Animais fantásticos da China XVII – O gudiao

Ana Jacinto Nunes

Esta nossa demanda por terras chinesas obriga-nos, por vezes, a enfrentar criaturas de horror, cuja existência incita os homens a interrogar os deuses sobre a sua original bondade. Como podem deuses benevolentes permitir a semelhantes criaturas assombrar a terra entre os Quatro Mares onde uma humanidade valerosa se esforça por ser respeitadora e submissa aos seus preceitos e vontades?

A pergunta incha de indignação quando a experiência nos diz que as principais vítimas destes seres de pesadelo são, geralmente, inocentes maculados pelo único pecado de se encontrarem em sítio funesto à hora errada. O mal tem uma inegável preferência por aqueles que, em termos de pensamentos e acções, muito pouco se encontram submetidos aos seus desígnios, nem frequentam os espaços onde os seus modos favoritos habitualmente proliferam.

Tomemos o horrendo exemplo do gudiao, uma feroz besta que habita o monte Luwu, duas montanhas a leste do monte Xun. O terreno em Luwu é particularmente seco, o que limita de forma radical o crescimento de vegetação: além de ricos minerais, pouco mais se apresenta ao viajante que ousar aventurar-se por estas paragens. Ali nasce o rio Zegeng, afluente do rio Pang. Ora é ao longo do seu curso atribulado, através de pontudos rochedos e aflitivas depressões, que habita o gudiao, uma espécie de abutre cornudo, senhor de rica plumagem e que ostenta uma cauda semelhante a uma serpente. Contudo, a sua característica mais repugnante é o bico em forma de gancho, com o qual se apraz a desfazer e deglutir seres humanos, por cuja carne detém um particular apetite.

Esta preferência agudiza-se quando a vítima se trata de uma criança ou uma jovem mulher. Alguns afirmam mesmo que o gudiao adquire rapidamente o vício da carne humana e, para o mitigar, não terá outro remédio que não seja caçar e absorver o almejado petisco, após o que sossega, até que os roncos inclementes do seu estômago vazio de novo o lancem na busca do seu predilecto alimento. Tal como outras bestas comedoras de humanos, também o gudiao aprendeu a imitar o choro de um bebé. E fá-lo com arte e convicção, de modo a assim atrair numerosas vítimas que, desgraçadas, só demasiado tarde reparam ter caído numa mortal armadilha.

Por que razão criaram os deuses tal estirpe de criaturas e lhes permitem refocilar na carne dos inocentes? Este tipo de questão poderia causar alguma confusão nas mentes mais vulneráveis, mas valem-nos as palavras de mestre Zuo (Zuozi), inscritas na pedra:

“Não compreender os actos de um gudiao equivale a não compreender os nossos próprios actos. O homem não se deve crer aparte da natureza ou superior nas suas acções aos outros dez mil seres. Se avaliarmos com integridade (cheng) o nosso coração (xin) – as nossas motivações, os nossos pensamentos, as nossas acções –, logo descobriremos que o comportamento do gudiao se queda muitos graus abaixo do nosso numa escala de iniquidades. Nós, os humanos, somos todos canibais. Da carne e da alma dos nossos semelhantes, fazemos festa e fortuna.”

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