segunda”, embora a primeira tenha saído em 1944, pela Agência Geral das Colónias, e da responsabilidade de outro organizador. Mesmo a Clepsydra, território sensível e disputado por tantos editores, não lhe escapou. Veja-se a sua proposta de edição, publicada pela Livros Horizonte em 2007 com belas ilustrações de Rui Campos Matos. O ouro da Clepsydra foi sempre o mais cobiçado. Mas Daniel Pires mostrou-nos que também na prata da prosa e no bronze dos textos aparentemente secundários como cartas e documentação árida se esconde ouro de não menor fulgor.
Duarte Drumond Braga VozesO terceiro seio do bacalhau Manuel da Silva Ramos é dos mais curiosos prosadores portugueses contemporâneos, longo tempo afastado (27 anos!) em França do convívio desses ásperos tugas que habitam para além dos Montes Hermínios, a que regressou em 1997. Há uma conhecida e deliciosa história a propósito do seu primeiro livro, Os Três Seios de Novélia (1969), que obteve o premio Almeida Garrett em 1968 e que pôs a crítica em polvorosa. Óscar Lopes terá adorado, mas João Gaspar Simões (nessa altura conhecido como o Gaspas ou o Mamas, devido a certa disposição abnorme do seu corpo), talvez perturbado pela alusão ao terceiro seio, não gostou do livro. Na sequência da sua áspera critica, Silva Ramos passou a enviar regularmente, e durante um ano, carrinhas funerárias a casa do ilustre crítico, até que Simões terá pedido nos jornais para parar, pois já não suportava tamanha atenção. Destaco a sua Trilogia Tuga, escrita em parceira com Alface – Os Lusíadas (1977), As Noites Brancas do Papa Negro (1982) e Beijinhos (1996) – que, segundo o próprio, em entrevista a António Cabrita (Expresso, 5 de junho de 1999): “Desconstrói entre outras coisas o conceito de lusitanidade, ficciona o fim do império e impõe outros valores, sexuais, literários, outro tipo de correias de transmissão. E tudo isto numa linguagem trabalhada, destrabalhada, corrosiva, com muito labor por detrás”, o que é de facto uma descrição muito precisa deste trabalho literário no seu todo. O seu mais recente é Primeiras impressões de um Homem Vestido de Bacalhau (2022), editado em Lisboa pela 50kg, e impresso, tal como a Bíblia de Gutenberg, em tipografia de caracteres móveis, mas esta com o diferencial de usar papel de embrulhar bacalhau (opção que não conveio a Johannes). Apresenta o flâneur tuga, que caminha pela cidade vestido de bacalhau, e que é obviamente uma alegoria do homem português. Depara-se ele com várias figuras típicas e atípicas: o engraxador, o homem agarrado a um melão, a velha que dá restos aos gatos e o guardador de entulhos, talvez primo do guardador de rebanhos. São figuras (im)populares vistas a uma lente de aumentar ou diminuir (a porta da casa da velha é demasiado baixa), formando um bestiário luso dos últimos dias. Há neste e noutros livros do autor aquela leve tristeza indisfarçada acerca de um povo que está a desaparecer, como diz no impressionante adeusamália (1999): “Lembro-me do povo português” (p. 86). Ora acontece que o homem-bacalhau não come, passa fome. Porém, e talvez por razões óbvias, corre muito o risco de ser comido: “Esta tarde engatei uma mulher à saída de um supermercado que me convidou logo para ir a sua casa. Quando cheguei vi que vivia sozinha com nove filhos. Tive logo medo de me ‘pôr’ à mesa. Os comilões olharam-me com muito apetite. Só me restava uma solução: sair” (p. 9). A sua comestibilidade é invejada por todos, como é o caso do Padre da Penha de França, e desejada por várias e vários. O homem-bacalhau vive assim a sua vida a medo, como alguns outros portugueses, mas este por razões mais felizes: tem medo de ser sumir nos estômagos alheios. Termina desta forma o livrinho: “A vida em Portugal são foguetes que estalam ao longe e não se sabe por que motivo”. Um livro sobre Portugal, como a trilogia tuga e como vários outros do autor? Certamente que sim. A obrinha (são só umas 20 páginas), de pequenas impressões ou poemas em prosa, lembra um outro título do mesmo autor, Poesia não-potável (Lisboa: el cônsul edições, 2016). Alguns leitores mais persistentes, como o filósofo sem obra Rui Lopo, asseveram que ambos foram escritos em e sobre o bairro da Graça, à roda do início do milénio. É esse bairro lisboeta que aí se representa, contendo ainda poemas do regresso do seu longo exílio em França em 1997. Este talvez mais interesse ao nosso leitor de Macau, por relatar sucessos e infortúnios naquele pequeno oriente intramuros que vai da Betesga à Rua da Palma e onde acontecem coisas que terei pudor de contar seja a quem for: “garantem-me/ que no Cais do Sodré/ já te viram/ brochar um africano/ com garras de leoa/ e um chinês/ com luvas e pele de cabrão” (p. 43). Numa linguagem derivativa da herança surrealista, estas pequenas explorações ao Oriente da baixa lisboeta pouco nos dirão acerca da imagem das comunidades asiáticas da capital portuguesa “continuo a trabalhar decentemente, sem vagas, à oriental. Isto é, à luz de um pessimismo andarilhoso” (p. 25). Merecem antes ser lidos como uma espécie de diário sexual com um cenário multímodo, hiper-realista e ao mesmo tempo surrealizante, como sucede em todos os seus livros. Um cenário em que os nepaleses, bangladeshis e paquistaneses são agora os novos portugueses, os que vieram fazer os trabalhos que os europeus já não querem: “Bastam sete leitores e um paquistanês que vende álcool a horas tardias para um poeta como eu se sentir vivo. Um para cada dia da semana.” (p. 8) Por representar, ou já ter representado, outros valores sexuais, que o fizeram fugir ao fascismo como sendo, nas suas palavras, um exilado sexual, é contudo pena que descambe em coisas como esta: “De maneiras que eu penetrava-a mais por misericórdia” (p. 36) e outras mais que aqui não se podem reproduzir. Houve quem tenha recentemente defendido o direito de ser importunada como resposta ao me too, que diziam ser puritano. O tempo dirá quem são os puritanos, mas não esqueçamos que este poeta – para que a sua alma seja salva – não só importuna e apalpa, mas é felizmente também apalpado, como diz a abrir estas suas Primeiras impressões: “Caminho de molho por esta cidade como se Deus me apalpasse constantemente o cu”.
Duarte Drumond Braga VozesTudo o que nós não somos Outro dia, num sarau de poesia eco-queer em conhecida fundação lisboeta, apareceu uma figura com brincos de pena, talvez comprados nalguma loja dos trezentos em Braga. Embora mais se assemelhasse a uma catequista, apresentou-se como indígena e também como poeta. Além dos seus versos, disse várias coisas que talvez tenham sensibilizado a plateia. Começou por aludir ao tempo, que “vocês aqui no Ocidente valorizam muito”. Imediatamente exotizou a sua outra língua, que disse não ter marcas de tempo, como se tal coisa fosse possível. Acrescentou que estava a desaprender a língua portuguesa, como aliás a poesia dela veio a demonstrar, e agradeceu em tupi, para mostrar que tal desaprendizagem já ia bem avançada. Culpou ainda o Marquês de Pombal por lhe ter erradicado a língua que ela custosamente teve que reaprender. E o ouvinte agradeceu logo por ter sido colocado naquele confortável lugar da culpa branca e pós-colonial face a tão inusitada vítima do marquês, que os livros de História não registam. Mas a que é aqui chamado o nosso leitor de Macau? Peguemos pela alusão ao Ocidente, que talvez lhe interesse. Para persuadir a audiência, é curioso que a suposta indígena se haja apresentado como não fazendo parte do Ocidente, vindo ela de um país do extremo-ocidental, o Brasil, contudo parte da civilização euro-americana que tanto nos tem tramado. Como dizia na Pena Capital Mário Cesariny, vai sucumbir já em seguida: “Esta famosa ‘civilização ocidental’ sob a qual sufocamos mas que, felizmente, vai desaparecer em breve”. Seria caso para perguntar: se não vem do Ocidente, desse lugar onde o sol se põe, de onde vem então a nossa indígena? Entretanto, Cesariny faz ainda num outro poema uma troca, de Deus e de Cristo por outras deidades: “E o resto, o resto de mim atira ao Oriente,/ Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,/ Ao Oriente pomposo e fanático e quente,/ Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,/ Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,/ Ao Oriente que tudo o que nós não temos,/ Que tudo o que nós não somos,/ Ao Oriente onde — quem sabe? — Çiva-Parvati talvez realmente viva,/ Onde Ardhanarishwar talvez exista realmente e mandando tudo…”. Deus é substituído pelo casal Shiva-Parvati, e Cristo pelo andrógino Ardhanarishwar. Se a ideia do poeta é talvez a busca de outras fontes, de fontes alternativas ao nosso pensamento, que não no paradigma judaico-cristão, é certo que as vai buscar à Pérsia e á Índia, isto é, não por acaso aos confins do chamado mundo indo-europeu, do qual a China, na alteridade radical que sempre lhe coube (entre nós), nunca pôde fazer parte. A este respeito, a grafia antiquada do sânscrito que o poeta usa (Çiva) mostra bem que está a ler fontes francesas ainda ensopadas nesta ideia do indo-europeu. É esta correção uma desaprendizagem? Tal noção é interessante, mas não como a suposta indígena pretendia. Aqui é uma outra coisa, a correção é uma desaprendizagem a sério do tal Ocidente que nos tem de facto massacrado, mas a montante das suas próprias fontes, não uma tontice de quem acha que está fora do Ocidente. Não estou a sugerir que, para desaprendermos de ser ocidentais (o que é absurdo, além de impossível) teríamos todos que reverter a pastores de cabras indo-europeus, talvez mais distante de um europeu de hoje do que qualquer (falso) indígena. Tudo o que aquela senhora disse redundou numa lamentável auto-exotização de uma cidadã brasileira que era talvez tão indígena como qualquer outro brasileiro. Aproveitando-se das prerrogativas impostas pela lógica de cotas, aqui certamente mal empregues, cumpriu aquela função de representar a autenticidade das tais epistemologias outras, num colorido folclórico, apesar de não ter saído das nossas ou das mesmas (epistemologias). É assim uma resposta oportunista face à nossa busca do outro absolto, cifrada na figura romantizada do índio que um Krenak desconstruiu. É o outro que nos devolve o pequeno orgasmo decolonial da sua vingança; isto é, o outro que reside apenas dentro do nosso remorso. É preciso distinguir isto da verdadeira busca pelo que um pensamento outro – que tanto podem estar no Irão como no Paraguay – pode proporcionar, e não uma lamentável performance de auto-exotismo identitário.
