Shee Vá, médico gastroenterologista

O médico gastroenterologista Shee Vá considera que o diálogo entre médico e paciente é a solução para uma melhoria dos cuidados de saúde e diz que, muitas vezes, os problemas na saúde chegam por causa de desinformações. O médico alerta ainda para o facto de a Ásia estar a ver crescer os números de doentes de Crohn

Comecemos pela performance do Hospital S. Januário. A reputação desta instituição hospitalar tem vindo a ser afectada por uma série de casos de alegado erro de diagnóstico, entre outros. Qual é a sua opinião sobre isto?
Em termos de erro de diagnóstico, as coisas devem ser vistas de uma perspectiva de inserção social. Com isto quero dizer que a informação que o público tem e a informação médico-científica, às vezes, não é a mesma. Comparativamente com Portugal, onde trabalhei durante mais tempo, o que vejo é que em Macau existe muita desinformação. Nem a população tem educação suficiente para compreender o que se passa, nem os médicos por vezes têm tempo para informar os doentes. E estes vêm, muitas vezes, com determinadas exigências.

Como é que isso se pode resolver?
Acho que é preciso encontrar o equilíbrio entre as duas coisas: entre a exigência que os doentes têm relativamente ao hospital e os serviços que o hospital tem para lhes oferecer. Precisamente por causa disso é que há exames de diagnóstico que são feitos e são completamente desnecessários. Em Medicina, podem fazer-se exames complementares, mas estes, normalmente, não indicam aquilo que os doentes têm, clinicamente falando. Pode é descobrir-se outras coisas, mas que não são relevantes o suficiente em relação à razão pela qual o doente foi ao hospital. Conclusão: vamos ter um segundo diagnóstico que não seria o inicial, o que pode ser entendido como erro de diagnóstico. A segunda situação que se põe é perceber se o hospital tem capacidade para lidar com todos estes doentes. Na minha opinião, acho que com diálogo, tudo se consegue. Se nós, como profissionais de saúde, e a população conseguirmos chegar ao diálogo, ficamos no mesmo diapasão, mas isso não acontece. Isto porque a desinformação gera muitos dos problemas relativos à saúde, que pode acontecer aqui no hospital e noutras instituições de saúde.

O S. Januário regista várias centenas de pacientes por dia em termos gerais, mas muitos residentes dizem continuar a preferir a Medicina Chinesa à Ocidental. Acha que ainda há uma certa confusão na forma como as duas são percepcionadas?
Confusão não acho que haja. A ideia geral é que todos os doentes procuram a Medicina Oriental primeiro e só depois a Ocidental. Quase todos mesmo.

Para todo o tipo de doenças?
Para uma gripe tratam-se com os chás, mas também para doenças mais graves. Tem que se perceber – e isto faz parte da cultura chinesa – que os pacientes se sentem doentes pelos sintomas. Isto é, quando não têm sintomas, não sentem que estão doentes e recorrem à Medicina Chinesa para tratar de sintomas e não de doenças. A Medicina Oriental é orientada para uma medicina de sintomatologia e tratamentos deste tipo, que é onde pode haver falhas no estabelecimento da ponte entre a Oriental e a Ocidental, na qual interessa mais tratar a doença e não o sintoma. Tudo isto pode gerar conflitos na relação entre médico e paciente, pelo que estas coisas têm que ser entendidas como diferentes funções do médico, que tem que ter um horizonte aberto para poder compreender este tipo de coisas.Shee Vá

É realmente possível juntar as duas medicinas?
Sim, tem havido avanços nesse sentido, até porque já os Serviços de Saúde têm médicos de Medicina Oriental em funções, nomeadamente sessões de Acupunctura a funcionar nos centros de saúde. Mesmo na área de Oncologia, usa-se muito a Medicina Tradicional, porque algumas pessoas confiam mais neste tipo de tratamentos, por não terem tantos efeitos colaterais. Até em Portugal estamos mais abertos a esta situação.

