O terceiro seio do bacalhau

Manuel da Silva Ramos é dos mais curiosos prosadores portugueses contemporâneos, longo tempo afastado (27 anos!) em França do convívio desses ásperos tugas que habitam para além dos Montes Hermínios, a que regressou em 1997. Há uma conhecida e deliciosa história a propósito do seu primeiro livro, Os Três Seios de Novélia (1969), que obteve o premio Almeida Garrett em 1968 e que pôs a crítica em polvorosa. Óscar Lopes terá adorado, mas João Gaspar Simões (nessa altura conhecido como o Gaspas ou o Mamas, devido a certa disposição abnorme do seu corpo), talvez perturbado pela alusão ao terceiro seio, não gostou do livro. Na sequência da sua áspera critica, Silva Ramos passou a enviar regularmente, e durante um ano, carrinhas funerárias a casa do ilustre crítico, até que Simões terá pedido nos jornais para parar, pois já não suportava tamanha atenção.

Destaco a sua Trilogia Tuga, escrita em parceira com Alface – Os Lusíadas (1977), As Noites Brancas do Papa Negro (1982) e Beijinhos (1996) – que, segundo o próprio, em entrevista a António Cabrita (Expresso, 5 de junho de 1999): “Desconstrói entre outras coisas o conceito de lusitanidade, ficciona o fim do império e impõe outros valores, sexuais, literários, outro tipo de correias de transmissão. E tudo isto numa linguagem trabalhada, destrabalhada, corrosiva, com muito labor por detrás”, o que é de facto uma descrição muito precisa deste trabalho literário no seu todo.

O seu mais recente é Primeiras impressões de um Homem Vestido de Bacalhau (2022), editado em Lisboa pela 50kg, e impresso, tal como a Bíblia de Gutenberg, em tipografia de caracteres móveis, mas esta com o diferencial de usar papel de embrulhar bacalhau (opção que não conveio a Johannes). Apresenta o flâneur tuga, que caminha pela cidade vestido de bacalhau, e que é obviamente uma alegoria do homem português.

Depara-se ele com várias figuras típicas e atípicas: o engraxador, o homem agarrado a um melão, a velha que dá restos aos gatos e o guardador de entulhos, talvez primo do guardador de rebanhos. São figuras (im)populares vistas a uma lente de aumentar ou diminuir (a porta da casa da velha é demasiado baixa), formando um bestiário luso dos últimos dias. Há neste e noutros livros do autor aquela leve tristeza indisfarçada acerca de um povo que está a desaparecer, como diz no impressionante adeusamália (1999): “Lembro-me do povo português” (p. 86).

Ora acontece que o homem-bacalhau não come, passa fome. Porém, e talvez por razões óbvias, corre muito o risco de ser comido: “Esta tarde engatei uma mulher à saída de um supermercado que me convidou logo para ir a sua casa. Quando cheguei vi que vivia sozinha com nove filhos. Tive logo medo de me ‘pôr’ à mesa. Os comilões olharam-me com muito apetite. Só me restava uma solução: sair” (p. 9).

A sua comestibilidade é invejada por todos, como é o caso do Padre da Penha de França, e desejada por várias e vários. O homem-bacalhau vive assim a sua vida a medo, como alguns outros portugueses, mas este por razões mais felizes: tem medo de ser sumir nos estômagos alheios. Termina desta forma o livrinho: “A vida em Portugal são foguetes que estalam ao longe e não se sabe por que motivo”. Um livro sobre Portugal, como a trilogia tuga e como vários outros do autor? Certamente que sim.

A obrinha (são só umas 20 páginas), de pequenas impressões ou poemas em prosa, lembra um outro título do mesmo autor, Poesia não-potável (Lisboa: el cônsul edições, 2016). Alguns leitores mais persistentes, como o filósofo sem obra Rui Lopo, asseveram que ambos foram escritos em e sobre o bairro da Graça, à roda do início do milénio.

É esse bairro lisboeta que aí se representa, contendo ainda poemas do regresso do seu longo exílio em França em 1997.

Este talvez mais interesse ao nosso leitor de Macau, por relatar sucessos e infortúnios naquele pequeno oriente intramuros que vai da Betesga à Rua da Palma e onde acontecem coisas que terei pudor de contar seja a quem for: “garantem-me/ que no Cais do Sodré/ já te viram/ brochar um africano/ com garras de leoa/ e um chinês/ com luvas e pele de cabrão” (p. 43).

Numa linguagem derivativa da herança surrealista, estas pequenas explorações ao Oriente da baixa lisboeta pouco nos dirão acerca da imagem das comunidades asiáticas da capital portuguesa “continuo a trabalhar decentemente, sem vagas, à oriental. Isto é, à luz de um pessimismo andarilhoso” (p. 25).

Merecem antes ser lidos como uma espécie de diário sexual com um cenário multímodo, hiper-realista e ao mesmo tempo surrealizante, como sucede em todos os seus livros. Um cenário em que os nepaleses, bangladeshis e paquistaneses são agora os novos portugueses, os que vieram fazer os trabalhos que os europeus já não querem: “Bastam sete leitores e um paquistanês que vende álcool a horas tardias para um poeta como eu se sentir vivo. Um para cada dia da semana.” (p. 8)

Por representar, ou já ter representado, outros valores sexuais, que o fizeram fugir ao fascismo como sendo, nas suas palavras, um exilado sexual, é contudo pena que descambe em coisas como esta: “De maneiras que eu penetrava-a mais por misericórdia” (p. 36) e outras mais que aqui não se podem reproduzir. Houve quem tenha recentemente defendido o direito de ser importunada como resposta ao me too, que diziam ser puritano. O tempo dirá quem são os puritanos, mas não esqueçamos que este poeta – para que a sua alma seja salva – não só importuna e apalpa, mas é felizmente também apalpado, como diz a abrir estas suas Primeiras impressões: “Caminho de molho por esta cidade como se Deus me apalpasse constantemente o cu”.

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