Duarte Drumond Braga VozesOutros Albergues Quem ainda persiste nessa Cidade do Nome de Deus foi talvez em busca de um Oriente metafísico ou, mais prosaicamente, dessa outra luz que é o ouro das patacas. A cada qual seu oriente, e talvez não haja melhor oriente do que esse “Oriente ao oriente do Oriente” de que falava Álvaro de Campos, e que não é mais do que o próprio Ocidente. Afinal, o único oriente que fica depois do Oriente, feita a volta, só pode ser o Ocidente, enfim reencontrado. Vem isto a propósito de um recente livro de poesia (Tomás Sottomayor, Auberge Ravoux. Lisboa: Língua Morta, 2021) publicado em Portugal, que merece ser saudado por apontar para um mundo e para matrizes radicalmente diferentes dos que hoje se acham na jovem poesia portuguesa. Não se aproxima dos temas luso-orientais que nos têm ocupado, mas o seu autor lembra-nos aqueles que como Pessoa, começaram por um orientalismo esoterizante (ou um esoterismo orientalista) e que se foram transferindo para as tradições do esoterismo e do hermetismo europeu (Hermetismo, Cabala, Alquimia, Rosacrucianismo), o que de alguma forma este livro também dá conta (não dessa passagem, mas apenas da segunda parte). Haverá sempre aqueles que preferem o Oriente ele mesmo, mas talvez os mais interessantes de todos sejam aqueles que desde logo encontram no Ocidente o seu Oriente. Nos seus melhores momentos, como nos poemas em prosa dispersos pelo livro, Sottomayor consegue um tom próprio, com uma forte coesão de imagens: “Lentamente aflora um girassol no ventre./ Bebe a chama das raízes e consuma/ a alquimia com o rosto de criança./ Respira, e assim o laço está feito./ O nó foi consagrado sem olhos./ Já não pode evolar” (p. 10). O veio aqui ferido é a lírica “espiritual” europeia, partindo de exemplos de Camões e mesmo da tradição trovadoresca em seus enlaces com a poesia tradicional, com vista às exemplaridades simbólicas e religiosas do amor heterossexual. No livro, isto depende diretamente de um vocabulário em caixa alta, como em Ângelo de Lima e nos modernistas portugueses, que serve não só para explorar o simbolismo metafísico-religioso de linhagem rilkeana (Criança, Anjo, Fonte, Sopro, Céu), mas também visando uma linguagem conceptual ou para-filosófica que redunda num excesso de substantivos abstratos (Perenidade, Corporalidade, Virtualidade, Infinito). É contudo este último um registo demasiado pesado para o seu próprio discurso lírico, e que o livro suporta mal. Por outro lado, o espiritual decai uma ou outra vez em moral, ou moralista, quando fala da suposta decadência espiritual do mundo contemporâneo: a escravidão do homem de hoje às coisas (p. 50-51), quando não há, nem nunca houve, homens sem coisas nem coisas sem homens. Onde está a decadência num mundo que sempre assim se nos apresentou? Entre um escaninho dum mestre flamengo e um iPhone que diferença real existirá? É assim uma voz em construção, ainda não inteiramente solta das suas referências. São algumas vezes visíveis as costuras dos seus nós, como por exemplo no poema da p. 20, verdadeira reescrita de temas e material verbal de Hoelderlin. Mas o livro vai se adensando ao passar a leitura, movido por uma visão (e é da tradição da Poesia como Visão superior que se trata, p. 41) cósmica e amorosa, até mesmo órfica (p. 40), com momentos já plenamente conseguidos: “Do seio da noite arqueada/Taciturno sorvo o leite negro/ De tudo o que se perdeu./Ajoelho-me sob o peso da tua mão/E aguardo o sinal para que a minha/Se mova sem hesitação/Para arquear um novo céu./Tenho um desejo insular/Por mundos invisíveis” (p. 39). Um poema como este cifra uma situação que vem das cantigas de amor provençais: a submissão encenada do homem-vate a uma mulher que é, sem deixar de ser carnal, uma instância essencialmente espiritual, que dá o signo ou o sinal ao seu amante para que perfaça a operação mental da poesia. É certamente fora do vulgar nos dias de hoje e coloca Tomás Sottomayor na esteira de uma tradição de que saberá colher frutos imprevistos, e de que é já fruto.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasÂngelo de Lima e a nossa loucura moral Nos vinte anos passados em Rilhafoles nunca terá habitado o famoso panóptico, destinado aos loucos furiosos ou agitados, como se dizia à época. O psiquiatra Miguel Bombarda impusera-lhe no diagnóstico um vago “loucura moral”, que é como quem diz “loucura social”. Alguns anos antes, é lá que Fernando Pessoa, não se sabe acompanhado de quem, vai buscar um punhado de poemas para publicar no segundo número de Orpheu, assim respondendo a quem considerava loucos aqueles novistas, atirando-lhes como resposta um louco consumado e contumaz. Ângelo de Lima, poeta e artista plástico, nascera no Porto em 1872. Ingressa muito novo no Colégio Militar em Lisboa, do qual é expulso em 1888. Regressado ao Porto, aí frequenta a Academia de Belas-Artes. Reconhecido desenhador, chega mesmo a substituir o pintor (e também poeta) António Carneiro na direção artística de uma das muitas revistas artísticas que pululavam na capital do Norte, A Geração Nova (1894-95). Continuará ainda a desenhar nas instituições psiquiátricas que o acolheram, mas a sua obra gráfica, tocada de óbvio academicismo, não se compara à importância da sua poesia. Como militar, oferece-se para seguir em 1891 na expedição a Moçambique que apresou o Gungunhana e está também envolvido na gorada conspiração republicana do Porto, no mesmo ano, e de que tem notícias ao chegar a Adem. Depois de complicações várias, incluindo um presumível incesto e um desacato público, em 1901 é internado em Rilhafoles, hospital em que mais tempo passará, até à sua morte em 1921. A loucura domina assim como um signo fatal sobre o poeta e sua obra, não só comprometendo-lhe a receção, mas toldando ou até apagando o entendimento dela. Mais do que isso, toda a crítica – nem de propósito, Essa Crítica Louca é um título de E. Melo e Castro – está, na verdade, refém desta questão, na loucura moral de não ver o óbvio. Cem ou mais anos para ver o óbvio: Ângelo de Lima nunca foi louco, foi feito dele um louco. Bastaria olhar a métrica perfeita e a articulada desagregação gráfica dos poemas. São textos enlouquecidos de um poeta que nunca foi louco, e apenas na aparência desarticulados: “– Mia Soave… – Ave?!… – Alméa?!…/ – Maripoza Azual… – Transe!…/ Que d’Alado Lidar, Canse… / – Dorta em Paz… – Transpasse Idéa!…” Já não é esse o caso da prosa, a maior parte da qual muito possivelmente escrita mais tarde, como a carta em que disserta acerca da feia bandeira do novo regime, apesar do seu republicanismo inflamado. É já uma carta de alguém de quem foi feito um louco. Mas há que começar a ler Ângelo para além da sua (falsa) loucura. O seu caso é um de lenta patologização de comportamentos desviantes, como as obscenidades que terá proferido num teatro (“porra!”) ao ser comprimido pelo público e um incesto com uma suposta meia-irmã. É hoje em dia extremamente perturbador, e significativo do grau de controle e alienação de uma sociedade que não só encarcera alguém que diz “porra!” no lobby de um teatro, mas que ainda o patologiza com base nisso e num suposto incesto, nunca comprovado e sempre desmentido pelo poeta. Do teatro vai direto para a penitenciária, e daí para Rilhafoles, num processo de criminalização da miséria amplamente documentado por João Gonçalves, no elucidativo A Penitenciária perante a Loucura, obra de 1908. Ratoneiros, latoeiros, lavradores analfabetos é que formam a brandoniana enxurrada humana que escoa em Rilhafoles. Seria essa uma das causas da patologização de Ângelo, empobrecido e alcoólico por anos de errância? Não sou eu quem o diz, antes de mais o poeta: “Eu não sou doudo, tenho sido manejado como um puro manequim”, frase repetida por João de Deus nas Recordações da casa amarela e que, quanto a mim, deve ser lida à letra. Nas últimas linhas da sua autobiografia diz ainda: “E agora aqui estou, resultado final, sob concorrente exótica – a determinação tão arbitrária dêsse acobertado com a autoridade legal – resultado final até aqui, dêste viver aqui neste papel descrito.” É outro texto que, pela sua desarticulação, já mimetiza, pelo menos na sintaxe, as vesânias que lhe atribuem. Posto isto, falta só uma coisa, que é ler os seus poemas, lê-los realmente, e parar de os apresentar como exemplo de loucura em literatura. Parar de o tomar como exemplo de o que quer que seja. E então estaremos prontos para encontrar, por exemplo, o Oriente metafísico da sua poesia, ao qual não escapou a China, e que vai muito além dos livros de jade de uma Judith Gaultier: “– E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso/ Disse a Mu-Ang – Alguma Vez, Accaso…/ – Olha a Nuvem no Ceu… e como Corre!…/ – Assim as Horas da Ventura Minha… / – Quem Tem Filhos na Terra – Esse Não Morre!…/– Despozae – Se Sois Rei – uma Rainha/– Que É Tanto como Vós Pela Grandeza…/– E… Depois… de Espozardes a Belleza /Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!…” E é assim que, nesta reta íngreme em direção ao olvido na qual sempre vamos distraídos, ninguém se deu conta dos cem anos passados sobre a morte de Ângelo de Lima, em ano que se encontra agora perto do fim. Talvez este seja o único texto publicado na imprensa de língua portuguesa que se lhe dedica. Em Macau, o que é significativo. Esperemos que não, embora muita coisa naquele país distante seja possível, o Grande Reino do Mar de Ocidente, como lhe chamavam os missionários que chegaram à corte imperial de Pequim. Posto assim, nominalizado e substancializado pelas maiúsculas, quase que essa inglória tradução da língua chinesa parece um poema de Ângelo de Lima.