É médico especialista da área da Gastroenterologia e é também auxiliar activo, enquanto profissional de saúde, da Associação Mútua dos Pacientes de Crohn e Colite Ulcerosa. Qual é o objectivo desta associação?
Esta é uma associação criada de doentes para doentes e que tem por fim o apoio mútuo entre os pacientes de Doenças Inflamatórias do Intestino. É uma doença relativamente nova em Macau e em todo o Pacífico. Há 30 anos, praticamente não existia doença inflamatória do intestino nesta zona do globo e começaram a aparecer um ou outro caso apenas. A incidência e prevalência desta doença na Ásia-Pacífico eram muito reduzidas e, desde há 20 anos, cresceram em flecha. Posso dizer que não existem estatísticas relativas a Macau, mas em Hong Kong triplicaram os casos. Os últimos números apontam para a existência de mais de 2300 doentes, que é muito.

Qual é o perigo deste aumento?
O seu surgimento na Ásia incide sobre pessoas mais novas do que no Ocidente. Em Portugal, costuma acontecer na faixa dos 20 aos 30 anos e aqui estamos a ter cada vez mais casos em adolescentes e em situações mais complicadas.

Que tipo de complicações mais graves podem surgir nestes pacientes?
Os abcessos e as fístulas no sistema digestivo, que são de muito difícil tratamento. O que acontece nos adolescentes é que muitas vezes não se têm em conta as doenças abdominais, por exemplo, esse tipo de patologia. Isto faz com que o período de diagnóstico seja mais demorado, consequentemente piorando o estado do doente. A referida Associação serve então para facilitar a passagem de informação entre os doentes adolescentes, procurar resolver e integrar estes jovens, que muitas vezes têm que faltar ao trabalho ou às aulas, o que afecta muito o seu dia-a-dia. Uma vez que são adolescentes, os pais também têm um papel importante de responsabilização, que também é discutido na Associação.

Tem conhecimento de estudos e investigações que estejam a ser feitos em Macau sobre estas doenças?
Que eu tenha conhecimento, não.

E os serviços de saúde locais, como o S. Januário, têm capacidade para acolher e tratar estes doentes?
Pelo menos da doença inflamatória do intestino, sim. Precisamente porque houve este aparecimento em flecha e se tem chamado muito a atenção para esta zona do globo. Os médicos estão cientes desta patologia e, estando cientes, o diagnóstico é feito de forma mais eficaz, tal como o tratamento.

Da literatura, A primeira obra de ficção

Apresentou esta semana o livro “Uma Ponte para a China”. É a sua primeira obra?
Este é o primeiro livro. Comecei a escrevê-lo quando ainda estava em Portugal e fala sobre a cultura chinesa, principalmente porque comecei a aprender Mandarim. Trata-te de uma homenagem às minhas origens e aos meus professores.

Que conclusões tirou depois do curso de Mandarim?
Que a língua é muito difícil, principalmente porque – e esta é uma visão médica – a sua estrutura é diferente da portuguesa. Tendo isso em conta, é complicado para uma mente ocidental integrar-se no pensamento oriental. Como tenho genética chinesa, pode ter-me sido mais fácil e dediquei-me um bocado mais ao estudo, mas acredito que é preciso muita persistência para se aprender. Quis escrever o livro para demonstrar o quão difícil é aprender a língua e as formas de ultrapassar isso mesmo.

Que língua se falava quando era pequeno?
Os meus pais falavam Cantonês, mas toda a minha educação e mentalidade foi inteiramente ocidental. O que eles me ensinaram, ficou memorizado, mas era um analfabeto em Chinês porque não sabia ler nem escrever. O conhecimento ajudou-me, mas não foi determinante. Comecei a escrever o livro então nestes termos e a explicar como é que os ensinamentos dos meus professores me fizeram a tal ponte para a China, dos países lusófonos.

