Francisco e o essencial

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m plena Idade Média, um jovem aristocrata foi tomado pela febre de Deus. Desfez-se de todos os seus bens materiais e partiu para a floresta, onde fez jura de viver até lhe ser concedida a prova última da existência do Ente Supremo. Francisco comeu bagas e conviveu com lobos, a quem achou maior humanidade que aos homens e chamou-lhes irmãos. Os jejuns, as dietas radicais, as vigílias e a muita oração teriam de surtir efeito. Depois de uma crise mística, Francisco acorda santo, crismado com os estigmas de Cristo: na sua carne tinham-se gravado as feridas divinas, infligidas na Crucificação, por escorria o Sangue que haveria de verter perdão no mundo.
O novo santo estava decidido a imitar o exemplo de Jesus: levar uma vida de prédica, na qual estaria ausente qualquer bem material, à excepção do burel castanho, atacado com um simples baraço, que passou a ser o uniforme da sua Irmandade. Os franciscanos tornaram-se, com o passar dos séculos, uma das mais importantes ordens monásticas da Cristandade. papa
O exemplo de Francisco ressoa fundo no coração dos verdadeiros cristãos e, por isso, foi com alegria que assistiram ao cardeal Bergolio adoptar este nome, de significado muito concreto, quando foi eleito Supremo Pontífice. Restava saber se conseguiria e estaria mesmo disposto a fazer jus ao exemplo escolhido ou se tal não passaria de um gesto de boas intenções, dos quais está o Papado cheio.
Dentro do contexto católico, as acções do Papa Francisco têm sido, de uma forma geral e com uma ou duas excepções, realmente merecedoras do santo que as inspira. Exemplo de humildade, de tolerância e de inclusão, este papa enfrenta vários combates no seio da sua própria Igreja. Por um lado, estão os tradicionalistas que se escandalizam quando é dito que de ateus e homossexuais também pode ser o reino dos Céus. Depois existem os ritualistas, a quem choca a humildade e a falta de pompa e circunstância dos rituais sob a vigilância de Francisco. E temos ainda a “organização”, prenhe de escândalos financeiros e de pedofilia escondida, que este papa decidiu abanar.
Todas as suas acções têm sido (ou parecem ser) no sentido de credibilizar e modernizar a Igreja, uma instituição religiosa que cada vez enfrenta mais dificuldades no terreno e sofre os ataques de inúmeras seitas cristãs que, praticando uma religião de proximidade, atraem cada vez mais fiéis.
Mas o que me parece mais importante na acção do Papa é a sua tentativa de recuperar a palavra e o exemplo crístico, como modelo para o comportamento da sua Igreja e dos que a seguem. Fazer do amor, da tolerância, da compreensão e da compaixão pela dor alheia os vectores centrais de uma vida, em tempos do deus Dinheiro.
Francisco sabe que, quando tudo parece perdido ou em vias de se desmoronar, temos de voltar atrás, ao tempo original, e lembrarmo-nos, uma e outra vez, com fé e com esperança, daquilo que é realmente essencial. Na religião e na vida.

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