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasRuy Cinatti, uma poesia com vultos Disse Jorge de Sena, no prefácio a um livro de Ruy Cinatti, que os literatos seus contemporâneos, em matéria de insulíndias não iam além das livrarias do Boulevard Saint Michel. De facto, poucos como este poeta nascido em Londres em 1915 olharam de forma tão intensa para fora do eixo euro-americano, para terras que são as eternas ilhas dos exotismos dos outros. Cinatti escolheu Timor – por ninguém desejado ou escolhido, devastado que era pela invasão japonesa e pela péssima administração – não como um lugar de sensualidades imprevistas, mas como uma geografia humana, real e sensível. Foi aí que ele deu largas a uma amorosa compreensão do espaço e das gentes, e por isso se chama Timor-Amor um de seus livros. Homem de ciência e de terreno, da agronomia (sua formação de base) e da meteorologia, passou à etnologia e à antropologia (sempre timorenses, bem entendido). Na mesma década em que dirigiu, com Tomaz Kim e José Blanc de Portugal, os Cadernos de Poesia, chefiou também o gabinete do governador desta colónia portuguesa, de quem fala num poema dos anos 70: “Desse digo eu,/ que me queria às vezes/ para seu poeta,/ sorrindo às minhas luzes de botânico,/ «Você… da Orta…/ Eu, Albuquerque!»”, um que acabou “com os miolos fritos/ pegados no teto”. Mas as tais luzes de botânico deram para ter duas plantas batizadas com o seu nome, tal como o seu predecessor em Timor, o também poeta-botânico Alberto Osório de Castro. Cinatti vai e vem daquele território português e, entre os anos de 1951 e 1956, lá o encontramos diretor dos serviços de agricultura. Porém, incompatibilizado com a administração colonial, regressa a Lisboa. As visitas à “ilha verde e vermelha” ficarão cada vez mais condicionadas, até à definitiva proibição em 1966. Metido em Lisboa, dedicou-se a uma errância mais condicionada e à poesia das famosas folhas volantes, que distribuía mão a mão. Os versos timorenses, sobretudo o livro central Paisagens timorenses com vultos (1974), conseguem grande concisão nas suas intimações sobre o espaço e as gentes: diretas, despretensiosas, abertas ao estremecimento emocional e até ao humor: “Em Díli./ Em Baucau, tanto faz.// Um médico suplicava: «Não leias António Nobre,/ que eu adoeço».” Centrada numa atenção ao quotidiano que comunica diretamente com a linguagem de alguns poetas dos anos 70, a escrita de Ruy Cinatti abre-se a um tipo de discurso que a poesia portuguesa demorou a levar a sério. Mas bem antes, já nos anos 40, Cinatti constituía uma ruptura na poesia portuguesa, já que os Cadernos pretendiam ser uma opção quer ao presencismo, quer ao neo-realismo. O outro aspecto que ressalta nos versos dedicados a Timor é que aqui se realiza, talvez pela primeira vez na poesia portuguesa, uma forma de lidar com o mundo não-europeu que o não subjuga ao filtro do império e de seus avatares. Quer dizer, não é o Timor português, projeção colonial de um Portugal sempre fora de si, que se colhe destes versos, apesar de o poeta ter vivido o império in loco e de até o ter defendido em seu estertor. Não admira, pois, que o nome do poeta tenha caído na marginalidade, apesar da galeria ilustre de predecessores, como Camões ou Pessanha, cuja escrita – tal como a de Cinatti – dependeu estreitamente das formas que historicamente assumiu o funcionalismo colonial português. Neste sentido, é a partir do precedente aberto por este poeta que alguma poesia portuguesa contemporânea pode aceitar uma representação descomprometida e cosmopolita de espaços não-europeus: de forma notável na poesia de ambiente turco e chinês de Gil de Carvalho, mas também na poesia “macaense” de José Alberto Oliveira, na série «Poemas Orientais» de Fernanda Maldonado e ainda nos curiosos poemas japoneses de Miguel-Manso, numa dispersão geocultural que contrasta com o lastro de provincianismo que também deixou a sua marca na poesia portuguesa contemporânea. É partindo dos luminosos passos de Cinatti que novos poetas instauram novas formas de se falar na Ásia em Portugal, superando as marcas discursivas do exotismo orientalista. Longe do Oriente como metáfora do império ou locus exótico, o novo Oriente da poesia portuguesa é agora uma Ásia que é um entre outros interesses culturais, geográficos e sociais. Em suma, este descentramento físico e mental em relação ao espaço europeu, a constante plasticidade discursiva e ainda a positividade de fundo cristão são coisas que juntas se acham raramente e que não voltaram, depois de Ruy Cinatti, a juntar-se na poesia portuguesa.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasMacau, Trinta Autores de Língua Portuguesa Em 2016, Monica Simas e Graça Marques publicaram o livro Contributos para o Estudo da Literatura de Macau. Trinta autores de Língua Portuguesa. Foi editado em Macau, pelo Instituto Cultural do Governo da R. A. E. M. É um livro que se vem somar à crítica produzida sobre literatura em língua portuguesa de Macau, sendo um importante momento desse esforço. Só para referir algumas obras e melhor enquadrar o interessado, nós já tínhamos algumas coletâneas ou antologias (nos anos 80 a fundamental obra em 5 volumes De Longe à China, de Carlos Pinto Santos e Orlando Neves), mas também histórias literárias propriamente dita, como a de José Carlos Seabra Pereira em O Delta Literário de Macau (2015). Estes Contributos para o Estudo da Literatura de Macau (2016), da autoria da investigadora brasileira Monica Simas e da professora portuguesa de Macau Graça Marques, são algo de diverso. Não são nem uma antologia crítica, nem um dicionário (o DITEMA teve verbetes também sobre literatura), nem um ensaio de história e de crítica literárias no seu modelo mais clássico. Ao modo de um dicionário, os 30 autores escolhidos são organizados alfabeticamente pelo apelido e não cronologicamente, mas não temos acesso aos textos, como aconteceria numa antologia, apenas a detalhados verbetes bio-bibliográficos, seguidos de escorços críticos sobre as obras desses autores. Neste sentido, há uma diferença fundamental em relação a De Longe à China, que privilegiava a divulgação. Isto mostra uma escolha pragmaticamente acertada, porque trabalhando com autores essencialmente do XX, cujas obras não são difíceis de serem encontradas, a recolha dispensa a função de dar a conhecer textos em primeira mão. Acontece que o conceito de literatura de Macau é em si mesmo um problema. Esta questão não é muito tratada pelas autoras, o que mostra que as propostas críticas de Ana Paula Laborinho, David Brookshaw ou Daniel Pires, que ganharam corpo no final da administração portuguesa do território, já assentaram, gerando uma tradição de leitura de um corpus em língua portuguesa. Assim, estes Contributos entram em cena como sofisticado manual da literatura de Macau, e bem poderia ser esse o seu título, não fora o tom didático que associamos a essa designação. Não obstante, o leitor tem aqui acesso a uma introdução a esta literatura, através de 30 autores de língua portuguesa, da segunda metade do século XIX até aos dias de hoje, num panorama crítico muito bem conseguido. Os textos críticos operam, como seria de esperar, uma série de rearrumações no cânone. Estende-se não só à poesia e à ficção, mas também a géneros como a diarística e a crítica (Graciete Batalha), bem como a crónica (António Conceição Júnior), trazendo estes duas figuras da cultura e da sociedade para a literatura de Macau. Dão-nos boas e também refrescantes leituras os excelentes ensaios dedicados a autores consagrados desta tradição literária, como Maria Ondina Braga, Henrique Senna Fernandes e Adé. Outro tipo de modificação no cânone é a entrada de novos autores, mas com produção já de monta, como Carlos Morais José. A este respeito, é de estranhar o preterimento de dois poetas importantes, Jorge Arrimar e Yao Feng. Dizemos isto mesmo apesar de sabermos que apontar ausências ou presenças a uma antologia crítica é desconhecer que o gesto antológico depende de várias circunstâncias e pretende sempre ser desencadeador de modificações no cânone literário. O texto crítico dos verbetes trabalha com vários tópicos: a identidade de Macau e a identidade macaense, a escrita de uma cidade em transformação contínua e sobretudo as formas pelas quais os autores refletem sobre uma cidade aberta, mas na qual essa abertura trouxe e traz enormes questões. A maior de todas foi sem dúvida as expectativas e incertezas em torno da transferência de soberania, que polariza – este livro mostra-o muito bem – uma série de obras que surgem entre 1986 e 1999. Em suma, os autores de Macau desprendem-se deste livro como uma constelação orgânica, enraizada nesse território chinês como um significante dos seus movimentos. Fica claro da leitura dos ensaios que estes são autores de Macau não porque tenham escolhido o território para aí habitarem por alguns anos – como foi a certa altura pensado –, mas porque devolvem um rosto em língua portuguesa a essa cidade, interrogando-a e escrevendo-a, sendo por esta razão que Macau sempre tem forte incidência temática em suas obras.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasSansão na Vingança! Nomeado secretário do novo Governador, Francisco Maria Bordalo (1821-1861) chegou a Macau em 1850, ainda a tempo de encontrar os restos calcinados do seu irmão, ao que parece melhor poeta do que ele: “Onde Camões desterrado/ Seu tão triste amor carpira/ Vivo eu pobre, eu deslembrado,//Sem ter como elle uma lyra:/ Oh! Quem china antes nascêra,/ Na minha Lorcha eu vivera/ Com velas de esteira fina;/ Que lhe importa ao china a terra,/ Se tudo qu´elle ama, encerra/A Lorcha dum pobre china?”