Como é que o resto do livro se processa?
Depois da aprendizagem da língua, contei histórias de personagens que criei para estabelecer a tal ponte para Macau, que achei importante, e depois de Macau para a China. Para essa passagem, arranjei um casal em que ele é chinês e ela portuguesa. Em seguida, com provérbios e histórias chinesas, abri um bocado a janela para a China.shee va

Em termos de origem… As suas raízes estão na China ou em Macau especificamente?
Os meus pais são da região de Cantão, fui lá visitar a minha família. A minha mulher é aqui de Macau e por isso posso dizer que me sinto um bocadinho chinês, mais do que era há 40 ou 50 anos.

A sua ligação a Macau começou com a Medicina?
Sim. Vim para Macau a primeira vez nos anos 80, através de um colega natural daqui. Na altura, quando se proporcionou, viemos trabalhar depois de acabarmos o curso de Medicina. Foi aqui que conheci a minha mulher e nasceu o meu primeiro filho, portanto logo aí fui criando raízes. No entanto, sinto que há uma enorme diferença entre a Macau dos anos 80 e de hoje em dia.

Que principais diferenças aponta?
São enormes, nomeadamente em termos sociológicos. Apesar de Macau ser um território pequeno, onde várias comunidades parecem conviver, cheguei à conclusão de que isso não acontece realmente. A imagem que tenho de Macau e das comunidades é que todas são rodas dentadas de uma máquina a funcionar. Como tal, funcionam porque ambas vão girando, quase que em paralelo, mas sem intersecções. Contudo, há intersecções, sim, que são os macaenses. Há outras diferenças, mas a que mais sinto é, sem dúvida, nas comunidades. Hoje em dia, com os casinos, há necessidade de mais recursos humanos e vêem-se nacionalidades que quase não existiam cá, como da Indonésia ou Filipinas. Chamaria à comunidade uma mistura, mas é mais uma variedade.

Como é que o bichinho da escrita cresceu?
Talvez por influência dos mestres. No livro não fiz quase referência à minha profissão de médico, até porque não tem nada que ver com Medicina. Existe a ideia – e foi-me transmitida pelos meus professores – de que, e cito o médico Abel Salazar, “O médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe”. Isto quer dizer que, como homens da Ciência, também devíamos enveredar por outros caminhos. Talvez tenha sido isso, até porque o professor Mário Quina, que foi um dos meus mestres, foi campeão olímpico de Vela além de exercer Medicina. Posso dizer que sou de uma geração adulta envelhecida que se habituou a olhar para os doentes e inspeccionar e descrever do doente e da doença sofrida. Este armamento descritivo perdeu-se com a introdução das novas tecnologias, onde há análises para tudo. Os médicos escritores são tradição em Portugal, como temos Miguel Torga, Lobo Antunes, Fernando Namora… Vêm todos desta escola. Provavelmente absorvi algo desta academia e quando surgiu a oportunidade de divulgar a cultura chinesa para o mundo lusófono – acho que a China entrou agora para o mundo –, aceitei a ideia. Quis enveredar por este campo para que as pessoas percebam os vários aspectos do que é ser chinês.

E vêm mais livros a seguir?
Sim, já tenho algumas coisas escritas. Provavelmente, serão também para publicar, só ainda não sei quando. É ainda preciso fazer a revisão, mas estão várias coisas escritas.

Serão em que âmbito?
A maioria baseada na cultura chinesa e de ficção. O próximo penso que será mesmo um romance e a seguir tenho já muita coisa escrita sobre Ópera, outra das minhas grandes paixões. Resolvi escrever um livro sobre as óperas que Macau já vi durante todos estes anos do Festival Internacional de Música, desde 87 até agora. A ideia é divulgar a Ópera enquanto género musical, dar os enredos e aquilo a que as pessoas devem ouvir e dar atenção. Mas como não podia deixar de ser, fiz um guia de Ópera aliado a um romance, onde um personagem vai relatar a sua experiência em relação às óperas.

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