. Escrevera a atestá-lo Luís Maria Bordalo, pouco antes de morrer na explosão da fragata D. Maria II, ao largo da Taipa. Movido por esse inesperado desastre, o irmão vai escrever uma noveleta em que o ficciona; ou semi-ficciona na verdade, pois não esconde os nomes dos protagonistas históricos, o que lhe dá um registo cronístico do qual os seus textos nunca saem inteiramente. Ambientada em Macau, onde o autor esteve uns magros 18 meses, Sansão na Vingança! (1854) – assim mesmo, com ponto de exclamação –, lê-se numa assentada. E ainda tem um arremedo de amor ultrarromântico entre o marujo poeta defunto e uma italiana fatal, que a explosão salva do adultério a tempo. Quem sabe o leitor, cansado de curtir o seu longo recesso em Macau – que nestes tempos tem voltado a ser o acantonamento para os europeus que era de início –, não dá um passeio até à Biblioteca Municipal, ao Tap Siac, onde encontrará a edição de 1980, publicada em Macau e prefaciada por Pedro da Silveira? O florentino confirma-lhe a qualidade de iniciador da ficção portuguesa de temas marítimos e ultramarinos, coisas que nessa altura se confundiam. Mas apesar de tal pioneirismo os seus livros, diz Silveira, vendiam pouco. Ocupados com os últimos fogachos das pugnas liberais, poucos ouvidos davam os seus contemporâneos a assuntos coloniais e a aventuras de bordo. Ainda não soara a hora do império, estavam longe ainda os mapas de Berlim e sua conferência. Prosador com o seu quê de naïf, faz sorrir a forma como em Sansão cede às fantasias mais absurdas do orientalismo europeu sobre a China, em particular ao famigerado “perigo amarelo”. Bordalo levanta, por exemplo, suspeitas em torno de supostas sociedades secretas chineses, que existiriam há mais de quatro mil anos, para repor ao poder a dinastia Ming e colocar os cristãos uns contra os outros. Teriam feito parte de um conluio para a destruição das naves portuguesas. Certamente que o clima anti-chinês, bem vivo nesta novela, estava ao rubro com a morte recente de Ferreira do Amaral, o que se nota ainda, de forma menos folclórica e mais sopesada, no capítulo VI, em que descreve o funcionamento de um tribunal sínico. Recorda o famigerado prefácio que Camilo Pessanha irá escrever anos mais tarde, e que tantos enganos tem gerado. Pedro da Silveira, simpático açoriano que também passou por Macau para ver como era, com muita generosidade e audácia o compara a uma “espécie de Blaise Cendras antecipado, mas sem os ousios ou a imaginação do autêntico” (Prefácio, p. vi). Um Cendras ultrarromântico é obra! Mais facilmente pensaríamos no cearense Adolfo Caminha e no seu mais conseguido Bom Crioulo (1895), de tema amoroso e talvez mais conveniente a climas náuticos. De qualquer forma, fora a marinhagem, que hoje temos como datada e algo fastidiosa, interessa mais em Bordalo as viagens que ela permitiu e que surgem descritas em várias obras, uma mina para os que estão atentos. Não é pela marinha, seu pitoresco vocabulário e quadros semi-heróicos, que me perdoe Silveira, que Bordalo deve ser recuperado, mas por uma escrita clara e despretensiosa, que se abre a muitas geografias.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasPessoa, o Oriente e a Sociedade Teosófica A palavra de ordem dos românticos alemães: “É no Oriente que devemos procurar o romantismo supremo” (F. Schlegel). Mas nunca conseguimos sair do plano das representações. Seria preciso esperar pelas vagas de emigração de proveniência dos países do mundo árabe e da Ásia, a partir dos anos 60, na Europa, e em Portugal nos anos 90, para termos acesso não a textos sufocados por traduções, mas a pessoas reais, com práticas e contextos reais. Mas já de antes o Oriente do budismo, do Hinduísmo, numa espiritualidade muito diluída e mal traduzida, exerciam um verdadeiro fascínio na Europa, ainda que sempre separado e alheio do contexto religioso, social, doutrinal em que nasceram. Acresce a isto o Esoterismo, que tantas vezes se misturou com muitas destas tradições, mas que tem uma linha europeia própria: tradição hermética, alquímica, maçónica, cabala, simbolismo cristão. Um dos movimentos que mais fama teve, e logo na segunda metade do século XIX, foi a Sociedade Teosófica, cuja principal força motriz foi fazer essa ponte entre Ocidente e Oriente, daí o seu resultado textual ser fortemente orientalizado. Esse movimento propôs uma fortíssima e sincera revalorização das espiritualidades orientais. Com efeito, a fase madura da doutrina de Helena Blavatsky (1831-1891) foi influenciada pelo Hinduísmo e, mais tarde, pelo Budismo, sobretudo depois da sua viagem à Índia, em 1878, que deu origem à esmagadora obra em seis volumes A Doutrina Secreta (1888). É de notar que, instalada na Índia desde 1883, a Sociedade deu apoio ao combate anti-colonial contra os ingleses. Fernando Pessoa descobriu a Teosofia em 1915, tendo traduzido para Português várias obras teosóficas como a da Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky, datada de 1916. Mas a sua relação com o movimento e com a Sociedade não ultrapassa o papel de estudioso e tradutor, nem consta que tenha sido filiado. De qualquer modo, a espiritualidade tradicional indiana, e asiática em geral (ou uma certa imagem dela), passa a ser um objeto de pesquisa de Pessoa e entra na formação do pensamento esotérico pessoano. Não por acaso o poeta Ricardo Reis e o filosofo António Mora sentem a necessidade de serem dois acérrimos críticos do Esoterismo, pois também no ensaio e na reflexão sobre estas questões a autoria heteronímica entra em cena. As posições da côterie heteronímica sobre esta questão são, como seria de esperar, diversas e contraditórias. O inicial respeito e fascínio conduz a um progressivo desconforto que o poeta e intelectual vai experienciando com esta tradição. Tal implica um repúdio face ao Oriente reciclado que a Teosofia apresentava, o que é visível neste apontamento inédito, datável da década de dez [c. 1917], onde se opõe a perspetiva teosófica ao Rosacrucianismo: “A Rosicrucian is a kind of occultist a man <† to> of <†> /our/ mind can understand. He cannot understand a neo-buddhist. The detestable indian sub-jugglery, called Theosophy, so despicably, taken far from the great, though diseased beauty of the Buddhism of the East, by its □ mixture with /western/ modernities” (BNP/E3, 26B-8r). Mas a crítica pessoana à Sociedade Teosófica visa não apenas as suas roupagens orientalizadas. Outro dos incómodos, para Pessoa, consistiria na vulgarização dos princípios do Esoterismo, que defendia não deverem ser massificados, ao contrário do que a Teosofia propunha, bem como no seu “humanitarismo” militante, visto pelo autor como uma espécie de novo supracristianismo, incompatível com o projeto do anti-cristianismo neo-pagão que estava a desenvolver. Confessa numa importante carta a Mário de Sá-Carneiro, datada de 6 de Dezembro de 1915, e que pode ser conferida pelo primeiro volume da edição de Manuela Parreira da Silva da Correspondência: “A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (…), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito”. Por isso, o caminho do esoterismo pessoano vai divergir para o Rosicrucianismo, a Alquimia, a astrologia ocidental. Mas certas ambições pessoanas de criar um sistema totalizante, que unisse as religiões, as filosofias, a ciência e da literatura, é da Teosofia que recebem o seu primeiro modelo e impulso de escrita.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasPessoa, Gandhi e as colónias Há uma frase manuscrita de Fernando Pessoa sobre a figura de Ghandi, já parcialmente publicado por Richard Zenith na fotobiografia Fernando Pessoa (2008). Assim reza: “O Mahatma Ghandi e a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo. E é isso por que, em certo modo, não pertence ao mundo e o nega”. O interesse pela figura de Gandhi pode ter sua origem no fato de a estada do independentista na Africa do Sul, entre os anos de 1893-1914, ter parcialmente coincidido com a permanência de Pessoa nessa colónia britânica. No entanto, no caso específico deste esboço o foco parece ser a tão indiana renúncia de si e esvaziamento do sujeito. Pessoa insinua que a tendência mística e acética é que está na base da luta pacifista pela emancipação do Mahatma. Num imaginário encontro com Ghandi, Pessoa não lhe reprocharia a luta anti-colonial, mas talvez também não a elogiasse. Interessa-lhe a sua qualidade de herói dessubjetivado, vazio de si mesmo. E para Portugal, para o fim que lhe imaginava e atribuía, não só sabemos que queria heróis dessubjetivados, mas também as colónias não eram curiosamente necessárias. Num dos muitos projetos pessoanos de escrita (não apenas poemas e autores, mas ensaios, filosofias e sistemas), há um chamado Atlantismo, de 1915. Ficaram apenas os títulos de Secções do Manifesto, texto pouco desenvolvido e meramente tópico, ficamos com uma perspetiva abrangente das dimensões deste estranho “ismo”, contemporâneo de Orpheu. Alguns desses tópicos falam em “A conceção atlântica da vida” ou em “imperialismo espiritual”, um velho projeto de Pessoa que depois animará a Mensagem. outros mais duvidosos, sobretudo tendo em vista o contexto da Primeira Guerra, são “Germanofilia de alma, anglofilia de corpo”. O mais interessante a este propósito diz: “Inutilidade e malefício das nossas colónias”. Este último tópico significa, antes de mais, a entrada em cena de Pessoa numa discussão da Primeira República e de antes, com antecedentes no pensamento de Oliveira Martins, e de outros intelectuais portugueses de Oitocentos, que advogaram a venda de Macau e sobretudo de Timor para com tal dinheiro investir em África, centro e foco do império a partir do final do século XIX. Em Pessoa estamos ainda muito longe da sensibilidade para a descolonização, historicamente trazida pela Segunda Guerra Mundial; mais perto estamos da conjuntura do tratado de Berlim de 1884 de redefinição e reforço do colonialismo em África do que com um real pós-colonialismo, para Portugal ainda muito distante. Há que pensar que o império está habituado à consideração da sua própria fragilidade através dos intelectuais portugueses, sobretudo deste a Questão Africana e do Ultimatum até 1975, no que à cultura contemporânea interessa. É por esta razão que o projeto de um imperialismo da cultura, do espírito e da literatura para o qual o Atlântico pode ser o melhor símbolo (anunciando as nossas lusofonias de hoje) é uma imagem que simultaneamente esconde e revela a hipótese de um Portugal sem colónias. Esconde-o porque é uma forma de dar sentido a um império frágil e ao mesmo tempo prova a sua fragilidade porque dela deriva, revelando-a. Afinal, como as cartas de amor, todos os imperialismos são ridículos, e se todos são ridículos, antes se prefira o que dá mais gozo, que é o imperialismo de poetas: “É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais fundo que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante. Dizemos Cromwell fez, Milton diz. E nos termos longínquos em que não houver já Inglaterra (porque a Inglaterra não tem a propriedade de ser eterna), não será Cromwell lembrado senão porque Milton a ele se refere num soneto. Com o fim da Inglaterra terá fim o que se pode supor a obra de Cromwell, ou aquela em que colaborou. Mas a poesia de Milton só terá fim quando o tiver o homem sobre a terra, ou a civilização inteira, e, mesmo então, quem sabe se terá fim.” Pessoa sabia que o verdadeiro imperialismo era pôr os outros a ler os nossos poetas, enviar as falanges anterianas para invadir Cádiz ou talvez uma outra Ceuta qualquer. Cromwell só existe para que possa existir Milton, Vasco da Gama só existe para que possa haver Camões. E esse, imperialismo, em última instância, como queria Agostinho da Silva, é sem império e sem imperador. Que os países, seus mandos e impérios, possam no futuro ser vagos e coloridos símbolos, já sem referentes, de atitudes mentais, filosóficas e literárias é coisa que aguardamos com expectativa, porque há de ser o mais ridículo e útil dos gozos de mandar.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico OrienteA Egiptomania em Portugal Um caso curioso dentre as febres de fim de século é o da egiptomania, que a Portugal também se dignou chegar. E não falamos de reproduções de estranhos monumentos junto aos Jerónimos, ou de maquilhagens bizarras, mas de poesia. No Egipto dos modernistas portugueses, as pirâmides, a esfinge e restante bric-a-brac imagético são sinais de uma ambiência hierática, rara, ritualística, e não apenas puramente exótica. Para exótico, qualquer Java ou qualquer Algarve serviria. Só o Egipto parece dar ao poema aquele misterioso timbre de sarcófago mental; envolvê-lo numa certa ambiência, tornando abstrato o que é concreto e concreto o que é abstrato. O terceiro poema da série «Chuva Oblíqua», do Pessoa ortónimo, reflete essa construção de um ambiente misterioso em pleno surto vanguardista. O Egipto atravessa o próprio ato de escrita do poema: “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/ Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides… (…)/ Ouço a Esfinge rir por dentro/ O som da minha pena a correr no papel…/ Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme”. Muito longe de qualquer descritivismo do país dos faraós, há aqui um mistério no ato de escrita que só o Egipto permite cifrar. Em Alfredo Guisado, um galego republicano da baixa de Lisboa, a atração pelo mistério redundou num travestismo metafísico junto às pirâmides, no terceiro poema da série «As Exéquias da Princesa»: “Meu Corpo é um Egipto de Saudade. /Mênfis a minha Alma. Meus sentidos/Pirâmides na minha antiguidade./ Meus seios são lagoas sempre cheias./ Múmias de reis meus olhos doloridos /E Nilos de desejos minhas veias.” É curioso que este poeta-princesa pouco se quis prolongar para além dos tempos da Vanguarda. Guisado calou-se por volta de 1918, reunindo apenas uns versinhos galegos. Ficaram só estas estranhas pirâmides do seu corpo metamorfoseado em país, e só elas conseguem simbolizar aquela misteriosa indefinição de um corpo. Já Ângelo de Lima, triste cativo vário de hospitais psiquiátricos, Pessoa juntou-o ao grupo da revista Orfeu para o seu segundo número, aumentando o escândalo. As geografias orientais de Ângelo vão além do Nilo, chegando até ao Rio Amarelo, mas é junto ao primeiro que a sacerdotisa e rainha Neitha-Kri entoa o seu próprio louvor: “Sou a Grande Rainha Neitha-Kri… /Sou Devota da Noute Pensadora…/ E Neith é grande, pelos Céus Senhora… / E eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!…”. Aqui não se trata do mistério da escrita ou do corpo, mas da reconstituição de uma liturgia perdida de uma religião mistérica ou esotérica, que o poema procura simular para isso recriando a própria língua portuguesa com palavras e expressões anómalas. O último exemplo é Luís de Montalvor, poeta órfico pouco conhecido, conquanto dinamizador de Orfeu, que se afogou com toda a família num carro que foi parar ao Tejo, uma espécie de Nilo lisboeta. Montalvor dirigiu a famosa coleção de poesia da Ática e verdade é que a sua obra poética, quase desconhecida, é-o sobretudo por ser muitíssimo parca, onde contudo se encontra a fantasia oriental «Dromedário», com elementos que citam condensadamente a temática da viagem ao Levante, mais do que precisamente ao Egipto: “Verdade ou sonho? Que importa/ ao morto olhar o rumo incerto)?/Eu sigo o sonho (e cismando!)/do dromedário pisando/silêncios do meu deserto…” Trata-se dum cenário reduzido a dados puramente simbólicos que remetem para uma paisagem essencialmente interior. O Egipto, como se vê, forneceu bons materiais para um hieratismo e um culto do Mistério que interessava aos poetas modernistas portugueses. Em síntese, é sobretudo um clima imagético e simbólico, por vezes puramente textual, como em Pessoa, que a partir dele se desenha.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasO canal e o engenheiro O canal e o engenheiro Opiário é o poema de Fernando Pessoa, publicado no primeiro número da revista Orpheu (1915) em que se estreia a voz do engenheiro naval Álvaro de Campos. Encontramo-lo a bordo de um navio, o que não seria à partida estranho, e de regresso à Europa. Mas o nosso engenheiro exprime a dada altura este estranho desejo: “Não chegues a Port-Said, navio de ferro! / Volta à direita, nem eu sei para onde”. Ora, Port Said fica na costa do mar Mediterrâneo, à entrada do Canal de Suez, de que o ano passado 150 anos decorreram sobre a abertura. O falso poeta Campos prefere antes ir para aquela direção misteriosa, entrevista por entre os vapores do ópio, e que havia sido formulada no quarto verso da estrofe introdutória: “Um Oriente ao oriente do Oriente”. É preciso ainda saber que o heterónimo escreve confinado na sua cabine, a bordo e em pleno canal. O paratexto dá a seguinte referência: “1914, Março. / No canal de Sués, a bordo”. Tudo ficcional, bem entendido. À época celebrada como grande proeza da engenharia moderna, o engenheiro Campos não parece interessar-se por essa marca do progresso material da “civilização ocidental”. Foi o pai gay de Álvaro de Campos (não que o filho deixasse de ser) e não o tímido pederasta Marinetti, que o ensinou a olhar para a tecnologia moderna. Para o poeta de Leaves of Grass, esta encontrava o seu fim último no continente americano, implicando uma genealogia civilizacional. Ora, um dos pontos focais de transferência dessa herança da Europa para as Américas é precisamente o Suez: “(…) the strong light Works of engineers,/(…)/ In the Old World the East the Suez canal” (Whitman, Passage to India), e um dos pontos de passagem da sua sexualização do cosmos, como um omphalos ou um genital do mundo. O Suez é, afinal, um episódio romântico, no sentido de haver sido assumido como forma de “progresso” técnico, afirmação espectaculosa e tardia de conquista da natureza. Na geografia simbólica da transição para o século XX, foi um local entendido como novo centro simbólico da terra, unindo Ocidente e Oriente. Aclamado como símbolo do progresso, louvado como prova de que a geografia deixaria de separar o Oriente e o Ocidente, o Oriente e o Ocidente, o canal foi quase o centro do mundo. Ao estudar o processo de construção desta obra, entra-se em pleno território simbólico, isto é, depara-se com o capital imaginário que as principais potências coloniais daquela época depuseram sobre um particular espaço geográfico. É toda uma complexa teia de representações aplicada a um espaço que, em termos materiais, se trata apenas de uma linha de água atravessando um deserto, em simultâneo causa e efeito do confronto de várias posturas ideológicas. Pouco importa a realidade objetciva, antes a sua representação, é o que o canal parece dizer, algo que na nossa modernidade não é nada estranho. Por tal razão, o projecto de engenharia é baptizado pelo seu idealizador, Ferdinand de Lesseps, como “pensée morale”, pensamento moral. O canal não é um canal, é um pensamento. Edward Said, no seu livro de 1978, Orientalism, que discute as representações que a Europa foi fazendo da Ásia, propô-lo como o sinal da viragem epistemológica que ocorre no próprio orientalismo: a passagem do Oriente, como categoria sinalizando um espaço perigoso e exterior, para uma “noção administrativa ou executiva” (2004, p. 107), já no contexto pan-imperial da segunda metade do século XIX, dominado pela Inglaterra e pela França. O feito de engenharia torna-se símbolo evidente da indistinção geográfica e política entre Oriente e Ocidente, de um Ocidente que devorou o Oriente. São, pois, vários os elementos que circulam em torno do canal. O promotor da escavação do istmo é francês, os seus construtores são egípcios, e o capital que patrocina a obra é, quer egípcio, quer o grande capital europeu. Por último, os seus detentores serão os ingleses, com a ocupação do Egipto e subsequente controlo do canal entre 1882 e 1956. É assim um fenómeno da comunidade internacional, promovido por interesses expansionistas, e que joga com a sobreposição de valores (capitais monetários e imaginários) sobre um território em constante redefinição. Se é certo que são a Inglaterra e a França os mais envolvidos na gestão real e simbólica do Suez, por serem as forças mais interessadas numa passagem de navegação entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, o canal também não deixa de remeter para a cultura portuguesa, uma vez que esta nova porta de acesso realiza por fim, ainda que por outras mãos, a necessidade antiga de chegar à Ásia por terra. O Suez vem tornar obsoleta a travessia marítima do continente africano que servira o projecto imperial português na sua formação. Ora, o português moderno e desiludido chamado Álvaro de Campos estudara engenharia naval em Glasgow. É significativo que este, como nós todos, herdeiro dos descobridores de Quinhentos se forme no Reino Unido, à altura possuidor da maior força naval do mundo. Mas agora vamos encontrá-lo duplamente desempregado. Não tem emprego certo, mero e desiludido passageiro de um cruzeiro quasi-burguês, e o mundo já não precisa de descobridores para as suas índias, já todas mais que descobertas: “Pertenço a um género de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. A morte é certa./ Tenho pensado nisto muitas vezes”.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hÍndia Mater [dropcap]E[/dropcap]nquanto os ingleses a pisavam com suas botas duras e os portugueses ficavam gratos por todos, incluindo eles próprios, se esqueceram dos restos dum velho domínio, a Europa de fins do século XVIII redescobria a Índia. O sânscrito e o indo-europeu, uma amálgama de Hinduísmo e de Budismo, o subcontinente como viveiro de religiões, madre de filosofias e de sistemas de misticismo, são ideias novas para a Europa de finais do século XVIII. Na Europa de Oitocentos, a Índia chegava para ser, em paralelo com a Grécia, um mais antigo e mais longínquo berço da Europa. Afinal, o país dos Árias era apenas a outra ponta de uma grande e comum civilização que se estendia até aos confins da Ibéria. Em 1950, um autor francês chamado Raymond Schwab interpreta todo este fenómeno, essencialmente anglo-francês, do século XIX como uma “Renaissance Orientale”, por dar origem a grande acervo de tradução e de recepção. É claro que esse processo fora já em boa parte realizado, talvez em proporções não menores, pelos missionários portugueses dos séculos XVI e XVII. Ora, apesar de conceder alguma relevância à missionação no processo, só isso chega para infirmar a tese de Schwab em abono de uma “Renascença Oriental” no termo do século XVIII enquanto novo humanismo, já que outras Renascenças orientais parecem ter sido possíveis. Ao tempo em que Friedrich Schlegel (1772-1829) compunha Sobre a Língua e a Sabedoria dos Índios (1808), aquelas fontes eclesiásticas já haviam mergulhado no ocaso das bibliotecas conventuais portuguesas, permitindo assim que a leitura parcial de Schwab se tornasse aceite. Este “novo humanismo” que o autor de La Renaissance Orientale ainda mais romanticamente leu nos autores românticos que se interessaram pelo Oriente consistiria num desejo de regresso ou de reunião com a sabedoria esquecida da outra metade do mundo. Em particular a Índia, espécie de súmula de Oriente e de Ocidente, repositório sempiterno no qual seria possível aceder à religião e à filosofia ainda em estado nascentes: ex oriente lux. Contudo, este louvor do Oriente como tendo sido grande no passado, e continuando a sê-lo apenas por referência a esse mesmo passado, certamente deshistoricizava a Índia, pondo-a como mero espelho no qual a Europa se mira para se entender na diferença. Coisas semelhantes foram ditas sobre a China, embora decerto nunca tenha ocorrido a cabeças românticas ou quejandas tomá-la por origem do Ocidente. A visão romântica do Oriente continua, portanto, a ser uma distorção a que alguns chamariam orientalista, mesmo se motivada por respeito ou até veneração. Já perto do final do século da imprensa e do progresso, nas várias tentativas de compor uma epopeia moral da Humanidade como a Lenda dos Séculos de Vítor Hugo ou a Visão dos Tempos de Teófilo Braga, a Índia foi ainda representada pelo poema dramático europeu como correspondendo a um estágio ou fase primitiva da Humanidade, ainda que responsável pela criação do sentimento religioso, no âmbito dessas várias tentativas de formular em verso complicadas sínteses da História e do pensamento. Assim, a Índia é para Teófilo um “leito de morbidez e graça” (1895, p. 148), e o cerne das “idades teocráticas” da História, num determinismo tipicamente oitocentista. É contra esta linha de representação ainda orientalista da Índia, que se prolonga pelo século XX adentro, que o goês seareiro Adeodato Barreto escreve em 1936 Civilização Hindu, em tempos a única obra que o leitor português dispunha para se informar sobre cultura indiana. Ainda que incomparavelmente mais informado, além de constituir a voz de um natural, é de novo a India Mater de matriz romântica que reside lá no fundo, sobretudo na idealização de uma Índia pacificamente civilizadora, tanto que a própria Revolução Francesa devém, para Adeodato, um exemplo de uma atitude que já tinha sido antecipada por um velho rei budista: “Eis uma verdade que as nações ocidentais não assimilaram ainda. O Dharma-raja de Açoka, reino da Justiça e do Amor, foi recordado à Humanidade pela Revolução Francesa. Mas constitui, infelizmente, ainda hoje, um ideal a alcançar!”.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hAlberto Osório de Castro [dropcap]E[/dropcap]stá por fazer a história das figuras portuguesas que viveram e escreveram o chamado Oriente Português em tempos mais próximos de nós. Todos conhecem os descaminhos de Camões e as tropelias de Mendes Pinto pela Ásia, mas quem conhece a tímida viuvez de Wenceslau de Moraes, os amores de Pessanha pela Águia de Prata, as vistas do japão em Armando Martins Janeira? Muitas vezes ligados a cargos públicos, vários escritores e intelectuais não só fizeram a sua vida nas então colónias portuguesas da Ásia, mas sobre elas escreveram, adensando uma longa tradição literária que vem do século XVI. Por exemplo, Alberto Osório de Castro (1868-1946), juiz, poeta e erudito, primo de Camilo Pessanha, seria uma dessas figuras a ser urgentemente recuperada, por ser fundadora de uma moderna linhagem de escrita sobre o Oriente em português, não só a nível literário, mas também científico. Embora amador, como vários intelectuais do seu tempo, foi um respeitado membro da comunidade científica nacional e internacional, o que comprovam as suas obras literárias, cheias de erudição orientalista e os estudos científicos éditos e inéditos no âmbito das ciências humanas e naturais. Dados como estes permitem entender a razão pela qual Camilo Pessanha, em resenha ao livro Flores de Coral (1910), lhe atribuía uma “pouco vulgar cultura científica”. Por exemplo, as detalhadíssimas anotações botânicas sobre flora de Timor que enxameiam esse que foi o primeiro livro publicado na colónia dão corpo a uma espécie de ciência feita ao sabor da pena. Percursores in illo tempore, os portugueses, como Diogo do Couto ou João de Barros, lançaram as bases epistemológicas para a criação de um conhecimento europeu sobre Ásia, do qual ingleses e franceses tomaram conta. Restou aos portugueses que depois deles vieram uma ciência mais descomprometida, por assim dizer, feita à margem, literal e figurativamente. No caso de Osório de Castro, é literalmente nas notas aos poemas de Flores de Coral (Dili, 1909) que ganha corpo um olhar simultaneamente literário e científico sobre Timor. O seu nome está muito ligado a Timor, como se sabe. Diz-se que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para essa metade de uma ilha para onde ninguém queria ir, mas que o apaixonava. Mas antes de Timor esteve por Goa, onde foi Procurador da Coroa nos primeiros anos do século XX. AÍ haveria de fundar a longeva revista científica O Oriente Português, que começou em 1907, e dirigir a biblioteca de Nova Goa, desempenhando trabalhos como arqueólogo. Em 1907, foi juiz de direito da comarca de Moçâmedes mas, saudoso da Ásia, é no mesmo ano transferido para Timor. Sidonista convicto, chegou à Metrópole ainda a tempo de ser Ministro da Justiça de Sidónio Pais, em 1919. Não voltando mais ao Ultramar, participa e preside a instituições relacionadas com assuntos coloniais. Foi jurado do VIIº Concurso de Literatura Colonial (1933) e júri do concurso literário do S.P.N. (1934) que premiou, em segundo lugar, Mensagem de Fernando Pessoa. Mas o Orientalismo de Alberto Osório de Castro é ao mesmo tempo científico e estético, dimensões muito intimamente ligadas. Desde o seu primeiro livro, Exiladas (1895) se encontram poemas que glosam elementos da erudição orientalista, como o teatro clássico indiano ou motivos de japonaiserie. De outra forma, faz a poesia conviver com a erudição e a investigação em livros como A Cinza dos Mirtos (Nova Goa, 1906) e Flores de Coral que, para além dos poemas propriamente ditos, incluem coisas tão singulares como partes pautas musicais, gravuras de antigualhas indo-portuguesas, glossários, boletins, documentos, visando contaminar a poesia pelo saber enciclopédico. Em volume, publicou ainda o livro de versos O Sinal da Sombra (Lisboa, 1923) e o relato em prosa A Ilha Verde e Vermelha de Timor (Lisboa, 1943), a sua obra mais conhecida. Num ambiente onde se cruzam diversas estéticas (Decadentismo, Simbolismo, Parnasianismo, indícios de Modernismo), é um dos mais centrais criadores de um gosto moderno pelo “oriental” na poesia portuguesa da viragem do século, bem mais que Pessanha, que em verso pouquíssimo escreveu sobre a China. E esse Oriente toca geografias diversas: Índia, Pérsia, Egito, Insulíndia (Java e Timor), Japão e China. Esta forte inscrição na produção literária do saber acerca do Oriente é de fato característica da obra de Osório de Castro, sem esquecer as ligações íntimas da sua escrita ao projeto colonial, do qual foi ativo participante. Esta parece ser a grande originalidade de um autor esquecido, quer pelos manuais de literatura, quer pela ciência.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hO Jornal Único [dropcap]A[/dropcap] comunidade portuguesa de Macau não quis ficar fora das celebrações do quadricentenário da chegada de Vasco da Gama à Índia (1898), mas os festejos cívicos revelaram-se muito contidos, devido a uma outra peste que nessa altura grassava, um surto de cólera. Ficámos só com o busto no jardim hoje que leva o nome do almirante, nos limites da cidade oitocentista. Localmente, as comemorações do centenário do Gama foram lidas como a oportunidade ideal para a afirmação do poder central na colónia, através da homenagem da comunidade às figuras do malogrado governador João Ferreira do Amaral e do militar Vicente Nicolau de Mesquita, que tomara o forte de Passaleão, hoje parte de Zuhai. Um outro resultado material destas comemorações foi a publicação do curioso Jornal Único (1898), bem uma obra do nacionalismo finissecular. Revista, mais do que jornal, e de número único, neste Jornal Único ouvimos sobretudo a voz de uma comunidade intelectual ultramarina misturada com a de alguns euroasiáticos, como o próprio organizador António Joaquim Basto. O triplo nome “Camões–Mesquita–Amaral”, monumentalizado como um pedestal para o Gama, aparece no frontispício da revista e em quase todos os textos da mesma, sublinhando a continuidade entre esses dois pares: de um lado o fautor da autonomia de Macau face à China e o seu garante; de outro o nauta e o seu cantor. Trata-se de um grande e luxuoso volume, ornado de fotografias e impresso num papel especial. Nesta antologia, quase toda constituída de textos de circunstância, o louvor do passado só faz sentido à luz da necessidade de renovar o colonialismo português, que era o programa ideológico subjacente às comemorações deste centenário. Nesta conjuntura, é dada especial relevância à posição de Macau, que em “Praia Grande” de António Joaquim Basto, a esse tempo Presidente do Leal Senado, é descrito como colónia “quasi perdida” (p. 14). O clima de estagnação que faz da Cidade do Santo Nome uma terra “anémica e sem forças para robustecer” (p. 14) atravessa também, de uma forma elíptica, textos mais surpreendentes, como um duplo soneto de Pessanha que aqui se encontra. Embora Camilo não pertença à comissão para as comemorações do Centenário e se furte a proposições daquele género, faz claramente parte de um mesmo esforço coletivo mobilizado pelos portugueses na China em torno das celebrações, ou não participaria nesta empresa de todo. “Nau San Gabriel”, com o subtítulo parentético “No quarto centenário do descobrimento da Índia” [sic], dá a ver Portugal, na calmaria pós-ultimato, através da alegoria de uma nau parada: “Inútil! Calmaria. Já colheram /As vellas. (..)Pararam de remar! Emmudeceram!”. É daqui que vem a necessidade de de novo retomar os ritmos marítimos, numa segunda viagem ou descoberta: “Velhos rithmos que as ondas embalaram). // San Gabriel, archanjo tutelar, (…)/ Vem-nos guiar sobre a planicie azul. //Vem conduzir as naus, as caravellas, /Outra vez, pela noite, na ardentia, /Avivada das quilhas. (…)/ Outra vez vamos!” (p. 14) A nau-pátria é um tema alegórico do imaginário finissecular e que aparece em muitos outros textos da época. Assim se entende que o soneto é uma glosa aos motivos oficiais, heroicos e marítimos, do centenário da Índia, no espírito do nacionalismo cultural de perfil republicano. A Nau-Capitânia, imagem da nação, necessita de uma intervenção quasi-divina para nova travessia regeneradora, cujos contornos são tão nebulosos quanto a visão que o poeta e seus coevos tinham do futuro de Portugal. Ao contrário do que alguns críticos têm dito, esta contribuição de Pessanha para o movimento de despertar nacionalista é cristalinamente nacionalista, embora com alguns ecos de vencidismo, contudo insuficientes para infirmar o objetivo bem como o valor e sentido do contexto da sua publicação. É precisamente o conhecimento do contexto de Macau e da produção em língua portuguesa feita em Macau, que aqui fazem a diferença na interpretação deste poema. E assim, apesar de o soneto parecer acusar a tese de Oliveira Martins – que impregna a literatura tardo-oitocentista – da crise nacional enquanto forma insuperável de estagnação, este poema de alguma forma inaugura a ideia que Pessoa retomará uns anos mais tarde das “Índias Espirituaes”. Esta singular ideia cinge-se a isto: as novas descobertas a fazer não serão já nos mapas físicos, mas antes nos mapas mentais, culturais e “espirituais”, ideia que o ortónimo dará corpo em Mensagem e em centenas de fragmentos ensaísticos. Mas é o discreto soneto de Camilo Pessanha que permite dar a Macau e à produção aqui feita pelos portugueses um lugar central na genealogia de uma ideia que ecoará ao longo do século XX, a de um “imperialismo cultural”, na formulação de Fernando Pessoa.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasNão há paisagem [dropcap]N[/dropcap]o meio das litanias pela inacção, pelo tédio e pela abdicação, a China aparece de repente no meio do Livro do Desassossego. Bernardo Soares podia ser o Lao Tse da Rua dos Douradores, e Pascoaes o Confúcio do Marão, mas nem por isso. De qualquer maneira, para os dois primeiros a renúncia é a libertação e é certo que só “não querer” é o verdadeiro poder. Nisso concordam, quer o mestre Lao quer o guarda-livros (quer ainda o Manuel de Barros, lá na capitania de Mato Grosso), mas o sábio assiste e dá valor às dez mil coisas, revés e convexo do vácuo. Já Bernardo nem por isso, e fica-se pela pura inação: “Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.” De resto, por que razão aparece aqui a China? Ela é aqui apenas uma metáfora do longe, e interessa aqui o seu uso conhecido como imagem do outro absoluto. É assim exemplo privilegiado para uma desconstrução do exotismo da viagem. A única viagem possível é a viagem interna, porque o único criador de diferenças e de exotismos é a alma. É difícil entender esta ideia, tão habitados que estamos – ou que estávamos, melhor dizendo – à ideia de viajar, de perder países. Na verdade, viajar é apenas uma vulgaridade, como o mesmo Bernardo disse a propósito de subir à montanha. Quem está no alto da montanha está apenas a ver o mesmo que se vê de baixo, só que de uma altura maior. Quem está no alto da montanha está apenas no alto da montanha. Assim também, quem viajou apenas se moveu uns quantos passos para a frente. Da mesma forma, quem está na China está apenas na China, foi ao termo real do continente ao qual se prende a Península Ibérica: em Vladivostok ou Dalian, comendo um bom glass noodle entre as duas Coreias, aí o termo real da península dos iberos e da terra dos zuavos. Quem está na China está apenas uns quantos quilómetros mais à frente. Lá só vai encontrar o mesmo que se encontra na Serra da Arrábida ou no Cacém, com uns quilómetros de permeio. O campo é igual à cidade, o mar é igual à terra, e esta ao rio, e assim sucessivamente. A paisagem tem sempre gente lá dentro, e essa gente é sempre e toda mais ou menos boa, ou mais ou menos má. Como consola, como ajuda, nestes tempos em que não podemos viajar, entender que viajar é apenas uma declinação pobre da (in)capacidade de sentir! Afinal, viaje quem não pode sentir, vá quem não pode ficar. Eu só encontro aquilo que os meus e mesmos olhos mostram, e daqui até à China a glauca retina não muda de cor nem de massa. São tão pobres os livros de viagens!, diz Soares: as terras de que falam, todas iguais e daninhas, imagens baças coladas a uma retina, uma fotografia que desliza como faz um verme.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasBíblicas desilusões [dropcap]E[/dropcap]m 1894, ainda a bordo do navio que o conduzia a Macau, Camilo Pessanha começou a escrever cartas ao pai e ao colega e amigo Alberto Osório de Castro. Trazem as descrições primeiras daquela cidade, bem como da travessia até lá. Mostram um registo pitoresco, embebido de leituras de Pierre Loti, um famoso autor do exotismo francês e dos crisântemos floridos que hoje já ninguém lê. É o registo do iniciante, do recém-chegado, vibrando a qualquer lastro de exotismo e não o Pessanha que nos habituámos a conhecer, ponderado estudioso das coisas da China e com muito poucas cedências ao fascinado discurso do exótico oriental, que tantas vítimas fez até hoje. É de supor que as leituras orientalistas (Loti e outros franceses) fazem parte da bagagem da sua travessia para o “pálido Oriente – pálido e rútilo” (Correspondência, p. 120 da edição de 2012, de Daniel Pires), expressão com forte olor francês a chineserias e japoneserias retirada de uma carta a Osório de Castro. E o mais importante é que estas primeiras cartas assinalam já um vivo interesse pela China e, mais importante ainda, um programa de escrita logo desde a arribação, como o desta, enviada a seu pai desde Macau: “Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente” (Correspondência, p. 228). Mas o primeiro sinal desse confronto com o Oriente tem um nome concreto, chama-se desilusão, e chega mesmo antes de o poeta chegar à China. Passado o estreito de Malaca, logo se queixa ao pai acerca do mundo que se lhe apresenta para lá da Europa. É, na verdade, tópico habitual da literatura: o velho Oriente revelando-se como desilusão, quando confrontado com o livro, isto é, a autoridade europeia com que viaja debaixo do braço, que prepara, explica e dispõe o Oriente. É o ponto da viagem no qual se desilude com Adem, cidade-porto junto ao Mar Vermelho, na primeira travessia para Macau: “Não vi coisa alguma do que dizia um artigo que eu li de António Enes: nem chins, nem turcos, nem índios, nem gregos… nem ingleses” (p. 219). O poeta confronta a sua visão com a descrição de António José Enes, um político ultramarino invocado como autoridade (desmentida) em assuntos do Oriente. Seria porventura um artigo aconselhando o viajante português sobre o que iria encontrar em viagem para Leste, e como se comportar diante de bizarrias e barbaridades. Aqui Camilo junta-se a outros viajantes ilustres da desilusão, como Goethe, Chateaubriand, Nerval ou Twain. O problema é que o Oriente moderno já não se parece nada com os textos, bíblicos e outros, como no caso daqueles turistas do Próximo Oriente a que podemos juntar o poeta da Clepsydra. O desencanto é porém mais um sinal do conhecimento superficial, e Camilo não é um turista na China, apenas nestas paragens. A China está certamente para além de qualquer encanto ou desencanto europeu, mas esta breve passagem pelo tema romântico da desilusão é importante como o momento em que a mente se prepara para conhecer o que está por detrás dos textos e criar novos textos que possam mentir de outra forma. Uma forma, digamos, mais sofisticada. Afinal, quarenta anos passados em Macau permitem mentir muito e melhor, ainda que sobre o celeste império dê para mentir apenas em prosa, que o verso, com China ou sem China, é sempre verdadeiro.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasUm flirt imperialista em Bombaim [dropcap]A[/dropcap]lguém disse que o maior castigo dado aos portugueses pelo seu extenso rol de maldades foi o de terem ao pé de cada colónia sua uma outra inglesa: Macau e Hong Kong, Moçambique e a África do Sul, Goa e Bombaim, a grande urbe da Índia Britânica. A relação entre Bombaim e Goa acontecia de forma semelhante à relação entre aqueles dois pedaços de China nas mãos dos europeus. Bombay, numa falsa etimologia a “boa baía”, servia como acolhimento dos migrantes goeses que aí mourejavam uma vida melhor. Muito depois de esta feitoria portuguesa ter sido entregue à Inglaterra como dote do casamento de Catarina de Bragança, poderíamos perguntar pelos textos em português sobre Bombaim. Provavelmente, a grande maioria foi escrita pelos próprios goeses, onde se nota o pasmo do homem da aldeia goesa face à grande metrópole. Católicos, dotados de elegantes nomes portugueses, estes cidadãos de Portugal tantas vezes se chocavam com o tratamento dado pelos britânicos à sua raça – inventora do xadrez, da matemática e da metafísica –, agora forçada a súbdita servil da rainha Vitória, ao passo que os católicos tinham formalmente assegurada a civilidade europeia. No que toca aos portugueses de hoje, continuam a querer interpretar os sinais de Portugal num território que foi sua pertença, como Luís Filipe Castro Mendes que em Lendas da Índia dedica um poema a Bombaim e à Ilha Elefanta. Foi aí que uma bela tarde batemos a tiro de canhão estátuas de Shiva e da Trimurti pacientemente escavadas na mole de uma montanha. Admiramo-nos agora muito de ver estátuas cair e manchar, como se fosse uma novidade com a qual nada temos a ver. E antes disso outras referências há curiosas à cidade indiana. A de uma carta de 1912 de Camilo Pessanha, por exemplo, referindo uma visita a caminho de Macau que lhe permitiu desfazer alguns dos estereótipos orientalistas que consigo levava. Aí deparou-se com bailadeiras bêbedas, a abastardada hieródula dos templos hindus, em lugar do misterioso e feminino Oriente: “Nunca me esquecerão as minhas deceções das primeiras viagens, ao ver, por exemplo, em Bombaim, certas supostas bailadeiras traçando mantos de chita estampada na Europa e bebendo como esponjas uma realíssima cerveja Pilsener”. Já o primo e amigo de Pessanha, o poeta e juiz Alberto Osório de Castro (1868-1946), que viveu largos anos em Goa e Timor, escreveu um poema ao «Beautiful Bombay», do livro A Cinza dos Mirtos (1906). Recontando e treslendo o poema, coisa que em literatura nunca se deve fazer, Osório de Castro pinta um episódio romântico numa cidade a que chama um “delírio do oriente”. É lá que encontra os “loiros perfis de Inglesas”, frios e altivos, junto ao clarão das carruagens que saem da grande mole do Victoria Terminus, hoje Chhatrapati Shivaji, nome do guerreiro marata que tantos trabalhos deu aos portugueses no século XVII, e é lá também que se despede da amiga inglesa: “Era o momento quase de partir./ Todo negro, o comboio fumegava./Viu-me de longe, e alta e loira, a sorrir,/ Veio dizer-me adeus onde a esperava.// Not for ever! murmurou. Sua mão/ Na minha boca a última vez poisou./ E partiu! Todo ferro o train rodou,/ Pesou-me inteiro sobre o coração.” Mas é claro que a inglesa não é realmente uma mulher, antes uma alegoria feminina do império: a Britannia ou a Lusitania, como os navios que cruzavam nessa altura o Suez. Cesário, que nessa altura ainda não namorava com o polemista Silva Pinto, tinha já forjado para a poesia portuguesa uma imagem baudelairiana para a mulher do norte da Europa: fria e distante como uma alegoria e provavelmente tão pouco mulher como esta. No poema «Frígida», de Cesário, a mulher é o ferro, o aço e o gelo, não por acaso materiais que serviram a construção dos instrumentos do poderio colonial inglês. Um destes seria o grande feito de engenharia da segunda metade do século, a abertura do Canal do Suez em 1869. Este viria a agilizar a circulação entre a Grã-Bretanha e suas distantes possessões. E é assim que o brilho e o furor da tecnologia estremecem na alvura da pele e nos cabelos da mulher, triunfante no palco colonial. O poema de Osório de Castro é então uma curiosa encenação das relações inter-coloniais de Portugal e Grã-Bretanha sob a forma de um encontro amoroso, enquanto a cidade – ausente de tudo isto como um mero palco exótico – estremece no Divali, toda ela lume e brilhos. O poeta descreve uma imensa multidão que reza, entontecida de perfumes, enquanto os gongs chamam à oração. A Índia é aqui mero cenário de um flirt imperialista, cenário do qual os sujeitos locais são retirados, tornando-se obs-cenos, mera multidão indistinta. O que lhe importa são os personagens de um drama imperial: a mulher (?) dominadora, natural de um grande Império, e o homem português, amoroso e fragilizado como o seu amesquinhado império.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasVisitas ao Samorim [dropcap]O[/dropcap] Samorim, figura histórica que em 1498 recebeu Vasco da Gama em Calicut, é personagem d’Os Lusíadas, e vamos encontrá-lo “modernizado” (como o poeta diz) em Lendas da Índia (Dom Quixote, 2011), de Luís Filipe Castro Mendes. Fruto de uma estada em New Delhi onde o diplomata viveu, o livro recolhe uma experiência da Ásia já atravessada pelo ar pós-colonial e multicultural do nosso tempo, que o obriga a nascer com várias precauções ideológicas. Começando por desmascarar estereótipos – “alguns pensam que a Índia é um país/ de milionários e de faquires…” (p. 53) –, o livro desde logo ultrapassa o modo exótico, que não sobrevive para o europeu mais do que o tempo de duas monções. Se é certo que o autor recusa tal registo, vai porém glosando velhos tópicos que dominaram a visão europeia da Ásia ao longo dos séculos XIX e XX. Voltando ao Samorim, é curioso verificar que a questão que ele traz à tona é exatamente a mesma das recentes polémicas em torno dos Descobrimentos, da escravatura e do racismo, que tem agitado as àguas da intelectualidade portuguesa, em televisões e jornais: “Não causou estranheza ao Samorim que o Gama usasse com ele o verbo «descobrir»:/ tinham menos sensibilidade colonial aqueles reis/ e o «olhar antropológico» era para eles uma questão de mercado.// É verdade que o verdadeiro mundo colonial só veio depois./ Subramanyam estranha que o Samorim tenha deixado o Gama dizer/ que viera «descobrir» aquelas terras, de todos conhecidas,/ e insinua confusão dos tradutores árabes.// Mas o Samorim pensava/ que estava tanto a descobrir aquela gente como a nossa gente/ o estava a descobrir a ele./ O comércio tinha que crescer/ E a concorrência era proveitosa./ Não era nem um combatente da liberdade nem um leal colonizado:/ era o Samorim!” (“1498: Modernidade do Samorim”, p. 127) Para Castro Mendes, o Samorim não é nem o anacrónico freedom fighter pós-colonial (no sentido anti-colonial deste último termo), mas também não é uma figura sem existência real fora d’Os Lusíadas. Assim, o Samorim “moderno” do autor representa um pragmatismo diplomático e económico que visa desconstruir o complexo pós-colonial português: o Samorim tratou com Gama com pragamatismo e não se importou em ser “descoberto”. A introdução de uma dimensão crítica e de debate no poema, para a qual não se coíbe de apresentar nomes (como o do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam) e de emprestar voz às posturas em confronto, é uma das dimensões mais interessantes deste livro. Nesta visão que se pretende descomplexada, quer em relação à Ásia, quer em relação a Portugal, torna-se absurdo pedir desculpas pela História – “A História (…)/ serve agora para pedirmos desculpa do passado,/ dispensando-nos de olhar para o presente”, (p. 43). A questão não é porém assim tão simples, na medida em que todas as posições são ideologicamente comprometidas e feitas a partir do ponto presente, mesmo as que buscam repor a tal verdade histórica ou encerrar estas questões na esfera da culpa, do remorso e do complexo, no sentido psicanalítico do termo. Esta discussão bastante viciada esconde talvez a dimensão mais interessante do livro. É por entre esta questão, com muitas armadilhas e alçapões, que se assume que Lendas da Índia trata, não apenas da Ásia, mas também de uma Ásia que é Portugal, embora não já num sentido imperial. As tais marcas que a cultura portuguesa deixou na Ásia são também Ásia, e são hoje (talvez sempre o tenham sido) mais Ásia do que Portugal.